J. Bras. Nefrol. 1997; 19(2): 212-214 212 J. M. F. Oliveira - Revisão/Atualização em Diálise Revisão/Atualização em Diálise: Hipertensão arterial em hemodialisados. Fatores relacionados ao seu controle adequado ou inadequado e tratamento José Mário Franco de Oliveira Grupo de Hipertensão, Disciplina de Nefrologia Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense Endereço para correspondência: José Mário Franco de Oliveira Rua Senador Vergueiro 2, apto. 202 (Flamengo) CEP: 22230-001 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (021) 620-8080 Epidemiologia Hipertensão arterial (HA) é na atualidade a segunda maior causa de insuficiência renal crônica terminal (IRCT) na população geral de hemodialisados crônicos e a principal causa de IRCT nos indivíduos de raça negra em países industrializados do primeiro mundo como os EUA, sendo a nefroesclerose hipertensiva suplantada apenas pela nefropatia secundária ao diabetes mellitus do tipo II dentre as doenças renais que mais comumente levam à uremia crônica. 1 Ilustrativo da importância clínica da HA em populações de renais crônicos reflete-se nos altos índices de eventos cardiovasculares que ocorrem nestes indivíduos submetidos a tratamento por hemodiálise (HD) crônica. No mundo inteiro, as doenças cardiovasculares representam a principal causa de mortalidade nestes pacientes, superando em muito as infecções, as neoplasias e os abandonos voluntários ao tratamento hemodialítico. Nestes pacientes quanto pior o controle da HA maiores são as taxas de mortalidade tanto no primeiro ano quanto nos anos subseqüentes de tratamento hemodialítico. 1, 2 Fisiopatologia da Hipertensão Urêmica Com o progredir da esclerose glomerular e fibrose intersticial que acompanham a queda progressiva do ritmo de filtração glomerular na maioria das nefropatias crônicas, ocorre uma perda progressiva da capacidade renal para excreção de sal e água, desta forma facilitando o surgimento ou agravamento da hipertensão devido a um estado hemodinâmico de retenção hidrossalina. Este quadro fisiopatológico é reconhecido na literatura como hipertensão arterial volume-dependente associada à uremia. Portanto, a grande maioria dos indivíduos renais crônicos ao iniciarem o tratamento por HD regular apresentam-se hipertensos. 3 Embora a maior parte dos autores reconheça ser este estado hipervolêmico com níveis deprimidos de atividade plasmática de renina (APR) o principal evento fisiopatológico na hipertensão urêmica, hipóteses alternativas imputando o envolvimento de outros sistemas pressóricos têm sido recentemente aventadas, 3,4 tais como: 1) uma inadequada supressão do efluxo simpático renal apesar da retenção hidrossalina e hipervolemia; 2) o acúmulo de substâncias endógenas inibidoras do óxido nítrico sintetase, diminuindo, portanto, a geração de óxido nitroso; 3) o estado de resistência insulínica e hiperinsulinemia associados à uremia, levando através das ações tróficas da insulina ao espessamento vascular arteriolar; 4) elevações crônicas dos níveis plasmáticos de paratormônio (PTH) acarretando aumento da reatividade vascular aos vasoconstritores endógenos; 5) alterações da viscosidade sanguínea e hemodinâmicas secundárias ao uso crônico de eritropoietina (EPO), e até alterações do próprio controle homeostático do sistema renina-angiotensina (SRA). Além dos mecanismos explicitados acima, controles pressóricos adequados com drogas bloqueadoras do SRA em alguns pacientes renais crônicos e em outras situações clínicas associadas à retenção hidrossalina e APR baixa, tais como a hipertensão associada ao A publicação desta seção foi possível graças à colaboração da Cilag Farmacêutica Ltda. 213 J. Bras. Nefrol. 1997; 19(2): 212-214 J. M. F. Oliveira - Revisão/Atualização em Diálise diabetes mellitus, 5 podem sugerir uma significativa participação deste complexo sistema hormonal regulador da pressão arterial e do metabolismo de sódio também na hipertensão urêmica. 6 Recentes evidências genéticas, terapêuticas e oriundas de experimentos utilizando técnicas de biologia molecular demonstram claramente ser o SRA não somente um sistema endócrino, mas também um sistema tissular, com vias hormonais de ação autócrinas, parácrinas e intácrinas advindas da geração local do seu principal hormônio efetor, a angiotensina II (Ang II). 7 Tais evidências fornecem ainda mais subsídios teóricos para que alterações no funcionamento do SRA sejam ao menos em parte responsáveis pela HA urêmica. Sobre o Controle Pressórico na Hemodiálise Os grandes avanços tecnológicos ocorridos nos últimos 15 anos relacionados ao tratamento hemodialítico crônico tanto nos aspectos relacionados ao rim artificial e à biocompatibilidade das membranas filtrantes sintéticas tornaram a HD um processo rotineiro para um número cada vez maior de indivíduos portadores de IRCT. Também a crescente aceitação universal dos índices que quantificam a dose prescrita e/ou recebida de dialisância para substâncias de baixo peso molecular, tais como a uréia (Kt/V de uréia) e sua correlação com a maior ou menor ocorrência de eventos mórbidos em portadores de IRCT, também contribuiu de forma substancial para a padronização dos procedimentos hemodialíticos crônicos. 8 Os fatos supracitados foram também acompanhados do reconhecimento generalizado de 3 aspectos relacionados à hipertensão associada com a hemodiálise regular: 1. Que a hipertensão arterial é o principal fator de risco relacionado à morbimortalidade em hemodialisados crônicos. 2. Que as causas cardiovasculares constituem a primeira causa de mortalidade nesta população, e 3. Que um controle pressórico adequado é conseguido na grande maioria destes pacientes com apenas medidas simples relacionadas ao tratamento dialítico, tais como uma ultrafiltração (UF) direcionada a atingir-se o peso seco do paciente durante a sessão de HD, e um ganho ponderal durante o período interdialítico, mais conhecido como balanço interdialítico (BID), não superior a 2,5 kg em indivíduos adultos. 9 Desta maneira, mantendo-se o indivíduo em razoáveis condições de balanço hidrossalino, atingirse-ia o principal componente fisiopatológico da hipertensão urêmica, qual seja, a hipervolemia. Portanto, tornou-se voz corrente que a moderna hemodiálise, através de sua potente capacidade de ultrafiltração junto com um BID igual ou menor que 2,5 kg são os principais e, na maior parte das vezes, únicos instrumentos nescessários ao controle adequado da HA volume-dependente da uremia para a maioria (50 a 80%) dos renais crônicos em HD regular, estando o uso de drogas anti-hipertensivas restrita apenas aos grandes ganhadores de peso no período interdialítico com tendências para a intolerância às grandes ultrafiltrações na HD, aos pacientes urêmicos com HA hiperreninêmica, aos que apresentem elevação de pressão arterial secundária ao uso regular de eritropoetina (EPO) exógena, ou aqueles que tenham como causa básica da uremia a nefroesclerose hipertensiva e não respondam às medidas dietéticas e de UF durante a HD. 6,9 Controvérsias Atuais Estes avanços tecnológicos que trouxeram no seu bojo os modernos rins artificiais de proporção, membranas filtrantes com maior biocompatibilidade, modulação da concentração de sódio durante as sessões de HD e controles exatos e computorizados dos volumes de ultrafiltrado e dos tempos de retirada dos mesmos, desta forma permitindo uma HD e UF mais exatas e confortáveis para os pacientes, não foram acompanhados de uma diminuição correspondente das altas taxas anuais de mortalidade em programas de hemodiálise crônica em países desenvolvidos como os EUA. Desta forma, a sobrevida média de 5 anos em HD nos EUA é semelhante à de um paciente não-urêmico portador de câncer de cólon. Ao término do primeiro ano em HD nos EUA, apenas 78% dos renais crônicos encontram-se vivos. 2 Estes números frustrantes e até inaceitáveis têm suscitado inúmeras interrogações quanto à qualidade do tratamento hemodialítico nos EUA, embora argumentos procurem justificar tais estatísticas como o envelhecimento da população de renais crônicos adentrando os programas dialíticos, o crescente número de diabéticos nos programas de hemodiálise crônica nos EUA, e o papel limitado da HD na reabilitação dos pacientes renais com condições mórbidas associadas à IRCT, sobretudo cardiovasculares e presentes previamente ao início da HD. Em contrapartida, dados oriundos da análise de 769 pacientes europeus (da região de Tassin na França), utilizando técnicas de HD diferentes em vários aspectos das utilizadas nos EUA, isto é Kt/V de uréia J. Bras. Nefrol. 1997; 19(2): 212-214 214 J. M. F. Oliveira - Revisão/Atualização em Diálise substancialmente maior do que os americanos (1,7 versus 1,1), maior número de horas semanais de HD (18 a 24 versus 10 a 12), e muito embora utilizando membranas filtrantes com menor grau de biocompatibilidade (cuprofane versus polisulfona), demonstram resultados nitidamente superiores ao dos americanos não apenas quanto à reabilitação (ex: controle adequado dos níveis pressóricos, melhores taxas de albumina plasmática e de hematócrito com uso em escala bem menor de EPO exógena), como também taxas anuais de sobrevida e de mortalidade geral e cardiovasculares a partir dos 5 anos em HD (resultados de longo prazo) significativamente melhores. Tais dados reforçam a hipótese que apesar do alto aparato tecnológico da HD nos EUA, fatores inerentes à prescrição da HD naquele país possam ser imputados como ao menos co-responsáveis pelos baixos índices de reabilitação e sobrevida em HD na mais rica sociedade industrializada do mundo. Embora possa ser argumentado sobre diferenças na proporção de pacientes diabéticos nas casuísticas de Tassin e do “United States Renal Data System” (USRDS), além das diferenças entre as duas séries serem por demais contrastantes, o tratamento bioestatístico na comparação entre as duas casuísticas foi semelhante aos utilizados pelo USRDS. Dentre outras conclusões, os autores franceses concluiram que um maior número de horas semanais de HD foi um fator essencial para um controle adequado da pressão arterial nesta população, e que a hipertensão foi uma das co-variáveis que mais fortemente influenciou a sobrevida de longo prazo (>5 anos) nestes pacientes. 10 Digno de nota é a pobreza de dados epidemiológicos sobre o status do controle pressórico com as técnicas atuais de HD nos EUA ou no Brasil. que comumente acompanham a hipertensão urêmica, tais como a hipertrofia ventricular esquerda, as dislipidemias e a resistência insulínica. O objetivo principal do tratamento é a obtenção de pressões arteriais pré-dialíticas que não ultrapassem 140 mmHg para pressão sistólica e menores do que 90 mmHg para pressões diastólicas em adultos, permitindo-se quaisquer associações de drogas antihipertensivas para atingir-se este objetivo. Levando-se também em consideração o provável caráter multifatorial da hipertensão urêmica, podem ser utilizados beta-bloqueadores, simpatolíticos, vasodilatadores, antagonistas do sistema reninaangiotensina tais como os inbidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), antagonistas de receptores AT1 de angiotensina II e até bloqueadores dos canais de cálcio (BCC), observando-se os recentes alertas sobre o aumento da morbi-mortalidade cardiovascular com o uso dos BCC. 11 Referências 1. Salem M M. Hypertension in the hemodialysis population: A survey of 649 patients. Am J Kid Dis. 1995; 26 (3): 461-8 2. Agodoa LY, Jones CA, Held PJ. End-Stage renal disease in the USA: Data from the United States Renal Data System. Am J Nephrol. 1996; 16: 7-16 3. Galla JH, Luke R G. Hypertension in renal parenchymal disease. In Brennner and Rector’s eds. The Kidney, 5th ed. Saunders Company, 1996 4. Centeno JR, Pascoal IF, Mion Jr D. Hipertensão arterial na doença parenquimatosa renal. 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Artif Organs. 1993; 17: 770-4 Tratamento Conforme exposto acima, o tratamento atual da hipertensão urêmica em hemodialisados deve se iniciar pela manutenção do paciente dentro do seu peso seco e com um BID igual ou menor do que 2,5 kg para indivíduos adultos. Se um estado de normotensão não é obtido com tais medidas, está indicado o uso de drogas antihipertensivas. Dentre estes agentes, apenas os diuréticos, por razões óbvias, não estão indicados. Não há restrições quanto ao uso de qualquer classe de droga anti-hipertensiva, devendo-se, no entanto, em princípio dar preferência aos agentes que atuem favoravelmente nos fatores de risco cardiovasculares 10. Chiarra B, Calemard E, Laurent G. Importance of treatment time and blood pressure control in achieving long-term survival on dialysis. Am J Nephrol. 1996; 16: 35-44 11. Fuberg CD, Psaty BM, Meyer JV. Dose-related increase in mortality in patients with coronary heart disease. Circulation. 1995; 92: 1326-1331