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A teoria do direito em arthur schopenhauer
Vinicius de Faria dos Santos1
Introdução
Pretendo neste texto esboçar, ainda que sem minúcia, o aspecto moral da teoria do direito
schopenhauriana articulando-a ao conceito de injustiça, razão de ser de sua existência. Feito
isso, formularei o argumento fornecido em justificativa da existência do Estado e, ao cabo,
discorrerei sobre a distinção entre as noções de direito e ética no pensamento do filósofo alemão.
A Teoria do Direito em Arthur Schopenhauer
A reflexão de Schopenhauer acerca da justiça e do direito está encerrada no parágrafo 62 de sua
obra principal – O Mundo como Vontade e como Representação – circunscrita numa metafísica
da vontade, da qual não tratarei aqui. Nos parágrafos imediatamente precedentes (60 e 61), o
filósofo demonstra a passagem da afirmação para a negação da Vontade de vida.
Uma vez que enquanto indivíduos somos tomados como fenômenos da objetivação dessa
Vontade, pode-se conceber que a afirmação dessa num dado indivíduo pode conduzi-lo a negar
a mesma vontade que se expressa no outro. Justamente o egoísmo inerente a todos é causa da
injustiça. Visto assim, um ato é considerado injusto quando caracterizar invasão do domínio
onde se afirma a vontade alheia – quer seja a destruição ou ferimento do corpo do outro ou a
redução das forças desse corpo à sua vontade2.
A teoria schopenhauriana da justiça se estabelece, portanto, de modo negativo: a noção de algo
injusto é primitiva e positiva – na medida em que, como sentimento, se faz reconhecer em ambas
as partes envolvidas, em quem sofre, como sentimento de sofrimento ou pesar pela perda, e, em
quem a comete, sentimento de injustiça cometida – ao passo que a justiça, secundária e negativa
– pois consiste tão somente na negação/supressão da injustiça, essa sim, notória.
“O conceito de INJUSTIÇA é originário e positivo, já o oposto dele, o de JUSTIÇA é derivado
e negativo. (...) Noutros termos, jamais se falaria em JUSTIÇA se não houvesse INJUSTIÇA.
O conceito de JUSTIÇA contém meramente a negação da injustiça: a ele será subsumida toda
ação que não ultrapasse o limite acima exposto, vale dizer, não seja negação da vontade alheia
em favor da mais forte afirmação da própria vontade.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 434).
1 Licenciado em Filosofia UFRuralRJ. Mestrando em Filosofia da Linguagem e do Direito PPGFIL/UFRRJ e Bacharelando em
Direito pela mesma Instituição.
2 Ou seja, “quando, da vontade que aparece com corpo alheio, subtrai as forças desse corpo e assim aumenta a força a serviço
de SUA vontade para além daquela do seu corpo, por conseguinte afirma sua vontade para além do próprio corpo mediante a
negação da vontade que aparece no corpo alheio.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 429).
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Como primeiro corolário, temos que a positividade da injustiça é condição sine qua non do
direito. Contrapondo-se à tradição, Schopenhauer reconhece-a como contida na definição do
direito. Nesse sentido, a doutrina do direito é uma parte da moral que estabelece as ações que
não se podem fazer se não se quiser cometer injustiça.
Como consequência imediata de tal corolário, é possível propor um primeiro argumento em
favor da distinção entre os domínios jurídico e ético: se o direito trata de coibir as ações injustas
e as ações injustas concernem tão somente à invasão do espaço da afirmação da vontade alheia,
então não assistir a outrem quando em necessidade não é juridicamente injusto, ainda que cruel
e eticamente inaceitável3. Assim, se a origem do direito reside na positividade da injustiça, a da
ética, por sua vez, reside no sentimento de compaixão4.
Enquanto capítulo da Moral, a doutrina do direito diz respeito estritamente ao fazer e não
ao sofrer, dado que apenas o fazer é expressão da vontade e é justamente essa que a Moral
considera. O sofrer apenas indiretamente é tratado por ela5. Justiça e injustiça consistem em
puras determinações morais, quer dizer, determinações válidas apenas em relação à conduta
humana individual.
Há que se notar que a dita significação moral dos conceitos de justo e injusto subsiste mesmo
no estado de natureza, i.e., na ausência de toda lei positiva, mais ainda, frente aos homens
enquanto tais não enquanto cidadãos do Estado. É ela que constitui a fundação e o conteúdo do
que se denomina direito natural, que poderia ser melhor denominado direito moral, pois “sua
validade não se estende ao sofrimento, à realidade externa, mas só ao ato e ao autoconhecimento
oriundo desse ato da vontade individual, autoconhecimento que se chama consciência moral.”6.
Os conceitos de justo e injusto, nesse estado, têm somente valor de conceitos morais e se
relacionam com o autoconhecimento que cada um possui da vontade que reside em si.
Uma vez tomando a ação como objeto, a doutrina teria como conteúdo “a determinação exata
do limite até onde um indivíduo pode ir na afirmação da Vontade, já objetivada em seu corpo,
sem que se torne negação justamente dessa Vontade, como ela aparece num outro indivíduo;
assim, também conteria a determinação das ações que ultrapassam o mencionado limite,
e que, portanto, por ser injustas, podem ser defendidas sem injustiça. Sempre o próprio agir
permaneceria o objeto principal da consideração.”7. Excetua-se o caso em que, para constranger
outra vontade que queira negar a minha, tenho o direito de coagi-la sem incorrer em injustiça.
3 Dito de outro modo: “(...) a recusa em ajudar alguém numa situação urgente de necessidade, ou o considerar com calma a
morte alheia por inanição em meio ao próprio excedente, de fato são atitudes cruéis e satânicas, porém não injustas.” (Ibid.).
4 Exposta no parágrafo 66 de O Mundo como Vontade e como Representação.
5 “A pura DOUTRINA DO DIREITO é, portanto, um capítulo da MORAL e se refere diretamente só ao AGIR, não ao SOFRER. Pois apenas o primeiro é exteriorização da vontade, e exclusivamente esta é considerada pela moral. O sofrer é simplesmente ocorrência: só indiretamente ele pode ser considerado pela moral, a saber, tendo em vista provar que aquilo que se faz
com o único fito de evitar o sofrimento de uma injustiça de modo algum é prática de injustiça.” (Ibid., p. 438).
6 Ibid., p. 436.
7 Ibid., p. 438.
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Por certo, argumenta o filósofo, graças à faculdade da razão, os indivíduos descobrem um
meio de atenuar o sofrimento infligido pelo egoísmo inerente à natureza humana, ao ponto de
quase suprimi-lo. Tal meio consiste num sacrifício comum, compensado, por seu turno, pelas
vantagens que com ele se obtém. O egoísmo, orientado pela razão, aperfeiçoa-o. A resultante é o
contrato de Estado ou lei. Note-se que o surgimento do Estado é o modo natural que o homem,
com o uso da razão, relaciona-se com seus semelhantes.
Em suma, a razão humana
“na medida em que (...) ao sobrevoar o todo em pensamento, abandona o ponto de vista unilateral
do indivíduo, ao qual pertence, e se despoja por momentos de um apego a ele, nota que o gozo
da prática da injustiça num indivíduo é sempre superado pela dor relativamente maior ao sofrer
a injustiça de outrem, e assim descobre que, como tudo foi aqui deixado ao acaso, cada um teria
a temer que seu quinhão de gozo relacionado à prática ocasional da injustiça seria muito mais
módico que a dor relacionada à injustiça que viria sofrer. A razão reconhece, a partir daí, que
tanto para diminuir o sofrimento espalhado em toda parte quanto para reparti-lo da maneira mais
equânime possível, o melhor e o único meio, é poupar a todos a dor relacionada ao sofrimento
da injustiça, fazendo-lhes renunciar ao gozo obtido com a sua prática. – Esse meio (...) é o
CONTRATO DE ESTADO ou a LEI.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 439.).
Schopenhauer não concebe qualquer outra origem para a existência do Estado8. A despeito das
condições nas quais o contrato é contraído, o que faz surgir o Estado é sempre o acordo comum.
Um Estado será mais ou menos perfeito em função de conter mais ou menos elementos de
anarquia e/ou despotismo.
Nesses termos, se a doutrina do direito, enquanto capítulo da moral se refere apenas à ação de
cometer injustiça, a legislação, e, por conseguinte, o Estado, trata apenas do sofrer injustiça. A
lei, ao fazer uso da doutrina do direito/moral, emprega-a em seu lado passivo, para considerar
as mesmas ações que ninguém deve padecer para que nenhuma injustiça o acometa. Daí afirmar
que o legislador é um “moralista às avessas”:
“A ciência política, ou legislação, (...) [tem o fito] de servir-se de reverso deles [isto é, dos
conceitos morais de injustiça e justiça] e considerar por outro lado todos os limites intransponíveis
estabelecidos pela moral se não se quer PRATICAR injustiça, como limites cuja transposição,
por outros, não deve ser suportada se não se quer SOFRER injustiça [...].” (SCHOPENHAUER:
2005, p. 441).
O fim do Estado, em última instância, é mediar as consequências do egoísmo dos indivíduos9, e
não promover sua satisfação ou mesmo extingui-lo, o que seria impossível. A teoria do direito
constitui a base de toda legislação jurídica e
8 “De fato, em nenhum país o Estado poderia ter outra origem, precisamente porque só este modo de surgimento, este fim o
torna Estado;” (Ibid., p. 439).
9 “Portanto, o Estado, intentando o bem-estar, não foi de modo algum instituído contra o egoísmo, mas pura e simplesmente
contra as consequências desvantajosas dele, oriundas da pluralidade de indivíduos egoístas, reciprocamente afetados e perturbados em seu bem-estar”. (Ibid., p.442)
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“apenas se a legislação positiva é essencial e absolutamente determinada segundo a instrução
da pura doutrina do direito e para cada uma de suas leis se pode indicar um fundamento nesta
pura doutrina, é que a legislação resultante é de fato um DIREITO POSITIVO e o Estado é
uma união LEGAL E JUSTA. E aqui ESTADO no sentido próprio do termo, ou seja, uma
instituição admissível moralmente, não imoralmente. No caso oposto, a legislação positiva
é o estabelecimento de uma INJUSTIÇA POSITIVA. É até mesmo uma injustiça imposta e
publicamente admitida.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 443).
À guisa de conclusão, parece-me conveniente desdobrar um tanto mais a distinção entre o
direito e a ética.
Muito embora esteja fundado na moral, o Estado, em si mesmo, não assegura um paraíso moral.
Se, utopicamente, ele lograr todo o seu objetivo, cada um promoverá o bem-estar geral, pois
desse modo assegurará o seu bem-estar particular. Todavia, há que se ressaltar o contraste entre
o fim perseguido pela moralidade e pelo Estado. Se a ética (moral) tem como objeto a ação,
e com relação a essa, a vontade ou intenção com a qual foi executada, o Estado visa apenas
assistir às vítimas da injustiça.
Por isso o Estado não pode, sob qualquer argumento, extinguir a inclinação natural humana
ao egoísmo, sua disposição má para a prática da injustiça: esse, ao empregar a legislação, se
limita a interpor contra motivos a todos os motivos possíveis para cometer injustiça. Assim,
a doutrina moral do direito é convertida pelo legislador em lei, isto é, orientada para o lado
passivo, impedindo, portanto, que alguém sofra os danos da injustiça. Daí dizer que o código
penal é “um registro o mais completo possível de contra motivos opostos a todas as ações
criminais presumíveis – tudo isso in abstracto, para fazer aplicação in concreto quando o caso
ocorrer.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 441).
O conceito de injustiça e sua negação, a justiça, originariamente morais, por inversão, tornamse jurídicos. Aqui precisamente impõe-se um oportuno esclarecimento. O Estado não é uma
instituição para o fomento da moralidade ou, como afirmara Kant, condição de liberdade em
sentido moral. O equívoco consiste em crer que por obra de instituições humanas a liberdade
e a moralidade seriam atingidas. A resposta para tal erro é apontar para o fato de a Vontade, a
“disposição íntima, única à qual concerne a moralidade e a ou imoralidade” está para além dos
fenômenos racionalmente inteligíveis. De acordo com sua natureza, o Estado não pode proibir
uma ação injusta à qual não equivalha um sentimento de injustiça sofrida; ele não pode impor
a caridade, somente proibir a prática da injustiça. Como consequência, outro fundamento ético
deve ser investigado, que não o puro e simples dever.
Nesse sentido, o direito concerne ao caráter externo da moral e não à determinação interna
da moralidade: eis a razão pela qual Schopenhauer argumenta que “apenas o negativo, que
constitui precisamente o DIREITO, pode ser imposto, não o positivo, o qual se entendeu sob
a rubrica de deveres de caridade ou deveres específicos” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 443).
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Como consequência lógica, temos que direito e ética possuem fundamento distintos. Se, por um
lado, a doutrina do direito é justificável em função das funestas consequências do egoísmo inerente
à natureza humana, egoísmo esse que, uma vez orientado pela razão, origina o contrato de Estado
ou Lei, a ética, por seu turno, fundamenta-se na compaixão, sentimento advindo da percepção da
mesmidade de si para com o outro, quer dizer, um “conhecimento intuitivo, o qual reconhece no
outro indivíduo a mesma essência que a própria.” (SCHOPENHAUER: 2005, p. 468).
Então, demonstrei que a teoria schopenhauriana de justiça se estabelece de modo negativo –
dado que a noção de injustiça é primária e positiva, sendo a justiça apenas sua negação, ambas
consistindo em puras determinações morais – constituindo injustiça a invasão do espaço no
qual se afirma a vontade alheia. O escopo da legislação, assim, é apenas evitar o sofrimento da
injustiça e não realizar a justiça. O Estado ou Lei origina-se pelo contrato amplamente aceito
dos homens que, orientados pela razão descobrem um meio de atenuar o sofrimento infligido
pelo egoísmo inerente à natureza humana, ao ponto de quase suprimi-lo. Seu fim é mediar as
consequências dessa mesma vontade, comum a todos. Direito e ética têm fontes distintas, pois
se fundamentam no egoísmo e na compaixão, respectivamente.
Referências Bibliográficas
CARDOSO,R.C. A ideia de justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte: Argumentum, 2008.
SCHOPENHAUER, A. El Mundo como Voluntad y Representación. Trad. de Pilar López de
Santa Maria. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
______. O Mundo como Vontade e como Representação. Trad. de Jair Barboza. São Paulo:
UNESP, 2005.
______. Crítica da filosofia kantiana. Trad. de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Abril Cultural,
1980. (Coleção Os Pensadores)
______. Sobre o fundamento da Moral. Trad. de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Abril Cultural,
1980. (Coleção Os Pensadores)
RAMOS,F.C. “A teoria da Justiça de Schopenhauer”. In: Revista Ethic@, Florianópolis, v. 11,
n. 2, p. 173-185, jul/2012.
SINGH,R.R. “Ethics and Eternal Justice”. In: ______. Schopenhauer: a guide for the perplexed.
London: Continuum, 2010.
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