a teologia de boaventura e a construção da discussão

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A TEOLOGIA DE BOAVENTURA E A CONSTRUÇÃO DA DISCUSSÃO
SOBRE A POBREZA NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL
MAGALHÃES, Ana Paula Tavares (USP)
A concepção específica do usus pauper – o mesmo entendido como, paralelamente à
ausência de propriedade, a prática de fazer o uso mais restrito possível das coisas que se
encontram à disposição1 dos frades – como inerente à Regra Franciscana - e não enquanto
mera característica supererrogatória presente em alguns indivíduos dotados de vontade
sublime - representa a própria bandeira de luta franciscana, seu diferencial por excelência
enquanto Ordem religiosa. Característica mais marcante da obra de frades considerados
radicais - tais como Pedro de João Olivi (1248-1298), Ubertino de Casale (1259-1328) e
Angelo Clareno (1247-1337) -, para além de sua mística apocalíptica - e sendo esta mesma
decorrente dela -, a defesa do usus pauper teria sido retomada por sucessivas gerações de
franciscanos entre os séculos XIII e XIV, as quais, para melhor fundamentá-la, deveram
recorrer até mesmo às fontes mais ortodoxas da tradição franciscana, haja vista o uso que
fizeram da Apologia pauperum contra calumniatorem (c.1269) e de outras obras igualmente
relevantes do ministro-geral (1257-1274) São Boaventura.
Uma série de questões importantes derivou da dinâmica interna de desenvolvimento
da própria Ordem. Durante o período em que a Ordem se limitava a uma pequena
comunidade, ela podia ser regida por “uma disciplina natural emanada da personalidade
extraordinária de seu fundador e inspirador”. (FALBEL, 1995, p. 195)
Com isso, tornava-se possível a conservação integral de seus princípios básicos.
Contudo, a expansão do movimento, sua ramificação e sua consolidação conduziram ao
enfraquecimento daquele contato íntimo, postulando a necessidade da criação de “um quadro
A separação entre o uso e a propriedade, elemento fundamental da legislação franciscana, foi concebida nos
primórdios da Ordem, mas teve sua consolidação paulatina a partir de escritos tais como aqueles de Boaventura
de Bagnoreggio. Sua consolidação no DireitoCanônico ocorreu a partir da bula Exiit qui seminat (1279), de Nicolau
III, mas a mesma não representou a resolução definitiva da questão, objeto de discussão dentro e fora da Ordem.
Assim, a bula de Nicolau passou por sucessivas revisões nas primeiras décadas do século XIV, até ser
definitivamente colocada em xeque pela constituição Ad conditorem canonum, proclamada por João XXII em
dezembro de 1322 (em que o referido papa, de Avinhão, afirmava que Nicolau III, ao estabelecer a Igreja Romana
como proprietária dos bens usados pelos franciscanos, embora movido por ideais piedosos, incorrera numa
impossibilidade racional e jurídica, tendo em vista o uso daquelas coisas que se consomem pelo próprio uso, tais
como roupas e alimentos).
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orgânico, com um poder centralizador que acabou exigindo de si mesmo estabilidade e
fixação. A supervisão, difícil na geografia medieval, passou a ser um instrumento de
imposição do poder central”. (FALBEL, 1995, p. 195)
Dessa forma, a complexização da Ordem introduzia o elemento do institucional.
Forçosamente, também acabou por se impor a questão da riqueza, oriunda das polpudas
esmolas típicas do homem medieval - quer abastado, quer não tanto -, o qual se agarrara ao
firme propósito de assegurar a salvação de sua alma. Colocava-se em questão a dificuldade
em lutar contra tais doações, o que imporia um espírito de total desprendimento material, por
muitas vezes raro entre os responsáveis da Ordem.
A Ordem encontrava-se, portanto, cindida, entre dois extremos: era necessário viver
em busca do ideal da perfeição, da virtualidade, em meio à distorção, à realidade. À medida
que a Ordem penetrou nas Universidades, tendeu a fortalecer-se o impulso na direção de sua
fixação e de sua estabilidade. A demanda pelo conforto e pela propriedade de livros e de
espaços para o desenvolvimento do intelecto postulava princípios contraditórios com a
pobreza absoluta. Concorreram ainda para a fixação e para o estabelecimento da Ordem em
estreito contato com as Universidades as rivalidades latentes com os Dominicanos. Falbel nos
reporta que sintomático disto é o fato de os primeiros “desvios” se terem produzido em
Bolonha, um dos mais proeminentes centros de estudos medievais. (FALBEL, 1995, p. 197)
São Francisco de Assis exigira uma imitação plena da vida de Cristo e de seus
apóstolos. O franciscanismo, contudo, após a morte de seu fundador, vivia perante um drama
religioso: não tinha certeza sobre se conseguiria suportar o peso do quotidiano, do não divino,
do terreno. Foi nesse contexto que uma série de bulas foram emanadas a partir de vários
papas, ora concedendo privilégios aos frades - e atendendo às aspirações da chamada
Comunidade -, ora interditando uma série de comportamentos - e conformando-se, na medida
do possível, às exigências dos Espirituais. Os maiores conflitos destes em relação à Sé
Romana deveram produzir-se, finalmente, sob o pontificado de João XXII, marcado, entre
outros aspectos, pela emergência da bula Quorundam2, produto das mudanças que se
processavam no nível da Igreja Católica e, num nível mais restrito, no interior da própria
Ordem. Foi esse contexto que viu florescerem as manifestações de um movimento que
buscava o retorno - aponta-se, por vezes, que tal movimento andaria pela contramão da
Pela Bula Quorundam exigit, publicada em 7 de outubro de 1317, o papa João XXII permitiu que os Frades
Menores, mediante o arbítrio dos superiores da Ordem, mantivessem reservas de grãos e de vinho.(VIDAL, 1913,
p. 244)
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História -, reproduzido num desejo de retorno que apontava para as origens, para o
cristianismo primitivo. Esse tornara-se, desde os primórdios, a tônica de todos os movimentos
reformistas cristãos até os dias de hoje. Impossível de assimilar ou reproduzir em sua
existência fundamentalmente histórica, o chamado cristianismo primitivo só pode ser
considerado, a partir dessa perspectiva, na qualidade de projeções realizadas sobre ele sobre
os movimentos que o reivindicaram através dos tempos. (MAGALHÃES, 2009, p. 147)
O ministro-geral franciscano Boaventura de Bagnoregio deveria tornar-se, para a
Ordem e para o complexo da Igreja, uma referência de ortodoxia e, ao mesmo tempo, um
símbolo da conciliação entre perspectivas diversas, fosse através de sua atuação política, fosse
por intermédio de sua produção teológico-filosófica enquanto mestre na Universidade Paris.
Durante seu generalato, procurou realizar uma aproximação entre aquilo que alguns
consideravam como sendo os ideais primitivos da Ordem e as novas atribuições decorrentes
de sua institucionalização e crescimento. Por intermédio de uma sólida argumentação
histórico-filosófico-teológica, os estudos no interior da Ordem foram regulamentados e
intensificados nesse período. Se, por um lado, Francisco havia se manifestado contrário à
construção de edifícios amplos para que fossem dotados de bibliotecas, Boaventura, por outro
lado, combateria a suntuosidade e, em contrapartida, garantiria a presença dos livros e o
hábito do estudo, pois “além do exemplo de vida, espera-se que os clérigos possuam também
o conhecimento seguro da verdade que anunciam.” (BOAVENTURA DE BAGNOREGIO,
1999, p. 23)
Tal concepção decorria de uma elaboração teórica que buscava superar o dilema
“saber versus contemplação”. O conhecimento era tido como via para a contemplação, sendo
o estudo justificado através da obtenção da perfeição, do transitus místico, a partir do qual o
saber, que fôra apenas um meio para se consegui-lo, tornava-se um obstáculo
(BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, 1999, p. 23). Uma ulterior explicação do pensamento
bonaventurino – e sua contribuição para o desenvolvimento da filosofia na Baixa Idade Média
– é dada pelo fato de que, para Boaventura, o mais importante ideal franciscano era a alegria
divina por meio da contemplação. O ideal da contemplação extática, do repouso místico, é
sobretudo, desejável, e a meta final da contemplação é, na verdade, alcançar a paz. A ciência,
a espectulação racional, encontra-se em função do mesmo ideal, uma vez que o êxtase é
superior ao ideal contemplativo. (FALBEL, 1974, pp. 19-20)
A necessidade do estudo demonstrava, ainda, o estado de imperfeição em que se
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encontrava a Ordem – assim como a humanidade em termos gerais – e, como tal, uma
maneira de professar humildade: presa aos livros como muletas, a Ordem ainda deveria lançar
mão da ciência, visto que seu caminho rumo à perfeição ainda não se encontrava totalmente
percorrido. Francisco, em contrapartida, já teria superado tal etapa, atingindo “o estado de
contemplação pura, ao qual o discurso não tem acesso, o qual o homem só consegue indicar
com o silêncio e só consegue ver na luz da escuridão inacessível.” (BOAVENTURA DE
BAGNOREGIO, 1999, p. 23)
Uma das maiores referências teóricas para a questão da pobreza, a Apologia pauperum
contra calumniatorem foi composta em defesa da pobreza franciscana em um contexto de
disputas entre os cleros secular e regular no interior da Universidade, com destaque para a
“Questão Parisiense”. O escrito representava a tradição ortodoxa franciscana, sem deixar de
contemplar, em certa medida, as aspirações daqueles que pretendiam defender a pobreza
radical. Respeitado por Espirituais e Conventuais, Boaventura foi um personagem que
sintetizou a atitude e o ideal Franciscanos de maneira completa. O “caluniador” em questão
era Geraldo de Abbéville em especial - que escrevera em defesa de seu amigo Guilherme de
Saint-Amour -, além dos mestres de Paris que se haviam insurgido com acusações aos
Mendicantes.
Com efeito, São Boaventura aderia ao movimento que, no século XIII, era
representado pelo florescimento de diversas ordens religiosas. Ele passou a integrar a Ordem
Franciscana em virtude de uma série de pressupostos, dos quais constam os motivos de
gratidão, a influência de seu grande mestre Alexandre de Hales, bem como ponderadas
reflexões. Ele pautava seu comportamento pelo desejo de realizar sempre os ideais da Ordem
dos Frades Menores, os quais se resumiam, nos dizeres de Boaventura,
“em imitar Cristo
em todo gênero de virtudes, ganhar muitas almas para Jesus Cristo e aderir-se a Deus por
meio da contemplação.” (SAN BUENAVENTURA (1), 1949, p.3)3
Pode-se dizer, efetivamente, que São Boaventura representa um exemplo de frade e de
ministro geral da Ordem que levou a cabo o cumprimento de tais pontos essenciais do
programa franciscano, consistindo num dos maiores defensores teóricos da perfeição
evangélica. Ele seria considerado, não sem certa dose de razão, pela posteridade, como o
segundo fundador da Ordem Franciscana. Na bula que corresponde à canonização de
Em virtude da coincidência de data em duas edições da BAC – Biblioteca de Auctores Cristianos, a saber, o ano
de 1949, optamos por acrescentar o número (1) à referência a SAN BUENAVENTURA que se refere às Quaestiones
disputatatae de perfectione evangelica, a fim de diferenciá-la da apologia pauperum contra calumniatorem, doravante
referenciada simplesmente como “SAN BUENAVENTURA”.
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Boaventura, intitulada Superna caelestis patria, o papa Sexto IV declara: “E grande na Ordem
dos Frades Menores, o único após São Francisco que de todos destacou-se”4 (SAN
BUENAVENTURA (1), 1949, p.3)
Da perfeição evangélica propriamente dita, Boaventura ocupa-se mais ampla e
profundamente nas obras De perfectione evangelica e Apologia pauperum, vigorosas
demonstrações de penetrante pensamento tanto ascético quanto teológico. Ambas, por sua
vez, correspondem a um período de grande controvérsia. Com efeito, em meados do século
XIII, a Universidade de Paris encontrava-se envolvida em agitada luta contra as Ordens
Mendicantes - Franciscanos e Dominicanos. O início da contenda situa-se na figura de
Guilherme de Saint Amour, cônego de Beauvais e, desde 1247, professor de filosofia e
teologia na Universidade de Paris. Este voltou-se contra as Ordens Mendicantes em um
momento em que elas conheciam um período de significativa ascensão no interior da
Universidade, uma vez que passaram, pouco a pouco, a apoderar-se das cátedras
universitárias, que antes constituíam patrimônio exclusivo do clero secular. Por escrito, no
púlpito e na cátedra, Guilherme de Saint Amour condenava os Mendicantes, a começar pelos
Dominicanos, e passando, em seguida, aos Franciscanos. Manifestou-se contra seus direitos e
privilégios de predicar e de confessar, bem como de enterrar em suas igrejas; questionou o
ideal da pobreza em comum, assim como a existência propriamente dita das referidas ordens
como instituições religiosas. Emblemáticos da vida citadina e do desenvolvimento urbano, os
mendicantes sofreriam, a exemplo dos mercadores, a resistência de outras camadas, que
julgavam que os mesmos vendiam aquilo que não deveriam vender: o conhecimento.
(OLIVEIRA, 2008, p. 241)
Em sua contenda, Guilherme logrou angariar em seu favor grande parte do clero
secular, destacando-se aqueles membros que, em função da presença das Ordens
Mendicantes, acreditava ameaçados em seus privilégios econômicos e políticos diante das
atividades conventuais. Em seu empenho em detratar as Ordens Mendicantes, Guilherme
acabou por publicar o livro De Antichristo (1254) e o tratado De periculis novissimorum
temporum (1256). Com isso, a hostilidade, que se havia iniciado no terreno jurídico, passou
ao terreno dogmático, uma vez que o catedrático, em seus dois escritos, conflitava com a
doutrina evangélica referente à pobreza.
Os Franciscanos e Dominicanos não deixaram, contudo, de reagir. Assim, São Tomás,
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Magnus etiam in Ordine Fratrum Minorum, cui unus omnium post beatum Franciscum plurimum profuit.”
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Santo Alberto Magno e o Franciscano Tomás de York assumiram a defesa de suas ordens.
São Tomás redigiu a obra Contra impugnantes Dei cultum; Santo Alberto Magno, sua
Philosophia pauperum, e Tomás de York, o livro intitulado Manus quae contra Omnipotentem
tenditur.
Boaventura, por seu turno, também não deixaria de tomar a si a defesa da pobreza
evangélica, identificada com a perfeição. Ele encontrava-se, por essa época, na Universidade
de Paris, na função de mestre. Interveio, portanto, no debate, compondo as chamadas
Quaestiones disputatae de perfectione evangelica. Nelas, trata-se das virtudes evangélicas, a
saber, humildade, pobreza, castidade e obediência, as quais formariam o núcleo do estado
religioso. Ocasião semelhante motivou outra magnífica obra de São Boaventura, a Apologia
pauperum contra calumniatorem.
A luta, num primeiro momento, havia-se dissipado. Com efeito, o papa Alexandre IV
condenou, em Agnani, após o exame de uma comissão de cardeais, em 5 de outubro de 1256,
o Tractatus brevis de periculis novissimorum temporum, publicado por Guilherme naquele
mesmo ano. Pela sua sentença, foi privado, juntamente com seus colegas, de suas dignidades
e benefícios eclesiásticos e da cátedra, saindo desterrado de Paris e da França por ordem do
rei Luís IX. Em seu desterro, entretanto, não se assinalou um fim à campanha contra o estado
religioso. Nova luta, com efeito, iniciou-se, da qual veio a ser pivô Geraldo de Abbéville,
cônego de Amiens, amigo de Guilherme e, como ele, mestre na Universidade de Paris. Este
novo adversário dos Mendicantes escreveu o livro Contra adversarium perfectionis
christianae, obra na qual combatia furiosamente o franciscano Tomás de York. A luta
desenvolvia-se nos terrenos doutrinal e prático a um tempo.
O momento era, portanto, crítico, e São Boaventura redigiu, então, sua Apologia
pauperum contra calumniatorem. Trata-se de uma obra que sempre fora considerada, pelos
eruditos, como autêntica de Boaventura. Ele teria escrito esse opúsculo sendo já ministro geral
e, provavelmente, antes de 1269. A ocasião era, portanto, aquela da defesa das ordens
Mendicantes contra as acusações lançadas pelos mestres de Paris. Concretamente, na verdade,
contra Geraldo de Abbéville e seus seguidores. Consiste em obra realizada com extrema
diligência, abundante doutrina e grande sensibilidade, na qual abundam os textos da Sagrada
Escritura e dos santos padres da igreja. O santo desfaz os sofismas e falsos princípios de seu
adversário, expõe de forma sólida a doutrina evangélica e declara o sentido exato da regra dos
Frades Menores. Mostra-se, nessa ocasião, mais duro do que havia estado com relação a
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Guilherme de Saint Amour, a quem Alexandre IV condenara no ano de 1256. Em sua crítica a
Geraldo de Abbéville, fixa o conceito da perfeição, celebra a sublimidade da vida religiosa e
exalta a pobreza de Cristo, modelo da pobreza dos Mendicantes. Trata-se da obra culminante
escrita por Boaventura acerca da perfeição evangélica.
Boaventura afirma que Geraldo, “ao colocar a abundância dos bens temporais no cume
perfeição evangélica, e caluniando como imperfeita e supersticiosa a voluntária carência dos
mesmos, confessa-se discípulo daquele [Guilherme de Saint Amour] que compôs um
opúsculo contra as Ordens dos evangelizadores e pobres Mendicantes, condenada pela Sé
Apostólica.” (SAN BUENAVENTURA, 1949, p.542)
Tais homens, arrogantes no entender de Boaventura, alimentavam-se com a vaidade
deste mundo, crendo conquistar grande glória ao chamar de simulação dolosa a verdadeira
santidade dos santos e ao reprovar sua prudência de espírito como insensatez. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p.636)
Boaventura alude à antiga serpente, a qual, com sua astúcia cruel e multiforme, coloca
continuamente armadilhas aos filhos da Igreja. Ela intentava renovar, naqueles tempos, a
velha impiedade do faraó, ao lançar-se contra a prole da Igreja, por intermédio de Geraldo de
Abbéville. Em contrapartida, o estado dos pobres evangelizadores era semelhante àquele de
José, que desceu ao Egito a fim de distribuir os alimentos aos corpos. Assim, os Mendicantes
haviam sido enviados ao mundo a fim de conservar e dispensar as doutrinas das Escrituras
como alimento dos espíritos, e para que fossem também cooperadores dos sacerdotes de
Cristo, os quais possuíam o cuidado da grei no que tange à saúde das almas. Dessa forma, ao
passo que Geraldo podia ser comparado ao faraó egípcio, consistindo em sua forma renovada,
que havia sido introduzida nos últimos tempos pela serpente, os pobres voluntários faziam-se
identificados a José, e também de forma renovada representavam a provisão de alimento à
cristandade. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 658)
A meta da perfeição radicava no desejo de padecer e morrer em nome de Cristo, e
Boaventura procede, naturalmente à Apologia da mortificação apoiando-se no exemplo e nos
documentos dos santos, dentre os quais citam-se atitudes de Noé, Elias e São João Batista, e
passagens de Eusébio, Jerônimo, Ambrósio e Agostinho. Assim, embora fosse certo a todos
os exercitados no combate cristão que o rigor da santa abstinência é muito necessário aos que
desejam
adquirir
e
defender
a
perfeição,
como,
contudo,
havia-se
introduzido
subrepticiamente um dogma perverso de recente invenção para provar o contrário, dever-se-ia
7
robustecer esta verdade tanto com os exemplos quanto com os documentos dos santos. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 430) Note-se que a premissa de “padecer em nome de Cristo”,
ou ainda, “morrer imitando seu sofrimento” foi amplamente difundida pro uma tradição
martirológica ligada ao cristianismo primitivo. A mesma, que teria dado origem à categoria
dos santos (sancti, beati) fincava profundas raízes na tradição judaica (expressa, entre outras
na célebre narração de Hanna e seus sete filhos, no livro de Macabeus). A mesma tradição
judaica teria originado o conceito e a prática de “morrer santificando nome”, a saber, o
Kidush ashem, como forma de escapar à conversão forçada ou à apostasia. (FALBEL, 2001,
p. 16)
O próprio Cristo, que possuía a perfeição em grau infinito, por condescender com a
imperfeição da natureza humana, levara uma vida de mortificação rigorosa. Boaventura
resume seu pensamento com as palavras do Evangelho: “Vim sofrer pelo Reino dos Céus”5, e
em seguida refuta Geraldo, o qual condenava o jejum. O ministro geral afirma que, por meio
dele, fazemo-nos semelhantes aos anjos, guardamos a santidade de vida e armamo-nos contra
as armadilhas da carne e dos demônios. O jejum concede-nos perfeita compreensão da
verdade, constância no árduo exercício das virtudes e força para superar as adversidades
(SAN BUENAVENTURA, 1949, p.542).
A diferença entre guardar o jejum e ser dispensado radica no seguinte: o primeiro é
difícil, árduo e eficaz para a repressão do desejo carnal e para o exercício da virtude espiritual,
e por esta razão, bom e adequado à perfeição. O segundo, por outro lado, ou seja, ser
dispensado do jejum, é fácil e suave para a carne, e a ele inclina-se a fraqueza do espírito, e
por isso mesmo imperfeito, embora possa tornar-se perfeito em razão das circunstâncias,
como quando o faz um varão perfeito em razão da própria debilidade ou da condescendência
fraternal. No entanto, recuperando a natureza dos dois atos, é possível afirmar que mais
perfeito é guardar o jejum do que ser dispensado dele, e Cristo, exemplo de toda virtude,
algumas vezes jejuou, e outras vezes dispensou-se do jejum, de tal modo que, no primeiro
caso, deu exemplo de austeridade de vida e, no segundo, prestou consolo à fraqueza humana.
Pelo que o primeiro caso foi de rigor; o segundo, de condescendência. Pois a condescendência
não imputa nenhuma imperfeição àquele que condescende, mas somente àqueles pelos quais
se condescende. (SAN BUENAVENTURA, 1949, pp. 406-408)
Contudo, as passagens a serem ressaltadas pela tradição franciscana e pela corrente
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Provável referência ao Evangelho de Mateus 4, 17: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus.”
8
espiritual em geral referem-se à defesa da questão da pobreza no debate eclesiástico. Assim,
Cristo, fundamento da religião (Cf. 1 Cor., 3,11), quando, no sermão da montanha, instruía os
discípulos a respeito da perfeição evangélica, deveu iniciar o ensinamento pela pobreza,
afirmando a bem-aventurança dos pobres, porque deles é o Reino dos Céus (Cf. Mt., 5,3); em
seguida, exortando à tomada da perfeição, ao incentivar o abandono de tudo o que se tem,
vendendo-o ou dando-o aos pobres (Cf. Mt., 19,21). A dupla renúncia, a saber, do mundo e de
sua concupiscência, a qual se denomina também pobreza de espírito, é tal que com ela cortase perfeitamente a raiz de todos os males e destrói-se o fundamento da Babilônia. Dessa
forma, a mesma pobreza de espírito representa a raiz e o fundamento da perfeição evangélica,
pela qual se é configurado de acordo com Cristo, plantado em Cristo e morada de Cristo,
sintetizada na seguinte sentença evangélica: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens,
dá aos pobres e segue-me” (SAN BUENAVENTURA, 1949, p.542)
Assim como Guilherme de Saint Amour, Geraldo de Abbéville arremeteu-se contra a
pobreza em geral e dos Mendicantes em particular. São Boaventura, por sua vez, apresenta
Cristo como fundamento da religião, segundo as palavras do apóstolo: “Não se pode pôr outro
fundamento senão aquele que foi posto, Cristo Jesus”(1 Cor. 3,11), o qual disse ao jovem que
queria segui-lo: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens, dá aos pobres e segue-me
(Mt. 19,21); e São Paulo adverte, ainda, que, “tendo o necessário para viver, com isto
contentamo-nos” (1 Tim. 6,8), pois o Senhor foi pobre em seu nascimento, em sua vida e em
sua morte.
Assim, Cristo, origem de todos os bens e fundamento e fundador da nova cidade de
Jerusalém, o qual apareceu para destruir as obras do diabo, deveu abraçar com sumo afeto,
mostrar com o exemplo e pregar com a palavra o contrário à avareza. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 488) Esta, naturalmente concebida como o desejo do acúmulo
de bens, é concebida, por sua vez, como contraponto da caridade, que consiste na condição
primeira para o estado de perfeição. Assim, a fé consistiria no fundamento e na raiz da
religião cristã, a qual, por sua vez, atua por intermédio da caridade. A avareza, por seu turno,
consistiria em fundamento e raiz de todos os males. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 488)
A exemplo do mestre e de seus discípulos, que possuíam todas as coisas em comum,
clérigos e, principalmente, cenobitas também praticaram a pobreza. Quanto ao modo de
repartir as coisas, foram modelo os prelados da Igreja, que dedicavam-nas ao sustento dos
ministros do culto e a aliviar a miséria dos pobres. Quanto ao modo do uso, o espelho são os
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Apóstolos que, por amor à pobreza, não levavam bolsa consigo quando não se viam forçados
por extrema necessidade ou pela caridade.
Tal não quer dizer que possuir riquezas, tanto em comum quanto em particular, seja
pecado, mas que o renunciar a elas pertence à perfeição. Assim, embora as riquezas, tanto
comuns quanto particulares, possam ser possuídas sem pecado, o deixá-las é próprio da
perfeição. Assim como a imperfeição não significa, por si mesma, culpa, também a perfeição
não somente significa retidão da justiça, mas também prontidão, e a esta atrapalham as
riquezas, pelo fato de serem elas sedutoras e perigosas. (SAN BUENAVENTURA, 1949,
p.578)
De acordo com a tradição jurídica que se ia desenhando no ambiente universitário,
Boaventura enumera quatro classes de bens comuns que podem pertencer às igrejas
particulares. A primeira comunidade de bens pertence ao direito necessitatis naturae, ao qual
não se pode renunciar por radicar o direito natural no mesmo ser do homem, imagem de Deus
e criatura digníssima, para o qual todas as coisas foram criadas. A segunda classe de bens
comuns emana ex iure civitatis mundanae, da qual se participa por meio das ganâncias e
perdas procedentes de lutas, guerras e negócios de uma nação. Renunciar a este direito é
necessário para a perfeição evangélica, porque tal comunidade de bens inclui a propriedade
pessoal. A terceira emana ex iure caritatis fraternae, à qual não se pode renunciar por ser de
direito divino e ser a Igreja uma comunidade cujo laço divino de união é a caridade. A quarta
e última comunidade de bens é ex iure dotationis ecclesiae, à qual não é estritamente
necessário renunciar para conseguir a perfeição. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 10)
E ainda, uma ulterior classificação da pobreza, demonstrava a necessidade, sempre
presente no horizonte boaventuriano, de estabelecer determinados princípios jurídicos em
harmonia com as formulações teológicas acerca da temática. Assim – e ratificando um
princípio dominante tanto na teologia de Boaventura como no pensamento franciscano em
geral, a Filosofia e outras scientiae – nesse caso, o Direito, ou Filosofia do Direito – assume
um papel fundamental com a finalidade de apoiar o edifício argumentativo da Teologia, fim
último a que se destinavam todas as scientiae. Dessa forma, de acordo com Boaventura, a
Ordem Franciscana proibia a seus membros não só a propriedade privada, senão também a
comum. Nas demais ordens religiosas, as coisas que se dão ao religioso para seu uso
particular pertencem à comunidade. Entre os Menores, por sua vez, os bens necessários à vida
dos frades são propriedade exclusiva da Santa Sé. São Boaventura afirma que a papa, de
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maneira providencial, havia, por intermédio de documento, separado o uso da propriedade:
“(...) o sábio e poderoso Pontífice [Gregório IX] separou a propriedade do uso, retendo a
propriedade para si e para a Igreja e concedendo o uso para a necessidade dos Frades, e isto
santa, sábia e piedosamente.”6 (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 642)
Dessa forma, aquelas coisas que concernem ao uso da Ordem Franciscana encontramse sob a tutela do pontífice, encontrando-se os frades sujeitos à sua obediência e confiados aos
seus cuidados. Da mesma forma que aquilo que se dá ao monge - que vive sob o regime da
propriedade comum -, qualquer que seja a intenção daquele que dá, não passa ao domínio do
mesmo, a sim de todo o colégio, e encontra-se sujeito à disposição do abade - ainda que o
doador não tenha pensado no colégio -, igualmente, aquilo que se dá à congregação dos
Frades Menores passa ao direito, domínio e propriedade do sumo pontífice e da Igreja
Romana. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 644)
São Boaventura afirma que esta pobreza da Ordem Franciscana encontra-se em
harmonia com a lei natural, expressa com toda clareza no direito civil vigente, cujo princípio
geral era “o benefício negado não deve ser dado”, ou seja, nenhuma lei pode obrigar a aceitar
algo que não se quer adquirir. E, uma vez que os Menores não tinham intenção de possuir, e
sim vontade contrária, ninguém podia obrigá-los. O segundo argumento empregado pelo
santo era a autoridade do Romano Pontífice, que se encontra acima de todos os direitos
humanos, o qual aprovou este gênero de vida, apartando a Ordem da propriedade coletiva ou
comum, sendo a Santa Sé a única possessora de seus bens. E, sobre todos esses argumentos
encontravam-se as palavras e o exemplo de Cristo: “Se queres ser perfeito...” e de sua mãe
que vivera na pobreza juntamente com seu filho.
Dessa forma, a ausência de propriedade inerente aos frades Franciscanos fazia-se com
base na lei natural, reforçada, por sua vez, pelo direito civil. Assim, ninguém pode adquirir
propriedade ou domínio se não possuir verdadeiramente a disposição de adquirir. Não tendo,
portanto os Frades Menores disposição de adquirir, antes a vontade contrária, embora toquem
as coisas com o corpo, não adquirem domínio ou propriedade, nem podem ser chamados
possuidores ou donos das referidas coisas. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 646)
A autoridade papal encontra-se imbuída de supremacia sobre a civil, demonstrando-se
Boaventura refere-se ao papa Gregório IX, antigo cardeal Hugolino de Hóstia, o qual, tendo sido nomeado
cardeal-protetor da Ordem durante o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), exerceu grande influência sobre os
destinos da Ordem. Ele foi o responsável pela precoce canonização de Francisco, em 1228, apenas dois anos após
sua morte. A referência de Boaventura não encontra sustentação no conjunto de constituições promulgadas por
Gregório, e nem mesmo em suas resoluções tomadas anos antes, como cardeal protetor da Ordem.
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o poder do papa Gregório IX para separar o uso da propriedade para os Franciscanos. Dessa
forma, se o poder de alguns reis alcança o feito da separação entre o uso e a propriedade, de
muito mais pode dispor a autoridade pontifical no sentido de separar, em alguns casos, o uso
do domínio. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 646)
A perfeição evangélica, identificada por Boaventura ao princípio da pobreza consistindo esta em baluarte da Ordem Franciscana - surge como condição obrigatória a todo
aquele que deseja imitar Cristo e obedecer seu ensinamento sobre a terra. Assim, quando
alguém mendiga a fim de imitar e pregar Cristo, não só não peca, mas, pelo contrário, cumpre
a perfeita justiça: em primeiro lugar porque com muita razão deve-se o sustento ao justo pobre
que imita Cristo; em segundo lugar porque com maior razão deve-se enquanto é ele pobre
evangélico que prega Cristo; em terceiro lugar, deve-se em sumo grau ao pobre agradecido,
que humildemente pede e humildemente recebe como favor o que se lhe deve, sendo que,
livre de todas as coisas, faz-se servo de todos. (SAN BUENAVENTURA (1), 1949, p.100) É
preciso ressaltar, ainda, que, para Boaventura, a bondade do fim será tanto maior quanto
maior seja sua perfeição intríseca, uma vez que quanto mais elevada for uma coisa na
hierarquia do ser, tanto mais perfeita e eminente será sua dignidade enquanto fim, ou seja, sua
bondade. (CRESTA, 2009, p. 8) Em termos teológico-doutrinários, o Bem a que a Ordem
Franciscana dirige-se, a saber, a perfeição evangélica, é elevadíssimo por sua natureza, o que
inclina o voluntarismo – a pobreza – a um valor superior. É, portanto, justamente a
subordinação do ato moral a próprio seu fim o que confere a primeira das qualidades morais.
Ainda em conformidade com os pressupostos anteriores, se alguém quisesse condenar
toda a maneira de mendicância nos servos de Cristo, deveria impugnar não só a ordem dos
pobres, mas também o próprio sumo pontífice, que aprovou este modo de viver; e não
somente este, mas também a grande assembléia dos santos que mendigaram, a saber,
Francisco, Domingos, Aleixo, Benedito, e ainda os Apóstolos e profetas; “e ainda o mesmo
senhor Jesus Cristo, a quem a Escritura não se envergonha de chamar pobre e necessitado; e
coisas maiores diz e sente a respeito dele nossa fé, a saber: que foi não só pobre e mendigo
para nosso exemplo, mas também despojado e vilipendiado, até o extremo da abjeção, para
dar exemplo de perfeito desprezo ao mundo”. (SAN BUENAVENTURA (1), 1949, p.102)
Assim, se alguém afirma que na carência de pecúnia não existe em absoluto nenhuma
santidade, não somente lança uma calúnia contra a Regra dos pobres quanto, principalmente,
ao Evangelho de Cristo, no qual consta ter sido a pecúnia proibida aos Apóstolos. Dessa
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forma, a Regra vem, também em São Boaventura, identificada ao Evangelho. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 652) Assim, aquele que afirma que o principal imitador de
Cristo, ou seja, São Francisco de Assis, assinalado com as chagas do mesmo, encontrou-se em
engano, mormente na profissão e na observância da vida evangélica, não só impugna ao
mesmo, mas também à Igreja universal e, ainda, blasfema contra a doutrina e a vida de Jesus e
de seus Apóstolos. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 654)
Boaventura defende, entre outros pressupostos, a prática de pedir esmolas, a qual, por
sua vez, decorre do fato da inexistência de propriedade, seja em caráter individual, seja em
comum para os Franciscanos. Dessa forma, se é ilícito aos pobres de Cristo receber o sustento
de vida por meio da aceitação de esmolas, muito mais ilícito é receber muitas e amplas
possessões e grandes rendimentos. Pois seria muito tolo aquele que afirmasse que é lícito
receber um talento de ouro, mas não uma migalha de pão. Sendo isto verdade, ou seja que
todas as igrejas , tanto de religiosos que possuem propriedades como de clérigos seculares,
têm possessões pela aceitação de esmolas oferecidas gratuita e voluntariamente, parece que
com isto destrói-se e estado de todas as igrejas, se se julga ilícito receber esmolas ou viver de
esmolas, tanto em pequena como em grande quantidade. (SAN BUENAVENTURA (1),
1949, p. 102)
Assim, com relação à questão da pobreza, consta que, assim como mendigar, nos
pobres , fracos e enfermos, é uma necessidade da natureza, nos sãos, ociosos e avaros é vício
da culpa; assim, nos pobres voluntários, depreciadores de si mesmos, imitadores de Cristo e
predicadores do Evangelho é ato conforme, e não contrário, à perfeição evangélica, devido ao
fato de que renunciar universalmente a todas as coisas sem reservar-se nada para si é
recomendado pelo Senhor como coisa perfeita; está concedido aos justos e pobres receber
esmolas como lícito e em nada contrário à perfeição evangélica; não está proibido aos pobres
voluntários como coisa má o pedir humildemente esmolas. (SAN BUENAVENTURA (1),
1949, p. 152)
Em conformidade com os pressupostos da Regra, Boaventura diferencia o dominium
do usus, esclarecendo que é próprio da pobreza evangélica abandonar os bens terrenos quanto
ao domínio, retendo para si somente o seu uso, o qual deve ser, contudo, moderado. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 492)
A pobreza evangélica, ao mesmo tempo que eleva o espírito às coisas eternas,
persuade aquele que a professa a despojar-se, quanto ao afeto e ao domínio, de todas as coisas
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temporais, e a contentar-se, quanto ao uso, com o estrito sustento da necessidade - trata-se,
evidentemente, do chamado usus pauper. Consiste ele nas seguintes prerrogativas: que de tal
maneira abandone-se o domínio que não se rechasse o uso; de tal maneira receba-se o uso que
não se reserve o domínio; de tal maneira guarde-se a estreiteza do uso que não se impeça o
necessário sustento à natureza; de tal maneira socorra-se a necessidade que não se aparte à
estreiteza. (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 680-682)
Assim, Boaventura afirma que, acerca das coisas temporais, devem considerar-se
quatro elementos, a saber, a propriedade, a posse, o usufruto e do simples uso; das três
primeiras podia prescindir a vida dos mortais, mas porque estes necessitem da última como
algo indispensável não pode existir profissão que abdique totalmente ao uso das coisas
temporais. Contudo, fôra conveniente àquela profissão feita pelos Frades Franciscanos, de
seguir a Cristo em extrema pobreza, a renúncia universal ao domínio das coisas e o
contentamento com o uso estreito das coisas alheias e daquelas que lhes forem concedidas.
Por isso, consta da Regra que os frades de nada se apropriem, nem de casa, nem de lugar, nem
de coisa alguma. (SAN BUENAVENTURA, 1949, pp. 640- 642)
Quanto às formas de pobreza, sustenta que são possíveis duas modalidades, a saber: a
propriedade comum, característica da forma de vida monástica ou cenobítica, pela qual o
indivíduo, tendo renunciado ao domínio particular das coisas, sustenta-se daquilo que não lhe
é próprio, participando com outros de um direito que lhes é comum; a ausência de
propriedade, verificada na vida dos Apóstolos, tendo-lhes sido instituída por Jesus Cristo, pela
qual o indivíduo, ao renunciar ao domínio particular e comum das coisas, sustenta-se de algo
que não é seu, mas sim alheio, oferecido piedosamente para o seu sustento. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 642) A primeira forma de pobreza dizia respeito à vida
monástica ou cenobítica, enquanto que a segunda havia sido instituída por Cristo a seus
Apóstolos (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 494), bem como demonstrado tal modo de
vida por meio do exemplo. Esta forma de pobreza seria aquela condizente com a Ordem
Franciscana, tendo sido praticada e ordenada pelo seu fundador. Assim, a título de ressaltar a
perfeição inerente à segunda forma de pobreza, característica da Regra, e realizar a defesa dos
Mendicantes contra os argumentos de Geraldo em favor da propriedade, encontramos a
afirmação segundo a qual Cristo havia guardado esta forma de pobreza como prerrogativa
especial, ordenando aos Apóstolos que a guardassem e aconselhando-a aos que desejassem
seguir os passos daqueles.
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Assim, Cristo impusera a observância da extrema pobreza aos Apóstolos e
predicadores da verdade, e não apenas quanto à ausência de propriedades, senão também
quanto à ausência de dinheiro e de bens móveis, com os quais se costuma sustentar a vida
comum dos homens, a fim de que, como verdadeiros pobres constituídos na suma indigência
das coisas, carecessem de dinheiro, não levassem alimentos, estivessem contentes com o
vestir-se de modo simples e marchassem sem calçados, e dessa forma demonstrassem a
altíssima pobreza nas atitudes e nos hábitos como emblemas da perfeição. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 494)
A Apologia faz a defesa da pobreza dos Menores contra o mestre parisiense, que a
considerou não só indigna, mas como manifestação de soberba. Na Ordem Franciscana, é
vetada não somente a propriedade particular, como também a comum, sendo admitida
somente aquela segunda forma de pobreza, caracterizada pela ausência de propriedade e
recomendada por Cristo aos Apóstolos. Tal pobreza, de acordo com São Boaventura,
encontra-se em conformidade com a lei natural, com a determinação pontifícia e com o
gênero de vida de Jesus Cristo. Com a lei natural, uma vez que, do direito civil vigente, consta
o princípio geral “beneficium invitur non datur”, ou seja, nenhuma lei pode obrigar alguém a
aceitar aquilo que não quer adquirir; com a determinação pontifícia - sendo que esta encontrase acima de todos os direitos humanos -, uma vez que o papa Gregório IX aprovara este
gênero de vida, separando o uso da propriedade, sendo a Santa Sé a proprietária dos bens
utilizados; por fim, com a palavra e o exemplo de Jesus Cristo, expressos em Mt., 19,21: “Se
queres ser perfeito...” (SAN BUENAVENTURA, 1949, p. 646-652) Assim, ao mesmo tempo
que a defesa aos princípios da Regra era assegurada, evidencia-se a sua identificação ao
Evangelho, sendo que dizer que na ausência de propriedade não existia santidade não perfazia
apenas calúnia contra a Regra, mas sobretudo contra o próprio Evangelho. (SAN
BUENAVENTURA, 1949, p. 652)
Muito embora o tom seja o de resposta a acusações lançadas pelos mestres parisienses
contra os Mendicantes de maneira geral, podemos discernir na Apologia de Boaventura toda
uma tradição franciscana da qual alguns elementos deveriam cristalizar-se como argumento
espiritual em defesa do usus pauper. Os apontamentos acerca do sermão da montanha, os
conselhos expressos nos Evangelhos em favor da renúncia, as fundamentações a respeito do
domínio e do uso, as considerações acerca das formas de pobreza existentes e, em
conseqüência, a exaltação do modo de vida ordenado pela Regra como sendo correspondente
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àquele manifesto no próprio Evangelho: tais elementos viriam a inspirar uma defesa mais
radical e mais apaixonada da pobreza absoluta.
Por outro lado, os elementos de regra e de doutrina que se verificavam cada vez mais
consolidados na tradição franciscana, por intermédio da pena de Boaventura, foram, naquele
século XIII, conduzidos a formulações teológicas inovadoras. Fossem tributários de uma
escola aristotélica que se ia consolidando (caso dos tomistas), fossem inclinados a considerar
o platonismo como matriz fundamental para a perseguição do Bem (caso da escola
franciscana, sobretudo com Boaventura), esses homens de saber, ligados à Universidade,
estabeleceram novos horizontes ao pensamento.
Em Boaventura, do ponto de vista filosófico, podemos dizer que persiste a busca da
Verdade identificada ao Bem supremo – a perfeição evangélica, a qual, por seu valor
intrínseco, conferia um valor maior ao voluntarismo, a saber, a prática da pobreza franciscana.
No entanto, o valor da própria Filosofia encontrava-se subordinado à finalidade a que ela, de
acordo com Boaventura, destinava-se: a Teologia. Mas a Teologia encontrava-se, por sua
vez, encontrava-se subordinada à Mística, último estágio do itinerário da alma para Deus,
concluído por intermédio da contemplação.
No interior da Universidade, as formulações de mestres como Boaventura abririam
espaço para o convívio de práticas urbanas com a Teologia dos doutores da Igreja, herdeiros
da tradição patrística. Na Universidade de Paris, Boaventura, seus mestres e discípulos
originaram uma escola peculiar por buscar conciliar a pobreza e os estudos. O ambiente criou
a Escola Franciscana, a um tempo tributária do platonismo e voltada para as mais urgentes
questões da vida citadina.
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Referências
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