TIRANIA NA GRÉCIA CLÁSSICA (SÉCULOS V

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TIRANIA NA GRÉCIA CLÁSSICA (SÉCULOS V-IV a. C): PLATÃO E OS
TIRANOS DE SIRACUSA, DIONÍSIO, O VELHO E DIONÍSIO, O JOVEM
Francieli Ferreira Pontes
Orientador: Prof. Dr. Renan Friguetto
Palavras-chave: Tirania na antiguidade. Pensamento político platônico. Teoria e prática
política.
Profundas discussões e análises das mais diversas foram e são realizadas a respeito
de qual seria a melhor organização política por estudiosos interessados na melhora das
instituições humanas. Reis, legisladores, pensadores políticos debruçaram-se sobre tal
questão ao longo de toda história. Muito se foi escrito, elaboraram-se análises ímpares da
sociedade com o intuito do aperfeiçoamento humano e, enfim, do meio em que se
desenvolveu a humanidade. Imaginou-se como seria o Estado ideal, o perfeito e,
principalmente, refletiu-se como atingi-lo, como aplicá-lo. Ou, simplesmente, tentou-se
melhorar o que já existia sem se buscar a perfeição1.
Tal preocupação fora registrada pelo grande historiador grego Heródoto nas suas
Histórias, relata uma discussão entre Otanes, Megabizo e Dario sobre a melhor forma de
governo, o de um, de poucos ou de muitos. Assim se apresenta a primeira exposição da
literatura grega que define as formas de governo2. A partir da Grécia Clássica (séculos V e
IV a.C.) debates políticos como este relatado no século V a.C. só se fizeram crescer em
número no que se convencionou chamar Ocidente.
A política, da forma que entendemos hoje, nasceu na denominada polis grega,
como a própria palavra alude. Polis, ou “cidade-Estado”, não era apenas aglomeração
humana ou urbana, a polis grega era antes de tudo uma comunidade humana composta
pelos politai, ou cidadão, mais o território em que estavam estabelecidos3. Era o lugar onde
estavam os tribunais, as assembléias, as magistraturas, ou seja, era onde se encontrava a
vida política. Ser cidadão era, principalmente, exercer um papel político ativo dentro da
polis, dentro da comunidade dos politai. Assim, cada comunidade destas se configurava a
sua maneira, tinha suas próprias leis, seus próprios deuses, eram, pois, um “Estado”
autônomo. Doravante, o período clássico grego é marcado pelo apogeu das poleis, ou
“cidades-Estado”. Cada qual tinha sua organização política, o que chamamos hoje de
Grécia na verdade era uma região em que havia traços étnico-culturais semelhantes, mas de
forma alguma houve uma unidade governamental. Esta característica levou a profundas
diferenças entre as poleis, gerando, muitas vezes, a guerra entre elas4.
A “guerra do Peloponeso” é o mais conhecido conflito entre as poleis gregas. Nesta
a rivalidade e discórdia entre as concepções de formas de governo vêm à tona com toda a
1
Entre eles podemos citar Platão (República), Aristóteles (Política), Santo Agostinho (Cidade de Deus),
Tomas More (Utopia), Montesquieu (Espírito das Leis), entre outros...
2
PLÁCIDO SOAREZ, Domingo. Las formas del poder personal: la monarquia y la tirania. p.3.
3
MOSSÉ, Claude. Dicionário da civilização Grega. Termos utilizados: polis, politéia, polites.
4
“A civilização grega clássica, em sua essência, é uma civilização da polis e sua seiva secou quando a
cidade, não podendo ultrapassar as dificuldades políticas interiores e exteriores, revelou-se incapaz de
satisfazer as aspirações de seus cidadãos”. Assim define AYMARD e AUBOYER no início do capítulo II da
História geral das civilizações o papel imprescindível da polis no mundo grego. Não é possível pensar em
Grécia Clássica sem considerar a polis como base deste mundo.
força. De um lado a Esparta oligárquica e de outra a Atenas democrática5. A primeira era
conhecida pelo seu espírito guerreiro e sua sociedade rigidamente hierarquizada.
Desenvolveu-se no Peloponeso a partir do século IX a. C numa região chamada Lacônia.
Da dominação dória originou-se uma rígida organização social, econômica e política.
Segundo a tradição foi o legislador Licurgo6 que organizou as leis espartanas responsáveis
por manter o poder de um pequeno grupo de descendentes dórios, os chamados esparciatas.
Estes eram os donos das terras mais férteis e reservavam para si as funções de governantes,
dedicavam-se aos exercícios físicos e atividades guerreiras. A outra parte da população era
constituída por periecos e hilotas. Aqueles eram livres, porém não possuíam direitos
políticos, dedicavam-se ao comércio e ao artesanato e, possuíam uma população quatro
vezes maior que a dos esparciatas. Os segundos eram escravos pertencentes à Esparta,
trabalhavam nas terras das famílias esparciatas e, como os periecos, não exerciam nenhuma
atividade política.
Esparta alcançou seu auge após derrotar Atenas e suas aliadas na guerra do
Peloponeso, assim despertou imensa curiosidade das elites do mundo grego,
principalmente dos pensadores políticos e filósofos. Esparta teria sido a pior das
sociedades e, ter-se-ia transformado na melhor vencendo apenas as suas tendências
negativas. Isócrates, pensador ateniense do século IV a. C, chamava o regime espartano de
democracia, pois para ele o governo de uma elite que não priva a dignidade do povo pode
ser considerado como tal, já que era um sistema justo. Esta concepção era coerente com o
período de crise por que passava Atenas após a derrota na guerra. A experiência
oligárquica (404 a. C – 401 a. C) que se seguiu marcou negativamente a política ateniense,
o que condicionou a formação de uma imagem de oligarquia sempre associada à
ilegalidade e crueldade. Por isso Isócrates (século IV a. C) denomina um sistema que, em
sua opinião, é justo, de democracia. Portanto acreditava na “democracia guiada”
(Basiléia).7
Atenas, a mais conhecida polis grega, foi fundada na Ática pelos jônios e marcou a
História pelo seu modelo político caracterizado pela participação dos cidadãos, ou politai,
nos negócios públicos, tal regime foi chamado democracia e, recebeu críticas e elogios dos
pensadores políticos da antiguidade. O maior defensor da democracia foi Demóstenes
(século IV a. C), orador e pensador político ateniense, para ele as instituições democráticas
seriam as únicas capazes de representar a autonomia política e os regimes constitucionais
gregos frente ao despotismo que representavam os bárbaros8. Contudo, o “regime eleitoral”
desta polis não deve ser confundido com o que conhecemos atualmente, pois o número de
cidadãos, ou politai, era muito reduzido. Porém, ainda era maior que em muitas cidades
gregas - Esparta, por exemplo. 500 homens eram anualmente substituídos, selecionados
por sorteio e, foi justamente esta característica que despertou profundas críticas de Platão,
5
Ver capítulo Guerra do Peloponeso, do historiador Pedro Paulo Funari. In: História das Guerras / Demétrio
Magnoli, organizador. . O autor faz uma curiosa comparação entre Guerra Fria (século XX d. C) e a Guerra
do Peloponeso (século V a. C), pois ambas foram frutos da rivalidade entre duas potências imperialistas com
sistemas de governo diferentes.
6
Era comum entre os gregos atribuir um grande feito realizado em uma época remota a um único homem que
acabava sendo comparado a um herói, ou semi-deus, como os da tradição mitológica.
7
O governo dos melhores cidadãos.
8
A palavra “bárbaro” (Вαρβαρоσ) é de origem grega e significa aquele que eu não entendo. Os gregos
chamavam de bárbaros todos os povos que não falavam grego.
2
para este esta forma de governo significava uma multidão de ignorantes tomando decisões
nos negócios do “Estado”. 9
Arístocles (nascido em 427 a. C e falecido em 347 a. C), mais conhecido como
Platão, palavra que significa “ombros largos” devido a sua robusta compleição física ou
grandeza de espírito, é o melhor representante da aristocracia avessa à democracia
ateniense. O pensamento Platônico atravessou os séculos influenciando sistemas políticos,
filósofos das mais diversas culturas e ideais sociais, o que provocou a construção de
imagens sobre quem teria sido e o que pensava o referido pensador. 10 Por muito tempo o
pensamento platônico ficou restrito aos estudiosos de sistemas filosóficos, desligado do
contexto histórico do qual é oriundo. Os conceitos contidos nos diálogos platônicos foram
sendo re-apropriados, modificados e servindo de base a ideologias completamente
apartadas de seu contexto original. Isto acarretou o sério problema de um texto filosófico, o
platônico, por exemplo, ser lido como algo fora do tempo e do espaço, ou seja, a-histórico,
ou eterno. Na realidade não é possível haver a compreensão de um escrito, dado
historicamente, desligando-o do meio e das condições históricas que permitiram seu
aparecimento. Deste modo, rebatendo as possíveis discordâncias, este trabalho pautou-se
na análise do contexto histórico para a devida compreensão do pensamento de um autor e
sua obra. Platão e seu pensamento não devem de forma alguma serem vistos fora de sua
época e sociedade, como ateniense (e grego) o filósofo foi aqui entendido inserido no meio
que o circundava. Apesar de visar a Verdade universal e eterna11, foi a partir de uma
realidade cultural historicamente construída que Platão elaborou suas análises sobre o
homem, sua natureza, sua vida em comunidade, enfim, o mundo humano.
Na Пολιτεια (Politéia), 12 obra que se tornou um clássico do pensamento político da
história da humanidade, Platão descreve o que seria o modelo ideal de polis. Esta obra
reflete o seu desprezo pelas instituições existentes na época, principalmente das de sua
polis natal. A condenação à morte de seu mestre Sócrates em 399 a. C devido à posição
contrária frente ao modelo de governo vigente em Atenas é um dos elementos responsáveis
por este posicionamento13. Segundo sua concepção, encontrada no livro VIII da República,
a democracia culminaria na tirania, o pior Estado possível. Após definir o Estado ideal
Platão descreve a corrupção paulatina do “Estado perfeito”. Tal descrição é feita com o
intuito de mostrar qual dos “Estados reais” mais se aproxima do ideal. A timocracia14
espartana, como a chamou, era o Estado que mais se aproximou do ideal. Este era um tipo
intermediário entre aristocracia e oligarquia. Não era aristocracia por não ser perfeito, mas
também não a chamou de oligarquia, pois ainda continha características da primeira. Por
9
O historiador grego Tucídides também comunga desta opinião. PLÁCIDO SOAREZ, Domingo. Platón y la
Guerra del Peloponeso.
10
Platão influenciou desde santos medievais como santo Agostinho até filósofos contemporâneos como
Hannah Arendt.
11
“O seu ‘filósofo’ não é exatamente um professor de filosofia, que se arrogue um título destes, baseado nos
conhecimentos que tem da sua especialidade (τεχνύδριον). E ainda menos é um “pensador original”, pois não
seria possível existirem simultaneamente tantos pensadores quanto os ‘filósofos’ de que Platão precisa para
governar o seu Estado” (Paidéia, Jaeger, p.848).
12
O título latino desta obra é República, pelo qual ficou mais conhecida.
13
Platão e os discípulos mais próximos se exilaram logo após a morte do mestre com medo de sofrerem o
mesmo fim.
14
Modelo de estado baseado na honra.
3
conseguinte, Platão entende a corrupção do Estado como algo que se dá através da
transformação de um tipo ao outro. O ideal seria a monarquia ou a aristocracia (Basiléia),
seguidas pelas já corrompidas timocracia, oligarquia, democracia e tirania.
Contudo, após a leitura do livro VIII e IX da República, lançou-se uma grande
dúvida: o que ocorre após a tirania? Esta pergunta levou-me a outra obra pouco conhecida
de Platão, o tratado de Leis, trabalho feito no fim de sua vida e, a Carta VII, epístola
enviada pelo filósofo à Siracusa. Neste tratado a tirania é apresentada como um meio, um
instrumento para se atingir o aperfeiçoamento do Estado. Afinal, foram as experiências de
Platão com a sociedade grega clássica que permitiram a elaboração de suas ideias políticas.
Na República o tirano foi chamado de “lobo em pele de homem” e em Leis ele é
apresentado como uma possibilidade de melhorar a polis. A aparente contradição entre os
dois tratados é desfeita através da análise histórica, pois ao inserir o personagem em seu
contexto percebemos que suas obras refletem a visão que possuía do mundo em que vivia.
Assim, com base nas obras políticas do pensador ateniense e em historiadores estudiosos
da Grécia Clássica (séculos V-IV a. C) foi realizada uma discussão monográfica acerca de
até que ponto a teoria e a prática platônica são divergentes ou convergentes. Por isso, tal
discussão teve como foco as viagens de Platão à Siracusa e suas experiências com os
tiranos desta cidade, Dionísio, o velho e Dionísio, o jovem. Pois, foram três tentativas
fracassadas de tornar um tirano o rei-filósofo da República. A ideia de tirania exposta em
Leis condiz com sua prática política, contudo, não significa uma contradição ou negação da
República, pois esta fora escrita para que servisse de modelo à comparação e análise das
poleis existentes. Desta forma, esta monografia propôs a reflexão sobre o pensar e o agir
políticos platônicos a partir de seu contexto histórico.
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