Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Diretrizes Diagnósticas para Febres Prolongadas de Origem Obscura Patrícia Lima Hottz Nelson Gonçalves Pereira INTRODUÇÃO • CLASSIFICAÇÃO: A Febre de Origem Obscura (FOO) é um tema vasto e divide-se em FOO Clássica, que consiste na Febre Prolongada de Origem Obscura (FPOO), cujas características serão discutidas adiante; FOO Nosocomial, curta (três dias) como consequência de cirurgias, procedimentos e medicamentos; FOO em imunodeprimidos e neutropênicos, também curta, porém potencialmente grave, necessitando de tratamento empírico imediato (já considerado atrasado); e FOO nos pacientes com HIV, podendo ser prolongada ou curta, em caso de pacientes internados. A FPOO ainda se subdivide em FOO em Idosos, em Crianças e Recorrente. • CONCEITO: Em 1961 Petersdorf e Beeson definiram Febre de Origem Obscura como aquela de intensidade maior que 38,3°C (aferição oral, equ ivalente a 37,8°C axilar), aferida em várias ocasiões, com duração de pelo menos três semanas e sem diagnóstico após sete dias de investigação hospitalar ou tempo necessário para serem realizados os procedimentos inicias indicados para o caso (rotina inteligente de exames). Então, a Febre Prolongada de Origem Obscura (FPOO) é caracterizada por febre de existência indiscutível, duração mínima de três semanas, com um quadro clínico inconcluso e que permanece sem diagnóstico após a realização do conjunto de exames e procedimentos indicados inicialmente para aquele caso particular. • ETIOLOGIAS: As infecções são as causas mais freqüentes de FPOO, seguidas por neoplasias sólidas e hematológicas, doenças inflamatórias não infecciosas (colagenoses, vasculites, hipersensibilidade auto-imune e doenças granulomatosas), grupo denominado miscelânea, que engloba as causas não classificadas em nenhum destes grupos e as causas não diagnosticadas, cada vez menos freqüentes. As etiologias são exemplificadas nas tabelas 1 e 2, abaixo. 2 Tabela 1 - ETIOLOGIAS DAS FPOO POR GRUPOS DE CAUSAS INFECÇÕES TB extrapulmonar, TB miliar, Abscessos abdominais e pélvicos, Síndrome de mononucleose (HIV, EBV, CMV, toxoplasmose), Infecções de vias biliares, Paracoccidioidomicose, Osteomielite, ITU, EI, Otite, Sinusite, Prostatite, Outros abscessos, Histoplasmose, Esquistossomose, Infecções dentárias, Doença de Chagas, Febre tifóide, Malária, Calazar, Colangite, Brucelose, HIV, Criptococose, Enterobacteriose septicêmica prolongada NEOPLASIAS Linfoma de Hodgkin, Linfomas não Hodgkin, Hepatomas, Carcinomatose, Leucoses, Tumores do cólon, Tumores do TGI, Linfoadenopatia imunoblástica, Hipernefroma, Mixoma atrial, Tumor de Wilms, Retinoblastoma DOENÇAS INFLAMATÓRIAS NÃO INFECCIOSAS Doença de Still com início na idade adulta, LES, Polimialgia reumática, Febre reumática sem artrite ou artralgia, Artrite reumatóide, Artrite de células gigantes, Doença de Wegener, Poliarterite nodosa, outras vasculites, DII, Sarcoidose, Hepatite granulomatosa MISCELÂNEA Febre por drogas, Febre factícia, Febre do Mediterrâneo, TVP e EP, Tireoidite subaguda, Cirrose, Hematomas, Hipertireoidismo, Hipertermia habitual, Hepatite alcoólica, Síndrome de Reiter, Síndrome de Sweet, Síndrome Hiper IgD, Doença de Kawasaki, Síndrome de Kikuchi, Doença de Castleman, Anemias hemolíticas, Febre psicogênica SEM DIAGNÓSTICO Adaptado de Pereira N. G.; Borralho A. M. V. Febres Prolongadas de Origem Obscura. J. bras. Med.; 87 (5/6) : 54-70, nov.-dez. 2004 3 Tabela 2 - ETIOLOGIAS DAS FPOO POR FREQUÊNCIA MAIS COMUNS TB extrapulmonar e miliar, Abscessos principalmente intrabdominais, EI, ITU, Síndrome de mononucleose, Linfomas, Leucoses, Carcinomas do TGI principalmente cólon, Hepatomas, Síndromes mielodisplásicas, Carcinoma de células renais, Doença de Still do adulto, LES, Polimialgia reumática, Arterite temporal, outras vasculites, DII, Febre factícia, Febre por drogas, TVP e algumas outras dependendo da região estudada MENOS COMUNS OU RARAS Hepatite alcoólica, Dissecção de aorta, Mixoma atrial, Síndrome de Behçet, Doença de Castleman, Cirrose, Carcinomatose, Doença de Fabry, Febre Familiar do Mediterrâneo, Febre familiar Hiberiana, Síndrome hipereosinofilínica, Histiocitose X, Linfoadenopatia imunoblástica, Doença de Kikuchi, Doença dos Polímeros do fumo, Síndrome mieloproliferativas, Febre periódica, Anemias hemolíticas, Feocromocitoma, Síndrome pós pericardiotomia, Pericardite, Pancreatite, sarcoidose, TEP, Sarcoidose, Doença do soro, Síndrome de Jjögren, Púrpura trombocitopênica trombótica, Hipertireoidismo, Doença de Wipple, Linfadenite necrotizante subaguda, Granulomatose de Wegener, Hemoglobinopatias Adaptado de Pereira N. G.; Borralho A. M. V. Febres Prolongadas de Origem Obscura. J. bras. Med.; 87 (5/6) : 54-70, nov.-dez. 2004 4 Tabela 3 - MEDICAMENTOS ENVOLVIDOS EM FEBRE POR DROGAS COMUNS Atropina, Anfotericina B, Asparaginase, Barbitúricos, Bleomicina, Metildopa, Penicilinas, Cefalosporinas, Fenitoína, Procainamida, Quinidina, Salicilatos, Sulfonamidas, Interferon, Captopril, Clofibrato, Hidroclorotiazida, Meperidina MENOS COMUNS Alopurinol, Azatioprina, Cimetidina, Hidralazina, Iodetos, Isoniazida, Rifampicina, Estreptoquinase, Imipenem, Vancomicina, Nifedipina, AINEs, Metoclopramida, Nitrofurantoína, Salicilatos, Corticosteróides, Macrolídeos, Tetraciclinas, Minociclina, Clindamicina, Cloranfenicol, Complexos, vitamínicos, Anti-histamínicos, Mercaptopurina, Clorambucil, Ácido paraminossalicílico Adaptado de Pereira N. G.; Borralho A. M. V. Febres Prolongadas de Origem Obscura. J. bras. Med.; 87 (5/6) : 54-70, nov.-dez. 2004 DIAGNÓSTICO • DIRETRIZ PROPOSTA: Abordagem inicial do paciente com FPOO: 1. Constatação da existência da febre e suas características. Descartar febres factícias, hipertermias habituais e aumentos fisiológicos da temperatura. 2. História clínica minuciosa e completa, com dados epidemiológicos como lugar de origem e onde reside, viagens, hábitos pessoais, exposição a animais ou drogas, co-morbidades, histórias sexual, patológica pregressa, familiar e ocupacional, além de anamnese dirigida. 3. Internação hospitalar, quando necessário, seja para comprovação da febre, em casos mais graves, para realização de exames com algum risco ou ainda para facilitar a investigação. 4. Exame físico detalhado repetido sistematicamente durante a evolução, incluindo ectoscopia completa, exame da genitália, toque retal quando indicado, exame completo das mamas, palpação do trajeto de artérias temporais, fundo de olho, palpação da tireóide. 5. Pareceres especializados se necessários. 5 6. Assegurar que a rotina mínima de exames complementares foi realizada – rotina inteligente de exames. 7. Suspensão dos medicamentos usados pelo paciente ou troca para outra classe daqueles que forem imprescindíveis 8. Orientação ao paciente e à família sobre toda a complexidade a cerca da FPOO e a possibilidade de demora no diagnóstico ou até de não obter um diagnóstico, a despeito de uma investigação completa, dispendiosa e desgastante. Rotina Inteligente de Exames: Consiste na rotina mínima de exames complementares que deve ser solicitada, antes de classificar a febre como FPOO. Logo, todo paciente com FPOO a ser investigada, já deve ter sido submetido a uma investigação inicial, racional e personalizada, sem definição de um diagnóstico. Investigação laboratorial: A investigação deve ser racional e personalizada. Qualquer indício determina a ordem e quais exames deverão ser realizados. Se não houver indícios, a investigação deve partir dos exames mais simples e menos agressivos para os mais complexos. Investigação básica para FPOO sem indícios iniciais: 1. Primeiros exames a serem solicitados, buscando indícios fisiológicos e/ou anatômicos para posterior abordagem: Hemograma Completo • Leucocitose - Freqüente, mas inespecífica; • Leucopenia – Pode ser encontrada em leucoses aleucêmicas, TB miliar, linfomas, LES, Calazar e Febre Tifóide; • Eosinofilia – Aponta para os diagnósticos de Esquistossomose aguda, linfoma de Hodgkin, poliarterite nodosa e reações a drogas; • Linfocitose – Pode ser evidenciada em TB, toxoplasmose, CMV, EBV; • Linfopenia - Sugere doenças como HIV, LES e sarcoidose; • Linfócitos atípicos – Reações a drogas, CMV, toxoplasmose e EBV; • Trombocitose - Observada em carcinomas, hipernefroma, linfomas, TB e angeíte temporal. • Trombocitopenia – Comum em leucoses, linfomas, LES, vasculites e HIV; • Anemia hipo/micro – Pode estar relacionada a sangramento oculto do TGI neoplasia de cólon. VHS • Muito aumentado em colagenoses, neoplasias, osteomielite, abscessos e doenças mielodisplásicas. TB, EI subaguda, Radiografias de tórax – Devem ser seriadas enquanto durar a FPOO. 6 Hemoculturas • Pelo menos três sets para bactérias aeróbias e anaeróbias, além de culturas para fungos e micobactérias. EAS • Piúria estéril – O diagnóstico de TB renal deve ser aventado; • Proteinúria – Colagenoses devem ser pesquisadas. Exame parasitológico de fezes – Pelo menos 3 amostras, usando os métodos de pesquisa de ovos leves e pesados e larvas. Urinocultura - Especialmente no grupo pediátrico, já que em adultos pode significar apenas bacteriúria assintomática. Uréia e Creatinina – Em caso de insuficiência renal, pensar em endocardite infecciosa, TB renal, leptospirose, poliarterite nodosa, LES e sarcoidose. Transaminases hepáticas (AST e ALT) Fosfatase Alcalina - Aumentada em doenças ósseas e hepáticas. Bilirrubina Total e Frações – Para o diagnóstico diferencial de icterícias. Cálcio, fósforo, ácido úrico – Podem estar aumentados em neoplasias ocultas. Sorologias para Toxoplasmose, EBV, CMV, HIV, Doença de Chagas e Histoplasmose. TSH, T4 livre - Hipertireoidismo e tireoidite subaguda. Eletroforese de proteínas - Aumento monoclonal: Mieloma Múltiplo (causa incomum de FPOO). ASO - Febre Reumática FAN – Fala a favor de LES se > 1: 40 e de outras colagenoses se < 1: 40. Fator Reumatóide - Positivo em 70% dos adultos com Artrite Reumatóide, mas na Doença de Still é negativo em 90%. cANCA - Granulomatose de Wegener. pANCA - Poliarterite nodosa (7 – 36% HbSAg +). PSA - Em homens acima de 50 anos. Ultrassonografia de abdome total 7 Tomografia Computadorizada de Tórax, Abdome e Pelve com contraste. Ecocardiograma transtorácico e/ou transesofágico, se indicado. 2. Se os exames iniciais apontam alguma direção, prosseguir a investigação específica, incluindo outros exames laboratoriais mais específicos, exames de imagem e biópsias das regiões triadas. Todos os materiais obtidos devem ser enviados para estudos histopatológico e microbiológico, com culturas para bactérias, fungos e micobactérias. 3. Se não há indícios, prosseguir com os seguintes exames: Sorologias para Clamídia, Listeria, Brucelose, coxsackie, Criptococose, e Rodococose Endoscopia Digestiva Alta Colonoscopia Cintilografia com 99mTc-leucócitos mononucleares – Para rastreamento e localização anatômica de lesões inflamatórias e posterior investigação. PET scan - Com Gálio 67 (preferencial para marcação de foco infeccioso) ou 18F-2-deoxyglucose (FDG) para foco neoplásico. Também para rastreamento e localização para posterior investigação. Aspirado e Biópsia de Medula Óssea - Todos os materiais obtidos devem ser enviados para estudos histopatológico e microbiológico com culturas para bactérias, fungos e micobactérias. Biópsia de artéria temporal, uni ou bilateral – Mesmo sem nenhum outro indício, se idade superior a 50 anos e VHS aumentado. Videolaparoscopia ou Laparotomia exploradoras: Cada vez menos utilizados! SEGUIMENTO DE PACIENTES COM FPOO SEM DIAGNÓSTICO Bom estado geral que permanece com febre: segue em investigação ambulatorial Bom estado geral com resolução espontânea da febre: acompanhamento ambulatorial por pelo menos seis meses Instabilidade clínica e/ou sinais de gravidade: avaliar provas terapêuticas e/ou tratamentos empíricos 8 Prova Terapêutica: O uso indiscriminado de antibióticos retarda o esclarecimento das FPOO. Assim como o uso precipitado de corticosteróides altera o comportamento da febre e modifica a evolução clínica de muitas doenças. Porém, os tratamentos empíricos e provas terapêuticas são muitas vezes utilizados após longa investigação das FPOO sem êxito, principalmente quando o estado clínico do paciente se agrava. Há concordância entre muitos autores quanto ao tratamento empírico em algumas situações. Por exemplo, o tratamento para tuberculose quando há granulomas em qualquer resultado histopatológico, mesmo sem microorganismo isolado. Na presença de infiltrados pulmonares e derrames pleurais não esclarecidos, com PPD reator ou até mesmo quando somente há PPD reator, após investigação exaustiva, e nenhuma conclusão, principalmente se há agravamento do quadro. Mas no nosso meio, onde muitos possuem teste tuberculínico reator, pela alta prevalência de tuberculose, o PPD não será considerado um indício e, portanto, o tratamento empírico para tuberculose não será considerado nos dois últimos casos. Há consenso na literatura também para os seguintes casos: tratamento empírico na suspeita de Doença de Still com Salicilatos, Fenilbutazona ou corticóide (menor resposta); aspirina em dose antiinflamatória na suspeita de febre reumática de apresentação atípica e corticóide para arterite temporal. O uso de AAS e imunoglobulina com boa resposta é critério diagnóstico para Doença de Kawasaki; assim como Colchicina é para Febre do Mediterrâneo. 9 FLUXOGRAMA PARA DIAGNÓSTICO DE FPOO História minuciosa + Exame Físico completo + Confirmação da febre + Retirada de drogas + Rotina inteligente de exames + Parecer especializado Sem indícios iniciais Indicam uma direção Hemograma Completo, Rx de tórax, HCTs, VHS, EAS, EFFs, U e Cr, AST/ALT, BT e F, FA, Ca, P e ácido úrico, Sorologias para Toxoplasmose, EBV, CMV, HIV e Histoplasmose, TSH e T4L, Eletroforese de ptns, ASO, FAN, FR, cANCA, pANCA, PSA, USG abdome, TC de tórax, abdome e pelve, ECO TT Investigação específica Sem indícios iniciais Indicam uma direção Sorologias (para Clamidia, Listeria, Brucelose, coxsackie, Criptococose e Rodococose), EDA, Colonoscopia, Cintilografia com 99mTc-leucócitos mononucleares, PET scan Investigação específica Sem indícios Aspirado e Bx de M.O., Bx de artéria temporal uni ou bilateral Sem diagnóstico Acompanhamento ambulatorial por até seis meses após desaparecimento da febre Avaliar gravidade Prova terapêutica 10 REFERÊNCIAS 1. 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