As duas caras do peronismo Emir Sader No segundo turno das eleições argentinas, em 18 de maio, se enfrentam as duas faces do peronismo: um Menem, atualizado com a dolarização no lugar da paridade e com a Alca como expressão das “relações carnais” que ele desejava; e um Kirchner desenvolvimentista. Caso consiga governar por um período mais longo do que o último presidente eleito pelos argentinos – Fernando de la Rúa –, completando pelo menos um ano e meio do seu mandato, o próximo presidente da Argentina poderá comemorar os 60 anos do peronismo como protagonista da história daquele país. Desde 1944, quando Perón surgiu como liderança alternativa à esquerda tradicional – comunistas e socialistas –, o movimento fundado por ele deslocou essas forças, ocupou o espaço fundamental do movimento popular. Mas o peronismo renascido depois da ditadura militar, com os dois mandatos de Carlos Menem, representou algo bem diferente do que tinha sido com Perón. Menem ganhou com um programa peronista – o “choque produtivo” –, para fazer o seu oposto: a financeirização da economia com uma estabilidade artificial, que se transformou numa bomba de tempo cuja explosão se deu nas mãos de De la Rúa. No segundo turno de 18 de maio deste ano, enfrentam-se as duas caras do peronismo: um Menem, atualizado com a dolarização no lugar da paridade e com a Alca como expressão das “relações carnais” que ele desejava; e um Kirchner desenvolvimentista, mas não do primeiro Perón, e sim do segundo, frustrado porque a economia mundial já se encontrava no seu ciclo longo recessivo, de que ainda não saiu. Enfrentar-se-ão, assim, o peronismo com duas de suas caras. Foi possível essa semi-ressurreição de Menem e o prolongamento do peronismo – mesmo que seja derrotado pelo alto grau de rejeição – em parte pela exploração do passado “feliz” do consumo artificialmente financiado, em parte pelo fracasso da esquerda argentina. Esta foi a grande derrotada. As análises que diziam que a Argentina vivia uma situação revolucionária ou pré-revolucionária não souberam traduzir a crise em um momento de acumulação de força para uma alternativa que ocupasse o lugar das elites, se todas efetivamente tivessem ido embora – como dizia o lema que pregavam. Os argentinos parecem cansados da crise, necessitam de um horizonte qualquer, mesmo sabendo que, no fundo, nenhum dos candidatos pode assegurar-lhes essa alternativa. Apesar da maior crise de legitimidade que as elites argentinas e o conjunto do sistema político desse país já viveram, a pregação da abstenção, do voto nulo e branco e os candidatos da esquerda não conseguiram capitalizar o descontentamento popular. Como diz a imprensa argentina, o “voto bronca” deu lugar ao “voto útil”, aquele dirigido para o que considera o menos pior. Quando a esquerda não constrói suas próprias alternativas, acaba tendo que se definir pelo “menos pior”. Este é exatamente o mecanismo que pode favorecer a Kirchner no segundo turno – tanto a rejeição de Menem, quanto a reivindicação de “centro esquerda” que Kirchner tentou fazer. Porém, como o resultado final depende também da transferência de votos dentro do peronismo – os de Rodrigues Saá – , e esta é passível de diversos tipos de negociações obscuras, o jogo não está definido. As duas caras do peronismo seguem de pé como futuros possíveis para a Argentina. Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “Século XX – Uma biografia não autorizada” (Editora Fundação Perseu Abramo) e “Contraversões, (com Frei Betto, Editora Boitempo).