7ª aula de Filosofia da ciência 2º semestre de Ciências Contábeis – UDESC/CEAVI TEMA: ATITUDE CIENTÍFICA X SENSO COMUM Conteúdo e desenvolvimento: Aquilo que chamamos de senso comum se refere aos saberes e práticas acumulados, adquiridos e repassados de geração para geração através de tradições. Essa forma de saber é baseada na certeza e na crença; sem elaborações racionais ou a exigência de provas lógicas e empíricas, o senso comum se transforma em uma espécie de conhecimento dogmática, ou seja, em crenças inquestionadas e reproduzidas inconscientemente, irrefletidamente. Essas crenças e hábitos são vistos como naturais; ou seja, as explicações do senso comum se repetem tanto durante as gerações que os seus adeptos as enxergam como algo natural, inquestionável. Como já vimos anteriormente, a filosofia rejeita esse tipo de conhecimento justamente por serem aderidos sem um questionamento mais profundo sobre a verdade que proferem. Desse modo, aquilo que chamamos, por outro lado, de atitude científica, inspirada na atitude filosófica, consiste no questionamento dessas verdades do senso comum, a fim de desmistificar, desnaturalizar essas formas de visão de mundo, buscando proferir verdades que sejam universalmente aceitas, por seguirem critérios racionais, universais e necessários, e se basearem em provas lógicas e empíricas. Vamos analisar as diferenças entre o senso comum e a atitude científica. Senso comum: - Os saberes do senso comum são subjetivos. Isso quer dizer que são construídos, expressos e baseados em opiniões individuais ou de grupos, de acordo com as suas condições sociais e culturais específicas. São saberes que expressam uma visão de mundo que se pretende universal, mas que na verdade são particulares a alguns grupos de indivíduos. A perspectiva que um hindu tem da vaca, por exemplo, é radicalmente diferente daquela que um agropecuário tem do mesmo animal: para o primeiro, a vaca é um animal sagrado que precisa ser respeitado e reverenciado, enquanto para o segundo, a vaca é uma mercadoria que lhe traz lucro. Tudo o que chamamos de subjetivo é aquilo que diz respeito ao sujeito que conhece, que crê, que opina; por isso, os aspectos dos saberes ou conhecimentos subjetivos são particulares, restritos, condicionados pelas experiências de vida do sujeito, e não podem ser universalizados. Os conhecimentos subjetivos são contingentes, variam de grupo cultural para grupo cultural, de modo de vida para modo de vida, de situação para situação. - Os julgamentos subjetivos são qualitativos, ou seja, são avaliados de acordo com o efeito que têm sobre os nossos órgãos sensitivos – se sentimos prazer ou desprazer, se nos agradam ou desagradam – ou sobre as nossas inclinações e desejos pessoais ou culturais, sobre a utilidade que creditamos aos objetos. - Os saberes do senso comum distinguem ou aproximam os fatos e os acontecimentos de acordo com a sua aparência semelhante ou diferente. Marilena Chauí cita o seguinte exemplo: o senso comum considera fatos diferentes um corpo que cai e uma pena que flutua no ar. - Os saberes do senso comum são, por um lado, individualizadores, e por outro lado, são generalizadores. São individualizadores porque conforme somos afetados pela qualidade dos objetos, os distinguimos uns dos outros (a seda é macia, a madeira é dura); as distinções que fazemos dos objetos está relacionada à aparência semelhante ou não que eles mantêm entre si. Do mesmo jeito que distingue, que individualiza os objetos de acordo com a sua aparência, o senso comum também os generaliza, ou seja, também os considera do mesmo gênero ou espécie de acordo com as semelhanças aparentes que esses objetos ou fenômenos têm ou não uns com os outros. Tanto a individualização como a generalização dos objetos e fenômenos, nos saberes do senso comum, são baseadas na aparência da semelhança. - Ao generalizar fenômenos considerados semelhantes, os saberes do senso comum passam a estabelecer relações de causa e efeito entre acontecimentos, fatos e coisas, sem investigar com propriedade as causas desses efeitos. Isso pode gerar ideias preconceituosas e falsas. Como nas frases: “onde há fumaça, há fogo”; “a mulher é o sexo frágil ou lugar de mulher é na cozinha”; “mendigos são vagabundos que não querem trabalhar”. - Os saberes do senso comum não se surpreendem com a regularidade e a repetição dos fatos e eventos, posto que já são vistos como algo conhecido que não necessita estudo ou atenção. Por outro lado, há um interesse particular em eventos ou fatos considerados extraordinários ou milagrosos, considerados inexplicáveis ou incompreensíveis. - Os saberes do senso comum desconhecem os procedimentos da investigação científica, proporcionando uma visão que aproxima a ciência da magia: a ciência aparece como algo incompreensível e misterioso. A imagem do cientista como um maluco ou como um mago é típica do cinema e da propaganda, onde o nosso imaginário é levado a interpretar a investigação científica como algo distante da realidade, como uma prática e conhecimento inalcançáveis para a maioria das pessoas. - Os saberes do senso comum interpretam tudo o que é desconhecido no mundo como algo angustiante, inexplicável, mágico, sobrenatural, ameaçador, buscando em crenças, dogmas e tradições as respostas para aquilo que não podem compreender. - Essas características do senso comum contribuem para a construção de conhecimentos e práticas que são frequentemente preconceituosos. Como diz Marilena Chauí: “por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos” (p. 274). Atitude científica Diferentemente do senso comum, a ciência desconfia de tudo aquilo que temos certeza sem previamente questionar e avaliar. A ciência rejeita a adesão imediata, a naturalização dos hábitos e dos saberes que foram passados para nós, os quais reproduzimos sem duvidar. A ciência valoriza a dúvida, a curiosidade, e as certezas do dia a dia são problematizadas e questionadas. Vamos comparar os saberes do senso comum ao conhecimento científico nos aspectos abordados acima. - O conhecimento científico é objetivo, ou seja, ao invés de ser baseado em sentimentos, opiniões, desejos ou tendências sociais e culturais específicas, ele procura as estruturas universais e necessárias dos objetos investigados. Lembrem-se que a universalidade e necessidade são aspectos racionais e lógicos já exigidos pela filosofia desde o seu surgimento. Universal é aqui o oposto de particular: se o senso comum exprime opiniões particulares de grupos ou indivíduos, a ciência exprime o conhecimento que deve ser considerado verdadeiro para todos independentemente do lugar ou do tempo a que se aplica. Necessário é o oposto do contingente: o necessário é aquilo que é como é e não poderia ser diferente, ou seja, não está sujeito a opiniões particulares e restritas a grupos sociais e culturais, não varia de situação para situação, é algo que sempre se repete, é sempre regular: uma lei. A ciência é objetiva justamente porque pretende exprimir uma forma de conhecimento que não seja restrito, portanto, às particularidades históricas, sociais e culturais que formam as opiniões e se cristalizam no senso comum. - O conhecimento científico é quantitativo, ou seja, ao invés de ser qualitativo, ao invés de ser baseado na forma particular como os objetos afetam diferentemente os sentidos e formam os gostos e as opiniões pessoais, ele define padrões, medidas e critérios de comparação para avaliar a semelhança ou diferença entre as coisas. O conhecimento não é baseado no fato de determinado objeto ou determinado fato nos agradar ou desagradar, ele é baseado na análise aprofundada de sua estrutura, de modo que o agrupamento ou a separação dos objetos e fatos não se dá pela aparência similar ou não entre eles. O senso comum é um saber qualitativo porque com ele considera-se algo bom ou ruim, verdadeiro ou falso de acordo com a forma que somos afetados por essas coisas; para a ciência, é preciso encontrar critérios para avaliar e comparar as coisas que não dependam da nossa opinião pessoal, pois as pessoas pensam, sentem e opinam de maneira muito variada a respeito da mesma coisa. Nesse sentido, por exemplo, a diferença entre as cores é explicada pela variação de grau que elas têm em um mesmo padrão de medida, assim como as diferenças de intensidade dos sons são explicadas pelo comprimento das ondas sonoras. Do mesmo jeito que determinado comportamento humano, estudado por um sociólogo, é avaliado de acordo com um padrão de repetição desse comportamento, ou seja, com o fato de acontecer com muitas pessoas. - O conhecimento científico procura as leis gerais do funcionamento dos fatos e dos acontecimentos, de modo que efeitos diferentes podem ter a mesma causa, quando estudados adequadamente. No exemplo do senso comum, o corpo pesado e a pena que flutua parecem ser radicalmente diferentes; mas de acordo com a ciência, o peso de um corpo é relativo ao campo gravitacional em que ele se encontra. Assim, na Terra, a pena flutua, o corpo cai; em uma nave espacial, onde o campo gravitacional é diferente, todos os corpos flutuam. Todos esses acontecimentos com aparências diferentes obedecem à mesma lei da gravidade. - O conhecimento científico é generalizador, mas tem os seus procedimentos específicos para definir os padrões e as generalizações. Dessa forma, eventos ou fenômenos que parecem diferentes seguem as mesmas leis, os mesmos critérios, embora as suas aparências ou a forma como afetam os nossos sentidos sejam diferentes. No exemplo de Marilena Chauí, todos os corpos, todos os objetos da natureza, que parecem infinitamente diferentes entre si, são, segundo a química, combinações muito variadas de um número limitado de elementos químicos. - O conhecimento científico se atrai e se surpreende com a regularidade, com a repetição dos fenômenos; diferentemente do senso comum, para o conhecimento científico, os acontecimentos isolados que parecem milagrosos ou extraordinários são na verdade efeitos de causas absolutamente explicáveis pela razão, e obedecem também a leis gerais que podem ser descobertas. Acontecimentos como tsunamis, eclipses, terremotos são acontecimentos que seguem leis físicas. A ciência busca explicar os fatos e os objetos usando explicações racionais e simples que se afastam das explicações mágicas, fantásticas. - O conhecimento científico, dessa forma, ao contrário da interpretação recorrente do senso comum, é totalmente diferente da magia. É por isso que o conhecimento científico opera uma forma de “desencantamento do mundo”: a magia é uma forma de saber que acredita que existem relações ocultas entre os fatos e as coisas, e que através do psiquismo o homem pode entrar em contato com outros seres ou forças superiores capazes de interferir nos fatos e nas coisas, capazes de provocar determinados efeitos; a ciência, por outro lado, acredita que todas as causas e efeitos dos fatos e das coisas são racionais e podem ser explicados racionalmente, e esses conhecimentos podem ser difundidos e transmitidos a todos. - O conhecimento científico busca libertar o homem do medo e da angústia decorrentes das crenças e superstições em relação às causas desconhecidas. - Para finalizar, cito novamente Marilena Chauí: o conhecimento científico “procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo” (p. 275). CATEGORIAS SENSO COMUM Saber Subjetivo (particular e contingente) Julgamento Qualitativo Semelhanças e diferenças Aparência ATITUDE CIENTÍFICA Objetivo (universal e necessário) Quantitativo Estudo metódico, lógico e aprofundado O saber é Individualizador e generalizador Generalizador Regularidade Não se surpreende Se surpreende Acontecimentos isolados Inexplicáveis Absolutamente explicáveis pela razão. Visão da ciência Magia, incompreensível e misterioso. Totalmente diferente da magia. Desconhecido Algo angustiante, buscando em Busca libertar o homem do medo crenças, dogmas e tradições as e da angústia decorrentes das respostas crenças e superstições Preconceito Relações de causa e efeito. Práticas que são frequentemente preconceituosos. Procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas em preconceitos sociais. Por essas características, o conhecimento científico é conquistado através de um processo metódico e sistemático: 1 – Os fatos científicos são construídos pelo trabalho científico, ou seja, não são simplesmente dados da experiência que se revelam para nós de forma espontânea. A ciência exige um trabalho que é formado por um conjunto de atividades técnicas, procedimentos lógicos e experimentais. Toda ciência é baseada em um método que visa garantir o rigor da verdade científica. 2 – A investigação científica parte da separação entre os elementos subjetivos e objetivos do fenômeno estudado. 3 – A ciência estabelece relações entre os fatos que são justificadas por demonstrações lógicas e provas empíricas, que devem garantir a verdade e o rigor das verdades enunciadas e devem servir para prever racionalmente outros fatos que podem ser efeitos dos fatos estudados. 4 – A ciência é capaz de relacionar um fato isolado a um conjunto de fatos através de uma teoria sobre o comportamento dos fenômenos estudados. 5 – A ciência é sistemática porque integra o conjunto de fenômenos estudados a um sistema conceitual que explica e interpreta as relações de causa e efeito, as relações de identidade e diferença entre os objetos que fazem parte de seu campo de estudo. A ciência é, portanto, um saber que é ao mesmo tempo um “método de pensamento e de ação” sobre o mundo. Essa forma de conhecimento separa ou agrupa os fatos e os objetos a partir de um estudo aprofundado, metódico, racional e sistemático de suas estruturas, e não meramente a partir de suas aparências. O método é fundamental para que o cientista controle todos os dados usados para o conhecimento de seu objeto de estudo, onde há um processo de observação, elaboração teórica, experimentação e verificação dos fatos. Desde Aristóteles, a ciência é considerada um conhecimento demonstrativo; ou seja, ela é um conhecimento sobre a realidade das coisas: a realidade física, química, biológica, social, etc. Com as transformações da revolução científica do século XVII, a ciência passa também a ser vista como um conhecimento eficaz, ou seja, um conhecimento que pode ser usado para dominar e transformar o mundo, a natureza, a sociedade. O trabalho científico é baseado em princípios determinados pelo método e pela teoria que se agrupam em um sistema conceitual; esse sistema conceitual é capaz de ordenar os enunciados científicos para descrever, explicar e prever as leis dos fenômenos que são estudados. Bibliografia: Convite à filosofia. Marilena Chauí (2016).