Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 4), 1999 Fernandes e cols. Relato de Caso Quilotórax após revascularização do miocárdio Quilotórax Após o Uso de Artéria Torácica Interna Esquerda na Revascularização do Miocárdio Paulo Manuel Pêgo-Fernandes, Gustavo Xavier Ebaid, Gustavo Henrique Nouer, Robinson Tadeu Munhoz, Fábio Biscegli Jatene, Adib Domingos Jatene São Paulo, SP Homem de 38 anos foi submetido à cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM), sendo implantado uma ponte de safena à artéria marginal esquerda e um enxerto de artéria torácica interna esquerda anastomosada à artéria descendente anterior. O pós-operatório (PO) transcorreu bem, recebendo alta no 5º PO. Após três meses retornou ao hospital relatando perda de peso, fraqueza e dispnéia a pequenos esforços. Radiografia de tórax revelou presença de derrame pleural com opacificação na base do hemitórax esquerdo. Ao exame físico constatou-se diminuição dos murmúrios vesiculares. Após seis dias foi diagnosticado quilotórax através de punção de líquido leitoso, porém sem total expansibilidade pulmonar. No dia seguinte fez-se videotoracoscopia e drenagem pleural – anterior e posterior. Instituiu-se nutrição parenteral prolongada (NPP) por 10 dias. Sete dias depois foi estabelecida dieta hipogordurosa, mantida por oito dias. Drenagem cessou, drenos foram retirados e o paciente recebeu alta hospitalar, com expansibilidade pulmonar normal. Quilotórax caracteriza-se por um extravasamento de linfa ou quilo para o interior da cavidade pleural. Esta afecção pode possuir inúmeras etiologias, sendo usualmente classificada em congênita, traumática, obstrutiva e espontânea 1. O primeiro relato de quilotórax pós-trauma foi feito por Quinke em 1875, mas foi Blalock quem descreveu a entidade como sendo uma complicação do ato cirúrgico, em l936 2. A incidência de quilotórax como complicação da cirurgia intratorácica, propriamente dita, varia entre 0,25% e 0,50% na literatura internacional. Por outro lado, sua ocorrência após CRM é extremamente rara 1-5. Não encontramos nenhum caso descrito na literatura brasileira sobre quilotórax como complicação pós-operatória de revascularização do miocárdio, o que nos leva a relatar o nosso caso, alertando outros cirurgiões cardiovasculares da possibilidade deste tipo de afecção, expondo as bases anatômicas que permitem esta complicação, além de sugerir formas de prevenção e tratamento no sentido de minimizar os danos causados a estes pacientes. Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP Correspondência: Paulo Manuel Pêgo-Fernandes – Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 2° 05403-900 - São Paulo, SP Recebido para publicação em 4/1/99 Aceito em 14/4/99 Relato do caso Paciente do sexo masculino, 38 anos, com angina instável, foi submetido à cineangiocoronariografia que constatou lesões coronarianas críticas nas artérias coronárias descendente anterior e marginal esquerda. Indicado o tratamento cirúrgico de revascularização do miocárdio, realizado por esternotomia mediana em 16/10/97. Nessa cirurgia foi implantados uma ponte de safena à artéria coronária marginal esquerda e um enxerto de artéria torácica interna esquerda anastomosada à artéria coronária interventricular anterior. O pós-operatório (PO) transcorreu bem e o paciente recebeu alta hospitalar no 5°PO. Em l2/0l/98, o paciente retornou ao hospital relatando perda de peso, fraqueza e dispnéia a pequenos esforços. Ao exame físico observou-se diminuição dos murmúrios vesiculares. A radiografia de tórax revelou a presença de derrame pleural com opacificação na base do hemitórax esquerdo (fig. 1). Introduziu-se dieta alipídica no 2º dia e, após seis dias, foi realizada a punção, obtendo-se uma substância de aspecto leitoso, contendo glóbulos de gordura, diagnosticando-se o quilotórax. Não houve boa expansibilidade pulmonar. No dia seguinte o paciente foi submetido a videotoracoscopia com limpeza e drenagem pleural (com a utilização de dois drenos: um anterior e um posterior). No 1º dia, foi drenado 250mL pelo posterior e 100ml pelo anterior, mantendo uma média de 105ml/dia e 35ml/dia, respectivamente, até os dias de retirada. Optou-se inicialmente pela instituição de NPP e triglicérides de cadeia média (TCM) por 10 dias. A drenagem foi diminuindo progressivamente (fig. 2). No 7º dia de tratamento foi associado a NPP e a TCM uma dieta hipogordurosa por via oral administrada três vezes ao dia, sendo mantida por quatro dias. Neste período o paciente permaneceu em bom estado geral, afebril, evoluindo com diminuição da eliminação de secreção. Seguindo o tratamento, foi retirada a NPP e TCM mantendo-se apenas a dieta hipogordurosa por mais quatro dias, notandose uma maior queda da drenagem. Em 3/2/98 a drenagem cessou, o dreno anterior foi retirado e instituiu-se uma dieta geral. No dia seguinte, retirouse o dreno posterior e realizou-se uma radiografia de controle sendo notada reversão total do quadro (fig. 3). O paciente recebeu alta em 6/2/98 e, após vários exames, não se demonstrou recorrência de efusão pleural. 383 Fernandes e cols. Quilotórax após revascularização do miocárdio Fig. 1 - Radiografia póstero-anterior de tórax demonstrando quilotórax importante no hemitórax esquerdo (12/1/1998). Fig. 2 - Drenagem anterior e posterior entre 19/1/98 e 4/2/98, relacionada com dieta adotada. Discussão Há muitas situações cirúrgicas que podem ser acompanhadas de quilotórax, como cirurgia cardiovascular, pleuropulmonar, de mediastino, entre outras. Na tabela I, podemos encontrar, além deste relato em questão, apenas outros 10 casos de quilotórax seguindo revascularização do miocárdio, revisados anteriormente 8, mostrando que quilotórax é uma complicação rara após revascularização miocárdica com artéria torácica interna esquerda 4- 8. A raridade desta complicação pode ser explicada pela 384 Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 4), 1999 Fig. 3 - Radiografia póstero-anterior de tórax demonstrando reversão total do quadro (3/2/98). localização do ducto torácico. Este se localiza no mediastino superior à esquerda da parede posterior do esôfago, próximo ao arco da aorta e a artéria subclávia esquerda. No pescoço, ascende lateralmente e gira inferiormente atrás da primeira parte da artéria subclávia esquerda para entrar em sua junção com a veia jugular interna esquerda. Durante CRM, canais linfáticos podem ser lesados na região do timo ou próximo à origem da artéria torácica interna, a qual seria tomada como parte do processo operatório. Entretanto, este curso normal do ducto torácico ocorre somente na metade das vezes; o desenvolvimento embrionário inconsistente leva a presença de dois ou mais troncos em 40 a 60% das pessoas 4- 8. Além disso, próximo à junção venosa da jugular com subclávia, linfáticos colaterais terminam nas veias ázigos, braquiocefálica e intercostal. Devido a grande proximidade dessas tributárias à origem da artéria torácica interna esquerda, na parte proximal da artéria subclávia esquerda, esses linfáticos podem ser lesados com a manipulação. A pressão no ducto torácico de 7,0 a 20,0mmHg foi medida e pode ser refletida nestas tributárias, alimentando o vazamento, se o vaso estiver lesado. A causa do quilotórax não é identificada em muitos casos, pois a terapia conservadora usualmente controla o vazamento com bastante sucesso 5, 6. Há alguns casos 2 em que a origem do vazamento pôde ser identificada. Eletrocauterização foi usada nas cirurgias, lesando linfáticos primários. É recomendado um controle dos linfáticos por sutura ao invés de eletrocauteriza- Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 4), 1999 Fernandes e cols. Quilotórax após revascularização do miocárdio Tabela I - Casos relatados na literatura sobre quilotórax como complicação da cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) através de esternotomia clássica Autor data Sexo Idade (anos) Procedimento Localização do quilo Tempo de aparecimento do quilo (dias) Conduta Weber 1981 Kshettry 1982 Teba 1985 Dilello 1987 M M F M 55 51 51 53 CRM CRM CRM com EATIE CRM com EATIE Mediastino Tórax esquerdo Tórax esquerdo Tórax esquerdo 2 60 6 3 Zakhour 1988 Zakhour 1988 Czarnecki 1988 M M F 59 73 61 CRM CRM com EATIE CRM com EATIE e EATID Mediastino Tórax esquerdo Tórax direito 2 14 42 Chaiyaroj1993 F 69 CRM com EATIE Tórax esquerdo 6 Smith 1994 Smith 1994 Relato em questão M 60 CRM com EATIE Tórax esquerdo 14 Drenagem fechada Drenagem fechada Drenagem fechada Toracotomia esquerda e adesão com fibrina Drenagem fechada Drenagem fechada Toracotomia direita e ligação de linfáticos Toracotomia esquerda e ligação de linfáticos Toracocentese M 47 CRM com EATIE Tórax esquerdo 7 Drenagem aberta M 38 CRM com EATIE Tórax esquerdo 91 Videotoracoscopia e drenagem fechada EATIE- enxerto de artéria torácica interna esquerda; EATID- enxerto de artéria torácica interna direita. ção, pois esta produz hemostasia pela formação de coágulo de proteína. Como a linfa contém menos material celular e proteína que o sangue, este método, que é adequado para hemostasia, seria menos eficiente no controle linfático. O quilotórax usualmente começa de dois a 10 dias após a cirurgia, mas os sintomas iniciais podem aparecer somente semanas ou meses mais tarde. O diagnóstico na maioria dos casos não é feito até que o paciente comece a comer uma dieta rica em gordura. Freqüentemente, o dreno está ainda, no local, quando o paciente adulto começa a ingerir oralmente, e um diagnóstico precoce pode ser feito, quando o seu dreno torna-se turvo depois do paciente ter se alimentado. Se o diagnóstico precoce não foi feito, a primeira indicação de quilotórax é inicialmente vista como uma dilatação do mediastino nos filmes de radiografia de tórax e, em seguida, como efusão pleural. O sintoma pode incluir perda de peso, perda de apetite e febre baixa persistente, embora em alguns casos o médico possa não ver o paciente até que o choque circulatório e a angústia respiratória severa tenham se instalado. Hipoalbuminemia ou hipoglobulinemia normalmente estão presentes. Toracocentese e a avaliação microscópica do fluido leitoso resultante mostrarão a presença de gordura livre. O conteúdo gorduroso será maior que o do plasma, desde que o conteúdo protéico esteja por volta da metade do plasma. Lipase pancreática, amilase, desoxiribonuclease estarão presentes porque elas alcançam o sangue via ducto torácico. Linfócitos entre 4000 e 6000 por mm3 correspondem ao principal componente celular. Já as células vermelhas do sangue estarão em níveis menores que 50 células por mm3. Nos casos diagnosticados precocemente, o tratamento inicial do quilotórax é habitualmente conservador 2, 4, 5- 9, e os princípios são minimizar a formação de quilo, prevenir o déficit imune, manter adequada a drenagem e a substituição da dieta gordurosa cotidiana por TCM 2,5,8. Estes são absorvidos diretamente no sistema portal e, portanto, não passam pelo ducto torácico 10,11. Se a drenagem permanecer alta, apesar da terapia, deve ser indicada a nutrição parenteral total. Nesses casos, a intervenção cirúrgica será considerada apenas se houver drenagem incompleta ou perda contínua de quilo 12. Por outro lado, em casos como o nosso em que o diagnóstico de quilotórax pós intervenção cirúrgica foi feito tardiamente, o coágulo de fibrina e sua adesão puderam tornar a busca impossível. Mesmo quando a ligação do ducto lesado é feita, a possibilidade de continuar o vazamento permanece, ou por causa da incompleta oclusão ou decorrente da presença de outros canais linfáticos. Pleurodese nestes casos teria sua indicação 13, 14. No nosso paciente, devido a não expansibilidade pulmonar adequada e ao diagnóstico tardio, preferiu-se a utilização da videotoracoscopia exploradora. As aderências cirúrgicas tornavam a exploração do ducto de alto risco e, por isso, optamos pela limpeza pleural e pela pleurodese. Em resumo, a prevenção do problema é o método preferido contra o quilotórax. Trata-se de complicação rara após CRM. Em casos de diagnóstico tardio, como o nosso, a videotoracoscopia é de grande valia por ser método eficaz e pouco invasivo, permitindo adequada pleurodese. Os cuidados com dieta são fundamentais para a boa evolução clínica. 385 Fernandes e cols. Quilotórax após revascularização do miocárdio Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 4), 1999 Referências 1. 2. 3. 4. 5. Jatene FB, Bosisio IBJ, Jatene MB, et al. Quilotórax pós-traumático. Experiência no pós-operatório de cirurgia cardiotorácica. Arq Bras Cardiol 1993; 61: 229-32. 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