O Futuro da Turquia ClaudioTéllez, Analista Internacional e Matemático. [email protected] A Primeira Guerra Mundial pôs fim ao Império Otomano que, em seus tempos áureos, durante o reinado de Süleyman, o Magnífico (1494 - 1566), chegou a alcançar as portas de Viena. Mas, se o Cerco de Viena em 1529 marcou o apogeu do avanço otomano na Europa Central, a Batalha de Viena, em 1683, representou o início do declínio do Império Otomano e da consolidação da civilização européia, fadada a determinar a face das relações internacionais tais como as conhecemos hoje. Talvez não seja exagero afirmar que a contribuição mais marcante da civilização européia para a política internacional foi a instituição do conceito de Estado nacional moderno, a partir dos tratados de Osnabrück e Münster (Paz de Westphalia), que marcaram o fim da Guerra dos Trinta Anos e da Guerra dos Oitenta Anos (Revolta Holandesa), em 1648. O processo de formação da República da Turquia começou com o fim da Primeira Guerra Mundial. Em abril de 1920, a Grande Assembléia Nacional, estabelecida em Ancara, tornou Mustafá Kemal, um prestigiado comandante militar, seu primeiro presidente. Mas o Tratado de Sèvres, assinado em outubro de 1920 entre o sultão otomano e a Tríplice Entente, determinava o desmembramento do Império Otomano. Esse tratado foi rejeitado pelo movimento nacional turco e os revolucionários, liderados por Mustafá Kemal, deram início à Guerra de Independência Turca, que terminou com a deposição do sultão Mehmed VI e com a celebração de um novo tratado de paz com os países aliados, o Tratado de Lausanne, em 24 de julho de 1923, determinando as fronteiras turcas. A República Turca foi proclamada em 29 de outubro desse mesmo ano e Mustafá Kemal foi escolhido para ser o primeiro presidente. Mustafá Kemal deu início à secularização e ocidentalização da Turquia. Aboliu o califado, fechou as escolas teológicas, adotou códigos legais europeus, baniu o véu islâmico para as mulheres, substituiu o alfabeto árabe pelo alfabeto latino (com algumas modificações) e eliminou a proibição islâmica ao consumo de álcool (é no mínimo curioso mencionar que ele veio a morrer de cirrose hepática, em 1938). Em 1934, Mustafá Kemal adotou o nome de Atatürk, o “pai dos turcos”. As reformas do regime de Atatürk, baseadas na secularização e ocidentalização do país, permitiram o florescimento de um sistema político democrático depois da Segunda Guerra Mundial. A Turquia entrou em uma rota de tranqüilidade nas suas relações políticas internas e começou a experimentar uma certa prosperidade econômica. Atualmente, a Turquia possui um parque industrial tão variado quanto o brasileiro, mantém uma união aduaneira com a União Européia desde 1996 e exporta tecnologia de ponta para a Alemanha. Contudo, a sociedade turca enfrenta alguns conflitos de identidade. O país é fortemente ocidentalizado, porém não é totalmente europeu. Além disso, a religião predominante é o Islamismo, porém o país é secular, o que afasta a Turquia do resto do mundo islâmico. Os acontecimentos das últimas semanas, contudo, colocam em questão a relativa estabilidade da política turca. No passado dia 24 de abril, o primeiro ministro Recep Tayyip Erdogan anunciou que Abdullah Gül, ministro das relações exteriores, seria o candidato do seu partido para a presidência do país. Gül, assim como Erdogan, é um islamista moderado, porém fez questão de afirmar que, caso eleito, seria fiel aos princípios básicos da República, isto é, ao Estado democrático e secular. Contudo, as correntes ultra-secularistas turcas, inclusive nas lideranças militares, levantaram-se contra o apoio do parlamento a um candidato islamista, por considerá-lo antitético ao tradicional secularismo da Turquia e ao legado de Atatürk. O partido AK (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), que chegou ao poder em 2002, rejeitou seu passado islamista e definiu-se como conservador, porém seus membros islâmicos desejam que a Turquia abandone as restrições à liberdade religiosa. Dessa maneira, abraçaram um projeto de liberalização do país, defendendo a entrada da Turquia na União Européia, o livre mercado e as liberdades individuais. Seus opositores, portanto, que defendem a manutenção do secularismo enquanto dominação da religião pelo Estado (algo bem diferente da separação entre Igreja e Estado que temos nos Estados laicos ocidentais), terminaram por adotar uma virulenta postura antiOcidente, anti-liberal e anti-americana. No dia 27 de abril, Abdullah Gül não conseguiu votos suficientes para ser eleito presidente da Turquia no primeiro turno. Devido a pressões da oposição, a votação foi considerada nula pela corte constitucional. Paralelamente ao desenrolar das questões políticas no parlamento turco, as tensões entre os secularistas e os islamistas moderados alcançaram as ruas em ondas de protestos que envolveram atividades de violência e prisões de centenas de pessoas. Hoje, na segunda votação parlamentar, a oposição boicotou a seção ao não comparecer ao pleito, e Abdullah Gül sucumbiu à pressão dos opositores secularistas e dos militares turcos, renunciando à sua candidatura. A Turquia é um importante aliado militar dos Estados Unidos na região. As recentes manifestações de anti-americanismo e uma possível mudança na estruturação política do país, acompanhada da exacerbação dos sentimentos anti-americanos, pode prejudicar muito os interesses dos Estados Unidos na região. Além da Turquia ser um ponto-chave para as estratégias norte-americanas no Oriente Médio, existe o problema dos curdos. No passado dia 12 de abril, o general Yasar Buyukanit, chefe militar turco, solicitou ao governo a aprovação para realizar incursões militares no norte do Iraque, com o objetivo de proteger o país da ação das guerrilhas curdas que operam na fronteira. Os Estados Unidos, apesar de aliados da Turquia, não se posicionam ao lado dos turcos contra os rebeldes curdos. Além do mais, as relações entre as milícias curdas e as forças especiais norte-americanas não são claras e, durante os primeiros momentos da guerra no Iraque, houve estreita colaboração entre curdos e norte-americanos em algumas operações. Essas ligações dariam margem a interpretações de conteúdo duvidoso, que possivelmente seriam aproveitadas pelos militares turcos secularistas, caso venham a obter mais margem de manobra política na Turquia. Uma das questões mais importantes da atualidade é a entrada da Turquia na União Européia. Que conseqüências a recente crise política turca terá para esse processo? Um Estado turco mais islamizado seria, à primeira vista, um fator complicador para a integração do país ao bloco da “respublica christiana”, porém o partido AK, desde que está no poder, tem feito de tudo para incrementar os laços com a União Européia e acelerar o processo de admissão da Turquia. Atualmente, o risco de quebra da democracia turca, caso os secularistas imponham a sua vontade por outros caminhos que não o das urnas, significaria uma séria fratura no processo de aceitação da Turquia pela União Européia. De início, porque uma interferência dos militares na política turca não seria vista com bons olhos pelos dirigentes europeus. Além do mais, as posições anti-ocidentais dos secularistas turcos seriam contraproducentes à entrada do país ao bloco europeu, já que entre o secularismo e a democracia, eles optam abertamente pelo secularismo, o que afastaria a Turquia da União Européia em termos de alguns valores básicos, como por exemplo o respeito às liberdades individuais. É claro que há outras questões que dificultam o ingresso da Turquia na União Européia. Por exemplo, temos a questão do Chipre, que não é reconhecido pela Turquia. A União Européia já ameaçou a Turquia com represálias, caso o governo de Ancara mantenha seus portos fechados para os navios do Chipre, que é um país da União Européia. Uma das condições para as negociações de ingresso da Turquia na União Européia é exatamente o reconhecimento oficial do Chipre pela Turquia. Outro complicador é a questão migratória, assustadora para os europeus, que se vêem às voltas com um mercado de trabalho cada vez mais esclerosado. Com a eleição de Sarkozy para a presidência da França, a atual crise política na Turquia não poderia ter vindo em pior momento. Sarkozy rejeita firmemente a entrada da Turquia na União Européia, já que não considera a Turquia como um país europeu. Sarkozy reconhece a convergência de inúmeros valores entre a Europa e a Turquia, e defende o fortalecimento dos laços através de uma “parceria privilegiada”, mas não vai além disso. Como a França possui um peso político de muita importância na União Européia, dificilmente haverá avanços para a integração da Turquia durante os próximos anos. Nesse cenário, a instabilidade política na Turquia dificultará mais ainda as possibilidades de contornar a oposição francesa. Finalmente, no início deste mês, o grupo contábil Grant Thornton incluiu a Turquia na próxima geração de mercados emergentes, com condições de igualar ou superar os países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) nas próximas décadas. A economia turca é de fato promissora, porém os problemas políticos e sociais pelos quais o país está passando podem prejudicar a sua trajetória de desenvolvimento econômico. Qual será o futuro da Turquia? O país está diante de boas perspectivas, porém a concretização de seus interesses dependerá da rapidez e do sucesso de sua estabilização política nos próximos meses.