A África como destino Olavo de Souza Pinto Filho1 RESUMO: O nosso ponto de partida para esse artigo vem de um incômodo nascido das reflexões sobre o “movimento de busca pela África” pelos praticantes do candomblé, que, na visão de alguns especialistas, tratar-se-ia de um “mito” advindo de disputas por “legitimidade” e “prestígio”. Esse “mal-estar”, antes de produzir uma negação dessa assertiva, propõe-se a levá-la a sério, “Tudo o que acontece com uma pessoa já acon- ou seja, mobilizar conceitualmente a ideia teceu com outra no passado, é Ifa quem registra de “mito”, pensando em “mitos” como sis- tudo dentro de sua cabaça” Araba Aworeni Adisa. temas de transformações. Nossa proposição espera esboçar outro caminho que po- “A outra visão. Única, por enquanto. O que acon- tencialize as afirmações “nativas” de busca teceu uma vez pode acontecer de novo. Vocês vão pela África. ver. Esperem só. É verdade que podem ter que es- 1 [email protected] perar muito tempo. Nós voltamos. Nós voltamos.” Palavras-chave: Ifá. Reafricanização. Mito. Susan Sontag. Destino. África. O sentido da palavra “destino” referente de retorno à África. Nosso foco está nas por meio de sua criação que Orumila traria todos os eventos da vida das ao título do presente texto pode designar narrativas e principalmente nas análises so- as respostas para quem o consulta. pessoas que ficariam registradas tanto um lugar, como também um objetivo. bre essas viagens. em seu interior sobre a forma de Pode se dizer destino no sentido de sorte, versos, cada verso traria o diag- de fortuna ou sina, em geral, pode-se rela- a visita do mais alto sacerdote do culto de ma geral, é o caso do escritor/artista e atu- nóstico e a solução para esses cionar destino como uma tessitura de fatos Ifá no mundo, o Araba Agbaye Aworeni3, à al Araba de Osogbo Ifayemi Elebuibon que, eventos. que se seguem. Entre os babalawos (como cidade de São Paulo para a realização do em seu livro The Healing Power of Sacrifice são denominados os sacerdotes de Ifá) “Festival Mundial de Ifá”. Naquela ocasião, (2000), define Ifá como: O Araba Agbaye é considerado com os quais tive oportunidade de conviver pude ouvir do Araba Agbaye uma afirma- a cabeça dos sacerdotes do culto em minha pesquisa de campo nos anos de ção em que dizia aos presentes que tudo [...] uma divindade que goza de alta estima de Ifá no mundo, em Ifé dizem 2009 e 2010, o tema “destino”, ou noções o que acontece com alguém hoje ocorreu entre as principais divindades do povo yo- que é o próprio representante aproximadas desse, era de suma importân- com outra pessoa no passado. É Ifá quem rubano, tanto na África como na Diáspora. de Orunmila. Este título só pode cia em sua atividade profissional, uma vez registra essas histórias em seu interior nos A despeito da incursão da modernidade na ser dado para alguém que além que toda a ciência de sua atividade como Odùs e é com os cacos dos acontecimen- vida desse povo, Ifá continua florescendo e de iniciado em Ifá seja oriundo sacerdote dependia de sua capacidade em tos, guardados em sua cabaça, que ele con- permanece como a maior autoridade em tudo do compound Oketase em Ile- transitar por esses caminhos. Eles se refe- serta o futuro. que diz respeito à cultura, ética social, arte e -Ife. Outras cidades ostentam riam a destino como Odù2, não por acaso portadores do título de Araba, as pessoas ligadas ao candomblé no Brasil segredos”), é o jogo “da fa” por onde fala mais engloba a sua visão do mundo, sua cos- entretanto, eles estão abaixo do se referem aos odus como caminhos. Orunmila. Como me disse certa vez o ba- mologia, sua fé e seus valores. Resumindo, balawo Tunde, “Ifá significa palavra forte Ifá é um sistema profundo de saber extensivo noções de destino que seguiremos neste na boca de Orunmila. Ifa explica tudo, não sobre a vida religiosa e mundana dos yoruba- estudo, tanto um local a se chegar (no nos- existe nada no mundo e na vida que não nos, tanto no seu passado como no presente. so caso, às cidades nigerianas) como pe- tenha explicação em Ifa”. Para alguns, Ifá Seu alcance também se estende ao futuro los caminhos percorridos para se chegar à e Orunmila seriam o mesmo ser, não sen- (ELEBUIBON, 2000, p. 9, apud AYOH’OMIDIRE, África (aqui entendida como uma presença do possível diferenciá-los, outros afirmam 2006, pp. 138-139 meus grifos). metafísica). Nosso propósito é provocar os- que Ifá é o jogo criado por Orunmila e, cilações entre essas dualidades bem como portanto, Orunmila não seria exatamente a nas interpretações sobre esse movimento personificação de Ifá, mas seu inventor. É 2 3 Os odus seriam antologias de Araba Agbaye de Ife. É com aproximações a essas duas Em setembro de 2009, acompanhei Ifá, dizem os Babalawos (“pais dos Diversos autores têm destacado a centralidade de Ifá para os iorubas de uma for- religião do povo yorubano. É o sistema que Dizem os cantadores de Ifá que o elemento principal do Ifá é o Odù. O Odù seria Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 35 um “volume” em que se encontram todas diáspora africana. Seus seguidores espa- as informações que explicam os aconte- lham-se pelos quatro cantos na velocida- cimentos da vida. No Brasil e em Cuba, é de de um mundo cada vez mais integrado Grandes árvores africanas povoam nosso comum ouvir das pessoas ligadas ao culto pela globalização, aconselhando quem os imaginário, dessas que se erguem pesa- dos orixás se referirem aos odùs como des- procura em tabuleiros dispostos em locais damente do solo projetando sua copa em tinos ou caminhos que as pessoas devem aparentemente inusitados, como cidades direção ao céu que acaba por conferir uma percorrer ao estarem sobre seu domínio. da Rússia, Argentina ou Uruguai. majestade única a sua estatura. Poucas ár- A colonização africana produziu nas Todo ano as cidades nigerianas de Ife, Todos os caminhos levam ao Araba vores assim podem ser vistas. Estando em comunidades sobre seu julgo efeitos nefas- Osogbo, Oyo, Abeokuta recebem levas e le- São Paulo, procurei no parque Ibirapuera tos, em especial nas elites locais, que há vas de pessoas dispostas a receber os ensi- e avistei pouquíssimos exemplares. Con- tempos vêm deixando de lado os saberes namentos contidos em Ifá, iniciando-se em tinuando nos arredores do parque, avisto tradicionais e adotando costumes ociden- solo nigeriano ou de lá obtendo uma titula- a Assembleia Legislativa, adentro seu hall talizados, em especial nas organizações ção religiosa que os permita praticar Ifá em principal e desço por uma escada envolta políticas e administrativas das cidades ni- suas cidades de origens. Além disso, sa- em granito e ali, parada em minha frente, gerianas. Mesmo contra todas as adversi- cerdotes nigerianos transitam anualmente curvada pelo peso dos anos e sabedoria, dades, as linhagens familiares e o culto de em inúmeras cidades iniciando e ensinando encontro a grande árvore o Árábá, com- Ifá permanecem como importante fonte de novos seguidores do culto de Ifá. parada importância talvez apenas como o organização e até mesmo resistência nes- Nesse movimento, encontram-se bra- Iroko ou o Baobá. A sua sombra, acomoda- ses locais. Hoje muitas personalidades da sileiros que, em uma busca incessante dos como flores que se espalham em suas sociedade iorubana voltam-se aos ensina- por fundamentos religiosos perdidos na raízes, estão babalawos nigerianos, brasi- mentos de Ifá para solução dos atuais pro- experiência da escravidão, voltam à África leiros, argentinos e uruguaios, que só se di- blemas da sociedade iorubana (AFOLABI, para “recuperar” ou “atualizar” seus conhe- ferenciam pela cor de suas peles, uma vez 2010; AYOH’OMIDIRE, 2006). cimentos rituais. É o que muitos autores que uma uniformidade colorida compõe o denominaram como o movimento de re vestuário. Atualmente, a presença de Ifá não está circunscrita apenas às regiões nigeria- ou africanização do candomblé (PRANDI, nas de onde seu culto surgiu, tão pouco se 1991, 1999; LÉPINE, 2005, 2009; SILVA, de São Paulo o local escolhido para a rea- concentra nos países que historicamente 1995, 1999; CAPONE,1999, 2009; FRIGE- lização do 1o Festival Mundial de Ifá. Este configuram-se como destinos na forçada RIO, 2005, entre outros). evento fora criado, segundo seus organiza- Foi a Assembleia Legislativa do Estado Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 36 4 Cargo religioso destinado às es- posas dos babalawos. dores, em cumprimento a uma determina- ancião, uma oportunidade para solucionar das pelo Àràba foi a criação no Brasil de um ção do próprio Ifá, recebida pelo babalaô certas divergências e problemas advindos conselho (aos moldes de um já existente Ifalana. Um sacerdote brasileiro que anos do uso ou, melhor dizendo, do “mau uso na Nigéria) entre os filhos mais velhos do antes estivera na cidade sagrada de Ilè- Ifé do sobrenome Aworeni”. Àràbà no Brasil. Caberá a esse conselho re- para cumprir obrigações rituais e voltou Era essa a posição de uma Ìyápetebi4 portar ao conselho nigeriano as ações de com a incumbência de realizar esse fes- argentina, na impossibilidade de seu esposo seus membros, fiscalizar eventuais erros tival. Seria, portanto, o “próprio Ifá quem estar no Brasil, ela viera para relatar ao Ara- ou usos e abusos indevidos do sobrenome determinou que o Araba viesse” e ali está- ba que um de seus filhos iniciara indiscrimi- Aworeni. Sobre isso disse o Àràbà: vamos todos. nadamente sacerdotes em Ifá na Argentina, Ifalana confidenciou-me em outra sem ter autorização para isso. Segundo ela, Vocês precisam manter a dignidade do nome oportunidade que já havia entrado em con- inúmeras pessoas têm sido iniciadas para Aworeni. Roupa é uma coisa, conhecimento tato com o culto de Ifá anos atrás numa Ifá por pessoas despreparadas para isso, é outra! Tem muita gente que não aprendeu festa de Iemanjá em um candomblé paulis- o que prejudicaria os “sacerdotes” sérios e Ifá, mas tem a boa doce. O Oluwo tem que tano. Ali conhecera um babalawo nigeriano “sujaria” o sobrenome Aworeni. ter Osu na cabeça e é reconhecido pelos 16 que residia no Brasil há muitos anos. Pelas Sobre essa contenda, o Àràbà disse do conselho do Ooni de Ifé. O Oluwo que mãos dele, recebera os primeiros ikins e que só pode usar o sobrenome Aworeni ensina os babalawos, em Ile Ife... Os alunos textos em ioruba, começara, assim, a dese- quem foi iniciado por ele, já que ele rece- chamam de oluwo que os ensina, mas só é nhar-se seu trajeto rumo à Nigéria. beu esse nome de seu pai e ele pode pas- Oluwo quando só 16 reconhecem ele como “Na época ninguém falava de babala- sar para as pessoas que inicia, se algum oluwo. Dentro do Culto de Ogboni é oluwo. wo, não é como hoje que tem um em cada filho dele inicia outra pessoa, esse filho Dois oluwos de Ifá dentro do culto de Ogboni. esquina, só conhecia pelo livro do Verger”, deverá saber se ela é digna de usar seu so- disse-me com certa malícia Ifalana. Atual- brenome. “Uma pessoa sem caráter pode mente o culto tem se expandido para ci- ‘estragar’ o nome Aworeni” disse ele. Cabe entrar na internet e dizer mentiras, por isso dades do interior do Brasil, da Argentina e à pessoa que inicia a responsabilidade em o conselho deverá ser sempre vigilante. O do Uruguai, prova disso era a presença de saber quem inicia. uso da internet pelos adeptos do culto de sacerdotes de Ifá desses países no Festi- As relações entre os membros da fa- Ainda disse que qualquer pessoa pode Ifá é recorrente, por meio da rede mundial val, os quais foram iniciados pelo próprio mília Aworeni estavam longe da convivên- de computadores, eles entram em conta- Àràbà e enxergavam, na visita do velho cia harmoniosa, e uma das medidas toma- to com outros sacerdotes, criam fóruns Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 37 de discussão, marcam reuniões, eventos gou à Nigéria. Baba Fola mantém há anos de uma comunidade de internet outros baba- e congressos, há uma gama de artigos, li- no Rio de Janeiro um centro de “intercâm- lawos que eu passo para ele. Desde os anos vros e CDs que são compartilhados entre bio religioso”, todo ano organiza excursões 2000, eu faço intercâmbio religioso no oeste os seguidores. Obras de antropólogos ou e viagens para a terra santa africana. Ele yorubano, levo para conhecer todos os orixás estudiosos-praticantes são traduzidas do chegou ao Brasil ao acaso e depois de se em Ilé- Ife, onde tudo começou, a vida come- inglês para o português e vendidas pela aposentar, segundo suas palavras: çou e tem mais outras cidades, Oyo, Ibadan. rede, apostilas de jogos de búzios, leitura A iniciação toda fica em 6.000 dólares, fora a dos Odús e outros são disputados pelos Vim abrir um centro cultural no Rio, para passagem, mas esse custo cobre tudo, tras- praticantes. ensinar a língua, fazer intercâmbio cultural lado, hospedagem, alimentação, vestuário, e religioso. Eu cheguei em 1997, tinha Ifa ebos, sacrifícios, oferendas, pagamento das só, tem dois tipos de Babalawo, uma pessoa pessoas que cuidam, tudo cobre tudo. Rastreando os caminhos que se chama Onifa, que tem Isefa, mas não pratica, não joga para outro, ela pode ser Por intermédio dessas viagens que Cada vez mais constante é a organização chamada de Babalawo. Babalawo, ele tam- os praticantes de Ifá vão complementando de congressos e encontros entre os pra- bém é iniciado, tem Ifa , aprender as regras, sua feitura, seja por iniciações em territó- ticantes de Ifá da Nigéria e da diáspora, ética, como consulta esse que se chama Ba- rio africano, seja conhecendo territórios que estimulam a produção do discurso em balawo e Oluwo, de muitos anos... Conheci sagrados na igualmente sagrada Nigéria, prol da reafricanização e resgate cultural, Ifa em Ise-ekiti, na Nigéria. Teve um evento comprando artigos religiosos, vestindo-se um exemplo disso são as Conferências em 2005, o ‘Orisa World’, eu fui um dos à maneira nigeriana, trazendo pequenas Mundiais da tradição e cultura dos Orixás palestrantes e depois do congresso conhe- porções de África em máscaras, colares, se- (COMTOCs). Esses eventos têm ocorrido ci algumas pessoas do Uruguai, Argentina, mentes. Isso é algo que nos traz à memória desde 1981, realizados em cidades como Venezuela e Chile querendo informações a importância das viagens de retorno pro- em Ilê-Ifé na Nigéria além de cidades no sobre a cultura, religião e se iniciar em Ifa. movidas pelos africanos libertos em mea- Brasil, Estados Unidos, Cuba e Trinidad e Como comecei com o intercâmbio, pergun- dos do século XIX, que foram fundamentais Tobago (SILVA, 1995; CAPONE, 1999). tei a eles se eles poderiam viajar comigo, os na formação das primeiras casas de santo que foram conheceram e levaram os colegas na Bahia e Recife. Foi por meio de um desses eventos que Ifalana conheceu o nigeriano Baba Fola deles. Então eu vou agora, faço seminários e e por intermédio de Fola que Ifalana che- conferências nesses países, conheci através No rastro dessas narrativas, figurou quase que proeminentemente um ponto em Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 38 comum, a viagem de retorno à África e sua ca figuraria então como local de excelência Jorge de Carvalho5 em um artigo que dis- da nostalgia: uma concepção importância na formulação dessas “redes para um resgate simbólico. Entretanto, ad- cute a noção de tempo histórico nos Xan- de tempo histórico dos cultos transnacionais” de culto a Ifá. verte a autora, esse local não existe em si, gôs de Recife. Nesse artigo o autor discute mas é fruto de um “sonho de pureza africa- o sentimento por parte dos membros do no” (CAPONE, 2004). xangô recifense que oscilam entre o orgu- 5 CARVALHO José Jorge. A força afrobrasileiros tradicionais. Essas viagens não serviram apenas Brasília: DAN, 1987. p. 22-5. (Sé- para traçar as trajetórias dessas pessoas, rie Antropológica, 59.). foi importante também para uma tomada Sendo assim, a viagem ao continente lho de um passado glorioso, domínio dos de posição no debate teórico sobre elas. africano transforma-se no verdadeiro “mito” grandes antepassados africanos e sua sabe- Uma vez que tratadas pelos pesquisadores fundador do candomblé dado que: “A via- doria e conhecimento e por outro de uma primeiramente como “mitos inventados” gem à África teria, portanto, purificado a carência com o presente do culto diante do (cf. CAPONE, 2004; DANTAS, 1988), a nar- fundadora, Iya Nassô, da mancha da escra- que ele denomina como “perda da memória rativa dessas “viagens míticas” faria parte vidão e legitimado a ‘pureza’ da família de coletiva”. da estratégia dessas comunidades em le- Senhora, cuja mãe teria nascido em solo gitimar suas práticas e tradições religiosas africano” e continua em sua análise afir- como agentes da mudança, uma vez que, a partir da concepção de pureza ritual, é mando que “a fundadora do primeiro can- por meio da defesa de uma conservação então que nosso argumento segue por ou- domblé do Brasil é duplamente legitimada, estática dos fundamentos religiosos, iriam tro caminho, um que experimenta outra via pois nasceu na terra dos ancestrais e é filha compensando a falta deles com uma repo- que não seja meramente uma “disputa por de uma sacerdotisa do culto: ela encarna, sição de saberes com o vínculo a uma fonte legitimidade”. por tanto, a verdadeira tradição africana”. africana de conhecimento (esta poderia ser Para a autora, aqueles que empreendiam desde a troca de segredos entre os mem- dores primeiramente como “mitos inventa- essas viagens visavam “fundamentalmente bros do xangô com as casas de outra nação dos” (cf. CAPONE, 2004; DANTAS, 1988), adquirir conhecimentos, pensando no pres- xambá, ou com terreiros de Salvador, até a narrativa dessas “viagens míticas” faria tígio que daí resultaria na volta ao Brasil. etnografias ou excursões a Cuba, Estados parte da estratégia dessas comunidades As viagens eram, e continuam sendo, for- Unidos e África) (CARVALHO, 1987, p. 51). em “legitimar” suas práticas e tradições re- midáveis instrumentos políticos” (CAPON- ligiosas a partir da concepção de “pureza NE, 2004, p. 270; 274). Uma vez que tratadas pelos pesquisa- Essa oscilação colocaria os sacerdotes A partir dessa “visão histórica dos cultos6”, o autor situa então três processos: a ritual”. É este o argumento do trabalho de Outro autor a teorizar sobre a dimen- ênfase na glória antiga, sentimento de cri- Stefania Capone, denominado A busca da são mítico-histórica das fundações das pri- se pela memória coletiva e movimentos de África no candomblé. Para a autora, a Áfri- meiras casas de culto aos orixás foi José transformação na busca de continuidade Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 39 com o próprio modelo de culto. Carvalho Com a mesma capacidade com que superou conceituais-teóricos do termo. Em outras diante de uma questão importan- parte então para uma tentativa de “apreen- a distância entre os dois continentes, saltou palavras, em vez de denunciar que, diferen- te dentro do campo de estudos der os significados mais profundos desses por cima também do tempo inteiro da escra- te do que os “nativos” afirmam, essa África sobre religiões de matriz africa- processos” em especial o “silêncio intencio- vidão e veio representar, para os membros, não existe e é fruto de complicados proces- na. Este ponto é problematizado nal” por parte dos membros do xangô so- a imagem de uma mulher africana imbuída sos de legitimidade e poder, explicando o por Marcio Goldman, vale a cita- bre o período da escravidão. de toda a força dos orixás, tal como (dizem) uso discursivo de “mito” diferente de “real”, eram os iorubas antes do tráfico de escra- buscamos aqui potencializar seus desdobramentos como “mito”. 6 Essa abordagem nos coloca ção: “Uns e outros tendem a con- O autor então reflete sobre os mo- ceber as religiões afro-brasileiras tivos desse silenciamento em termos da vos. Dito nos próprios termos da mitologia como entes mergulhados numa “memória oral” ao relatar que seus ante- de criação ioruba, Tia Inês parece ter vindo historicidade que não lhes per- passados eram capazes de feitos extraor- do orun (o mundo metafisico onde os orixás Straussiana, entendo mitos como sistemas tence, cabendo-lhes tão-somente dinários que não condiziam com a situação habitam) com a finalidade de fecundar o aiye de transformações, ou feixes de transfor- resistir a esse fluxo temporal ex- de escravidão a qual estavam submetidos, (mundo físico) dos homens carentes de trans- mações que se abrem em outros eixos de terno – mantendo-se, então, imu- ou uma reação “ideológica” para lidar com cendência, e cujo movimento primeiro é o de transformação, multiplicando e principal- táveis ou, mais frequentemente, a experiência traumática do negro escra- voltar a unir-se ao orun, do qual foi separado mente diferenciando-se constantemente8. degradando-se lentamente até vo. De qualquer forma o que nos interessa no princípio dos tempos. Tia Inês vem assim desaparecerem –, ou acomodar- aqui é o uso da categoria de “mito” em- representar a instalação de um novo universo o que é África em um terreiro transforma o -se a ele, passando assim a so- pregada pelo autor que equaliza os ruídos ioruba no Recife, repetindo o ciclo de união ritual em outro e os “fundamentos” em um frer transformações que apenas da versão historiográfica dos membros do do aiye com o orun já vivido antes pelos mi- terceiro, o vestuário de um e os nomes ri- repercutem aquelas, mais fun- xangô sobre a fundação de seus primeiros tos próprios dos habitantes do outro lado do tualísticos em outro, reafricanizando ou no damentais, da ‘sociedade abran- terreiros7. mar. Através dessa africana, sugiro, o xangô vocabulário dos autores: “transformando” revive, em sua história, o mito básico dos io- realidades que surgem e saltam em pontos rubas (CARVALHO,1987, p. 53). diferentes do continente americano (uma gente’” (GOLDMAN, 2008). Assim como a fundadora Iyanassô dos terreiros baianos, Tia Inês (a africana Inês Em uma inspiração de Lévi- Tudo se passa como se: [miticamente] conferência de Ifá em Miami, uma obriga- Ainda que não seja nossa in- Joaquina da Costa- Ifá Tinuké) funda o ter- tenção contrapor a leitura míti- reiro Ilê Obá Ogunté por volta de 1875, em ca por uma histórica, é preciso Água Fria, no Recife. Sobre esse episódio, desses autores como “mito”, mas quais as de Egungun em Trinidade e Tobago, uma salientar que existem inúmeros relata José Jorge: implicações de levar a sério o discurso do saída de iyawo em Campinas e no nosso trabalhos sobre a vida das co- antropólogo? Ou seja, pensar a África en- caso um congresso religioso na capital pau- munidades de africanos libertos quanto um “mito” mobilizando os modelos lista) como retornos ao solo africano. 7 A África figuraria nos argumentos ção de Ogboni em Montevidéu, um festival Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 40 nessas capitais muito antes da Experimentamos imaginar então que só se revela depois do longo convívio en- xangô do Recife, ainda que ele coloque isso lei áurea, ou seja, ao contrário as histórias sobre as viagens de retorno ao tre ambos. Coube no caso de Stefania Ca- como “a individualização do dilema coleti- do que afirmam os autores des- continente africano contivessem a repeti- ponne(2004), a antropóloga, “trazer à luz” vo” ao analisar a própria trajetória de vida tacados aqui, é condizente sim, ção de determinados elementos, ou, nas essas disputas por poder e legitimidade e do famoso sacerdote Pai Adão, que nascido do ponto de vista historiográfico, palavras de Lévi-Strauss, contivessem uma relatar que por trás dessas tradições “rein- filho de africanos volta à África e de lá re- a afirmação que estas fundado- “célula explicativa” em que sua estrutura ventadas” escondiam-se o desejo por poder torna realizado, pois “o valor de afirmar só ras não fossem escravas mes- básica seria a mesma, mas o conteúdo já e reconhecimento. se realiza plenamente quem toca a fonte mo que o período de fundação não é o mesmo. Variando em um tipo de desses terreiros fosse anterior a “minimito” (ainda que curto e condensa- o trabalho de José Jorge se diferencia da renovado, revivendo a plenitude” (CARVA- 1889. Foi partir de pesquisas do- do, mas que conserva a estrutura de mito) abordagem de Stefania Caponne (e de ou- LHO, 1987). cumentais sobre os libertos que e que conforme vão ocorrendo diferentes tros), uma vez que procura entender esse levaram direta e indiretamente transformações em um elemento, os outros retorno à África não como disputas por no, tão cara as pessoas que nos inspiraram à produção de novos trabalhos elementos têm de ser rearranjados e trans- legitimidade e prestígio, mas a partir de nesse trabalho, para eles a volta ao con- sobre a vida dos fundadores das formados “forçosamente” pela mudança do elementos do próprio universo do xangô, tinente africano é, por motivos diversos, casas de candomblé na Bahia. primeiro (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 34). sobre isso diz o autor: imperiosa. Nesse sentido, as inovações, e Entretanto, é preciso ressaltar que original; e dela regressar vitorioso, de axé Retomamos agora a noção de desti- por que não invenções, efetuadas por esses Cabe ressaltar, em especial, os Desta maneira, não faz sentido a opo- trabalhos advindos da linha de sição reificada por esses autores entre uma [...] é preciso insistir também que essa curio- agentes após esses caminhos e viagens se- pesquisa “Escravidão e Invenção África mítica (idealizada pelos religiosos) sidade que leva muitos líderes a mudar seu riam constitutivas daquele desejo por com- da Liberdade” do Programa de em comparação com uma África real (essa sistema, fazer viagens, etc. é pelo menos tão plementar o que estará sempre inacabado, Pós-Graduação em História da conhecida pelos pesquisadores). O que religiosa quanto a pesquisa de um acadêmi- impelidos pelo que José Jorge de Carvalho UFBA, que concentra grande par- esses autores reproduzem nessa atitude é co é legitimamente intelectual. Pois há, entre nomeou como a “força da nostalgia” essa te dessas pesquisas. Para mais uma postura teórica que implica uma as- alguns estudiosos, uma tendência a ver essas busca incessante pela África, que é deter- informações, conferir os traba- simetria de posições entre o pesquisador mudanças como um puro jogo de poder por minada pelo eterno desassossego que a lhos de: REIS, João José. 2008. e o grupo pesquisado, haja vista que cabe parte dos lideres.(CARVALHO,1987, p. 52) sensação de perda de fundamentos e da Domingos Sodré, um sacerdote ao antropólogo interpretar por meio de ca- africano: escravidão, liberda- tegorias “explicativas” exteriores ao grupo de e candomblé na Bahia do pesquisado o que estes “fazem”. Podendo ressante levantado pelo autor seria esse e cada vez mais procurar preenchê-las com século XIX. 1. ed. São Paulo: desvendar assim a verdade escondida que mito que revive na vida dos membros do a experiência em solo africano, mesmo que própria história levou e continua levando E isso não é tudo. Outro ponto inte- pessoas a embarcarem nessas rotas do axé Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 41 Companhia das Letras. PARES, esse solo africano seja um quarto de um de Ifalana, “essa viagem estava no meu Luis Nicolau. 2006. A formação apartamento de um nigeriano no centro de destino”. Estava em seu Odù, este conceito ginada sob a forma da faixa de Möbius do Candomblé: história e ritual São Paulo, um curso de língua ioruba numa iorubano que se refere a acontecimentos (esse espaço topológico obtido pela cola- da nação jeje na Bahia. 2. ed. Universidade ou a sagrada cidade de Ilè-Ifé guardados no jogo de Ifá, fatos que se re- gem das duas extremidades de uma fita, Campinas: Editora da Unicamp. na Nigéria. petem desde tempos imemoriais: os fatos após efetuar meia volta numa delas, a qual são os mesmos, as pessoas é que são dife- é uma superfície com uma componente de A metáfora utilizada por Soyinka ima- CASTILLO, Lisa Earl ; PARÉS, Luis Essa África constantemente desejada Nicolau .2007. Marcelina da Sil- e invocada poderia ser pensada aqui como rentes, esses acontecimentos são previstos, fronteira; é não orientável, possui apenas va e seu mundo: novos dados um devir, ou seja, uma composição, um as pessoas não, são os Odùs que trazem um lado, possui apenas uma borda) opera para uma historiografia do can- movimento, um afeto. Lançando mão da esses acontecimentos aos seres humanos, uma torção, é uma topologia que instaura domblé ketu. Afro-Asia (UFBA), leitura de Marcio Goldman: por isso o jogo diz qual é o caminho a per- o movimento em uma sequência sem prin- correr, diz o que está para acontecer. cípio nem fim. entre outros. O devir, na verdade, é o movimento através Essa repetição dos acontecimen- Roger Bastide afirmou certa vez que do qual um sujeito sai de sua própria condi- tos, contudo, não significa que ocorram no candomblé pode-se: “tornar-se africa- leitura de Eduardo Viveiros de ção por meio de uma relação de afetos que da mesma maneira, os babalaôs afirmam no”. Tornar-se africano é um fato desde Castro sobre as Mitológicas consegue estabelecer com uma condição que não se trata de uma repetição cíclica que esteja em seu Odù, em seu caminho. para corrompê-la em seguida: outra. O devir é o que nos arranca não ape- e eterna da mesma coisa. Wole Soyinka Tornar-se africano é uma realidade se pen- “Na realidade [as mitológicas de nas de nós mesmos, mas de toda identida- chama atenção que não se trata de um sarmos como dizem os “nativos”: a África Lévi-Strauss] é de uma transver- de substancial possível. Trata-se, pois, de retorno ao mesmo, esse retorno incide em como destino. salidade heterogenética generali- apoiar-se em diferenças não para reduzi-las uma diferença: zada, em que o mito de um povo à semelhança (seja absorvendo-as, seja ab- transforma o ritual de um segun- sorvendo-se nelas), mas para diferir, simples multiform do povo e a técnica de um tercei- e intransitivamente (GOLDMAN, 2012). Evolution of the self-devouring snake to spatials 8 Aproveitando-nos para isso da ro povo; em que a organização New in symbol, banked loop the “Möbius Strip” Diferindo-se e multiplicando, esse And interlock of re-creativ rings, one surface de outros (Como ir e vir entre “devir-África” se potencializa em cada expe- Yet full of angles, uni-plane, yet sensuous with a cosmologia e a cosmetologia riência de retorno. Essa matriz África que Complexities of Mind and motion sem sair da política); e em que a é atualizada. Seus caminhos são buscados (SOYINKA,1967, p. 83) redondeza geométrica da terra e e percorridos porque, segundo as palavras social de um é a pintura corporal Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 42 da mitologia é constantemente Referências cortocircuitada por sua porosidade geológica, graças a qual as CAPONE, S. Uma religião para o futuro: a rede transnacional dos cultos afro-brasileiros. Estudos afro-asiáticos, n. 36, p. 57-72, dezem- transformações parecem saltar bro de 1999. entre os pontos extremos do ______. A busca de África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2004. continente americano, brotando aqui e ali como erupções pontuais de um oceano subterrâneo de CARVALHO, J. A força da nostalgia: uma concepção de tempo histórico dos cultos afrobrasileiros tradicionais. Brasília: DAN; 1987. magma.” (CASTRO, 2010, p. 220, p. 22-5 (Série Antropológica, 59.). minha tradução) EPEGA, S. A volta à África na contramão do Orixá. In: CAROSO, Carlos, BACELAR, Jéferson. (Org.). Faces da tradição afro-brasileira. Salvador: CEAO/Pallas, 1999. FRIJERIO, A. Reafricanização em diásporas religiosas secundárias: a construção de uma religião mundial. Religião e sociedade. Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p.136-160, 2005. GOLDMAN, M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev. antropol., São Paulo, v. 46, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextHYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”&HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”pid=S0034-77012003000200012HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”&HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”lng=enHYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”&HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000200012&lng=en&nrm=iso”nrm=iso>. Acesso em: 25 abr. 2012. ______. Histórias, Devires e Fetiches das Religiões Afro-Brasileiras. Ensaio de Simetrização Antropológica. Análise social, v. espec., p. 1-20, 2008. JENSEN, T. Discursos sobre as religiões afro-brasileiras: da desafricanização para a reafricanização. Revista de Estudos da Religião, 1 (2001): 1-21. Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 43 LÉPINE, C. Mudanças no candomblé de São Paulo. Religião e sociedade. Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 121-135, 2005. LÉVI-STRAUSS, C. Quando o Mito se Torna História. In: Mito e significado. Lisboa, Edições 70, 1985. PALMIE, S. O trabalho cultural da globalização iorubá. Relig. soc. [online]., v .27, n. 1, pp. 77-113, 2007. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextHYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&ln g=en&nrm=iso”&HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&lng=en&nrm=iso”pid=S 010085872007000100005HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&lng=en&nrm =iso”&HYPERLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&lng=en&nrm=iso”lng=enHYPE RLINK “http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&lng=en&nrm=iso”&HYPERLINK “http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010085872007000100005&lng=en&nrm=iso”nrm=iso>.(acessado em 03/08/2011) PRANDI, R. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1991. Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento, africanização. In: BACELAR, J.; CAROSO, C. (Orgs.). Faces da tradição afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 1999. p. 93-111. SAHLINS, M. O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte I). Mana, v. 3, n. 1, p. 41-73, 1997. SILVA, V. Reafricanização e sincretismo. Interpretações acadêmicas e experiências religiosas. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson. (Org.). Faces da tradição afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas/CEAO/CNPq, 1999. p. 149-157. SOYINKA, W. Idanre and other poems. London: Metheun,1967. TEIXEIRA, M. Candomblé e [re]invenção de tradições. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson. Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas, 1999 Olavo de Souza Pinto Filho A África como destino 44