LINGUAGEM, DISCURSO E IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE NECESSÁRIA Dulce de Oliveira Valério - UTP Luiz Carlos Eckstein - UTP Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção de mundo. Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum de conformismo, somos sempre homens-massa ou homens coletivos. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e levá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido.(GRAMSCI,1995, p.13) 1. Introdução A contemporaneidade apresenta mudanças que afetam todos os setores da sociedade, inclusive a educação. Estas mudanças instituem novas concepções de tempo e espaço, abrindo caminhos para formas inovadoras de pensar e agir. Isto exige que os profissionais da educação do século XXI possibilitem aos alunos não apenas conhecer-se como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, mas, sobretudo conscientizá-los a participar, como cidadãos, no mundo de forma crítica e coerente, ultrapassando o conceito de homensmassa, que têm uma concepção desagregada e fragmentada de mundo. Por este compromisso, pensar em processos formativos significa pensar em linguagem e discurso utilizado nesses processos formativos e, consequentemente, nos compromissos da gestão da educação. Portanto, pensar em processos formativos significa comprometer-se com todas as diretrizes e bases da educação nacional expressas na Lei 9.394/96 1 Significa entender o imenso valor do ensino de qualidade que deve ser desenvolvido na educação escolar como fundamental instrumento que habilita à conquista da cidadania. Significa entender que a nossa Carta Magna da Educação Nacional expressa uma política de ensino que “disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias”(BRASIL, 1996, Art. 1º § 1º). 1 2 que não se reduz e circunscreve ao tratamento do ensino de forma restrita, específica e isolada, mas que prescreve todas as diretrizes e bases que possam garantir um ensino de qualidade que prepare para o “exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”(BRASIL, 1996, Art. 2º), tendo com base a ética humana. Isto significa comprometer-se, através do ensino, com as questões que afetam o desenvolvimento da humanidade que se expressa em cada ser humano que não tem a possibilidade de se desenvolver. significa, portanto, compromisso com os menos favorecidos que têm dificuldades históricos e teóricos de apreensão do conhecimento, com as crianças que não tem nem o alimento, muito menos a escola para se desenvolverem e se tornarem, através da educação, realmente humanos. Pensar em políticas de ensino significa pensar em com, através do ensino, pode-se intervir na realidade em que vivemos e, efetivamente, transformá-la tornando-a mais humana, através da inclusão de todos os seres humanos aos seus direitos de cidadania. A mutabilidade da sociedade, a partir desta compreensão de que através do ensino pode-se intervir na realidade, implica em um processo constante de releituras, elaborar uma nova cultura, a que se refere Gramsci, não significa fazer descobertas inéditas, mas, sobretudo, transmitir verdades já descobertas, socializando-as e transformando-as em bases vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida coerentemente e de maneira unitária a desvelar a realidade presente é mais importante e original do que a descoberta de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos de intelectuais (GRAMSCI, 1995, p.14). Na formação de uma sociedade perpassam formações discursivas2 que a consolida em uma direção ou em outra. Analisando estas formas discursivas através da linguagem é possível conhecer as concepções de mundo, sua complexidade ou singularidade e as ideologias que sustentam esta organização societária num determinado tempo histórico e situado. Com as transformações ocorridas no mundo do trabalho e da produção constroem-se novas formas e novos significados de se pensar e agir diante da realidade, fato este que passa a exigir novas interpretações e análises das políticas públicas e novas formas de gestão para a educação. 2 Conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo.(FIORIN,2004) 3 Ao analisar o desenvolvimento histórico da educação brasileira percebe-se que a consolidação da instituição escolar como marco da modernidade obedeceu a movimentos perpassados historicamente, de maneira contraditória, pois na mesma medida em que possibilitou o acesso aos saberes produzidos pela humanidade, significando democratização do espaço; também proporcionou a homogeneização de ideologias dominantes, através da sua prática discursiva. Este trabalho A epígrafe e o acima exposto introduz o tema deste trabalho que visa contrapor o discurso utilizado pelos gestores da educação, em termos de coerência, contradições e implicações no cotidiano e especificidades da escola. Para possibilitar a compreensão deste discurso (que reflete um conteúdo a ser desvendado quanto às relações de poder e ideologia), e suas relações com os trabalhos escolares, necessário faz-se explicitar a concepção de ideologia, tal como é entendida neste estudo, como forma de perceber sua materialização via linguagem, tendo em vista que os discursos são governados por formações ideológicas. Formação ideológica é, aqui, entendida como visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, o conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo. (FIORIN, 2004) o que implica em um determinada qualidade. Significa, em suma pensar e examinar as diversas “culturas” que se traduzem no que denominei em outro lugar de “cultura globalizada”, entendida como “uma poderosa imagem cultural que exige um novo nível de conceptualização de todas as inúmeras e incontáveis culturas locais, regionais, estatais, ocidentais e orientais, do norte e do sul que estão “postas a nu”, divulgadas ao mundo que assiste encantado e perplexo a este “multiculturalismo” que necessita ser acatado e respeitado. “Cultura globalizada” é a expressão que contém a diversidade de tudo e de todos na unidade dos limites do mundo. “Cultura global” é o contraditório “conceito” que necessita ser investigado e compreendido para se falar de uma nova cidadania, a “cidadania global”(FERREIRA, 2003, p. 31). Esta nova realidade social – formação social em que se vive: ....significa o rico, complexo e imenso conjunto de culturas que se entrecruzam no planeta impondo suas peculiaridades e diferenças e exigindo respeito aos seus modus vivendi, 4 formatos e desenvolvimentos. São inúmeras e incontáveis culturas que, concomitantemente, se desenvolvem, se expõem e defendem seus princípios, valores e costumes intercambiando diferenças e antagonismos. Esta expressão é, aqui, utilizada com a intencionalidade de chamar a atenção para a complexa “teia de relações” que se estabeleceu e se estabelece, a todo momento, numa rede de informações e interrelações que “bombardeiam” mentes e corações com novos/velhos valores, idéias, costumes, descobertas, invenções, nomenclaturas diferenciadas, contraditórias e díspares povoando conjuntamente todos os espaços (FERREIRA, 2003, p. 31). Pensar e assumir as políticas de ensino, significa pensar em processos formativos que estejam comprometidos com o valor e o uso real da linguagem para dela fazerem o uso adequado e não ilusório a fim de formar cidadãos para um mundo globalizado a partir dos princípios emanados da nossa Carta Magna da educação. Estes são os compromissos da gestão da educação que se efetiva em todos os âmbitos da escola e, principalmente em sala de aula, onde se concretiza através do ensino. Seus princípios são os princípios da educação que a gestão assegura serem cumpridos - uma educação comprometida com a “sabedoria” de viver junto respeitando as diferenças, comprometida com a construção de um mundo mais humano e justo para todos os que nele habitam, independentemente de raça, cor, credo ou opção de vida. Necessário se faz, portanto, para enfrentar com competência as políticas de ensino e de formação, examinar conceito de ideologia,, como ilusão, consciência deformada da realidade, perpetuando as idéias da classe dominante. Faz-se necessário, ainda, examinar as diversas expressões que ideologia veio assumindo hodiernamente. Gramsci foi um teórico que, não só ampliou o conceito de ideologia, mas também contribuiu para a compreensão de como as idéias são apropriadas e a relação que estabelecem nas formas de ação e comportamento do ser humano, constituindo-se em relação viva, apresentando a ideologia como produtos sociais. 2. Ideologia enquanto mascaramento da realidade: compreensão necessária à gestão da educação. A ideologia foi um dos conceitos fundamentais da filosofia de Marx e Engels, desenvolvido, em especial no livro A ideologia Alemã (1980): 5 “ ... os homens sempre formaram idéias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são e deveriam ser. Organizaram as suas relações mutuas em função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante suas próprias idéias. Libertemo-los portanto das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar” ( MARX, 1980, p. 7) Ao criticarem os ideólogos alemães por inverterem as relações entre as idéias e o real, evidenciam a distorção da realidade que ocorre quando as políticas de ensino não trabalham as contradições do real. Para Marx é a vida social que possibilita, constitui e funda o pensamento e não o contrário. No momento em que ocorre o inverso, as idéias como criadoras do mundo social sem determinações históricas, passa-se a exprimir uma visão "invertida" da sociedade, cuja finalidade é ocultar o "projeto" social, político e econômico das classes dominantes, dos detentores dos meios de produção. Ideologia é o sistema de pensamento das classes dominantes, tornado hegemônico, manifestando-se como mascaramento e inversão subjetiva da realidade. Dessa forma, “a ideologia se reduz a uma falsa concepção da história ou ao puro e simples abstrair dela. A própria ideologia é somente um dos aspectos da história”. (MARX, 1980, p.18). A ideologia é, assim, incapaz de comparar as idéias com o seu uso histórico, com a inserção prática no movimento da sociedade, não levando em conta que a produção de idéias, de representações e da consciência provém da atividade material dos homens. Por esse motivo sua importância nos discursos hegemônicos, lacunares e “competentes”. Faz-se necessário compreender que; “a consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente; e o Ser dos homens é o seu processo de vida real. E se em toda a ideologia os homens e suas relações nos surgem invertidos, tal como uma câmara obscura, isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na retina é uma conseqüência do seu processo de vida diretamente físico.”( Marx, 1980: p. 26) Nesta perspectiva a consciência humana é determinada pelas condições concretas de existência, definindo-se como social e histórica. Porém, isso não garante que as idéias 6 representem a realidade tal como se apresenta. As idéias, determinadas historicamente, nascem a partir da experiência social, a qual se oferece como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas. O “aparecer” social à consciência, consiste em aparências justamente porque oferecem o mundo de forma inversa, ou seja, o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Ocorrendo não apenas na consciência individual, mas principalmente na consciência social, isto é, no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma. Essa inversão leva à produção de imagens e idéias que procuram representar a realidade, formando um imaginário social invertido, um conjunto de representações sobre os indivíduos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, etc. Assumidas como idéias, essas imagens constituem a ideologia. À medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, acreditam na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem autonomia à consciência e às idéias e, finalmente, julgam que as idéias não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade. Como conseqüência, o grupo pensante (o grupo hegemônico) trabalha com as idéias dos dominantes e não com o desvelamento das contradições do real, fazendo parecer que idéias são verdadeiras em si mesmas e transformando essas idéias de uma classe social determinada em idéias universais, como se fossem válidas para todos. Dominando a consciência social, tem o poder de transmitir as idéias dominantes para todas as classes, utilizando-se da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito. A esse respeito ressalta Marilena Chauí (2001,p.85), que “a ideologia consiste precisamente na transformação das idéias da classe dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual”. Para Chauí os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e idéias não exprimem a 7 realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social. São imagens e idéias postas como universais abstratos, uma vez que, concretamente, não corresponde à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas através da ideologia aparece abstratamente o Homem, o indivíduo. Nesse sentido, compreende-se a função principal da ideologia que é a de ocultar a origem da sociedade (relação de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é, então, a lógica da dominação social e política. O processo de tal erro é reconstruído por Gramsci a partir de três pontos: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam a estrutura, mas, sim vice-versa; 2) afirma-se que determinada solução política é “ideológica”, isto é, insuficiente para mudar a estrutura, mesmo que acredite poder modificá-la; afirma-se que é inútil, estúpida, etc.;3) passa-se a afirmar que toda ideologia é “pura” aparência, é inútil, estúpida etc.”(GRAMSCI, 1995, p.62) Gramsci rejeita o caráter negativo imposto, considerando uma forma limitada de reconhecer os elementos ideológicos, pois nesta visão, ideologia é identificada como algo diferente ou separada da estrutura. Afirma-se que uma determinada solução política é ideológica e que embora se julgue poder modificar a estrutura, é insuficiente para modificá-la, tornando-se inútil e estúpida. A ideologia é vista como pura aparência. Gramsci propunha que entre as ideologias existem diferenças internas, e distingue dois grupos: as que são “historicamente orgânicas”, isto é que são necessárias a determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, “desejadas”(GRAMSCI,1995, 62). As ideologias arbitrárias são as que surgiram por iniciativas individuais e racionalistas, que criam movimentos individuais, sem muita duração, apresentam caráter polêmico e por isso não apresentam soluções para os problemas provenientes da história. As ideologias 8 historicamente orgânicas são necessárias, têm validade, pois formam o terreno em que os homens se movem, adquirem consciência de sua posição, lutam. “Constituem o campo no qual se realizam os avanços da ciência, as conquistas da objetividade”.(KONDER, 2002 ,p.105) Por definir define ideologia como uma concepção de mundo, Gramsci mostra-se preocupado com a propagação de determinadas ideologias. Por isso alerta o que necessita ser compreendido pelos educadores e pela gestão da educação quanto às políticas de ensino e de formação: Coloca-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma “religião, em uma “fé”, isto é, que produziu uma atividade prática e uma vontade, nas quais esteja contida como “premissa” teórica implícita ( que é uma “ideologia”), poderemos dizer, desde que se dê ao termo “ideologia” o significado mais alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas) – isto é, o problema de conservar a unidade ideológica de todo bloco social, que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia. (GRAMSCI, 1995, p. 16) A ideologia, representa, assim, uma visão de mundo que se manifesta de forma implícita em todos os segmentos da vida: arte, literatura, economia, tanto no plano individual como coletivo, passando a confundir-se muitas vezes com a própria vida, servindo de suporte para a solidificação de determinada classe. A difusão da ideologia se dá primeiramente de forma natural a partir de determinada concepção de mundo, para em seguida compor a cultura popular. Daí o alerta necessário gestão da educação quanto às políticas de ensino e de formação, principalmente para a formação de gestores da educação.. Assim, pensar filosoficamente o criticamente as contradições do real no cotidiano do ensino enquanto política de formação consiste em conceberr e desenvolver a visão de mundo e o trabalho filosófico como luta cultural para transformar a mentalidade popular e divulgar as inovações filosóficas que se tornaram histórica e socialmente universais. Políticas de ensino e políticas de formação necessitam ser entendidas e garantidas pela gestão da educação 9 como o estágio mais elaborado da concepção de mundo porque deve possuir um alto grau de coerência, como ensina Gramsci o filósofo não só “pensa” com maior rigor lógico, com maior coerência, com maior espírito de sistema, do que os outros homens, mas conhece toda a história do pensamento, isto é, sabe quais as razões do desenvolvimento que o pensamento sofreu até ele e está em condições de retomar os problemas a partir do ponto onde eles se encontram após ter sofrido a mais alta tentativa de solução, etc. Ele tem, no campo do pensamento, a mesma função que os diversos campos científicos tem os especialistas. assume, no plano do pensamento, a mesma função assumida pelos especialistas nos diversos domínios científicos". (GRAMSCI, 1995, p.34 e 35) Pensar filosoficamente ou criticamente não significa apenas pensar com maior coerência, mas também possuir maior rigor lógico e espírito sistemático, além de conhecer a história do pensamento, sendo capaz de explicar o desenvolvimento e as transformações ocorridas no plano do pensamento. Neste sentido o verdadeiro filósofo é também político, ou seja, pessoa ativa que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Para Gramsci, a ideologia é mais do que um sistema de idéias; é a força capaz de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação para a ação. Neste contexto vale refletir sobre a prática hegemônica, isto é, uma ideologia hegemônica, dominante, que pode proporcionar uma visão de mundo supostamente mais coerente e sistemática, influenciando não só a massa da população, mas também servindo como princípio de organização das instituições sociais e de formação. Tal convicção expressa quando afirma: Estamos persuadidos que uma verdade só é fecunda quando se fez um esforço para a conquistar, que ela não existe em si e para si, mas foi conquista do espírito, devendo reproduzir-se, em cada um, aquele estado de ânsia que atravessou o estudioso antes de a alcançar. Portanto os professores dignos desse nome, no momento de educar, dão uma grande importância à história da matéria que propõem ensinar. Este modo de apresentar aos ouvintes a série de esforços, os erros e vitórias pelos quais passaram os homens para alcançar o atual conhecimento, é muito mais educativo do que a exposição esquemática desse mesmo conhecimento. Forma o estudioso, dá ao espírito a elasticidade da dúvida 10 metódica que faz do diletante o homem sério, que purifica a curiosidade, vulgarmente compreendida, e a transforma em estímulo são e fecundo do cada vez maior e perfeito conhecimento.(..).O ensino desenvolvido desta maneira, torna-se um ato de libertação. Tem o fascínio de todas as coisas vitais. (GRAMSCI, 1976, p. 104-105) Preocupado com o ensino ministrado na Universidade Popular de Turim totalmente desvinculado da cultura, e totalmente ideológico, na segunda década do século passado, questionava porque aquela universidade, através do seu ensino, constituiu-se naquela “mísera coisa que é” sem conseguiu impor-se à atenção, ao respeito, ao amor do público”. E, responsabilizando a falta de organização, de gestão, de tomada de decisões, no sentido da garantia de uma outra qualidade do ensino comprometida com uma cultura de verdade, uma cultura humana que tivesse significado para os homens que a vivem, responde ao seu questionamento dizendo: “A melhor resposta consiste em fazer alguma coisa de melhor, na demonstração concreta que se pode fazer de melhor e que é reunir um público à volta de um fogo de cultura, contanto que este fogo seja vivo e aqueça de verdade.”( GRAMSCI, 1976, p. 103). Clamava, Gramsci, por um ensino de outra qualidade que não aquela desfigurada pela palidez da desatenção, do desrespeito, do desamor, que constatava naquela universidade. Clamava por um ensino de qualidade que se caracteriza pelo calor da aquisição do conhecimento que aquece mentes e corações realmente formando, no ser humano, o estudioso dos conteúdos científicos e dos conteúdos da vida. Clamava por “professores dignos desse nome”, professores que, sem pedantismo, no momento de educar, dão uma grande importância à história da matéria que propõem ensinar, apresentando aos ouvintes a série de esforços, os erros e vitórias pelos quais passaram os homens para alcançar o atual conhecimento. Clamava por professores sérios que, através deste ensino repleto de história e de significados, eram capazes de formar o estudioso por que, este ensino “dá ao espírito a elasticidade da dúvida metódica que faz do diletante o homem sério, que purifica a curiosidade, vulgarmente compreendida, e a transforma em estímulo são e fecundo do cada vez maior e perfeito conhecimento”. Clamava por uma política de ensino e de formação que não contivesse o discurso ideológico que deturpa a realidade e forma “serviçais” obnubilados, alienados sobre a realidade em que vivem. Clamava, enfim, por um ensino tão 11 vivo e fecundo tão rico e significativo que poderia, por isto, ser entendido como um verdadeiro ato de libertação da ignorância, um ensino fascinante porque eivado de vida produzindo vida. Para este teórico italiano, a formação histórica e específica de cada classe está baseada no senso comum, no entanto, este não se constitui uma ordem intelectual, mas sim um conjunto desagregado de idéias e opiniões vinculadas a submissão e subordinação da ideologia dominante. Explica que todos os homens pertencem a determinado grupo, e compartilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Entretanto, diferencia os conformistas, o qual chama de “homens-massa” ou “homens-coletivos”. Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencem a uma multidão de “homens-massa”, na qual a própria consciência é composta de maneira bizarra, constituindo o senso comum. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido. O início da elaboração crítica é um “conhece-te a ti mesmo”, isto é, ter consciência quem realmente é como produto do processo histórico. (GRAMSCI,1995,p.12) Daquela época até os dias atuais, muito se pesquisou e escreveu sobre o ensino no mundo, suas finalidades, as melhores formas de ministrá-lo e de desenvolver as aprendizagens dos educandos. Muito se pesquisou e escreveu sobre a formação de professores no sentido de torná-los mais competentes e capazes de ministrar um ensino de qualidade. Cabe, agora, neste 13ª ENDIPE refletir sobre se os processo pedagógicos têm formado o estudioso e o cidadão, na grande maioria dos alunos que tem possibilidade de acesso a escola. Cabe, agora, refletir sobre a linguagem e o seu poder na formação crítica ou ideológica dos futuros cidadãos, de uma cidadania lúcida e competente que não se faz através de discursos ideológicos, mas pelo ensino crítico e histórico que permite a verdadeira cidadania. Têm, as políticas de ensino e as políticas de formação privilegiado as condições de qualificação, de trabalho e de infra-estrutura para que o ensino tivesse se torne um ato de libertação no mundo de opressão em que vivemos? Tem, o ensino que é ministrado na 12 escolas brasileiras, o “fascínio das coisas vitais” num mundo onde a morte é banalizada os “não valores”3 naturalizados, porque impregnados de discurso ideológico? Será que, decorrido quase um século, tais preocupações de Gramsci não fariam mais sentido? Estar-se-á ministrando um ensino de qualidade que se caracteriza pelo pelo calor da aquisição do conhecimento que aquece mentes e corações realmente formando, no ser humano, o estudioso dos conteúdos científicos que são conteúdos de vida? Estará a escola pública no Brasil ministrando um ensino com esta qualidade, sustentada e apoiada pelo Poder público com as condições absolutamente necessárias à este ensino? Estará a escola particular ministrando um ensino com esta qualidade, preocupada com o verdadeiro sentido humano da vida? Estarão os professores, que estão sendo formados em nossas universidades e nas inúmeras faculdades isoladas espalhadas por este Brasil a fora, preparados para ministrar este ensino de qualidade com os verdadeiros significados dos conteúdos do ensino que são conteúdos de vida? Estará o ensino e todas as escolas que formam professores impondo-se à atenção, ao respeito, ao amor do público, como clamava Gramsci? Neste sentido, faz-se necessário destacar a importância da formação dos intelectuais lúcidos para a organização, disseminação do conhecimento de modo a fazer frente às ideologias que se fazem presentes no mundo hodierno da forma mais requintada e descomprometida com todo e qualquer fim que não sejam os individualistas. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. 1990 CHAUÍ, M. S. 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