International Journal of Cardiovascular Sciences. 2016;29(3):158-167 158 ARTIGO ORIGINAL Efeitos Agudos da Estimulação Elétrica Funcional e do Treinamento Muscular Inspiratório em Pacientes com Insuficiência Cardíaca: Ensaio Clínico Randomizado Cruzado Acute Effects of Functional Electrical Stimulation and Inspiratory Muscle Training in Patients With Heart Failure: A Randomized Crossover Clinical Trial Graziela Valle Nicolodi1, Graciele Sbruzzi2,3, Fabrício Edler Macagnan1, Thiago Dipp1, Aline Chagastelles Pinto de Macedo3, Karina Rabello Casali4, Rodrigo Della Méa Plentz1 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre1, Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Fundação Universitária de Cardiologia2, Universidade Federal do Rio Grande do Sul3, Universidade Federal de São Paulo 4, São Paulo, SP – Brasil Resumo Fundamentos: A insuficiência cardíaca é uma doença multissistêmica que inclui disfunção autonômica. Objetivo: Avaliar os efeitos agudos da Estimulação Elétrica Funcional (EEF) e do Treinamento Muscular Inspiratório (TMI) sobre o controle autonômico, a função endotelial e os níveis de citocinas inflamatórias em pacientes portadores de IC. Métodos: Estudo randomizado cruzado que incluiu 12 pacientes submetidos a três intervenções randomizadas: EEF, TMI, e EEF + TMI, com intervalo de 1 semana entre as sessões. O TMI foi realizado durante 15 minutos, com 30% da pressão inspiratória máxima. A EEF foi realizada nos músculos vasto lateral e vasto medial, a uma frequência de 20Hz durante 30 minutos. O controle autonômico foi medido através de monitorização de pressão batimento por batimento (Finapres); a função endotelial, através da técnica de dilatação mediada por fluxo (DMF); e os níveis de citocinas inflamatórias foram medidos antes e depois de cada sessão. Resultados: O controle autonômico após EEF diminuiu em termos de BF/AF (p=0,01) e BFn.u (p=0,03), e aumentou em termos de RR médio (p=0,005). Observou-se um aumento do RR médio após o TMI (p=0,005) e após EEF+TMI (p=0,02). Não houve diferenças na DMF e na concentração de lactato sérico. Quanto às citocinas, a EEF promoveu uma redução nos níveis de TNF-α (pré versus pós 24 horas, p = 0,05). O TMI resultou em níveis aumentados de IL-10 (pré versus 24 horas pós, p=0,05) e em níveis diminuídos de TNF-α (1 hora pós versus 24 horas pós, p = 0,03). Não houve diferenças quando as duas intervenções foram associadas. Conclusão: EEF, TMI, e EEF + TMI alteraram o controle autonômico, mas não a função endotelial. A EEF e o TMI isoladamente alteraram os níveis de citocinas inflamatórias. Ensaios Clínicos: NCT01325597. (Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167) Palavras-chave: Exercícios Respiratórios, Insuficiência Cardíaca, Estimulação Elétrica, Ensaio Clínico Controlado Aleatório. Abstract Background: Heart Failure is a multisystem disorder, which includes autonomic dysfunction. Objective: To evaluate the acute effects of Functional Electrical Stimulation (FES) and Inspiratory Muscle Training (IMT) on autonomic control, endothelial function and inflammatory cytokine levels in patients with HF. Methods: Randomized crossover trial including 12 patients undergoing three randomized interventions: FES, IMT, and FES+IMT, with a 1-week interval between sessions. IMT was performed for 15 minutes with 30% of the maximal inspiratory pressure. FES was performed in the vastus lateralis and vastus medialis muscles, at 20Hz for 30 minutes. The autonomic control was measured using beat-to-beat blood pressure monitoring (Finapres); the endothelial function, using the flow-mediated dilation technique (FMD); and inflammatory cytokine levels were assessed before and after the sessions. Correspondência: Rodrigo Della Méa Plentz Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Sarmento Leite, 245. CEP: 90050170, Centro Histórico, Porto Alegre, RS – Brasil E-mail: [email protected] DOI: 10.5935/2359-4802.20160038 Artigo recebido em 02/12/2015; artigo revisado em 14/12/2015; aceito em 06/07/2016. Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Nicolodi et al. Artigo Original Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Results: Autonomic control after FES decreased regarding LF/HF (p=0.01) and LFn.u (p=0.03), and increased regarding mean RR (p=0.005). Increased mean RR was observed after IMT (p=0.005) and after FES+IMT (p=0.02). No differences were found in FMD and blood lactate concentration. As regards the cytokines, FES led to a decrease in TNF-α levels (pre vs. 24 hours post, p = 0.05). IMT resulted in increased IL-10 levels (pre vs. 24 hours post, p=0.05) and decreased TNF-α levels (1 hour post vs. 24 hours post, p = 0.03). No difference was observed when the two interventions were associated. Conclusion: FES, IMT, and FES+IMT changed the autonomic control without changing the endothelial function. FES and IMT separately changed inflammatory cytokine levels. Clinical Trials: NCT01325597. (Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167) Keywords: Breathing Exercises; Heart Failure; Electric Stimulation; Randomized Controlled Trial. (Full texts in English - http://www.onlineijcs.org) Introdução A insuficiência cardíaca (IC) é o principal problema de saúde nos Estados Unidos,1 com custos estimados em 44,6 bilhões de dólares em 2015.2 No Brasil, houve 248.271 internações hospitalares por IC em 2012, das quais 23.119 resultaram em morte, com custos que chegaram a R$ 266.253.192,00.3 A IC é uma doença multissistêmica4 que inclui disfunção autonômica, a qual é caracterizada por alterações nos mecanismos reflexos tais como os reflexos cardiopulmonares, barorreflexos e quimiorreflexos. 5 Atualmente, o tratamento se baseia em medidas farmacológicas e não farmacológicas para as alterações autonômicas, incluindo a prática de exercícios físicos,6 a estimulação elétrica funcional (EEF)7,8 e o treinamento muscular inspiratório (TMI). 9 Uma meta-análise analisou os efeitos da EEF em pacientes portadores de IC, mostrando um aumento do consumo máximo de oxigênio (VO 2 máx) 10 e da distância percorrida no teste de caminhada de 6 minutos em comparação com o grupo controle.7,11 De maneira análoga, o efeito do TMI nesses pacientes mostrou melhora na capacidade funcional, 9,11 na força muscular respiratória e periférica, além de alívio dos sintomas de dispneia e depressão.12 No entanto, poucos estudos avaliaram o efeito agudo dessas terapias nesta população. Labrunée et al. 13 verificaram que a EEF promoveu queda significativa na atividade nervosa simpática, sem que houvesse alterações nos parâmetros hemodinâmicos e ventilatórios. Em relação ao TMI, nenhum estudo avaliou o efeito agudo desta intervenção no controle autonômico desses pacientes, embora haja estudos em indivíduos saudáveis.14 No entanto, não há estudos analisando os efeitos da associação dessas duas terapias nesta população. Portanto, o objetivo deste estudo foi avaliar o efeito agudo da EEF e do TMI sobre o sistema nervoso autônomo, a função endotelial, e os níveis de citocinas e lactato em pacientes portadores de insuficiência cardíaca. Métodos 2.1. Desenho experimental Estudo randomizado cruzado aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), sob o número 075/05, e pelo Instituto de Cardiologia, sob o número 4546/10. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento, de acordo com os padrões estabelecidos pela última revisão da Declaração de Helsinque, entre junho de 2014 e maio de 2015. O estudo está registrado em Ensaios Clínicos, sob o número NCT01325597. 2.2. Participantes Os pacientes foram selecionados consecutivamente no ambulatório de pré-transplante e no setor de ecocardiografia do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul / Fundação de Cardiologia da Universidade. Foram incluídos pacientes de ambos os sexos, portadores de insuficiência cardíaca (classe funcional II, III ou IV da NYHA); fração de ejeção < 40% determinada por ecocardiografia; e tratamento medicamentoso mantido por pelo menos um mês antes da inclusão no estudo. Os pacientes eram excluídos caso apresentassem arritmia ventricular instável até três meses antes do início do estudo, doença vascular periférica, doença respiratória aguda, angina instável, estenose aórtica, tabagismo atual, doença renal crônica ou se estivessem sendo submetidos a hemodiálise, febre e/ou doença infecciosa e neoplasias malignas. 159 Nicolodi et al. 160 Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca 2.3. Intervenções 2.3.1 Estimulação Elétrica Funcional O protocolo de EEF foi realizado com um aparelho de estimulação elétrica funcional (Estimulador Fisiológico Elétrico – LYNX – FMUSP, São Paulo, Brasil), com os seguintes parâmetros: frequência de 20 Hz; amplitude de pulso: 0,5 ms; tempo de estímulo: 5s; tempo de repouso: 10 s, durante 30 min ou até a fadiga muscular. A intensidade foi ajustada individualmente, considerando-se a capacidade do paciente de realizar extensão completa do joelho e o conforto durante as contrações. Foram colocados eletrodos com superfície adesiva (Spes, Itália, 50 x 90 cm) nas áreas motoras dos músculos vasto lateral e vasto medial, conforme determinado por mapeamento muscular com os joelhos flexionados a 60º. 2.3.2 Treinamento Muscular Inspiratório O protocolo de TMI foi realizado com um dispositivo respiratório resistivo linear (Threshold®, Nova Jérsei, EUA), durante 15 minutos de acordo com a frequência respiratória de cada paciente, mantendo-se respiração diafragmática. Foi realizado treinamento com uma carga de 30% da pressão inspiratória máxima, que foi determinada com o uso de vacuômetro digital modelo MVD 300 (Globalmed, Porto Alegre, Brasil), segundo a metodologia proposta pela American Thoracic Society.15 Os valores foram calculados com base nas equações propostas por Neder et al.16 2.3.3. Estimulação Elétrica Funcional + Treinamento Muscular Inspiratório O treinamento com as duas intervenções associadas (EEF + TMI) foi realizado primeiramente com TMI, imediatamente seguido de EEF, conforme descrito anteriormente. Desfechos Neste estudo, o controle autonômico foi considerado o desfecho primário; os desfechos secundários foram a função endotelial e o lactato sérico medidos antes e após a intervenção, e citocinas inflamatórias medidas antes, 1 hora pós, e 24 horas pós intervenção. Avaliação do controle autonômico O controle do sistema nervoso autônomo foi avaliado de forma não invasiva através de um monitor de pressão Finapres (Ohmeda 2300, Sistemas de Monitorização, Englewood, EUA), registrando-se a pressão arterial a cada batimento. Foi colocado um manguito de pressão em torno da falange média do dedo médio direito, sendo o membro superior e o manguito mantidos a nível da linha axilar média durante todo o procedimento. Foi obtida conversão de sinal digital através do software POWER LAB 4/35, com LabChart. O pico sistólico foi detectado automaticamente a partir das ondas de pulso, e o intervalo entre cada onda (período de pulso cardíaco) foi usado para construir o tacograma e analisar a variabilidade da frequência cardíaca (VFC) nos domínios de tempo e frequência. As análises foram feitas através do software Kubios HRV (versão 2.1, Departamento de Física Aplicada da Universidade da Finlândia Oriental, Kuopio). Foram determinados os seguintes parâmetros da análise da VFC no domínio de tempo: intervalos RR médios (batimentos consecutivos normais, ms, RR médio); frequência cardíaca média (FC média); raiz quadrada da média da soma dos quadrados das diferenças entre intervalos RR normais adjacentes (RMSSD, ms) e o número de pares de RRs sucessivos que diferissem em mais de 50 ms (NN50, contagem).17 Foram determinados os seguintes parâmetros de VFC no domínio de frequência: componente de baixa frequência (BF: 0,04 – 0,15 Hz); componente de alta frequência (AF: 0,15 – 0,4 Hz); e BF/AF.18 A pressão foi registrada antes e depois da intervenção, estando o paciente em posição supina durante 10 minutos em sala climatizada (a aproximadamente 23ºC), e sempre no período da manhã. Avaliação da função endotelial Foi utilizado um aparelho de ultrassonografia de alta resolução (EnVisor CHD, Philips, Bothell, WA, EUA) para avaliar a função endotelial de maneira não invasiva. Foi utilizado um transdutor vascular de alta frequência (3-12 MHz; L12-3, Philips, Bothell, WA, EUA) para obter imagens longitudinais das paredes da artéria braquial.19 Avaliação dos níveis de lactato sérico Os níveis de lactato sérico foram medidos por punção capilar através do analisador de lactato Accutrend Plus - Roche. As medidas foram tomadas antes, imediatamente após e 1 hora após a intervenção. Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Avaliação das citocinas inflamatórias As citocinas inflamatórias Interleucina-10 (IL-10), Interleucina-6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) foram medidos por ensaios enzimáticos (Elisa), através de kits comerciais de acordo com as instruções do fabricante. As reações colorimétricas foram lidas a 450 nm em leitor de microplaca. Foram determinados os níveis plasmáticos de citocinas a partir de valores obtidos de uma curva padrão com diferentes diluições de proteína recombinante. Randomização e modo cego A ordem da intervenção foi randomizada com dados gerados por um software disponível em www.random. org. Posteriormente, os dados foram mantidos em local oculto, em envelopes opacos guardados em um local distante. Um pesquisador não ciente gerou a sequência numérica de pacientes, selecionados com base nos critérios de inclusão e exclusão. A sequência numérica foi mantida em segredo até o exato momento em que a intervenção teve início. Os pesquisadores não ficavam cientes dos desfechos dos grupos. Análise estatística Os dados são apresentados como média ± desvio padrão e mediana e intervalo interquartil. Foi realizado o teste de Shapiro-Wilk para avaliar a normalidade dos dados. O desfecho primário do estudo foi controle autonômico, avaliado por VFC. O cálculo do tamanho amostral baseou-se num nível alfa de 5% e nível beta de 90%. Para os cálculos de diferença média e desvio padrão, foram usados como referência os resultados de atividade nervosa simpática encontrados por Labrunée et al.13 O cálculo do tamanho amostral resultou em 12 pacientes em cada protocolo (EEF, TMI, e EEF + TMI). Foi utilizado o teste de Friedman para as comparações entre grupos e momentos e, quando necessário, o teste de Wilcoxon (pré e pós intervenções), com significância estatística de 5%. As análises foram feitas através do software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 22.0 para Windows. Resultados Foram selecionados 50 pacientes, sendo que 12 deles preencheram os critérios de elegibilidade e completaram o estudo, como mostra o fluxograma na Figura 1. Nicolodi et al. Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Dos 12 pacientes incluídos no estudo, 54,6% eram mulheres, sendo a cardiomiopatia dilatada a principal etiologia de IC (63,6%), e a fração de ejeção média foi de 36,8%. A maioria (63,6%) estava em classe funcional III da NYHA. Todos os pacientes estavam recebendo betabloqueadores e estatinas. As características adicionais da amostra são apresentadas na Tabela 1. Na análise do controle autonômico, o protocolo EEF levou a um aumento significativo dos intervalos RR médios (RR médio, p= 0,44) e a uma redução significativa da frequência cardíaca média (FC média, p=0,05), além de uma diminuição na taxa de equilíbrio simpatovagal (BF/AF, p=0,01) e o componente de baixa frequência correspondendo à atividade do sistema nervoso simpático (BFn.u, p=0,03). O protocolo TMI mostrou aumento do RR médio (p=0,005) e diminuição da FC média (p=0,005). No grupo EEF + TMI, houve aumento do RR médio (p=0,02) e diminuição da FC média (p=0,02). Não houve diferenças significativas em outras variáveis do controle autonômico. Esses dados são apresentados na Tabela 2. Em relação à função endotelial, os valores para os períodos pré e pós intervenção foram: protocolo EEF = [8,9(5,9-18,3) versus 12,2(5,0-16,9) p=0,7]; protocolo TMI = [8,5(4,6-11,2) versus 10,6(3,9-16,9) p=0,6]; protocolo EEF + TMI = [8,0(5,2-16,0) versus 12,3(6,4-17,5) p=0,3]. Entretanto, esses valores não mostraram diferenças significativas. Na avaliação dos níveis de lactato sérico, nenhuma das intervenções mostrou diferenças significativas em nenhum dos três momentos de medição (pré, pós, 1 hora pós). Quando foi utilizada EEF, os valores foram: pré = 3,2 [2,7-3,8] mmol, pós = 3,4 [2,2-4,1] mmol e 1 hora pós = 3,4 [2,2-4,7] mmol, p=0,8. No protocolo TMI, os valores do lactato foram: pré = 3,6 [2,4-5,0] mmol; pós = 3,4 [1,9-4,9] mmol e 1 hora pós = 3,6 [2,7-4,6] mmol, p=0,5. No protocolo EEF+TMI, os valores do lactato foram: pré = 3,4 [2,7-4,2] mmol, pós = 3,3 [2,1-4,4] mmol e 1 hora pós = 3,4 [2,4-4,1] mmol, p=0,5. Em relação aos níveis de citocinas inflamatórias, a intervenção EEF reduziu significativamente os níveis de TNF-α (pré versus 24 horas pós, p=0,05). No TMI, houve aumento significativo nos níveis de IL-10 (pré versus 24 horas pós, p=0,05) e queda significativa nos de TNF-α (1 hora pós versus 24 horas pós, p=0,03). Contudo, quando a EEF foi associada ao TMI, não houve mudanças significativas nos níveis de citocinas inflamatórias. Os valores são mostrados na Tabela 3. 161 Nicolodi et al. 162 Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Figura 1- Fluxograma EEF: Estimulação Elétrica Funcional; TMI: Treinamento Muscular Inspiratório Discussão Os resultados do presente estudo mostram que após uma sessão de EEF, TMI, ou da associação de EEF + TMI, houve alterações no controle cardiovascular autonômico e nos níveis de citocinas inflamatórias em pacientes portadores de IC, sem que houvesse alterações na função endotelial ou nos níveis de lactato. Após a EEF, houve redução do componente simpático (BF), do equilíbrio simpatovagal (BF/AF), e da frequência cardíaca (FC), mas aumento da VFC. Além disso, após o TMI, houve redução da FC e aumento da VFC; a associação dessas duas técnicas resultou em aumento da VFC e diminuição da FC. Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a demonstrar o efeito agudo da associação das duas intervenções nessas variáveis, e não há informações para que se possam comparar os resultados encontrados. No entanto, alguns estudos avaliaram o efeito da EEF e do TMI separadamente. Em nosso estudo, verificamos que a EEF promove alterações no controle autonômico, com redução na BF e BF/AF. Labrunée et al.13 verificaram que o uso de diferentes modalidades de baixa frequência de EEF na mesma população também reduziu significativamente a atividade nervosa simpática. No entanto, Kang e Hyong20 não observaram diferenças em indivíduos hígidos. É possível que mecanismos centrais estejam envolvidos na redução da ativação simpática, como ocorre com o uso de Estimulação Nervosa Elétrica Transcutânea (TENS), em que a estimulação cutânea pode modificar a sensibilidade barorreflexa.21 Outra Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Nicolodi et al. Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Tabela 1 Características clínicas iniciais da população do estudo n=12 Idade (anos) 66,1 ± 7,6 2 IMC (kg/m ) 26,9 ± 5,3 Masculino 45,4 Feminino 54,6 Sexo (%) PAS (mmHg) PAD (mmHg) FC (bpm) PIM (% prevista) PEM (% prevista) Etiologia da Insuficiência Cardíaca (%) Dilatada Isquêmica FEVE (%) 113,2 ± 16,6 68 ± 12,2 68,2 ± 7,7 70 ± 15 105 ± 21 63,6 36,4 35,0 ± 4,4 Classificação funcional da NYHA, (%) II 36,4 III 63,6 Medicações, (%) Betabloqueador 100 Estatina 100 Diurético 90,9 Antiagregante plaquetário 90,9 Inibidor da ECA 72,7 Digital 54,4 Hipoglicemiante 45,5 Nitratos 18,2 Bloqueador de Receptor de Angiotensina 9,1 Dados como média ± DP. IMC: índice de massa corpórea; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; FC: frequência cardíaca, PIM: pressão inspiratória máxima, PEM: pressão expiratória máxima; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; ECA: enzima conversora da angiotensina. possibilidade está relacionada ao metaborreflexo, que pode estar aumentado ou diminuído, dependendo do tipo de contração muscular e intensidade do exercício.22 nos níveis de lactato em nossa análise, o que mostra que a EEF (de acordo com nosso protocolo) promoveu exercício de baixa intensidade. Além disso, mecanismos como a força da contração muscular,23 o tipo de fibra muscular,24 a duração do tratamento e a frequência de estimulação elétrica usada neste estudo (20 Hz)23 podem ter determinado as alterações observadas no controle autonômico e na produção de citocinas. Ainda não observamos mudança Em relação à função endotelial, nosso estudo não mostrou diferenças significativas na vasodilatação mediada por fluxo da artéria braquial após EEF. Em indivíduos hígidos, espera-se que o exercício físico convencional reduza agudamente a dilatação mediada por fluxo da artéria braquial, e que a seguir haja 163 Nicolodi et al. 164 Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Tabela 2 Resultados da análise da variabilidade da frequência cardíaca EEF TMI EEF+TMI Antes Depois Antes Depois Antes Depois BF n.u 60,7 [30,8-69,4] 51,3 [25,7-64,0]* 41,9 [34,6-77,7] 42,4 [27,0-60,4] 61,7 [39,7-71,2] 48,1 [26,7-60,1] AF n.u 39,3 [30,6-69,2] 45,3 [21,7-62,4] 58,1 [22,3-65,4] 57,5 [39,5-73,0] 38,2 [28,8-60,2] 51,9 [39,9-73,2] BF/AF 1,5 [0,44-2,26] 1,0 [0,34-1,95]* 0,72 [0,52-3,4] 0,73 [0,37-1,6] 1,6 [0,7-2,5] 0,94 [0,36-1,78] Domínio de Frequência RR médio (ms) no Domínio de Tempo 889,3 1006,7 876,5 930,5 875,4 996,8 [808,2-1043,7] [858,7-1131,9]* [824,9-1042,4] [837,8-1185,6]* [806,0-1096,3] [822,1-1266,0]* FC média (1/ min) 67,5 [58,1-74,2] 60,0 [53,2-70,0]* 68,5 [58,1-72,7] 64,5 [50,8-71,7]* 68,6 [55,2-74,6] 60,2 [47,4-73,1]* RMSSD (ms) 31,5 [20,9-82,9] 31,5 [18,7-67,4] 22,6 [18,0-113,6] 27,3 [19,2-78,9] 28,1 [22,8-109,4] 32,7 [21,8-63,6] NN50 (count) 4,0 [3,0-42,0] 17,5 [1,5-35,5] 4,0 [0,0-57,0] 14,5 [1,0-51,7] 11,0 [3,0-52,7] 13,5 [2,5-33,0] Os valores estão expressos como mediana e intervalo interquartil; * diferença significativa entre o pré e pós-intervenção (teste de Wilcoxon, p < 0.05); EEF: Estimulação Elétrica Funcional, TMI: Treinamento Muscular Inspiratório, BF nu: componente de baixa frequência normalizado; AF nu: componente de alta frequência normalizado; BF / AF taxa entre os componentes BF e AF; RR médio: Intervalos RR médios; FC média: Frequência cardíaca média, RMSSD: quadrado da soma das diferenças entre intervalos RR normais adjacentes à raiz quadrada média; NN50: Diferença entre intervalos RR normais maior que 50 ms. Tabela 3 Resultados de citocinas inflamatórias EEF TMI EEF+TMI Antes 1 hora depois 24 horas depois Antes 1 hora depois 24 horas depois Antes 1 hora depois 24 horas depois IL-10 0,98 [0,15-1,42] 0,98 [0,35-2,34] 0,55 [0,15-1,42] 0,55 [0,30-1,87]B 1,42 [0,55-1,87] 0,76 [0,15-1,42]B 0,98 [0,15-2,10] 0,55 [0,15-2,80] 1,42 [0,55-1,87] IL-6 0,69 [0,43-0,86] 0,86 [0,52-1,20] 0,52 [0,35-1,03] 0,69 [0,17-0,86] 0,69 [0,52-0,86] 0,86 [0,35-1,37] 0,52 [0,17-0,69] 0,52 [0,26-0,69] 0,35 [0,17-0,52] 11,52 [10,0815,38]A 12,71 [10,7320,78] 10,08 [4,2915,38]A 11,13 [8,2512,98] 13,78 [9,2915,11]C 10,34 [4,5411,92]C 11,39 [7,9917,39] 11,13 [6,1918,20] 9,55 [5,6814,58] TNFα p < 0,05 Teste de Friedman. Letras iguais diferem. Dados apresentados como mediana e intervalo interquartil; EEF: Estimulação Elétrica Funcional; TMI: Treinamento Muscular Inspiratório; IL-10: Interleucina 10; IL-6: Interleucina 6; TNFα: Fator de necrose tumoral alfa. normalização dos valores. Esses resultados dependem de fatores como a intensidade, tipo e duração do exercício. Portanto, os estímulos causados pelas intervenções em nosso estudo não foram suficientes para produzir alterações agudas na função endotelial. Além disso, a avaliação em longo prazo da função endotelial após treinamento com EEF mostrou aumento significativo da vasodilatação mediada por fluxo da artéria braquial em pacientes portadores de IC,25 efeito este que provavelmente ocorre devido à melhora nos mecanismos que alteram a função endotelial, como a produção de óxido nítrico e a resposta inflamatória. Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Em relação às citocinas inflamatórias, nossos resultados mostraram redução significativa nos níveis de TNF-α quando comparados os valores pré versus 24 horas pós EEF. Espera-se que, durante sessões de exercício físico agudo, haja aumento dos níveis de citocinas inflamatórias, ao contrário do que ocorre no exercício crônico.26,27 Após 6 semanas de treinamento com EEF, os pacientes com IC alcançaram uma redução significativa dos níveis de TNF-α e taxas IL 10/ TNF-α mais elevadas. 25 Assim, as alterações agudas das interleucinas avaliadas em nosso estudo poderiam ser, em parte, um dos mecanismos que levam à adaptação crônica observada em estudos com intervenções crônicas com EEF. Em relação ao TMI, nossos resultados mostraram que, apesar de um aumento significativo na VFC causado por intervalos RR aumentados, não houve alterações significativas nos componentes simpático e parassimpático. Não há estudos analisando os efeitos agudos do treinamento nesta população. Nossos achados podem ser explicados pela baixa sobrecarga aplicada (30% da PIM) e corroboram o estudo de Plentz et al,14 que demonstrou que a carga não afetou o controle autonômico em indivíduos saudáveis, mas quando aplicada uma carga maior (60% da PIM) houve um aumento do componente de BF. Porém, Mello et al.28 relataram que após 12 semanas de TMI com 30% da PIM houve redução da modulação simpática e aumento da modulação parassimpática. Esses achados mostram que a adaptação e melhoria dos sistemas decorrem da intensidade e duração do tratamento. Os pacientes de nosso estudo apresentaram valores abaixo de 70% (PIM), o que indica fraqueza da musculatura inspiratória. Além disso, houve uma redução significativa da FC após TMI e não houve diferença significativa nos níveis séricos de lactato. Entretanto, o TMI pode atenuar a exacerbação do metaborreflexo e possivelmente melhorar a tolerância ao exercício em pacientes com IC. Tomadas em conjunto, essas respostas indicam que 30% da PIM pode ser considerada uma carga que não promove estresse metabólico. Em relação à função endotelial, não houve alterações significativas nos valores da dilatação mediada por fluxo após TMI, o que indica que esta intervenção não produz agudamente estímulos suficientes para modular ou modificar esta resposta. Laoutaris et al.29 demonstraram que, mesmo cronicamente, intensidades Nicolodi et al. Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca de TMI baixa e alta (15% e 60%, respectivamente) não promoveram modificações na vasodilatação endotéliodependente em pacientes com IC. Quanto às citocinas inflamatórias, os resultados de nosso estudo mostraram um aumento significativo de IL-10 (pré versus 24 horas pós) e diminuição dos níveis de TNF-α nos momentos 1 hora versus 24 horas pós TMI. Este resultado também foi observado quando o TMI foi avaliado a mais longo prazo por Laoutaris et al,29 que verificaram redução significativa do receptor I do TNF-α em sua forma solúvel após 10 semanas de TMI com 60% da PIM, o que pode ser explicado pela sobrecarga imposta pelo TMI ao diafragma, resultando em melhor capacidade aeróbica e consequente redução dos níveis de citocinas circulantes. O mesmo efeito é observado quando se realiza exercício físico.26,30 Em relação à associação de EEF + TMI, não há estudos avaliando a associação entre as duas técnicas e esses desfechos. Quanto ao controle autonômico, uma diferença significativa na VFC devido a um intervalo RR médio aumentado e frequência cardíaca diminuída, não encontramos diferenças significativas entre os componentes simpático e parassimpático, função endotelial, lactato sérico e citocinas inflamatórias. Embora não haja estudos avaliando a associação dessas 2 técnicas, seria de se esperar que ela promovesse aumento do RR médio e diminuição da FC, uma vez que, separadamente, ambas as técnicas produziram a mesma resposta. Quanto aos componentes simpático e parassimpático, é possível que esses achados tenham ocorrido devido à forma como as técnicas foram aplicadas. Embora o uso da EEF tenha promovido uma redução na BF e BF/AF, o TMI isoladamente não alterou esses componentes, o que pode ter anulado os efeitos da EEF. Não houve alteração da função endotelial e dos níveis séricos de lactato quando as 2 técnicas foram aplicadas em conjunto, resultado que também foi esperado, uma vez que as técnicas, separadamente, não causaram mudanças nessas variáveis, além de acreditarmos que a baixa intensidade das 2 técnicas tenha contribuído para isso. Neste estudo, a associação das 2 técnicas não levou a uma diferença significativa nos níveis de citocinas inflamatórias, ao contrário do que foi observado em estudos avaliando o efeito dessas 2 técnicas usadas separadamente e em longo prazo.25,29 165 Nicolodi et al. 166 Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(3):158-167 Artigo Original Efeitos da EEF e do TMI na Insuficiência Cardíaca Limitações do estudo Como limitações do estudo, não avaliamos o metaborreflexo e o quimiorreflexo, o que poderia ter mostrado mais especificamente o envolvimento de cada um desses mecanismos no controle autonômico relacionado às intervenções. Outro fator relevante é um possível efeito residual, também chamado de efeito carry-over, presente devido ao desenho do estudo, que pode influenciar sua validade interna. Apesar da ordem randomizada das intervenções para cada paciente e do período de intervalo de uma semana entre as sessões, é possível que estejam presentes os efeitos de aprendizado e familiarização com as técnicas por parte dos pacientes. Conclusão Este estudo mostrou que o uso de uma sessão de estimulação elétrica funcional, de treinamento muscular inspiratório, ou de ambas as intervenções associadas resultou em alterações autonômicas com melhora da VFC, sem alterações na função endotelial ou nos níveis de lactato sérico. A EEF e o TMI separadamente levaram a uma queda dos níveis de citocinas pró-inflamatórias em pacientes cardíacos. Os efeitos observados neste estudo podem explicar parcialmente as adaptações terapêuticas e fisiológicas que ocorrem em pacientes com insuficiência cardíaca submetidos a essas intervenções por tempo prolongado. No entanto, outros estudos com tamanhos amostrais maiores são necessários para se obter uma análise mais poderosa e confirmar as alterações aqui observadas. Agradecimentos Este estudo foi parcialmente apoiado pelas agências de desenvolvimento brasileiras Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contribuição dos autores Concepção e desenho da pesquisa: Nicolodi GV, Sbruzzi G, Macagnan FE, Dipp T, Macedo ACP, Casali KR, Plentz RDM. Obtenção de dados: Nicolodi GV, Dipp T, Macedo ACP. Análise e interpretação dos dados: Macagnan FE, Plentz RDM. Redação do manuscrito: Nicolodi GV, Sbruzzi G, Dipp T, Plentz RDM. Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Sbruzzi G, Macagnan FE, Casali KR, Plentz RDM. Potencial conflito de interesse Declaro não haver conflito de interesses pertinentes. Fontes de financiamento O presente estudo foi parcialmente financiado por Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Vinculação acadêmica Este artigo é parte de dissertação de mestrado de Graziela Valle Nicolodi pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Referências 1. American Heart Association. Heart disease and stroke statistics – 2005 update. Dallas, TX: American Heart Association; 2005. 6. Kishi T. Heart failure as an autonomic nervous system dysfunction. J Cardiol. 2012;59(2):117-22. 2. Roger VL, Go AS, Lloyd-Jones DM, Benjamin EJ, Berry JD, Borden WB, et al; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart Disease and Stroke Statistics - 2012 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2012;125(1):e2-e220. Erratum in: Circulation. 2012;125(22):e1002. 7. 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