DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À MORADIA DIGNA Dan Rodrigues Levy* RESUMO: Analisa-se o conceito e a aplicabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais a partir do texto constitucional, caracterizando-se o Direito à Moradia como parte do rol desses direitos disposto no art. 6º da Carta Magna. Afirma-se que o Direito à Moradia deve ser interpretado de forma sistemática com outros direitos fundamentais positivados na Constituição Federal de 1988 para que se possa garantir uma moradia digna, sobretudo, para grupos socialmente excluídos. Ressalta-se, assim, a real necessidade de se garantir o direito à cidade sustentável como forma de proporcionar o primado constitucional da justiça social e ambiental. Para tanto, faz necessário a adoção de políticas públicas sustentáveis que proporcionem moradia digna, no intuito de se efetivar a cidadania para os indivíduos marginalizados ou vulneráveis, almejando a democracia plena do Estado de Direito. PALAVRAS CHAVES: Direito Social à Moradia; Sustentabilidade; Cidadania. RESUMÉE: L'article analyse la notion et l'applicabilité des Droits Sociaux Fondamentaux du texte constitutionnel, en caractérisant le Droit au Logement dans le cadre de ces droits présentés dans l'article 6ème de la “Magna Cartaˮ. Il est précisé que le Droit au Logement doit être interprété d'une manière systématique avec d'autres droits fondamentaux positivée dans la Constitution Fédérale de 1988 afin d'assurer un logement digne, en particulier pour les groupes socialement exclus. Il est souligné, donc, un besoin réel de garantir le droit à la ville durable comme un moyen de fournir le fondament constitutionnel de la justice sociale et de l’environnement. Par conséquent, il exige l'adoption de politiques publiques durables qui offrent un logement décent, afin d'effectuer la citoyenneté pour les individus marginalisés ou vulnérables, en ciblant la pleine démocratie de l'Etat de Droit. * Advogado; Especialista em Tutela dos Interesses Difusos Coletivos e Individuais Homogêneos pelo convênico UNAMA e IUVB; Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará – UFPA, na linha de pesquisa Direitos Humanos e Proteção Ambiental; professor de Direito Ambiental da FAP – Faculdade do Pará. MOTS-CLÉS: Droit au Logement Social; Durabilité; Citoyenneté. 1. CONCEITO E APLICABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS De acordo com a Constituição Federal de 1988, o Capítulo II Dos Direitos Sociais está inserido no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, facilitando a compreensão de que os Direitos Sociais do art. 6º1 da Carta Magna possuem natureza de Direitos Fundamentais. É a partir desta assertiva que será introduzido o assunto sugerido neste artigo, afastando, porém, a pretensão de se esgotar o tema. Será apresentado como discussão, sobretudo, a necessidade de auto-aplicação imediata2 desses direitos pelo Estado no intuito de mitigar a exclusão social, contribuindo assim para a uma possível concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dispostos no art. 3º3 da Carta Magna. Partindo da idéia de que os Direitos Sociais4 são Direitos Fundamentais, entende-se que os mesmos são auto-aplicáveis, na medida em que fazem parte daqueles direitos necessários para a garantia de uma vida digna, isto é, de uma vida com qualidade, em que se busque o bem-estar social, o que reforça a necessidade e importância dos mesmos serem concretizados. Para esses direitos, o caráter fundamental está no primado da Sociedade sobre o Estado e o indivíduo, o que reveste sua característica social.5 Segundo Flávia Piovesan, 1 Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 2 De acordo com o art. 5o § 1º da CF/88: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 3 Art. 3o. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 4 Para Paulo Bonavides, “os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividade fazem parte da chamada segunda geração de direitos humanos. Estes direitos, portanto, foram introduzidos nos constitucionalismos das distintas formas de Estado Social face à reflexão antiliberal do século XX. Eles primam pelo princípio da igualdade, e possuem natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais que nem sempre são resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. A Constituição Federal de 1988, portanto, atribui aos Direitos Fundamentais, inclusive aos Sociais, uma auto-aplicablidade imediata, não merecendo apoio o entendimento de que esses direitos possuem aplicabilidade mediata, por via do legislador”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 564-565. 5 Para Andreas Krell, “os Direitos Fundamentais Sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais. São os direitos Fundamentais do homem social dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência aos interesses coletivos antes aos individuais”. KRELL, A. J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des) caminhos de um direito “constitucional” comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 19. os direitos sociais são “autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis, e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos, e não como caridade, generosidade ou compaixão”. 6 Na mesma linha, Alexandre de Moraes entende que “os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”.7 Com efeito, os direitos sociais se tornam um pressuposto para o combate à exclusão e desigualdades sociais, à pobreza e à marginalização, sendo imprescindíveis para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecido como um dos fundamentos da República, conforme art. 1º, III da CF/88.8 Ana Paula de Barcellos defende que o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana se relaciona com os chamados direitos fundamentais, no sentido de que, terá respeitada sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que aquela não se esgote neles. 9 Observa-se, assim, a verdadeira importância dos direitos sociais como pressupostos à dignidade humana, precipuamente, para aqueles indivíduos que não usufruem dos serviços públicos necessários para viver dignamente, tampouco, possuem uma qualidade de vida adequada por vivenciarem situações de intensa exclusão social, encontrando-se à margem da sociedade. Vale ressaltar o que aponta Piovesan sobre o assunto: Como frisam Asbjorn Eide & Allan Rosas (pp. 17-18): “levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso a integração social, a solidariedade e a igualdade, abrangendo a questão da distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. [...] As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas sim definidas como direitos”. 10 Além disso, interessa frisar que “os direitos fundamentais sociais constituem obrigações de prestações positivas cuja satisfação consiste num facere uma ‘acção PIOVESAN, Flávia. Direitos Sociais Econômicos e Culturais e Direitos Civis e Políticos. In: SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 1, no 1, 1º semestre, 2004, p. 26. 7 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 202. 8 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana. 9 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 110. 10 Op. cit., p. 26-27. 6 positiva’ a cargo dos poderes públicos”.11 Do mesmo modo compartilha Sarlet quando afirma que as prestações positivas do Estado concretizam os direitos sociais, econômicos e culturais, uma vez que constituem exigência e materialização da dignidade da pessoa humana.12 Assim, com este mandamento constitucional, o Estado deve proporcionar o bem-estar aos seus cidadãos, através da materialização dos direitos sociais em políticas públicas que sejam, sobretudo, viáveis e eficazes para a redução das desigualdades sociais. Não é demais lembrar que essas políticas devem ser revestidas de dotação orçamentária. Neste sentido, os direitos sociais de cunho prestacionais estão a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e a garantia de uma existência com dignidade, devendo ser compreendido não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida) humana, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável, em um meio equilibrado.13 Não se deseja introduzir aqui aquela teoria dos direitos fundamentais sociais que se reduz a um “mínimo existencial”14, no qual, deve ser garantido, tendo em vista que se compartilha da idéia de que no bojo do texto constitucional, a Carta Magna já prevê os direitos sociais básicos para uma vida com qualidade, não se acreditando ser necessário, portanto, tirar um núcleo mínimo desses direitos para poder concretizá-los. Desta forma, não se faz necessário garantir o mínimo, porque a vida digna será atingida com a concretização dos direitos sociais previsto naquela Carta. No que concerne à aplicabilidade dos direitos ora discutidos, concorda-se que o art. 5º, §1º da CF/88 deva ser estendido às normas de direitos fundamentais sociais, e não somente aos direitos e garantias individuais. Assim, aqueles direitos são auto-aplicáveis de imediato. É o que se assemelha ao entendimento de Tamer quando afirma que “(...) há direito subjetivo aos direitos fundamentais sociais, ainda que não haja qualquer intermediação infra-constitucional, uma vez que os direitos sociais, na constituição 11 QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais. Funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 25. 12 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 13 SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p 90. 14 Conforme Krell, “a teoria do ‘mínimo existencial’, que tem a função de atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público em casos de diminuição da prestação dos serviços sociais básicos que garantem a sua existência digna, até hoje foi pouco discutida na doutrina constitucional brasileira e ainda não foi adotada com as suas conseqüências na jurisprudência do país. Numa das poucas obras sobre o tema, Sarlet mostra que o princípio da dignidade da pessoa humana da Carta brasileira deve ser utilizado para garantir as condições existenciais mínimas da população para uma vida saudável, sugerindo como diretriz mínima os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde”. Op. cit., p.62. brasileira, abrangidos pelo seu §1º, art. 5º, dispõe que ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’”15. Logo, não é válido se apoiar no entendimento de que os direitos sociais dependem de outros meios para se materializar, eles mesmos são auto-suficientes no sentido de obrigar o Estado a aplicá-los. Gize-se que esta auto-aplicação advém da natureza de Direito Fundamental que reveste, não só, o rol dos direitos dispostos no art. 6º da CF/88, como também, outros direitos encontrados no corpo constitucional e que podem ser considerados como fundamentais. Interessante é lembrar que mediante esta auto-aplicabilidade, os direitos sociais podem ser vistos como direitos subjetivos, isto é, como direitos que podem ser pleiteados no âmbito judicial. Manoel Gonçalves Ferreira Filho se inclui entre os que enquadram os direitos sociais no campo dos direitos subjetivos, como “poderes de exigir”, verdadeiros “direitos de crédito”, sendo sujeito passivo o Estado.16 Na mesma linha, Tamer afirma que “há direito público subjetivo-social no Brasil (...), notadamente quanto ao padrão elementar de direitos, em face da sua necessária conformação aos ditames da justiça social (...)”.17 Ainda assim, Ingo Sarlet também se aproxima deste entendimento quando discute sobre a fundamentalidade formal dos direitos sociais, reconhecendo à todas as normas de direitos fundamentais a proteção formalmente assegurada pela Constituição, senão vejamos: Com efeito, a fundamentalidade formal, tem sido considerada, num primeiro momento, como resultado da decisão expressa do Constituinte (art. 5º, §1º da CF) ter assegurado às normas de direitos e garantias fundamentais uma aplicabilidade direta que desde logo vai compreendida no sentido de que as normas de direitos fundamentais devem, em princípio, ter o status de norma de eficácia plena, que impõem ao conjunto dos órgãos estatais o dever de otimização da sua eficácia e efetividade.18 Com este pensamento, não resta dúvida a respeito da verdadeira aplicabilidade dos direitos sociais. Entretanto, deve-se mencionar, ainda, de que forma estes direitos podem ser pleiteados, isto é, se cabe a interferência do Poder Judiciário no sentido de cobrar dos 15 TAMER, Sergio Victor. Atos políticos e direitos sociais nas democracias. Um estudo sobre o controle dos atos políticos e a garantia judicial dos direitos sociais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 207. 16 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/50. 17 Op. cit., p. 233. 18 SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais Sociais, “Mínimo Existencial” e Direito Privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos Direitos Sociais nas relações entre particulares. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio. (orgs.) Direitos Fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2000. p. 559-560. outros Poderes (Executivo e Legislativo) a real concretização dos direitos sociais, para que se evite, no seio da sociedade, a proliferação de um sentimento de “frustração constitucional”.19 Neste sentido é válido ressaltar a contradição entre a pretensão normativa dos Direitos Fundamentais Sociais com a real prestação material do Estado, ou seja, se a exclusão social, conforme Tamer, “seria negligência do poder político, inclusive do Judiciário, ou se ela decorre simplesmente da falta de recursos financeiros para atender a toda a gente?”. 20 Para Tamer: (...) não há como deixar de reconhecer ao Poder Judiciário legitimidade e competência para assegurar a fruição de direitos sociais constitucionalmente estatuídos e provocar a execução de prestações e políticas sociais do estado, uma vez que esse poder dispõe da mesma legitimidade que os demais, como organismo criado para concretizar os fins constitucionais. Ao Judiciário compete imprimir eficácia e efetividade às políticas públicas, mediante decisões que, em consonância com as metas constitucionais, possam compelir os demais Poderes, sendo este o seu grande desafio, nomeadamente no âmbito dos direitos sociais.21 Ressalta-se que a intenção neste artigo não é detalhar a complexa e polêmica discussão doutrinária a respeito da judicialização dos Direitos Sociais, isto é, se cabe ao Poder Judiciário a interferência na implementação dos mesmos, tendo em vista que ao Poder Legislativo compete editar normas para a criação de políticas públicas, inclusive, prevendo as receitas e as despesas para a real execução das mesmas pelo Executivo. Tampouco, será dissertado aqui, a respeito da celeuma do Orçamento Público para viabilizar a referida viabilidade de concretização daqueles direitos.22 O que deve ficar claro é que se concorda com o pensamento de Krell quando afirma que “não se atribui ao Poder Judiciário o poder de criar políticas públicas, mas tão-só de impor a execução daquelas já estabelecidas nas leis constitucional e ordinárias”.23 Para Andreas Krell, o termo “frustração constitucional” traduz-se quando uma Constituição reconhece as promessas dos Direitos Fundamentais sociais, entretanto, sem possibilitar sua real realização “o que acaba desacreditando a própria instituição da constituição como sistema de normas legais vigentes e pode abalar a confiança dos cidadãos na ordem jurídica como um todo”. Op. cit., p. 26. 20 Op. cit., p. 197. 21 Op. cit., p. 233-235. 22 Segundo A. Krell, “a eficácia social reduzida dos Direitos Sociais não se deve à falta de leis ordinárias; o problema maior é a não-prestação real dos serviços sociais básicos pelo Poder Público. A grande maioria das normas para o exercício dos direitos sociais já existe. O problema certamente está na formulação, implementação e manutenção das respectivas políticas públicas e na composição dos gastos nos orçamentos da União, estados e municípios”. É o que acontece com o Direito de Moradia, uma vez que para se implementar as políticas públicas para o desenvolvimento de áreas degradas da cidade, necessita-se de determinada verba do Orçamento Público. Op. cit., p. 31-32. 23 Op. cit., p. 94. 19 Entretanto, convém a este trabalho firmar posição a respeito da linha doutrinária a ser seguida no sentido de se argumentar a implementação dos direitos sociais, sobretudo, a possibilidade de os Tribunais cumprirem o papel de garantia desses direitos. Assim, como forma de elucidar a problemática, indaga-se: pode o Judiciário, quando provocado, obrigar o Estado a construir habitações adequadas para os grupos marginalizados que habitam em áreas degradadas como as favelas, no intuito de garantir a implementação do Direito Social à moradia digna? É possível exigir judicialmente este direito? Não se questiona aqui, neste primeiro momento, qual é a medida exata, a fórmula concreta ou a especificação do que se traduz em moradia digna, mas sim, única e exclusivamente, se este direito é auto-aplicável e se pode contribuir para minimizar a exclusão social, isto é, na possibilidade de obter do Estado a realização de uma conduta devida à sociedade para reparar uma violação de direito social. Para tentar solucionar o problema, vale a contribuição de Abramovich sobre o assunto: Ciertamente el Poder Judicial, por sus características institucionales y por el lugar que ocupa em la distribución de funciones dentro del Estado, no está llamado a ser el principal protagonista a la hora de hacer efectivos de los derechos econômicos, sociales y culturales, tarea que corresponde primariamente a los denominados poderes políticos. Sin embargo, si resulta provocado adecuadamente, puede ser um poderoso instrumento de formación y al mismo tiempo de desarticulación de algunas políticas públicas em el área social, con impacto directo em la vigência de aquellos derechos.24 Sabe-se que os direitos sociais abrangem uma universalidade de pessoas e, portanto, devem ser atendidos de forma prioritária pelo governo, isto é, de forma horizontal, na medida em que se almeje o bem social de todos. Porém, não há um consenso na doutrina a respeito da materialização desses direitos. De qualquer forma, seria mais coerente, portanto, a posição de Tamer quando afirma que mediante o art. 5º §1º da CF/88 “a garantia efetivada dos direitos sociais passa a ser um dever político compartido por todas as esferas de poder do Estado, o que afasta a alegada ilegitimidade do Poder Judiciário ao assegurar, neste âmbito, as chamadas prestações positivas do Estado”.25 É bem verdade que o Estado deverá se respaldar em determinada razoabilidade ou proporcionalidade no momento de concretização dos direitos sociais, com o objetivo de 24 ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los Derechos Sociales como derechos exigibiles. Madrid: Trotta, 2ª Ed., 2004, p. 118. 25 Op. cit., p. 258. verificar quais setores sociais são os que têm necessidades mais urgentes e maior vulnerabilidade. Isso, sem dúvida, contribuirá também para a segurança jurídica do Ordenamento Pátrio como um todo, sobretudo, na garantia do princípio da “vedação de retrocesso social”, sendo aquele em que o legislador não pode retroceder através de emendas constitucionais, leis infraconstitucionais e outras normas, a garantia dos direitos sociais, não podendo suprimir tais direitos previstos na Lei Maior, preservando o núcleo essencial dos mesmos, implementado-os na máxima medida possível. Em suma, como afirma Meireles, “os direitos fundamental-sociais sempre tendem a avançar, não se admitindo retrocesso”.26 Por fim, o que interessa para a compreensão deste assunto é reconhecer e fortalecer o caráter de direito fundamental aos direitos sociais como meio para se assegurar uma vida digna com qualidade, através de um modo de agir do Estado que assegure o bemestar geral, mitigando a exclusão social. A partir disto, deve-se entender que os mesmos possuem auto-aplicação imediata e que devem ser materializados por todas as esferas do Estado, podendo o Poder Judiciário exercer importante contribuição no decorrer desta implementação. Neste sentido, entende-se que os direitos sociais são imprescindíveis para a realização da dignidade humana. 2. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE MORADIA E SUA LEGISLAÇÃO PROTETIVA Estando pacificada a idéia de que os direitos sociais são direitos fundamentais autoaplicáveis, deve-se enquadrar, portanto, o direito de moradia como uma categoria de Direito Fundamental Social, sendo considerado uma diretriz para o Estado, devendo ser implementado.27 26 MEIRELES, Ana Cristina Costa. A Eficácia dos Direitos Sociais. Salvador: Renovar, 2008, p. 44. Segundo Costa, “no século XIX, a cidadania passou a conter aspectos sociais, principalmente em decorrência do movimento dos trabalhadores que, organizados através de associações e sindicatos, passou a fazer várias reivindicações, em especial pela jornada de oito horas de trabalho. Diante dos conflitos entre o capital e o trabalho, o Poder Público passou a assumir uma série de atividades que antes não lhe competiam, como a educação, a saúde, a seguridade e a previdência social, dentre outras. Esses direitos foram constitucionalizados através da Constituição mexicana, de 1917, da Declaração do Povo Oprimido e Trabalhador russa, de 1918, da Constituição de Weimar, de 1919. A Emenda Constitucional nº 26, de 14.02.2000, acresceu “moradia”, como um dos direitos sociais enumerados. Assim, são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados e, agora, a moradia. Tratam-se de direitos subjetivos e, como tal suscetíveis de serem exigidos da Administração”. COSTA, Nelson Nery; ALVES, Geraldo Magela. Constituição federal anotada e explicada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 44. 27 Para tanto, como forma de fundamentar o entendimento posto, faz-se necessário analisar este direito no corpo constitucional. Entretanto, não se pode falar de direito de moradia na Constituição de 1988, sem um entendimento sistemático, isto é, através de uma interpretação extensiva, relacionando este direito com a qualidade de vida, com a proteção do meio ambiente, dentre outros princípios, para que se compreenda o termo: moradia digna. Por moradia digna entende-se aquela habitação em que se vive com certa qualidade de vida, isto é, em que alguns elementos vitais são básicos para a sobrevivência do ser humano.28 Todos, portanto, têm direito a garantia de uma existência digna.29 Neste sentido, podese dizer que o direito de moradia é um pressuposto para a vivência da dignidade, pois contribui para o combate à pobreza, para a ausência de dignidade, visando uma melhor autonomia individual.30 Para Amartya Sen, em sua obra Desenvolvimento como Liberdade31, a capacidade é a conseqüência da liberdade real o que permite o desenvolvimento do ser humano. Logo, o homem livre é aquele capaz de realizar suas atividades, é aquele que possui autonomia individual, e que, portanto, usufrui de uma qualidade de vida. Neste sentido, quando esta liberdade é restrita, o que é vivenciado, via de regra, pelos pobres32 e grupos socialmente excluídos, o Estado também deve proporcionar o bem- “Thompson define necessidades básicas como situações ou estados que constituem uma provação de aquilo que é básico ou imprescindível e que, em conseqüência, põe-nos diretamente em relação com a noção de dano, privação ou sofrimento grave para a pessoa: ‘Não se trata de contratempos, problemas ou prejuízos passageiros, senão de uma degeneração permanente da qualidade de vida humana que se manterá enquanto não se obtenha uma satisfação’”. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 124. 29 Entende-se como existência digna não só a concretização do direito à moradia, mas sim, à todos os direitos fundamentais sociais dispostos no art. 6º da CF/88, já que a Carta Magna dispôs um conjunto de direitos básicos para se garantir a sobrevivência humana com dignidade. Nos dizeres de Sarlet, em sua obra A eficácia dos Direitos Fundamentais, para “(...) que atenda aos mais elementares padrões de dignidade. Op. cit., p. 284. 30 Para Doyal, “os indivíduos expressam sua autonomia por referência a sua capacidade de formular objetivos e estratégias consistentes que considerem como adequados a seus interesses e suas intenções de pô-los em prática nas atividades que empreendem. São três as variáveis que afetam os níveis de autonomia individual: o grau de compreensão que uma pessoa tem de si mesma, de sua cultura e do que se espera dela como indivíduo dentro da mesma; a capacidade psicológica que possui para formular opções para si mesma e as oportunidades objetivas que lhe permita atuar em conseqüência”. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 125. 31 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 32 Segundo Amartya “a pobreza deve ser vista como provação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda, que é o critério tradicional de identificação da pobreza. A perspectiva da pobreza como provação de capacidades não envolve nenhuma negação da idéia sensata de que a renda baixa é claramente uma das causas principais da pobreza, pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da provação de capacidades de uma pessoa. Ibidem, p. 109. 28 estar social, garantindo, se necessário, o desenvolvimento de uma maioria em detrimento de uma minoria. Depreende-se, assim, que o direito de moradia também favorece ao exercício da liberdade real, posto que: A habitação figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano. Seu tamanho e sua qualidade são importantes para a saúde, a segurança e a privacidade, e a sua localização é decisiva para o acesso ao emprego e aos serviços oferecidos pelo município. Para o indivíduo, ela representa uma referência central, uma vez que condiciona as soluções adotadas para suprir as demais necessidades básicas.33 Neste sentido, entende-se que a moradia digna se relaciona com o princípio da função socioambiental da propriedade, disposto no art. 5º, XXII e XIII c/c o art. 225, caput da CF/88, uma vez que, ao se proporcionar necessidades básicas de moradia, a propriedade estará atendendo a sua função social, através de uma fruição coletiva e ao mesmo tempo, se essa moradia for pautada dentro de um ambiente sadio e equilibrado, a qualidade de vida poderá ser alcançada. O princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana, portanto, deve ser observado na implementação do direito social à moradia digna, uma vez que a vida adequada em um ambiente saudável é uma extensão imediata ao próprio direito à vida, disposto no art. 5º, caput, da CF/88. Logo, o direito de moradia (digna), estatuído no art. 6º da CF/88, deve ser entendido e interpretando juntamente com um dos fundamentos da República disposto no art. 1º, III, isto é, o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que aquela não se restringe à casa, posto que engloba o direito à infra-estrutura, saneamento ambiental, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais, buscando garantir o direito à cidade (direitos fundamentais sociais). Ainda assim, a materialização do direito fundamental social à moradia digna propicia a concretização de alguns objetivos fundamentais da República, quais sejam: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, dispostos no art. 3º, incisos I, III e IV da CF/88.34 33 BARBO, André Roriz de Castro; SHIMBO, Ioshiaqui. Uma reflexão sobre o padrão mínimo de moradia digna no meio urbano brasileiro. Estudo dos métodos de cálculo da Fundação João Pinheiro e da Fundação Seade. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. v. 8, no 2 / novembro de 2006, p. 75. 34 Conforme Costa “o combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos, também é matéria de competência comum, de acordo com o Quanto ao direito de moradia, não é demais lembrar que a CF/88 determina como uma das competências municipais a de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, entretanto que este planejamento promova um bem-estar social para todos os habitantes da cidade, em particular, àqueles que não gozam de uma moradia digna. 35 Logo, convém mencionar que o planejamento urbano a ser implementado pelo Poder Público deve primar pela sustentabilidade. Conforme Jacobi, a noção de sustentabilidade implica uma necessária inter-relação entre justiça social, qualidade de vida, equilíbrio ambiental e necessidade de desenvolvimento com respeito à capacidade de suporte. A preocupação com o desenvolvimento sustentável representa a possibilidade de garantir mudanças sócio-políticas que não comprometam os sistemas ecológicos e sociais nos quais se sustentam as comunidades.36 Com o pensamento do autor acima, observa-se certa abrangência do termo sustentabilidade nas cidades, posto que a passagem da compreensão dos problemas ambientais, de uma ótica restrita nas ciências naturais para um escopo mais abrangente sobre o tema, inclui igualmente o componente social, ampliando a compreensão da questão para uma dimensão socioambiental, sem se esquecer de levar em conta os critérios culturais e as determinações específicas na formulação do planejamento urbano de políticas públicas. O autor também menciona que existem determinados fatores materiais e imateriais que contribuem de forma imediata para se atingir determinada sustentabilidade socioambiental37 nas cidades, tais como: os fatores materiais de infra-estrutura, e os inciso X do art. 23 da CF. A pobreza é um reflexo de uma política histórica de concentração de renda, que faz com que a maior parte da população viva em condições mínimas de sobrevivência de sua família. Já a marginalização é um processo mais grave, em que determinados setores sociais são completamente afastados do mercado de bens de consumo, vivendo à margem da ordem social, com evidente perda da cidadania pelos marginalizados”. Op. cit., p. 91. 35 Ainda no pensamento de Costa “as questões urbanísticas dizem respeito principalmente ao Município, porque nele se manifestam suas atividades mais objetivas e dinâmicas, conforme o inciso VIII, do art. 30 da CF. O planejamento urbano foi a forma encontrada para se enfrentar a complexidade que as cidades brasileiras vêm assumindo, que precisam melhorar o ordenamento territorial. Não obstante, cabe à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação (art 21, XX). O art. 182, do texto constitucional, dispõe ainda sobre a política de desenvolvimento urbano municipal, regulamentada pela Lei nº 10.257, de 10.07.2001, o Estatuto da Cidade”. Op. cit., p. 113-114. 36 JACOBI, Pedro. Meio Ambiente Urbano e Sustentabilidade: alguns elementos para a reflexão. In: CAVALCANTI, Clóvis. (Org.). Meio Ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortes; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1997. 37 Entende-se como espaço socioambiental aquele onde vive e no qual articula indissoluvelmente sociedade e meio ambiente. O que ameaça este espaço é a supremacia dos interesses privados, individuais sobre os sociais, coletivos. GRAZIA, Grazia de; QUEIROZ Leda Lúcia R. F. A sustentabilidade do modelo urbano brasileiro. In: GRAZIA, Grazia de (et alii). O desafio da sustentabilidade urbana. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e democrático: FASE/IBASE, 2001. fatores imateriais do trabalho e renda; qualidade de vida; questão da habitação; o saneamento ambiental, e os transportes. A sustentabilidade está nitidamente prevista no art. 225, caput da CF/88 quando dispõe que o meio ambiente deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. Acredita-se que a intenção do legislador com este dispositivo foi positivar o princípio do Desenvolvimento Sustentável, uma vez que existindo o dever de se preservar o meio ambiente, impõe-se de certa forma um limite ao crescimento econômico e industrial desenfreado. Assim, este princípio surge para superar o antagonismo criado entre o desenvolvimento socioeconômico e a preservação da qualidade ambiental. A sustentabilidade passa a ser vista como um limite ao desenvolvimento, posto que este deve ser economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente equilibrado. Assim é o entendimento da CF/88 quando também dispõe em seu art. 170, incisos VI, VII38, que a ordem econômica deve assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando, dentre outros, o princípio da defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais. Ainda quanto à questão do planejamento urbano, não se pode deixar de falar que a Carta Magna prevê em seu art. 182, § 1º e 2º a confecção do plano diretor 39 como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana a fim de se ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Um exemplo é o caso da cidade de Belém, capital do Estado Pará, em que o Plano Diretor Urbano foi criado pela Lei Municipal nº 7.603 de 13 de janeiro 1993, o qual possui como uma de suas diretrizes para o cumprimento das funções sociais da cidade, Segundo Costa “trata o inciso VII, do art. 170, da CF, da ordem econômica, tendo como princípio a redução das desigualdades regionais e sociais. Por diversos fatores, um País não se desenvolve de forma harmônica, havendo centros dinâmicos, ao lado de locais periféricos. O modelo procura concentrar renda em um local, como forma de maximizar os investidores nacionais e procurar economia de escala. Não obstante, a médio prazo, o resultado não propicia o desenvolvimento geral, ao criar regiões de baixo nível econômico e comprometedor de metas de expansão econômica. É essencial que o desenvolvimento ocorra de forma ordenada e que possa se espalhar por outras regiões. Existe a política de subsídio, como forma de permitir que haja estímulo especial à implantação de atividades econômicas em determinados lugares, mais carentes. Desde a Constituição de 1934, em seu art. 115, que vem se proclamando a necessidade de uma vida digna para todos, que só pode ser alcançada pondo fim às desigualdades sociais e econômicas.” Op. cit., p. 470. 39 De acordo com o pensamento de Mattos, “o plano diretor é o instrumento no qual se encontram definidas as exigências fundamentais para que a propriedade cumpra a sua função social. Sendo o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana dos municípios, o plano diretor – com a Constituição de 1988 – passou a ser obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, §1º), e representa, assim, fonte de validade de qualquer lei urbanística municipal. Muito embora não seja obrigatório para cidades com número inferior àquele estabelecido pela Constituição, nada impede que esses municípios menores adotem o plano diretor como meio de garantir que as propriedades cumpram sua função social e, sobretudo, para que seja assegurada uma política de desenvolvimento urbano também para essas cidades”. MATTOS, Liana Portilho. Limitações urbanísticas à propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 70. 38 assegurar o direito de todos os habitantes o acesso à moradia, conforme o art. 2º, parágrafo único, inciso I.40 Além disso, o art. 32, inciso II da mesma lei, obriga o Poder Público Municipal implementar a política imobiliária, tendo em vista que a viabilização da produção pública de moradia parcialmente subsidiada, se impõe como solução capaz de fazer cumprir um direito básico do cidadão, que é o de habitar em um local digno.41 Outra norma infraconstitucional, talvez a mais importante em relação ao direito à moradia digna, é a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade, em que regulamenta os artigos 182 e 183 da CF/88 estabelecendo diretrizes para a política urbana. Dentre os objetivos desta lei, destaca-se a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, conforme art. 2º, inciso I. Além disso, o Estatuto da Cidade também propôs as bases para a mudança da qualidade política do processo e construção da ordem jurídico-urbanística. Nos dizeres de Edésio Fernandes: Ao regulamentar o capítulo constitucional sobre política urbana, o Estatuto da Cidade confirmou, de maneira inequívoca, o Direito Urbanístico como ramo autônomo do Direito Público brasileiro. Em que pese a grande relevância dos novos instrumentos jurídicos e urbanísticos criados e/ou regulamentados pela lei federal, acredito que a importância maior do Estatuto da Cidade se deve principalmente ao marco conceitual por ele consolidado, que, se devidamente assimilado, deverá se tornar a referência central para a devida compreensão e interpretação das muitas e complexas questões jurídicas intrínsecas ao processo de uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, bem como para dar suporte jurídico adequado às práticas de gestão urbana.42 Vê-se, portanto, a real importância da aplicação do Estatuto da Cidade para que se garanta aos habitantes de um município, dentre outros direitos, o de moradia digna. No entendimento de Nelson Saule Júnior a moradia adequada é aquela que engloba a: 40 O Plano Diretor Urbano do Município de Belém encontra-se, atualmente, em revisão, tendo em vista o disposto no art. 40, § 3º da Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade). 41 Sobre moradia digna, vale ressaltar que a Jurisprudência Pátria vem lentamente manifestando nas decisões de alguns Tribunais o entendimento a cerca do tema. Neste sentido vale lembrar o trecho do Acórdão nº 1129163, do Tribunal Regional Federal da 3º Região, em que foi relatora a Dra. Suzana Camargo, publicado no DJU dia 03.04.07: “(...) O direito social à moradia somente se realiza quando observado o princípio da dignidade da pessoa humana. A habitação digna consiste naquela que possui acesso aos serviços públicos básicos como água, luz, esgoto, com segurança jurídica preservada pela existência de titulação da propriedade do bem imóvel, e segurança física, ou seja, que não esteja em área de risco”. Disponível em: http://www.jf.gov.br/juris/?. Acesso em: 10.12.2007. 42 FERNANDES, Edésio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.), Estatuto da Cidade comentado. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.33. "segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços e infra-estrutura, custos da moradia acessível, habitabilidade, acessibilidade e localização e adequação cultural”. 43 Apesar de toda esta gama de normas e diretrizes que dão um norte ao direito de moradia no Ordenamento Jurídico Pátrio, não se pode deixar de mencionar, ainda, que existem alguns tratados internacionais, dos quais o Brasil faz parte, que também tratam o direito de moradia como um direito humano, tais como: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV, item 1); o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, art. 11(1); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, art. 5(e)(iii); a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de 1978, art. 9(2); a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, art. 14(2)(h); a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, art. 27(3); a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976, Seção III(8) e capítulo II(A.3); a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, capítulo 7(6) e a Agenda Habitat de 1996.44 Quanto aos documentos acima, vale comentar a respeito da Agenda 21 e da Agenda Habitat II, instrumentos que podem contribuir para fundamentar a discussão tratava até este momento, sem, entretanto, esgotar o tema em análise. A Agenda 21 é um documento que foi assinado por 170 países na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 1992. A Agenda foi um dos primeiros tratados internacionais a positivar o princípio do Desenvolvimento Sustentável, em que a maioria dos países do mundo é signatária. Além disso, propõe a formulação de uma Agenda 21 local 45 para os governos desses países. 43 SAULE JÚNIOR. Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2004, pág. 149. 44 O relatório Bruntland (1987) consolidou o relacionamento entre a cidade e o meio ambiente uma tendência que vinha se afirmando desde o final da década de 1960. A Agenda 21, o plano de ação da Conferência da ONU sobre o meio ambiente e desenvolvimento (1992), dá mais objetividade à questão ao estabelecer como problema ambiental a qualidade dos assentamentos humanos. A Agenda Habitat, o plano de ação da Conferência da ONU sobre assentamentos humanos (1996), consagra a dimensão ambiental nas cidades e estabelece a sustentbilidade e a gestão democrática como estratégias para o enfrentamento dos problemas urbanos. SANTOS, Alexandre de Mello; MOTTA, Athayde. Desafios para a sustentabilidade no espaço urbano brasileiro. In: GRAZIA, Grazia de (et alii). O desafio da sustentabilidade urbana. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e democrático: FASE/IBASE, 2001, p. 87. 45 A agenda 21 local é a proposta de implantação, por meio de ações concretas no plano local, dos princípios centrais da Agenda 21, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável, isto é, um modelo de desenvolvimento em que crescimento econômico e preservação do meio ambiente não sejam contraditórios, mas complementares. Ela define que as “gerações presentes” teriam uma relação de solidariedade e responsabilidade com as “gerações futuras” e que, portanto, os níveis de destruição do meio ambiente e da qualidade de vida devem diminuir “aqui e agora” para que a vida no planeta seja viável no futuro. Além disso, parte do princípio de que qualquer mudança, qualquer transformação nas formas de Em contrapartida, o processo de urbanização nos países subdesenvolvidos, ressaltado no documento Habitat II, durante a Conferência sobre Assentamentos Humanos ocorrida em Istambul em 1996, apresenta um quadro negativo de tendências, com destaque para o risco de não sustentabilidade da qualidade de vida em muitas cidades, seja pela destruição de recursos naturais e do seu patrimônio cultural, seja pela gestão e operação pouco cautelosas e não planejadas de seus serviços. A cidade, no século XXI, para ser palco de uma vida urbana sustentável, precisa superar sua degradação física, inverter a lógica hoje em vigor, de lugar de consumo em consumo (usufruto) de lugar, gerar alternativas concretas às injustiças.46 Em outras palavras, uma sociedade em ascensão é aquela que vivencia a materialização de políticas sustentáveis. A Agenda Habitat II, portanto, em seus arts. 42 a 45, também estabelece a prioridade no desenvolvimento de assentamentos humanos e de moradias, primando com o objetivo, dentre outros, de estimular, conforme apropriado, o desenvolvimento de assentamentos humanos acessíveis e socialmente integrados, incluindo equipamentos apropriados para saúde e educação; combater a segregação e políticas e práticas discriminatórias e de exclusão, e reconhecer e respeitar os direitos de todos, sobretudo das mulheres, crianças, portadores de deficiências, pessoas vivendo na pobreza ou que pertençam a grupos vulneráveis e desfavorecidos.47 Este documento aponta que a vulnerabilidade e o desfavorecimento costumam ser oriundos da marginalização e exclusão do fluxo socioeconômico e dos processos de tomada de decisão, bem como pela falta de acesso eqüitativo a recursos e oportunidades. Neste sentido, importa dizer que para reduzir essas características negativas é necessário melhorar e assegurar o acesso das pessoas pertencentes a grupos vulneráveis à habitação, financiamento, infra-estrutura, serviços sociais básicos, mecanismos de segurança e processos de tomada de decisão nas esferas nacional e internacional. É compreensível que nem todos os indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis ou desfavorecidos sejam assim sempre. A vulnerabilidade e a desvantagem costumam ser relação das sociedades humanas com seu meio ambiente comum, só é efetivada se partir do plano local se traduzir em ações concretas, envolvendo os “atores sociais locais”. Supõe, portanto, que o local, por um lado, é o nível em que as “relações sociais efetivamente ocorrem” e, por outro, é um pedaço do global. Daí a idéia de que a soma das ações locais representaria mudanças no plano global. Neste sentido, é no local que se criam e desenvolvem as ações propostas nos fóruns da Agenda 21. MELLO, Cecília Campello de Amaral. Agenda 21 local – um glossário analítico para o debate. In: ACSELRAD, Henri; BEZERRA, Gustavo das Neves; MELLO, Cecília Campello de Amaral (org.). Cidade, Ambiente e Política. Problematizando a Agenda 21 local. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.37. 46 AGENDA 21 Brasileira. Bases para a discussão. Brasília, 2000, p.64. 47 FERNANDES, Marlene. Agenda Habitat para municípios. Rio de Janeiro: IBAM, 2003, p. 36. causadas pelas circunstâncias e não pelas características inerentes, o que as reveste na categoria de risco. Reconhecendo que a vulnerabilidade e o desfavorecimento são afetados, dentre outras coisas, pelas condições do setor da habitação e pela viabilidade e eficácia da proteção jurídica garantindo igualdade de acesso a recursos e oportunidades, os integrantes de determinados grupos têm maior tendência à vulnerabilidade e ao desfavorecimento no que se refere às condições de moradias e assentamentos humanos.48 Os indivíduos de grupos vulneráveis ou desfavorecidos enfrentam uma situação de risco quando não têm a segurança da posse, não usufruem de serviços básicos, enfrentam impactos ambientais e de saúde extremamente negativos, podendo ser excluídos, inadvertida ou deliberadamente, do mercado e dos serviços relacionados a moradias. Importa frisar que tais impactos indesejáveis podem ser superados com a adoção de uma política de planejamento urbano e habitacional que prima pela sustentabilidade, no sentido de se garantir à todos e todas os direitos socioambientais da cidade. Assim, temse que levar à sério a concretização dessas políticas para se garantir um fim maior, qual seja, a justiça social e ambiental. Ante o exposto, constata-se que a efetivação do direito à moradia digna, elevado ao patamar de direito fundamental social pela CF/88, contribui de imediato para igualizar indivíduos vulneráveis socialmente, que habitam em locais periféricos, no sentido de garantir uma vida digna e sustentável em prol do bem-estar social. 3. POLÍTICAS PÚBLICAS, CIDADANIA E DEMOCRACIA Nesta seção, primeiramente, será abordado o tema das Políticas Públicas para se fazer entender o papel do Estado na implementação dos Direitos Sociais, sobretudo, o de moradia, foco deste artigo. Em seguida, será argumentado, como conseqüência ao cumprimento dessas políticas, a cidadania e a democracia. Na concepção Keynesiana de Estado Providência, ressalta-se uma intervenção ampla e coordenada deste ente público com a finalidade de intervir na economia, na redistribuição da riqueza e do rendimento, na regulamentação das relações sociais, no reconhecimento de direitos econômicos e sociais e na implantação de sistemas públicos de segurança social49. 48 49 Ibidem, p.86. NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. O princípio da responsabilidade social coletiva, inspirado no estado de bem-estar se impõe frente às desigualdades sociais, com a finalidade de que todos, indistintamente, possam usufruir melhores condições de vida. O papel do Estado passa a ser repensado no sentido de atuar de forma positiva em relação às transformações sócio-econômicas, necessitando-se que este ente público crie atividades organizadas no quadro de um planejamento estratégico, com a eleição prioritária de fins ou objetivos comuns e com os instrumentos mais adequados à sua consecução50. Começa-se a se discutir também não somente uma necessária intervenção estatal frente a essa problemática, mas sim de que forma esta intervenção deverá ser realizada, isto é, em prol de quem o Estado intervém.51 Neste sentido, o que se pretende demonstrar neste tópico é que as Políticas Públicas sobre moradia podem contribuir para que grupos socialmente excluídos gozem de condições mais justas e dignas de vida, usufruam de um meio ambiente equilibrado, e desfrutem das funções sociais da cidade. Para isso, relevante a contribuição de Leal e Reis sobre o assunto: Dado o estado de fragilidade econômica e cultural por que passa a maior parte da sociedade brasileira, e em face da capacidade e estágio de organização e mobilização do mercado neo-capitalista que se fortifica a cada momento no país, impõem-se ao Estado (parlamente, executivo, e judicante) a tarefa nuclear de criar condições objetivas e subjetivas à realização das prerrogativas e promessas constitucionais vigentes, notadamente a partir de procedimentos democráticos de inclusão social em todas as esferas e momentos da ação política gestacional das demandas comunitárias.52 Desta forma, o Estado, através da implementação de Políticas Públicas de moradia, estaria mais próximo de solucionar as desigualdades socioambientais – (agregando a ética, a política e o direito) geradas muitas vezes pela ausência de intervenção do Poder Público – aplicando, assim, os Direitos Sociais, com o intuito de minimizar as conseqüências negativas da exclusão social sofrida, em maior intensidade, por grupos que habitam áreas periféricas dos grandes centros urbanos. 50 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade de Políticas Públicas. São Paulo, Ed. RT – Revista dos Tribunais, vol. 737, março de 1997, p. 11-22. 51 Entende Grau que “a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social. E de tal forma isso se institucionaliza que o próprio direito, neste quadro, passa a manifestar-se como uma política pública - o direito é também, ele próprio, uma política pública”. GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2003. p.22. 52 LEAL, Rogério Gesta e REIS, Jorge Renato dos. Direitos Sociais & Políticas Públicas – Desafios Contemporâneos. IN: LEAL, Rogério Gesta e RECK, Janriê Rodrigues. Possíveis Dimensões JurídicoPolíticas locais dos Direitos Civis de participação social no âmbito da gestão dos interesses públicos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. t. 4. Concorda-se com Saule Júnior quando afirma que: Nas normas definidoras do direito à moradia a aplicação é imediata o que faz com que sua eficácia seja plena. Isto é, de imediato, o Estado brasileiro tem a obrigação de adotar as políticas, ações e demais medidas compreendidas e extraídas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito, em especial aos que se encontram no estado de pobreza e miséria. Essa obrigação não significa, de forma alguma, prover e dar habitação para todos os cidadãos, mas sim construir políticas públicas que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional, constituindo planos e programas habitacionais com recursos públicos e privados para os segmentos sociais que não têm acesso ao mercado e vivem em condições precárias de habitabilidade e situação indigna de vida. 53 Portanto, o Estado brasileiro tem a obrigação de adotar políticas públicas de habitação que assegurem a efetividade do direito à moradia. Tem também responsabilidade de impedir a continuidade de programas e ações que excluem a população de menor renda do acesso a uma moradia adequada. A dimensão dos problemas urbanos brasileiros contém a questão habitacional como um componente essencial da atuação do Estado como promotor de políticas voltadas para a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a justiça social. Entende-se por políticas públicas aquele um conjunto articulado de planos, ações, programas e projetos de governo (muitas vezes em parceria com organizações da sociedade civil), previstos em orçamento, visando à redução da desigualdade social e da melhoria da qualidade de vida. São programas de ação governamental voltados à concretização de direitos (sociais).54 Desta forma, entende-se que toda a Política Pública é um instrumento de planejamento, racionalização e participação popular. Não é demais lembrar, apesar de não ser este o ponto chave da discussão, que para se garantir a eficiência dessas políticas, é preciso antes prever recursos financeiros que permitam uma ação eficiente do Estado. Contudo, talvez a eficácia de uma política esteja na prestação de contas do Estado para com a sociedade pelo uso do dinheiro público. De qualquer forma, cabe apontar que a política pública voltada para a concretização ao direito de moradia, pode ser verificada na Constituição Federal de 1988, quando 53 Op. cit., p. 182-183. A promoção de políticas públicas pelo poder público e demais atores sociais deve ser realizada mediante a integração das políticas setoriais tendo como diretriz desta integração a efetivação do direito a cidades sustentáveis. O direito a cidades sustentáveis tem como fonte de origem os preceitos constitucionais das funções sociais da cidade e da propriedade, norteadores da política urbana. O pleno exercício do direito às cidades sustentáveis compreende condições dignas de vida, de exercitar plenamente a cidadania e os direitos humanos, de participar da gestão da cidade e de viver em cidades com qualidade de vida social e ambiental. SAULE JR., Nélson; OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia no Brasil. Relatório Nacional. Projeto Relatores Nacionais em DhESC. Plataforma Brasileira dos DhESC. Voluntários das Nações Unidas – UNDP. 2002, p. 11. 54 dispõe no art. 23, IX, X, que é de competência comum de todos os entes federados a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; e o combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. Para melhor compreensão do assunto, válido é o entendimento de Nelson Nery Costa, transcrito abaixo: O déficit habitacional no Brasil é absurdo e precisa-se criar programas que atendam a esta demanda de forma racionalizada e com uma perspectiva social. Não obstante, a política oficial de construção de moradias está em crise, precisando serem revistas as práticas e as formas de financiamento até agora utilizadas. O saneamento básico implica na ação governamental, visando tornar habitável e respirável o ar de determinadas regiões ou cidades, através da captação e do tratamento de dejetos domiciliares e industriais. 55 Quanto à competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social é privativa da União Federal, conforme art. 21, IX da Carta Magna, cabendo ao Congresso Nacional dispor sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, de acordo com o art. 48, IV da Lei Maior.56 Como se vê, a CF/88 normatiza a criação de políticas públicas, em vários setores sociais, até para a concretização do direito de moradia. Entretanto, é questionável a maneira como essas políticas são implementadas, tendo em vista que, de uma forma geral, chega a ser duvidosa a melhoria da qualidade de vida à que se propõem. Convém comentar, neste momento, que o instrumento precípuo para a eficácia do direito acima mencionado é o Planejamento Urbano, ou seja, a criação pelo poder Público, de Políticas Públicas que englobem a questão do desenvolvimento urbano como tema principal para solucionar os problemas de moradia nas cidades. 57 55 Op. cit., p. 91. Os planos são a forma pela qual o Poder Público pode condicionar e modificar a realidade econômica e social. Partindo da análise de dados colhidos através de pesquisa e estudo, faz-se uma conclusão das melhores condições e se prepara um cronograma com as formas de atuação estatal. A forma pela qual vai ser exercido o plano se dá mediante os planos e os programas. Cabe à União, através de lei, elaborar os planos nacionais, bem como os regionais, próprios das cinco regiões em que o País está dividido. Cabe-lhe, ainda, a competência para os planos setoriais e programas, voltados para uma área específica do mundo econômico ou social. Op. cit., p.163. 57 De acordo com Grazia, a ausência da questão urbana na agenda política nacional e a falta de interlocutores claros, bem como a inexistência de uma instância nacional de negociação entre os atores, prejudicam a atuação dos governos locais e a participação dos atores sociais na formulação e implementação das políticas públicas voltadas para a cidade. A ausência se reflete na falta de diretrizes gerais de desenvolvimento urbano, cuja instituição foi delegada à União Federal pela CF/88. Essa falta, por sua vez, contribui para dificultar que sejam promovidas a integração nacional das políticas e a redução das disparidades regionais e urbanas. Op. cit., p. 62. 56 Para se falar de Planejamento Urbano, deve-se entender que o Estado tem que adotar uma Política de Sustentabilidade, isto é, orientar e definir suas ações públicas de forma que leve em consideração o reconhecimento da limitação ecológica fundamental dos recursos. Como sustentabilidade, entende-se aquela conduta que qualifica o crescimento econômico, reconciliando o processo material com a preservação da base natural da sociedade. Para tanto, necessário se faz determinadas mudanças de estilo de vida para se assegurar a manutenção do capital natural, isto é, dos recursos naturais. Como alternativas para se implementar uma política sustentável, Cavalcanti propõe, por exemplo, o desenvolvimento do ecoturismo, através da geração de empregos, renda, e educação ambiental; a premiação de tecnologias ambientalmente sãs, de forma a incentivar a pesquisa científica; iniciativas ao uso de transporte de massa e o uso da biomassa como combustível; e uma reforma institucional para que se contemple novas formas de regulação democrática e uma moderna versão de economia mista, diferente da neoliberal (educação; gestão participativa; diálogo com as partes envolvidas). 58 Ainda não se verifica a adoção da preocupação ecológica na feitura das políticas públicas no Brasil, isto porque o processo econômico adotado continua se utilizando da natureza de modo menos duradouro, sóbrio e saudável. Neste sentido, conforme o autor acima, deve-se conservar mais o capital natural para as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades, sendo, portanto, uma escolha ética de todos os atores sociais, sociedade civil, ONGs, e sobretudo, do Poder Público.59 Impõe-se, assim, a confecção de políticas públicas sustentáveis que visem compatibilizar o progresso econômico, a justiça social e ambiental, e o equilíbrio ecológico, de forma a se impulsionar um projeto de revolução urbana permanente, reduzindo as desigualdades sociais e proporcionando melhorias de condições de vida de grupos sociais oprimidos, o que de certa forma, acarretaria a transferência de recursos em favor dos mesmos.60 É o que também argumenta Krell quando afirma que: “face à realidade do mau funcionamento destes serviços essenciais para o bem-estar da população, devem ser 58 CAVALCANTI, Clovis. Política de governo para o desenvolvimento: uma introdução ao tema e a esta obra científica. In: CAVALCANTI, Clovis. (Org.). Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortes; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1997. 59 Ibidem. 60 Sobre o assunto, Jacobi afirma que “(...) deve-se questionar de forma concreta a falta de iniciativa dos governos para implementar políticas pautadas pelo binômio sustentabilidade e desenvolvimento. Havendo vontade política é possível viabilizar ações governamentais pautadas pela adoção dos princípios de sustentabilidade ambiental conjugada a resultados na esfera do desenvolvimento econômico social. Op. cit., 69. adotadas políticas públicas protetivas de determinadas categorias sociais marginalizadas e economicamente excluídas”.61 No intuito de se concluir a discussão sobre políticas públicas, vale ainda lembrar que em relação à fundamentação das mesmas, constatam-se o exercício de três princípios constitucionais basilares, quais sejam: a democracia participativa, exercida através da presença da sociedade civil nos diversos conselhos gestores de políticas públicas, e na participação ativa na elaboração e implementação das decisões políticas; a cidadania, isto é, o exercício efetivo de direitos individuais, políticos e, sobretudo, sociais; e a soberania popular levando em consideração a máxima de que todo o poder emana do povo. Logo, quando se fala em cidadania deve-se invocar o princípio da dignidade da pessoa humana, já discutido em tópicos anteriores. O importante é entender que a dita cidadania plena proporciona o exercício deste princípio, na medida em que o Estado concretiza políticas públicas de cunho urbanístico por meio de um planejamento democrático. É o que entende Fernandes quando preceitua que: Direitos como o de moradia ou o tão clamado “direito à cidade” não podem ser interpretados tão-somente a partir de uma perspectiva humanitária: seu reconhecimento enquanto direitos coletivos, expressões do exercício da plena cidadania social, é a condição mesma para que cidade e cidadania sejam realmente um mesmo tema. (...) A sociedade civil está reclamando sua inclusão em políticas de planejamento mais democráticas, o que certamente implica na própria redefinição do planejamento, que tem de ser reconhecido como um processo político fundamental para as lutas populares no sentido da construção de cidades sustentáveis e habitáveis, e não como uma mera atividade regulatória estatal.62 Neste sentido, o que se defende é que o Estado deve proporcionar uma cidadania revolucionária e inclusiva, adotando uma perspectiva social, econômica e política, não se restringindo apenas à garantia dos direitos políticos à guisa de uma cidadania política, conforme prevê no art. 14 da CF/88. Quando se fala em inclusão, significa dizer que a perspectiva da cidadania e da dignidade humana andam juntas, tendo em vista que o que se carece é de uma cidadania inclusiva e exigente. No mais, a cidadania plena é assegurada com o cumprimento dos objetivos da república dispostos no art. 3º da CF/88, confundindo-se, portanto, com a implementação dos direitos sociais, sobretudo, o de 61 Op. cit., p. 34. FERNANDES, Edésio (Org.) Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 41. 62 moradia, o que pode contribuir para a transformação dos moradores de uma cidade em cidadãos, propriamente ditos.63 A cidade não é apenas o reflexo da sociedade, mas sim um universo social, econômico e político, sendo um complexo de relações sociais. Além de herdar desigualdades da estrutura social, a cidade as profunda. Desta forma, a luta contra esta desigualdade deve se iniciar na esfera local64 para que se possa usufruir de forma global. Entende-se, por fim, que as Políticas Públicas devem adotar um viés sustentável como forma de desenvolver o meio ambiente urbano, implementando direitos sociais, como o de moradia. Desta forma, pode-se atingir o conceito de cidadania plena no sentido de se forçar o poder local a promover a justiça social (e ambiental) de forma ampla, para todos os habitantes da cidade. De todo o exposto, constata-se que as condições ambientais a que estão expostas as pessoas, relacionam-se intimamente com a qualidade de vida das mesmas. Esta qualidade de vida abrange as necessidades humanas, os ambientes individuais e societais e o desenvolvimento humano. A qualidade ambiental, segundo Sônia Barbosa, é diretamente proporcional às situações do ambiente que favorecem a qualidade de vida das pessoas que pertencem a um sistema humano dado. Como interferência nesta relação, a autora aponta a cidadania, principalmente quando se fala em uma estrutura sócio-cultural deteriorada, de carências básicas não resolvidas. Neste sentido, deve-se analisar como essa busca de participação e resolução políticas das carências cotidianas está sendo resolvida. 65 Portanto, a busca da cidadania como um processo em construção poderá se dar através da melhoria da qualidade de vida, fator que por si só impulsionará a participação coletiva. A participação popular no processo administrativo decisório é de suma importância para a vivência da cidadania plena, posto que assim, se vivencia de fato a democracia participativa. Sobre o tema, importante é a contribuição de Martins Júnior, conforme segue: 63 Vainer destaca três teorias a respeito de cidadania, quais sejam: os globalistas, que propõem a cidadania globalizada, como sendo a única e derradeira trincheira contra a fragmentação, sendo resultado de um processo de democratização das agências multilaterais e internacionais; os nacionalistas, que acionam o conceito tradicional de cidadania, referindo-se ao Estado Nacional para desqualificar o projeto de cidadania global; e os localistas, que defendem o local como a escala mais pertinente para o exercício da cidadania pela razão de que o cidadão vive no local, na cidade, no município. VAINER, Carlos Bernardo. As escalas do poder e o poder das escalas: o que pode o poder local? In: Planejamento e território. Ensaios sobre a desigualdade. Cadernos IPPUR/UFRJ, 2005. 64 Ibidem. 65 BARBOSA, Sônia Regina de Cal Seixas. Ambiente, qualidade de vida e cidadania. Algumas reflexões sobre regiões urbano-industriais. In: Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. 2. Ed. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 1995. p. 193-208. A participação popular decorre do art. 1º, parágrafo único da Constituição de 1988, introduz um novo ator na condução dos negócios públicos: o povo mediante a repartição, partilha, colaboração ou comunhão do poder. Assim, supera a disputa entre os Poderes Executivo e Legislativo travada com a crescente intervenção estatal na vida privada e suplanta a noção formal de democracia representativa pela ampliação de mecanismos de democracia semidireta. É um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito e dado essencial distintivo entre o Estado Democrático de Direito e o Estado Social, pela diminuição da distância entre a sociedade e o Estado.66 Assim, entende-se que de nada adianta a implementação de políticas públicas se não houver uma participação popular impulsionada pela transparência administrativa no processo decisório, de forma a proporcionar uma atuação mais ativa do administrado, o qual, através da informação obterá o conhecimento do fato, permitindo a participação através do controle, sugestão, defesa, consulta e até mesmo de deliberação sobre o tema das políticas públicas. Desta forma, o Poder Público deve abusar dos debates, consultas populares e outros meios de coleta de opinião, como por exemplo, as audiências públicas67, para tornar visível as demandas sociais e exercer influência no conteúdo das decisões administrativas. Deve-se assumir claramente um compromisso com o planejamento urbano a fim de materializá-lo em planos e projetos voltados para a redução das desigualdades sociais da cidade, viabilizando uma reforma urbana abrangente e eficaz. Assim, o Estado Democrático de Direito exercitará os direitos fundamentais sociais promovendo a materialização de valores supremos como a democracia, a cidadania e a justiça social, valores estes, que, como visto, estão devidamente positivados na Constituição Federal de 1988, mas que dependem da vontade política e do compromisso do Estado em assumir o papel de patrocinador do interesse público e social, não poupando esforços para atingir tais valores basilares, de forma a garanti-los à todos e todas, livre de qualquer forma de discriminação ou preconceito. 66 MARTINS JR., Wallace Paiva. Participação popular no Estatuto da Cidade. In: FINK, Daneil Roberto. Temas de Direito Urbanístico 4. São Paulo. Imprensa Oficial do Estado: Ministério Público do Estado de São Paulo, 2005. p.239 67 A audiência pública concretiza-se mediante oitivas e debates sobre um determinado assunto, enquanto a consulta pública se materializa pela coleta de opiniões e sugestões escritas sobre específica matéria. Prévias à edição de um ato administrativo como integrantes de seu processo de formação, seus objetos são diretos ou interesses (direta ou indiretamente) transindividuais. Normalmente, servem para a instituição de vários tipos de processos administrativos (limitações do poder de polícia, decisões concernentes aos serviços públicos, fixação de normas e decisões concretas do ordenamento social ou econômico e de políticas de fomento público). MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito de participação política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p.128. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalhou, pretendeu-se analisar o conceito de Direitos Fundamentais Sociais previstos na Constituição Federal de 1988, assim como, a aplicabilidade imediata dos mesmos, como forma de se demonstrar que o Poder Público deve, por força constitucional, garantir a eficácia daqueles direitos aos cidadãos. Como forma de se exemplificar o exercício desses direitos, discorreu-se a respeito do Direito à Moradia, previsto no art. 6º da Carta Magna, tendo em vista, ser este direito de suma importância para a garantia da qualidade de vida. Destacou-se a necessidade de se garantir moradia digna, principalmente, para os grupos socialmente excluídos, como aqueles que vivem em áreas periféricas ou marginalizadas nas cidades, desprovidas de qualquer planejamento urbano, carentes de serviços públicos básicos, e que residem em habitações completamente precárias, construídas em áreas altamente poluídas. Por moradia digna entende-se aquela em que o Poder Público garante a efetividade dos direitos socioambientais da cidade, no sentido de proporcionar à todos os cidadãos e cidadãs uma infra-estrutura urbana mínima que possibilite habitar com dignidade e viver com qualidade. Neste sentido, afirma-se que a moradia digna impulsiona a realização de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais, e o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entretanto, verifica-se que o atual Estado Democrático de Direito se depara com a inaplicabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais, como exemplo, o de moradia, em decorrência da ineficácia das políticas públicas em não proporcionarem uma cidadania inclusiva garantindo o exercício de uma democracia plena, frente a intensa exclusão social. Ante o exposto, para se visualizar a implementação de um equilíbrio ambiental, o Estado necessita, obrigatoriamente, criar e executar políticas públicas que primem por um desenvolvimento urbano sustentável, através de um planejamento e ordenamento do uso do solo urbano, no sentido de se eliminar as desigualdades sociais e ambientais e proporcionar uma justiça social, para então, se exercer a cidadania e a democracia.