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TEXTO, TEXTUALIDADE E TEXTUALIZACAO

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PEDAGOGIA CIDADÃ – CADERNOS DE FORMAÇÃO
Volumes de Língua e Literatura
Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
TEXTO, TEXTUALIDADE E TEXTUALIZAÇÃO
Maria da Graça Costa Val
(Faculdade de Letras da UFMG)
O QUE É TEXTO?
Há algum tempo, entendia-se como texto apenas os escritos que
empregavam uma linguagem cuidada e se mostravam “claros e objetivos”. Já
não se pensa mais assim.
Hoje, com o avanço dos estudos lingüísticos, discursivos, semióticos e
literários, mudou bastante o conceito de texto. Falando apenas de texto verbal,
pode-se definir texto, hoje, como qualquer produção lingüística, falada ou
escrita, de qualquer tamanho, que possa fazer sentido numa situação de
comunicação humana, isto é, numa situação de interlocução. Por exemplo:
uma enciclopédia é um texto, uma aula é um texto, um e-mail é um texto, uma
conversa por telefone é um texto, é também texto a fala de uma criança que,
dirigindo-se à mãe, aponta um brinquedo e diz “té”.
Um ponto importante nessa definição é “que possa fazer sentido numa
situação de interlocução”. Isso significa duas coisas: a) nenhum texto tem
sentido em si mesmo, por si mesmo; b) todo texto pode fazer sentido, numa
determinada situação, para determinados interlocutores1.
Retomando o exemplo acima, “té” não chega a ser propriamente nem
ao menos uma palavra da língua portuguesa; portanto, isolada, fora da
situação em que foi usada, não tem, nem deixa de ter sentido. No entanto,
quando pronunciada por uma criança e dirigida à mãe, acompanhada do gesto
de apontar um brinquedo, passa a ser um texto bom e completo, pode ser
interpretada como o verbo “quero”, pronunciado de acordo com as
possibilidades do locutor naquele momento, e significando um pedido da
criança de que a mãe lhe dê o brinquedo. Do mesmo modo, um e-mail que só
traz a pergunta “E aí, tudo verde?” pode parecer “sem sentido” para uns, mas
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O termo interlocutor, neste artigo, designa o par locutor/alocutário, participantes de uma
interlocução. O termo locutor será usado para designar a figura do autor ou produtor do texto; o
termo alocutário, para designar a figura do destinatário ou recebedor do texto. Com essa opção
terminológica quero sinalizar a participação ativa das duas figuras nas práticas sociais de
interação verbal, orais e escritas.
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seria perfeita (e furiosamente...) compreendido um torcedor corintiano que
recebesse a mensagem de um amigo palmeirense, depois de um jogo de
futebol em que o Palmeiras tivesse vencido o Corinthians. Por outro lado, um
livro de Física Quântica ou um tratado de Filosofia podem ser claros e
consistentes para os especialistas e absolutamente incompreensíveis para os
leigos.
Resumindo: uma produção lingüística que, numa dada circunstância,
pareça “sem pé nem cabeça”, incompreensível, inadequada, inaceitável, para
determinado grupo, pode ser perfeitamente entendida e considerada como sem
qualquer problema por outros interlocutores, noutra situação, e, para eles,
funcionar plenamente como texto. Isso quer dizer que o sentido não está no
texto, não é dado pelo texto, mas é produzido por locutor e alocutário a cada
interação, a cada “acontecimento” de uso da língua.
Essa questão tem tudo a ver com os conceitos de “textualidade” e de
“textualização”, que serão explicados no próximo item. Esses conceitos são da
maior importância e podem ter muitas aplicações na aula de Língua
Portuguesa, no ensino da leitura e da escrita.
TEXTUALIDADE E TEXTUALIZAÇÃO
O termo textualidade foi definido por Robert-Alain de Beaugrande e
Wolfgang Dressler, no livro Introduction to Text Linguistics, de 1981, como o
conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não
apenas uma seqüência de frases ou palavras. Mais recentemente, num livro de
1997 (New foundations for a science of text and discourse: cognition,
communication and freedom of access to knowledge and society), o próprio
Beaugrande rediscutiu essa definição, propondo não se perdesse a estreita
relação entre a textualidade e o processo de “textualização”. Atualmente,
outros
estudiosos,
como
Jean-Paul
Bronckart
e
Bernard
Schneuwly,
focalizando os processos de produção e interpretação de textos, também têm
usado o termo textualização.
Quando se fala em textualidade, muitas pessoas podem compreender
que se esteja considerando o texto como um produto lingüístico que traz em si
mesmo o seu sentido e todas as suas características. Pensar assim significaria
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
acreditar que todos aqueles que ouçam ou leiam um determinado texto, mesmo
que em circunstâncias diferentes, vão entendê-lo exatamente do mesmo jeito.
E isso a gente sabe que não é verdade. Todos nós já vivenciamos situações
em que textos literários, ou jurídicos, ou religiosos, ou noticiosos, ou da
conversa cotidiana, foram interpretados diferentemente por pessoas diferentes.
Essa diversidade de interpretações acontece porque cada texto pode ser
textualizado de maneiras diferentes por diferentes ouvintes ou leitores. Por isso
é que se tem preferido, atualmente, falar em textualização.
Levando em conta essas ponderações, podemos definir melhor
textualidade como um princípio geral que faz parte do conhecimento textual
dos falantes e que os leva a aplicar a todas as produções lingüísticas que
falam, escrevem, ouvem ou lêem um conjunto de fatores capazes de textualizar
essas produções. Explicando melhor: não vamos entender a textualidade como
algo que está nos textos, mas como um componente do saber lingüístico das
pessoas. As pessoas sabem que, para um conjunto de palavras constituir um
texto, é preciso que esse conjunto pareça aos interlocutores um todo articulado
e com sentido, pertinente e adequado à situação de interação em que ocorre.
E, então, aplicam os fatores ou princípios de textualidade a todo conjunto de
palavras com que se defrontam, buscando fazer com que essas palavras
possam ser entendidas como um texto – compreensível, normal, com sentido.
Beaugrande e Dressler (1981) apontaram sete fatores constitutivos da
textualidade, isto é, sete princípios que fazem parte do conhecimento textual
das pessoas, que elas aplicam aos textos que produzem e esperam encontrar
nos textos que ouvem ou lêem: coerência, coesão, intencionalidade,
aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade. Embora os
autores pretendessem se referir aos processos de produção e interpretação
textual, sua teoria foi compreendida como relativa ao texto enquanto produto,
enquanto “artefato” lingüístico. Os conceitos de coerência e coesão foram
usados por muita gente, inclusive eu, no livro Redação e Textualidade, como
definidores de qualidades que um determinado texto tinha ou deixava de ter.
Se pudesse reescrever meu livro, que foi publicado em 1991, eu hoje
modificaria a maneira como tratei dessas questões. Não diria mais que a
redação A tem coerência e que a redação B não tem; nem que a redação C
tem coesão e a redação D não tem. Diria que eu, na posição de leitora, pude
textualizar aquelas redações da maneira X ou Y, e que foi fácil para mim
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produzir coerência e coesão para as redações A e C, mas foi difícil fazer o
mesmo quanto às redações B e D.
A seguir, vou tratar dos sete princípios de textualização propostos por
Beaugrande e Dressler (1981) e Beaugrande (1997), dando destaque especial
para a coerência e a coesão.
Coerência
Podemos entender coerência como aquilo que faz com que um texto
nos pareça ‘lógico’, consistente, aceitável, com sentido. Quando a gente
entende um texto, oral ou escrito, é porque conseguiu atribuir coerência a esse
texto. A coerência tem a ver com as ‘idéias’ do texto, com os conceitos e as
relações entre conceitos que esse texto põe em jogo: de que tópicos o texto
fala, o que diz sobre eles, como organiza e articula esses tópicos (por exemplo,
com relações de causa/conseqüência, ou de anterioridade/simultaneidade/
posterioridade, ou de inclusão/exclusão, ou de semelhança/oposição, ou de
proximidade/distância). Quer dizer: a coerência tem a ver com conhecimentos e
informações. Ouvir ou ler um texto e entendê-lo, considerá-lo coerente,
significa conseguir processá-lo com os conhecimentos e a habilidade de
interpretação que se tem e, então, avaliá-lo como compatível com esses
conhecimentos.
Acontece que praticamente nenhum texto diz tudo que é necessário
para que ele possa ser compreendido. Em geral, os textos trazem muita
informação implícita ou subentendida e também não explicitam todas as
relações entre as informações. Ao ouvinte ou leitor é que cabe a tarefa de
identificar e inter-relacionar informações e, assim, produzir coerência para o
texto. Como as pessoas podem ter conhecimentos, habilidades e interesses
diferentes, é normal que haja pontos de divergência na compreensão que
produzem de um mesmo texto. A construção do sentido depende dos
conhecimentos e intenções de quem falou e dos conhecimentos disponíveis e
habilidades interpretativas de quem ouviu.
Mas não é só isso. Apesar da efetiva diversidade de interpretações, as
pessoas são capazes de se entender, ou seja, há uma parte comum no
processo de produção de sentido, no trabalho de construção da coerência
textual. Isso é possível porque interlocutores que pertencem a uma mesma
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sociedade
partilham
conhecimentos,
crenças
e
valores.
Partilham
conhecimentos lingüísticos (a gramática e o vocabulário de uma língua),
textuais (quanto a características de tipos e gêneros 2 textuais, quanto a
tendências gerais de construção da coerência textual) e pragmáticos (por
exemplo, que atos de fala3 se pode realizar naquela comunidade e com que
recursos lingüísticos); partilham visão de mundo, crenças, expectativas,
valores, produzidos por aquela sociedade ao longo de sua história.
Entre outros estudiosos, Charolles, num artigo publicado em 1978 e
traduzido para o português em 1988, tentou explicitar as regras de coerência
que fariam parte do saber lingüístico-textual-discursivo das pessoas. A partir do
que esse autor propôs, poderíamos dizer que as práticas sociais de linguagem,
ao longo do tempo, teriam sedimentado algumas ‘tendências gerais de
coerência’, que as pessoas aplicam na produção e na interpretação de textos.
Essas tendências gerais aparecem formuladas em expressões populares que
revelam a ‘intuição lingüística’ dos falantes quanto à coerência textual. A
inteireza, isto é, a necessidade de o texto ser percebido como um todo
significativo, é a idéia que se percebe em avaliações do tipo “já acabou”, “ué, tá
faltando um pedaço”, ou “e aí, como é que termina a história?” e em
expressões como “ter começo, meio e fim”. A intuição de que os textos se
caracterizam pela unidade temática aparece em julgamentos como “fugiu do
tema”, “perdeu o fio da meada”, ou “do que é mesmo que eu estava falando?”.
O requisito de integração e articulação entre as informações se manifesta em
reclamações contra textos que “não dizem coisa com coisa”. A compatibilidade
do mundo textual com o mundo ‘real’ (quando não se trata de ficção ou de
relato de sonhos e fantasias) é uma exigência intuitiva que se exprime na
condenação a textos que dizem coisas “sem pé nem cabeça”.
A coerência é um princípio de textualização que funciona atrelado e
articulado com os outros fatores apontados por Beaugrande e Dressler.
Podemos dizer que a coerência é co-construída pelos interlocutores e depende
da co-construção da coesão, da situacionalidade, da intencionalidade, da
2
Tipos: narrativo, descritivo, expositivo, argumentativo, injuntivo; gêneros: carta, notícia,
reportagem, romance, soneto, conto, catálogo de telefones, e-mail, sermão religioso,
pronunciamento político, diário, prova escolar, fofoca de comadre, piada, trova, canção popular,
anúncio classificado, propaganda, discurso de paraninfo de formatura, terço, novena, etc.
3
Por exemplo: ato de declarar, pedir, de perguntar, de avisar, de cumprimentar, de bajular, de
ofender, de irritar, de ameaçar, de prometer, de amedrontar, etc.
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aceitabilidade, da informatividade, da intertextualidade. Um texto é aceito e
avaliado pelos interlocutores (aceitabilidade) como coerente quando os
recursos lingüísticos que utiliza são percebidos como integrados num todo
inteligível (coesão), que lhes pareça adequado à situação em que ocorre
(situacionalidade) e apropriado para a realização das intenções do locutor
diante dos ouvintes ou leitores a que se destina (intencionalidade).
Na produção e interpretação de um texto, os interlocutores se valem de
crenças e conhecimentos que fazem parte da história e da cultura de sua
sociedade, conhecimentos e crenças que lhes vieram sob a forma de textos –
falados e escritos – na família, na escola, na igreja, no trabalho, no jornal, no
rádio, na TV, na literatura, etc. Cada texto, como diz Bakhtin, é como um elo na
grande corrente de produções verbais que circulam numa sociedade. Cada
texto retoma textos anteriores, reafirmando uns e contestando outros e,
utilizando sua ‘matéria prima’, se inclui nessa “cadeia verbal”, pedindo resposta
e se propondo como ‘matéria prima’ para outros textos futuros. Ou seja, a
intertextualidade é fundamental, indispensável, na constituição de qualquer
texto. Pode ser que o próprio locutor não se dê conta de ‘com quantos textos
se faz o seu texto’; pode ser que o alocutário não (re)conheça todos os textos
envolvidos na construção dos textos que ele ouve ou lê. Mesmo assim, sem
‘enxergar’ todo o processo, estão lidando com a intertextualidade.
Já a informatividade diz respeito ao nível de novidade que cada um
atribui a um texto. A tendência geral é que as pessoas entendam e gostem de
um texto quando encontram informações conhecidas que lhes servem de base
para processar as novidades que ele lhes traz. Se o nível de novidade que
reconhecem num texto lhes parece baixo, elas tenderão a avaliá-lo como inútil,
enfadonho, decepcionante; mas, por outro lado, se o nível de novidade parecer
alto demais, não será possível entender o texto e a tendência então será
rejeitá-lo. Os exemplos vistos acima, da criança que diz “té”, do e-mail irônico e
desaforado que o palmeirense envia ao corintiano, do livro de Física e do
tratado de Filosofia, serão processados como coerentes ou não dependendo
do nível de informatividade que os alocutários atribuírem a eles. Por isso é que
um mesmo texto é fácil para uns e difícil para outros; interessante para uns e
aborrecido para outros; revolucionário para uns e banal para outros. O
processamento da informatividade de um determinado texto varia até mesmo
para uma única pessoa, em momentos diferentes. Todo mundo já viveu a
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experiência de se emocionar tremendamente lendo alguma coisa que, mais
tarde, lhe parece ‘boba’, ‘sem graça nenhuma’; ou já teve muita dificuldade em
entender um texto que, retomado algum tempo depois, é avaliado como óbvio.
Que aplicação poderiam ter essas idéias sobre coerência textual no
ensino de Língua Portuguesa? A meu ver, essa maneira de compreender a
coerência é maior importância para o trabalho em sala de aula.
Em primeiro lugar, porque permite ao professor e aos alunos
compreenderem que não se pode dizer que um texto é bom ou ruim, coerente
ou incoerente, com sentido ou sem sentido, sem considerar a situação de
interlocução em que ele acontece. Todo texto tem que ser pensado em função
de seu contexto. Se isso é verdade para o funcionamento efetivo dos textos
nas trocas linguageiras que acontecem de fato na vida social, é preciso que os
alunos compreendam esse fato e aprendam a lidar com ele, na produção e na
interpretação, de textos falados e escritos. Vamos exemplificar.
Para contribuir com o desenvolvimento da capacidade de compreensão
crítica, na leitura e na escuta, as atividades escolares devem propor aos alunos
que considerem quando, onde, para quê e para quem o texto foi produzido, ou
seja, que, na construção da coerência e na apreciação do texto, levem em
conta a situacionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade pretendida, a
intertextualidade. Na interpretação, procurar recompor as condições em que o
texto foi produzido facilita e enriquece o processo de textualização.
Paralelamente, o desenvolvimento das habilidades envolvidas na
produção de textos falados e escritos pode ser favorecido quando se ensina os
alunos a planejarem suas falas e escritas públicas levando em conta os
destinatários de seus textos. Do que sabem e do que gostam esses
destinatários, que expectativa e disposição eles têm, em que situação vão ouvir
ou ler os textos? Como será possível, nessas condições, realizar as intenções,
os objetivos pretendidos? As respostas a essas questões é que deverão
orientar o produtor na definição do gênero do texto, na escolha dos recursos
lingüísticos mais adequados, na determinação de elementos como tamanho,
ilustrações, apoios gráficos ou gestuais, etc. Na auto-avaliação pelo aluno e na
avaliação pelo professor, a grande questão não é se a fala ou escrita ‘tem’ ou
‘não tem’ coerência, mas sim se ela se apresenta de modo a facilitar o trabalho
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de textualização por parte dos alocutários, de modo a obter a aceitabilidade
deles.
O segundo motivo que me leva a julgar importantes para a sala de aula
as idéias aqui expostas sobre coerência tem a ver com a construção ‘interna’
dos textos. Na produção falada e escrita, por exemplo, para atender aos
requisitos de funcionamento eficiente e eficaz do texto numa determinada
situação, os alunos precisarão cuidar para que seus textos sejam considerados
por seus ouvintes/leitores como inteiros (com “começo, meio e fim”), com
unidade temática (“sem perder o fio da meada”), consistentes, articulados, não
contraditórios (“falando coisa com coisa”). Assim, é bom que o professor os
oriente na seleção e no desenvolvimento dos temas, trabalhando a ‘lógica’
interna e o encadeamento das idéias, a consistência dos argumentos, a
verossimilhança das histórias, nos momentos de planejamento, produção, autoe hetero-avaliação dos textos.
Outra habilidade que precisa ser sistematicamente trabalhada na
escola diz respeito à escolha e à utilização dos recursos lingüísticos com os
quais se constrói a coesão textual, que é assunto do próximo item.
Coesão
A coesão diz respeito ao inter-relacionamento entre os elementos
lingüísticos do texto. Aparentemente, a coesão já vem feita no texto e o ouvinte
ou leitor só tem que reconhecê-la. Mas, de fato, não é isso que ocorre: a
coesão também é co-construída pelos interlocutores. A língua dispõe de vários
recursos com os quais os falantes podem indicar em seus textos as relações
que pensaram entre os elementos lingüísticos, mas esses recursos apenas
indicam, sinalizam, instruem. Quem de fato estabelece a relação é o ouvinte ou
leitor.
Vejamos como isso acontece, começando pela chamada “coesão
nominal”, que diz respeito aos processos anafóricos, aqueles com os quais se
estabelece a cadeia dos referentes textuais4. Dois exemplos:
(1)
4
Era uma vez, num país muito distante, um rei que tinha uma filha
muito amada, que vivia triste e não sorria nunca. Um dia,
Simplificando, pode-se definir referente textual como aquilo de que se fala no texto, aquilo a que o
texto se refere.
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preocupado com a menina, o rei decidiu convocar todos os seus
súditos e (...)
(2)
Um vez, num congresso em São Paulo, entrei em um auditório
lotado e pensei ter reconhecido, de costas, um velho amigo de
Recife. Não tive dúvida: cheguei por trás e lhe dei um beijo na
face. Um rosto completamente estranho me olhou assustado,
sorriu e retribuiu o beijo. Eu saí de fininho, como se nada de mais
tivesse acontecido. Ainda bem que o aluno da PUC era educado e
teve presença de espírito...
Os artigos definidos são um dos recursos de coesão nominal
disponíveis na língua portuguesa. Uma de suas funções é indicar que a
informação que introduzem é considerada pelo locutor como conhecida ou
dada no texto. O fragmento de texto (1), acima, exemplifica o uso considerado
mais típico: as informações novas são marcadas com artigo indefinido (um rei,
uma filha) e, uma vez apresentadas, quando retomadas são sinalizadas pelo
artigo definido (a menina, o rei). A relação de retomada não vem pronta no
texto, mas apenas sinalizada; quem a estabelece é o leitor.
No texto (2) acontece algo um pouco diferente, que torna mais fácil
compreender que a coesão não vem pronta, mas apenas sinalizada no texto. O
artigo definido em “o aluno da PUC” convida o leitor a tomar essa informação
como dada, conhecida, embora seja a primeira vez que ela aparece no texto.
Para entender o texto, o leitor deverá considerar essa marca lingüística,
relacioná-la com os elementos anteriores “congresso”,
“em São Paulo”,
“auditório” e inferir que o rapaz beijado por engano era aluno da PUC. A
associação entre as expressões “o aluno da PUC” e “um rosto completamente
estranho” não está feita no texto, foi produzida ‘na cabeça’ do autor e precisa
ser estabelecida pelo leitor. Ao relacionar essas duas expressões, o leitor está
construindo a coesão, estabelecendo a cadeia de referentes, a partir da qual
ele produz a coerência e entende o texto.
Outro exemplo:
(3)
Ontem fomos olhar apartamento para alugar. Eu gostei muito de
um que fica no Centro, mas o condomínio é muito caro.
Como no caso anterior, a expressão “o condomínio” vem marcada, pelo
artigo definido, como informação dada, embora esteja aparecendo no texto
pela primeira vez. Para entender essa fala, o ouvinte terá que acionar seus
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conhecimentos sobre “apartamento”, que devem incluir elementos como “ser
em um prédio”, “os moradores do prédio pagam uma taxa de condomínio” etc.
e, assim, relacionar as informações textuais, interpretando a expressão “o
condomínio” como “a taxa de condomínio do prédio onde fica o apartamento
mencionado”.
O artigo definido – assim como os demonstrativos e os possessivos –
são recursos que sinalizam – dão instrução – para que o ouvinte/leitor
considere o termo que eles introduzem como informação dada no texto e,
então, relacione esse termo com algum elemento textual, que pode estar
explicitado ou não. Diferentes tipos de relação podem ser estabelecidos entre a
expressão lingüística marcada com esses recursos e o outro elemento textual.
Vejamos:
No exemplo (1), no caso de um rei/o rei, tem-se a retomada de um
conceito, indicada pela repetição da palavra (rei) marcada pelo definido (podia
ser também “esse rei”). A seguir, em uma filha/a menina, tem-se também uma
retomada de conceito, indicada pela substituição da palavra “filha” por outra
que, nesse texto, pode ser equivalente a ela e vem marcada com o artigo
definido. A equivalência entre os dois termos é resultado de uma escolha entre
outras possibilidades que a língua oferece e tem conseqüências na construção
do sentido do texto: dependendo do termo com que se retomasse “uma filha”,
poder-se-ia indicar, além da retomada, algumas características dessa
personagem da história: sua classe e status social (“a princesa”), sua idade (“a
princesinha”, “a criança”, “a jovem”, “a moça”), sua aparência física (“a linda
princesinha”), traços de sua personalidade (“a simpática menina”, “a infeliz
criança”, “a bondosa princesinha”).
No exemplo (2), ao empregar “o aluno da PUC” (poderia ser também
“aquele aluno da PUC”), o locutor do texto sinaliza aos seus alocutários não só
a retomada de um elemento anterior (“um rosto completamente estranho”), mas
também a classificação desse elemento num grupo ou categoria (a categoria
“aluno da PUC”, que é diferente da de “professor da PUC”, ou de “estudante
universitário”). Essa expressão tem implicações específicas para a construção
do sentido do texto, diferentes das que teria, por exemplo, o uso de “o/aquele
rapaz” .
No exemplo (3), entre “apartamento” e “o condomínio” não há uma
relação de retomada de conceito, mas sim uma associação entre um conceito e
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outro, que é possível em função do conhecimento sócio-cultural partilhado
pelos interlocutores a respeito de “apartamento”, como já se apontou acima. O
termo “o condomínio” ancora em “apartamento”, como diria o Prof. Marcuschi,
da UFPE, e não há entre os dois relação nem de retomada nem de
equivalência.
Pode-se ainda, marcando uma expressão como informação dada (com
artigo definido, ou demonstrativo, ou possessivo), indicar que ela deve ser
conectada a outro elemento do texto, não porque retoma esse elemento, mas
porque pode ter com ele uma relação metonímica (relação entre a parte e o
todo, entre o autor e a obra, entre o conteúdo e o continente, etc.), com em
(4)
Não pude sair de bicicleta porque o pneu traseiro estava vazio.
Ou uma relação hiponímica, em que a segunda expressão representa
um elemento do conjunto representado pelo termo anterior, como em (5), ou o
inverso, isto é, uma relação hiperonímica, como em (6):
(5)
Meu filho adorava ir de bicicleta para o colégio e tinha o maior
orgulho do seu veículo.
(6)
Na pressa de recolher seus instrumentos para ir embora, o
marceneiro acabou esquecendo aqui o martelo e a trena.
É possível também uma relação metafórica, como em
(7)
Eu detesto minha vizinha do terceiro andar. Você acredita que
aquela bruxa ontem teve o desplante de dizer que eu estou
gorda?!...
Esses exemplos dão uma idéia das possibilidades de exploração da
noção de coesão nominal em sala de aula. O emprego do artigo definido, dos
demonstrativos e dos possessivos pode ser bastante econômico e expressivo,
quando conjugado com o trabalho relativo à escolha do vocabulário. Com
esses recursos é que os interlocutores constroem a cadeia de referentes do
textos (a cadeia dos elementos de que se fala no texto), que é fundamental
para tecer o ‘fio da meada’, a unidade temática: o locutor sugere e o alocutário
percebe relações metonímicas, metafóricas, hiponímicas, hiperonímicas, de
substituição, de associação, de inclusão numa determinada categoria. Na aula
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de Português, levar o aluno a atentar para essas relações, na leitura, contribui
para a construção e a ampliação da compreensão; na escrita, favorece a
produção de textos mais elegantes, mais expressivos, mais interessantes.
Partilhando com os artigos definidos, os demonstrativos e os
possessivos a função de sinalizar que devem ser conectados a um elemento
anterior do texto, os pronomes pessoais (retos e oblíquos) também são
recursos lingüísticos importantes para a construção da cadeia de referentes
textuais. A diferença é que, com os pronomes pessoais, não se podem sugerir
relações de classificação ou categorização, nem de metonímia, nem de
metáfora entre os dois termos, como se viu nos exemplos de (1) a (7).
Tradicionalmente, as gramáticas apontam como ‘corretos’ apenas os
casos em que o pronome concorda em gênero e número com o seu
antecedente; no entanto, não é esse o único uso que se verifica nas práticas
linguageiras sociais. Em (8) temos o caso mais tradicional:
(8)
Meu sobrinho de cinco anos está cada dia mais esperto e
engraçado. Outro dia ele me pediu um presente de Dia das
Crianças “rápido e sem burocracia”!!!
Já em (9) e (10) temos exemplos usuais, embora não ‘canônicos’:
(9)
No primeiro dia de aula, ela perguntou o nome de todo mundo,
conversou, foi muito simpática, mas já passou tarefa para casa.
(10) Tenho a maior gratidão a essa equipe médica, porque eles
salvaram a vida do meu pai.
Um exemplo como (9) pode ocorrer numa conversa cotidiana em que o
tema seja escola e o pronome “ela” seja usado pelo locutor mesmo sem que
antes ele tenha se referido a professora. As informações precedentes permitem
ao alocutário inferir que “ela” só pode ser a professora. O importante é que o
ouvinte realiza com rapidez e facilidade essa operação de inferência, em geral
sem se dar conta disso e sem reclamar que o texto está incompleto. Exemplos
como esse são bem mais freqüentes no dia a dia do que a gente imagina.
Do mesmo modo, no caso (10) o ouvinte é “instruído” a realizar uma
operação mental que ultrapassa as formas lingüísticas: conectar o pronome
“eles”, masculino e plural, com “essa equipe médica”, expressão substantiva no
feminino singular, priorizando outros conhecimentos, como o de que uma
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equipe é formada por várias pessoas, entre as quais pode haver homens e
mulheres. Esse tipo de uso também é muito comum no nosso cotidiano.
Os exemplos apresentados até aqui tiveram dois objetivos. O primeiro
foi mostrar que a coesão não é uma característica que vem pronta no texto,
mas é um princípio de textualização que as pessoas aplicam aos textos que
falam, ouvem, escrevem e lêem com o intuito de atribuir sentido à seqüência de
palavras e frases com que deparam. O segundo objetivo foi apresentar como
válidos, e freqüentes em práticas linguageiras cotidianas e descontraídas,
alguns usos que a gramática escolar tradicional condena. Esse ponto é
importante para a reflexão lingüística em sala de aula: a coesão textual podese valer de diferentes recursos e de diferentes usos desses recursos; a escolha
adequada vai depender de para quem e para quê se fala ou escreve, em que
tipo de situação.
Há ainda outros recursos coesivos, cuja função é sinalizar a chamada
“coesão seqüencial”, que consiste no estabelecimento de conexão e interrelação entre partes do texto através de conectivos, advérbios, verbos. Alguns
estudiosos, como Bronckart (1999) e Schneuwly (1988), chamam esses
processos de “conexão” (sinalizada pelos “organizadores textuais”) e de
“coesão verbal” (sinalizada pelos tempos, modos e aspectos verbais).
Comecemos pela “conexão”. Entre os organizadores textuais ou
articuladores estão as conjunções e locuções conjuntivas, os advérbios e
locuções adverbiais, além de várias expressões que se podem usar para
sinalizar inter-relações entre informações textuais (por exemplo, em resumo,
concluindo, por um lado/por outro lado, ainda, também, em outras palavras, ou
seja). Os organizadores textuais podem sinalizar inter-relações tanto entre
orações de um período, como entre frases de uma seqüência ou parágrafo,
como também entre partes do texto. Por exemplo, numa história, costuma-se
sinalizar o início do enredo, da complicação, com articuladores como “um dia” –
ver exemplo (1); num texto expositivo, pode-se indicar o início da conclusão ou
fechamento com organizadores do tipo “resumindo, a idéia central é que”.
Destaquemos o articulador “mas”, que aparece nos exemplos (3) e (9).
Esse operador lingüístico desencadeia uma série de operações interpretativas
que não estão dadas no texto; são relações que foram ‘pensadas’ pelo locutor
e devem ser também estabelecidas pelo alocutário. Pelo conhecimento
lingüístico, sabemos que esse operador sinaliza relação de oposição entre a
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
informação que introduz e a(s) anterior(es). Deparando com ele, o interlocutor
tem que selecionar no texto informações que podem se opor e interpretar por
que e como se opõem. No caso do exemplo (3), não vem da ‘realidade’, nem
da ‘lógica’ a oposição entre “gostar de um apartamento no Centro” e “esse
apartamento ter uma taxa alta de condomínio”. Pode-se até imaginar o
contrário: se o Centro for uma região valorizada na cidade dos parceiros desta
conversação, será esperável que a taxa de condomínio seja alta; se o falante
for uma pessoa rica e esnobe, uma taxa de condomínio alta poderá até ser
considerada ‘qualidade’, já que ‘seleciona’ pelo poder aquisitivo os moradores
do prédio. Assim, ao estabelecer oposição entre essas duas informações, o
alocutário compreende também, por inferência, que o locutor ou não tem
dinheiro sobrando, ou é uma pessoa ‘econômica’... Outra inferência, sinalizada
e autorizada pelo operador “mas” – mas não explicitada no texto – é quanto à
“orientação argumentativa” dessa fala, que aponta para uma conclusão do tipo:
“por isso não vou poder alugá-lo” ou “por isso desisti de alugá-lo”. Processo
semelhante pode ser desencadeado na interpretação do exemplo (9), em que
cabe ao ouvinte ou leitor inferir a oposição entre “ser muito simpática” e “passar
tarefa para casa no primeiro dia de aula”.
As operações interpretativas indicadas nesses dez exemplos, criadoras
de coesão nominal ou de coesão seqüencial, são feitas com tanta rapidez e
facilidade que os usuários da língua nem se dão conta do processo complicado
que efetuam para relacionar as expressões lingüísticas e, daí, entender os
textos que ouvem e lêem. Mas é esse processamento interior que explica a
possibilidade de diferentes interpretações para um mesmo texto.
Quanto à coesão verbal, vou apenas tentar mostrar como os tempos,
modos e aspectos verbais têm função importante na construção de diferentes
tipos textuais, que compõem diferentes gêneros de textos.
As narrativas geralmente se constroem com os verbos no pretérito,
situando-se os acontecimentos narrados como anteriores ao momento da
enunciação, isto é, ao momento da interação verbal em que o texto acontece.
Elementos importantes para o sentido desse tipo de texto podem ser
sinalizados pelo uso de tempos verbais que apontam para momentos diversos
do eixo temporal criado na narrativa, pelo contraste entre os aspectos perfeito e
imperfeito, ou pelo jogo entre tempos simples e compostos, como se vê no
exemplo (11) a seguir. O autor é SG, aluno da 3ª série do Ensino Fundamental
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de uma escola da rede particular de Belo Horizonte, e o texto foi redigido em
casa, para ser lido em sala de aula para os colegas, com o objetivo de lhes
contar alguma coisa que desconhecessem, sobre um brinquedo, um bichinho
de estimação, uma coleção de objetos, etc.
(11) Meus Animais
Nós tínhamos uma empregada chamada Maria José que
tinha uma criação de coelhos em sua casa.
Um dia perguntei a ela se podia me dar um coelho e ela me
trouxe esse coelho no dia seguinte.
Depois de um bom tempo ele fugiu e pedi outro, outro,
outro, outro, outro, outro, etc.
Até que chegou um especial: em vez de branco, com nome
Pé Sujo, marrom, com nome Bombril. Ele era mais legal e mais
manso que os outros.
Um dia voltei da escola e vi que estava sumido. Tinha
fugido.
Mas uma amiga do meu pai me deu um cachorrinho
pequeno e gordinho e lhe dei o nome Bolinha. Estou com ele até
hoje.
Respeitando a instrução de escrever algo que os colegas não
conhecessem, o aluno autor decide começar ‘do começo’ seu relato e sinaliza
essa decisão pelo uso do pretérito imperfeito, que, tradicionalmente, indica, nas
narrativas, o cenário, a situação e as características dos personagens na fase
inicial: “nós tínhamos uma empregada que tinha (...)”. O imperfeito vai aparecer
novamente no texto quando é preciso caracterizar um novo personagem, o
coelho Bombril (“ele era mais legal”).
A partir do articulador “um dia”, que marca o início da fase central do
relato, o locutor, com o uso do pretérito perfeito, instrui seu leitor/ouvinte no
sentido de considerar os episódios seguintes como os de primeiro plano no
caso que está contando (“perguntei”, “trouxe”, “fugiu”, “pedi”, “chegou”, “voltei”,
“vi”). Subordinado a “perguntei”, aparece o único verbo dessa seqüência que
não está no pretérito perfeito (“podia me trazer”). Aí, a forma coloquial do futuro
do pretérito, no verbo auxiliar, sinaliza a situação da ação no eixo temporal:
perguntei se ela poderia trazer o coelho num dia posterior ao dia em que foi
feita a pergunta.
O mesmo marcador temporal “um dia” sinaliza nova mudança de fase
no relato: a fuga do coelho Bombril é caracterizada como episódio ‘dramático’
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
que interrompe a seqüência ‘feliz’ de perder um coelho e imediatamente ganhar
outro para substituí-lo. A ruptura é sinalizada também por alterações no
emprego das formas verbais. Em “voltei” e “vi”, o pretérito perfeito simples, na
voz ativa, indica ações pontuais, num determinado momento do eixo temporal:
o momento em que o narrador chegou da escola. Com relação a esse
momento, uma construção passiva, com o auxiliar no imperfeito – “estava
sumido” – indica um “estado de coisas” não pontual, nem imediato, mas já de
alguma duração. A seguir, o pretérito mais-que-perfeito composto – “tinha
fugido” – sinaliza um fato pontual acontecido num momento anterior ao da
chegada do narrador.
No final do texto, o articulador “mas” e o retorno do pretérito perfeito
(“deu”, “dei”) vêm indicar a reversão da ‘tragédia’. Aí, com o uso do presente, o
locutor sinaliza o encerramento da narrativa, assegurando que o ‘final feliz’
perdura até o momento da enunciação, até o momento da produção do relato
(“estou com ele até hoje”).
Este texto revela a habilidade do aluno autor no emprego das formas
verbais na construção de um relato que corresponde aos moldes mais usuais,
mais canônicos. No entanto, a observação e a reflexão sobre diferentes
possibilidades de correlação entre tempos, modos e aspectos verbais, em
narrativas de autores consagrados, pode contribuir para ampliar essa
habilidade. Vejamos, por exemplo, o efeito de sentido suscitado pelo jogo entre
pretérito e presente no início de um conto infantil de Cora Rónai, intitulado
Sapomorfose (ou o príncipe que coaxava).
(12)
Era uma vez um sapo num dia de outono.
Um sapo que acordou cedo, bem satisfeito com a sua
vidinha, e com o tempo bonito que estava fazendo.
Mergulhou no brejo, nadou, pulou e coaxou feliz; e ficou
com muita fome.
E comeu cinco moscas comuns, vários mosquitos, uma
libélula descuidada e uma mosca azul linda, linda – daquelas que
brilham no sol, paradas no ar.
E ficou cansado e sem assunto. Depois de encher a pança,
o que é que um sapo pode fazer, além de cochilar enquanto
espera a hora de encher a pança novamente?
Foi o que ele fez: dormiu contente num canto escuro,
escondidinho por umas folhagens roxas.
A ‘intromissão’ do presente (trechos sublinhados) no meio de uma série
de verbos no pretérito imperfeito (“era”, “estava fazendo”) e no pretérito perfeito
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
(“acordou”, “mergulhou”, “nadou”, “pulou”, “coaxou”, “ficou”, “comeu”, “ficou”,
“fez”, “dormiu”) quebra o fluxo da narrativa e introduz a voz do narrador
comentando a história, como se ‘puxasse conversa’ com o leitor. Com essa
manobra, o narrador aproxima o mundo do faz-de-conta da história ao mundo
‘real’ que é conhecido por ele e pelo leitor (o mundo em que há moscas azuis
que brilham no ar e em que os sapos costumam dividir seu tempo entre comer
e dormir), e pode, com isso, tornar sua história mais verossimilhante e
envolvente.
Apenas a título de exemplificação, vejamos com que complexidade se
correlacionam tempos, modos e aspectos verbais no fragmento a seguir, de um
conto de Rachel de Queiroz, sinalizando a situação dos fatos em diferentes
momentos do eixo temporal, convidando o leitor a atribuir a eles diferentes
durações e lhe propondo interpretá-los ora como ‘acontecidos’, ora como
‘imaginados’ ou ‘desejados’:
(13)
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao
abrir a revista, depois que o ‘blimp’ se afastou. E estimou que
assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante
aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se
ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por
trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar
nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão;
juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox
langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês,
encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se
o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia
passando como num sonho – e como num sonho se resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Outros tipos de texto – a exposição, a argumentação, a descrição, a
injunção – costumam organizar seu eixo temporal em torno do presente e
sinalizar relações significativas importantes pela correlação entre os modos
verbais, por recursos de modalização como os verbos modais, pelo emprego
de determinadas classes léxico-semânticas de verbos (verbos de estado, de
atividade, de realização, de acabamento, segundo Bronckart, 1999, p. 279).
Nos textos de tipo injuntivo, como as receitas, as instruções de uso de
aparelhos e instrumentos, as regras de jogos, por exemplo, diferentes efeitos
de sentido podem ser suscitados pelo emprego do modo imperativo, ou de
verbos modais como dever ou ter de/que, ou do infinitivo, ou do futuro do
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presente, que se aliam com diferentes possibilidades de indeterminação do
sujeito (o coloquial você de valor impessoal; o verbo na terceira do singular
com a partícula se, mais formal; o infinitivo sem sujeito expresso). Vejam-se
alguns exemplos.
(14) Dissolva os ingredientes em meio litro de leite frio. Coloque tudo
no fogo e mexa até iniciar a fervura. Abaixe o fogo e deixe
cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
(15) Dissolver os ingredientes em meio litro de leite frio. Colocar tudo
no fogo e mexer até iniciar a fervura. Abaixar o fogo e deixar
cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
(16) Dissolvem-se os ingredientes em meio litro de leite frio. Coloca-se
tudo no fogo e mexe-se até iniciar a fervura. Abaixa-se o fogo e
deixa-se cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
(17) Para fazer esse doce, você tem que dissolver os ingredientes em
meio litro de leite frio, depois colocar tudo no fogo e mexer até
iniciar a fervura. Daí, você tem que abaixar o fogo e deixar
cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
(18) Para fazer esse doce, você dissolve os ingredientes em meio litro
de leite frio, depois coloca tudo no fogo e mexe até iniciar a
fervura. Daí, você abaixa o fogo e deixa cozinhar por 10 minutos,
mexendo de vez em quando.
(19) Dissolverás os ingredientes em meio litro de leite frio. Colocarás
tudo no fogo e mexerás até iniciar a fervura. Abaixarás o fogo e
deixarás cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
Comparando-se essas variações intencionais de uma receita culinária,
é fácil perceber a diversidade de efeitos resultantes da opção por diferentes
maneiras de expressar o modo imperativo. Os casos (17) e (18) ganham um
tom coloquial, ao passo que o (19) chega a ficar cômico, em razão do grau
excessivo de formalidade que costumamos atribuir ao uso do futuro do
presente, tempo que aparece, por exemplo, na formulação dos Dez
Mandamentos.
Com essa brincadeira e os demais exemplos, espero ter demonstrado
como pode ser positivo focalizar em sala de aula o funcionamento dos verbos
na co-construção da coesão textual, bem mais útil e divertido do que impor aos
alunos que decorem os paradigmas regulares e irregulares de conjugação. A
reflexão sistemática sobre o poder coesivo e expressivo do sistema verbal, na
18
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leitura e na escrita de gêneros diversos, pode representar uma contribuição
decisiva para o desenvolvimento das habilidades de textualização dos alunos.
CONCLUSÃO
Num artigo rápido como este, não seria possível abordar com
profundidade todos os princípios de textualização, nem ao menos tratar do
amplo leque de recursos coesivos disponíveis na língua, explorando
adequadamente suas possibilidades de uso nas práticas linguageiras sociais e
de aplicação na aula de Português. Procurei, então, centralizar minha
exposição em algumas poucas idéias básicas, que retomo aqui, para finalizar.
As
produções
lingüísticas
efetivas
são
textualizadas
pelos
interlocutores envolvidos num processo de interação verbal; seu sentido e sua
adequação são mentalmente co-construídos pelos interlocutores, que levam
em conta seus objetivos e expectativas, os conhecimentos, crenças e valores
que partilham, as circunstâncias físicas em que as produções ocorrem. Sendo
assim, em si mesmas, por si mesmas, isoladas de seu contexto de uso, as
produções lingüísticas não têm nem deixam de ter sentido, não são boas nem
más, nem certas nem erradas. No processo de textualização, um mesmo texto
pode ser considerado incompreensível e impróprio por determinados
interlocutores, em determinada situação, e ser considerado plenamente
inteligível e adequado por outros interlocutores, noutra situação.
Essa concepção pode trazer como conseqüência para o ensino de
Língua Portuguesa,
a) por um lado, flexibilização com relação a fôrmas e modelos textuais
e à imposição de regras lingüísticas prévias, pretensamente
universais e absolutas;
b) por outro lado, atenção e acuidade no trabalho com os textos orais
e escritos interpretados ou produzidos pelos alunos, porque a
escolha, a reflexão e a avaliação relativas aos recursos lingüísticos
deverão levar em conta as circunstâncias dos processos de
produção e interpretação, os conhecimentos e disposições dos
interlocutores.
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
ATIVIDADE DE APLICAÇÃO
Prepare uma atividade para realizar com seus alunos em sala de aula,
relativa às possibilidades de TEXTUALIZAÇÃO do texto transcrito abaixo.
Trata-se de uma carta dirigida ao apresentador de televisão Gugu Liberato.
Comece por convidá-los a refletir sobre a intencionalidade, a
aceitabilidade e a situacionalidade desse texto, orientando-os a levantar
hipóteses consistentes quanto
1. Ao locutor:
a) quais seriam seus conhecimentos lingüísticos e textuais;
b) quais seriam seus objetivos e suas expectativas ao redigir
esta carta;
c) qual seria a sua compreensão da situação de interlocução.
2. Ao alocutário:
a) quais seriam seus conhecimentos lingüísticos e textuais;
b) qual seria sua expectativa e disponibilidade quanto às
cartas que recebe;
c) qual seria a sua compreensão da situação de interlocução.
A partir dessa reconstituição das condições de produção e leitura da
carta, discuta com seus alunos as possibilidades de TEXTUALIZAÇÃO dessa
carta pelo destinatário. Para isso, examine com eles o grau de adequação
desse texto, apontando seus pontos positivos e suas falhas com relação à
construção, pelo leitor previsto, da:




informatividade;
intertextualidade;
coerência;
coesão;
dando ênfase especial à coerência e à coesão.
Proponha a seus alunos a reescrita desse texto, de acordo com a
análise feita.
Estabeleça com eles orientações para essa reescrita e defina com eles
estratégias de encaminhamento e discussão da atividade (que etapas do
trabalho serão realizadas individualmente, em duplas, em grupo, ou
coletivamente?) bem como critérios de avaliação e auto-avaliação.
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
Cuqu
Estou
com
muita
Boa tarde
dificuldade:
minha
mãe
é
pensionista e eu não posso realisar o meu qrande sonho.
Eu vi o celugião Prastico na televisão, conversando
com você, mais a minha contisões finançeira não dar.
Não posso trabalhar, porque eu ajudo à minha mãe,
que ela é doente, e de idade.
Eu sei que voçê é muito humano e muito bacana,
mesmo que eu púdese trabalhar era muito difícil, porque
á pessoa, passando dos 38 anos, é considerada velha.
Por favor, mím ajuda a realisar o meu sonho,
qostaria, de consequír uma operação;. no abidomin e na
barriga e no rosto.
Obs. Agradeço à sua colaboração, que Deus de ajuda,
que você continua humano e abençado por Deus.
Muito obriqado de sua Adimiradora
Obs. Se caso eu consequír a realisar o meu sonho, eu
gostaria de levar uma pessoa comingo. Porque não
conheço São Paulo.
Marilia da Silva
21
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Volumes de Língua e Literatura
Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
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