A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO “AS FORÇAS EM LUTA”: SEGREDOS ENTRE NIETZSCHE, BACHELARD E DARDEL SOBRE AS VONTADES DA TERRA DAVID E. MADEIRA DAVIM1 Resumo: Este escrito, enquanto sua principal busca, envereda-se por uma investigação, de cunho epistemológico, sobre específicas influências filosóficas na obra “O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica”, escrita pelo geógrafo francês Éric Dardel. Defendemos que a Geografia existencial de Dardel, recentemente reconhecida como de nítida inspiração heideggeriana, também sofreu fortes influências da fenomenologia da imaginação de Gaston Bachelard. Nosso argumento também sinaliza que o princípio de “forças em luta”, que caracteriza o dinamismo da realidade geográfica de Dardel, advém de noções fundamentais da filosofia de Friedrich W. Nietzsche. Em nosso esforço interpretativo, tal encontro entre Dardel e Nietzsche se estabeleceu, indiretamente, via o conceito de vontade de potência, presente também no dinamismo da imagem poética de Bachelard. Nosso trabalho, portanto, busca elucidar em Dardel o encontro filosófico entre estes autores. Palavras-chave: Geografia dardeliana; fenomenologia da imaginação; vontade de potência Abstract: This written search enters into an epistemological research on specific philosophical influences in the book " Man and Earth: Nature geographic reality " written by French geographer Eric Dardel. We affirm that the Dardel’s existential geography, recently recognized as Heidegger's inspiration, suffered heavily influenced by Bachelard’s phenomenology of imagination. We also point out that the principle of " fighting forces " that characterizes the Dardel’s dynamics of geographic reality, comes from fundamental notions of Nietzsche’s philosophy. In our interpretation of the meeting between Dardel and Nietzsche took place indirectly through the will to power concept, also present in the dynamism of the Bachelard’s poetic image. So our work seeks to elucidate the work of Dardel philosophical encounter between these authors. Key-words: Dardel’s geography; phenomenology of the imagination ; will to power Introdução Testemunhamos na atual cena geográfica brasileira um importante esforço por aprofundar as bases da proposta humanista e fenomenológica. Um dos movimentos centrais desta busca é exercer uma arqueologia dos sentidos e ideias presentes em suas principais fontes. Dentre as referências mais importantes para essa busca, destacamos o célebre trabalho “O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica”, do geógrafo francês Éric Dardel, originalmente publicado em 1952 e tardiamente traduzido para o português, em 2011. Pelo fato de ser um escrito de extrema riqueza e densidade, esta obra capital de Dardel carece de minuciosas escavações sobre as origens e natureza de seus alicerces. Muitas das sementes e evidências, já encontradas na obra em questão, apontam fundamentos compartilhados com inúmeros poetas, geógrafos e filósofos, a exemplo 1 Geógrafo pela FCT-UNESP de Presidente Prudente –SP e mestrando em Geografia pelo Instituto de Geociências da UNICAMP, Campinas-SP. 5329 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO de Hölderlin, Shelley, Heidegger, Merleau-Ponty e Vidal de La Blache. Porém, percebemos que uma destas influencias surgiu em segredo, nos interstícios de “O Homem e a Terra”, sendo este germinar intimamente entrelaçado à uma cosmologia que Dardel não revelou. A semente da qual tratamos refere-se as origens filosóficas da ideia sobre as “forças em luta”, imagem que se faz constante ao longo de toda interpretação dardeliana sobre a natureza da realidade geográfica. A ideia sobre as forças em Dardel, correspondente a uma rítmica da Terra, movimento este responsável pelos fundamentos e transformações no mundo, que coincide com o semear filosófico posto pelo pensador alemão Friedrich W. Nietzsche. Durante a fase de consolidação de seu pensamento, Nietzsche buscou revelar a natureza de um cosmos que pulsa eternamente mediante uma verdadeira guerra de múltiplas vontades de poder, que destroem e reconstroem o ente em sua totalidade. Nesta perspectiva, cada elemento que compõe a realidade é dotado de forças impelidas por outros impulsos e vontade. Em nossa interpretação, esse secreto diálogo filosófico entre Nietzsche e Dardel se deu indiretamente pelas leituras do geógrafo sobre a obra do filósofo francês Gaston Bachelard. Este dedicou, em alguns de seus escritos, reflexões diretas sobre a compreensão de Nietzsche a respeito de temas como: vontade, combate entre as forças, natureza da relação entre realidade e valor e o caráter dinâmico da imaginação material. O nosso trabalho, portanto, tenciona abrir mais um campo de escavação que traga maiores entendimentos sobre as bases filosóficas que germinaram no interior da ciência existencial de “O Homem e a Terra”. Em nossa perspectiva, a filosofia nietzschiana manteve encontros significativos com a Geografia fenomenológica de Dardel. O decifrar de tais enigmáticos encontros abrem possibilidades de novas sendas epistemológicas para tal campo de estudos. A imaginação material e dinâmica da Geografia Dardeliana Um dos pontos iniciais e de grande importância, discutidos neste escrito é a afirmação de que elementos centrais da filosofia, assim como da poética de Bachelard, estão presentes no tratado geográfico e fenomenológico de Dardel. Reconhecemos que tal afirmação não poderia causar surpresa, sobretudo para 5330 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO estudiosos da fenomenologia e que, de alguma forma, já colocaram os textos de Dardel em proximidade com Heidegger e Merleau-Ponty. Porém, mesmo que a relação entre Dardel e Bachelard não soe grande novidade, para Holzer (2011), as aproximações entre os autores carecem de maior interesse e anunciação. Sobre as prováveis intimidades entre Bachelard e Dardel, é possível destacar a apresentação textual, ou seja, o modo como os autores buscam revelar suas ideias por meio da escrita. O uso de imagens poéticas se fez um procedimento comum na estratégia comunicativa dos autores tratados, assim como a confirmação de seus pensamentos via o paralelo com imagens poéticas de outros autores (sobretudo poetas, literatos2 e filósofos). Na lista de escritores citados, tanto pelo geógrafo, quanto pelo filósofo, encontramos o uso mútuo de fragmentos poéticos pertencentes a Hölderlin, Shelley, Novalis, Michelet, Baudelaire, Nietzsche, Rimbaud, entre outros. Uma aproximação via o uso da literatura e de escritores específicos, seria um indício considerável de intimidade entre Dardel e Bachelard. Por outro lado, temos o reconhecimento que, se tratando de fenomenologia, o uso destes recursos artísticos (literários) acaba repercutindo enquanto necessidade, estando muito além da coincidência ou de uma suposta influência peculiar. O que mais nos revela como um forte indício de partilha entre Dardel e Bachelard se faz clarividente no uso de inúmeros procedimentos do que o filósofo denomina, em sua obra, de uma fenomenologia da imaginação, que integra princípios materiais e dinâmicos. Na obra de Dardel, o conhecimento sobre a realidade geográfica não se estabelece, de forma verdadeira e profunda, via a descrição mecânica e quantitativa dos acontecimentos, muito menos via abstração racionalista e causal de um espaço receptáculo. Tal profundidade de saber também não aconteceria via a dissecação empírica e positiva da ciência moderna sobre os objetos do mundo concreto. Para Dardel (2011), a geografia que realmente conhece o mundo é aquela atenta à ambivalência existente entre o real e irreal que fundamenta a relação de cumplicidade e conflito entre homem e Terra. Na compreensão de Dardel (2011), a Terra, além de dimensão concreta da natureza ou corpo físico, é viva (dotada de ânima) e assim se faz base de toda a 2 Principalmente aqueles pertencentes ao romantismo alemão e francês. 5331 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO existência, lugar, (lar) ou o assentamento do Ser. No entendimento do geógrafo, a Terra, além de potência auto-constitutiva, também se estabelece enquanto lugar do advento do sujeito, que lança o homem sobre si mesmo em parentesco espiritual, fusão afetiva e vital com o mundo circundante. Por estes princípios, a geografia dardeliana, aponta que o espaço, ou a realidade Geográfica, em seu fundamento, ocorre em uma relação existencial entre Terra e homem, uma relação à qual o geógrafo elucida pela força imagética do combate, que além de suas consequências materiais, destrutivas e construtivas, também se estabelece no campo dos sentidos, ou seja, na apresentação, decifração e criação imaginativa do valor e da linguagem. Em sua obra Dardel (2011) afirma que a realidade geográfica possui a virtude de dizer (a voz), isto é, uma espécie de vocabulário do qual o homem é capaz de reconhecer, traduzir e até mesmo corresponder. O dizer-da-terra, ou o apelo identificado por Dardel, está na própria materialidade do mundo, na congregação de seus elementos geográficos, que acabam por constituir a dimensão da paisagem, imagem corresponde ao entorno do homem. Por meio dessa forma distinta de comunicação, a Terra, por meio das qualidades que caracterizam sua matéria e dinâmica, evoca o homem para os seus apelos. O resultado desta afetação é o agenciamento do homem para uma luta (o combate Terra-Homem), que a princípio se dá pela construção de sentidos humanos na sua relação com o mundo, mas que se desdobra na ação de construir e habitar sobre a própria realidade geográfica. Em sua fenomenologia da imaginação, Bachelard (1991), compartilha pensamentos muito próximos à geografia existencial de Dardel. Para o filósofo, a matéria, por meio das qualidades expressas em imagens, nos solicita a agir e fazer uso sobre o real, ou, como definiria Dardel (2011), nos faz um apelo ao combate. Características substanciais como a distância, a resistência, a maleabilidade, o dinamismo, a ascensão, entre outras, desafiam, repelem ou encorajam nossas vontades e mãos para o trabalho direto sobre o mundo, para o agir contra e com a Terra. Tanto no filósofo, quanto no geógrafo, as qualidades substanciais e dinâmicas da matéria são subdivididas em grandes grupos, associados aos quatro elementos 5332 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO da substância, a saber: fogo3 (o luminoso), terra (o rochoso ou telúrico), água (o líquido) e ar (o aéreo), assim como na alquimia e na filosofia clássica de cunho aristotélico. Já em Dardel (2011), os quatro elementos nos sinalizam os quatro grandes vocabulários da Terra, o que em Bachelard se revela como as quatro grandes leis da imaginação material e dinâmica. Para Bachelard (1978), a imagem, assim como a palavra, é pensada como algo passível de comunicado, tendo por seus principais movimentos a ressonância e a repercussão. A repercussão é o surgimento ou explosão singular da potência de uma imagem a partir de uma determinada fonte estimulada. A ressonância da imagem é a propagação múltipla de sua força que estimula a repercussão de outra imagem. Este movimento composto por ressonância e repercussão deve ser concebido como um jogo cíclico, complementar e não de forma fragmentária, mas sim, como um jogo de cumplicidades, pois a repercussão surge dos estímulos da ressonância e vice-versa. Na geografia de Dardel (2011), Terra e homem travam um verdadeiro jogo de repercussão e ressonância. Nestas forças em luta, a Terra emite impulsos imagéticos de suas paisagens e, a partir delas, desafia o homem, tanto a senti-las, quanto a desvendá-las. O homem, atento aos apelos da paisagem, se coloca no desafio de instruir-se a partir da compreensão e, por meio de sua vontade, recriá-la (deformá-la), repercutindo assim uma nova (outra) paisagem (imagem). A recriação da imagem pode se consolidar tanto em ação de trabalho (a exploração, o uso e o construir junto à realidade), quanto em ação poética, ou seja, a ideia que nos apresenta o Ser e o seu revelar em palavra, nome e valor. Por outro lado, apesar das semelhanças, Dardel e Bachelard apontam fundamentos diferenciados para aquilo que o filósofo francês reconhece como a primitividade da imagem. Para ambos estudiosos, a matéria-em-si, sem a contribuição imaginativa ou laboral do homem, (que surge no pulsar de sua alma), é apenas peso, matéria descritiva sem sentido, espaço infinito e desumano. Para Dardel (2011), a criação imagética da Terra, (a paisagem), só ganha sentido 3 Ressalva no caso de Dardel (2011) que, apesar de anunciar uma possível divisão da linguagem da Terra em grupos simbolizados pelos quatro elementos, substitui a imagem do fogo pelo espaço construído. 5333 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO geográfico se a mesma, a partir da percepção, sofrer valoração antropogênica4 isto é, se a paisagem real for decifrada e tingida pela irrealidade da recordação, assim como pela coloração afetiva e imaginativa do ser humano. Tal valoração acaba repercutindo como exigência humanista para a geograficidade dardeliana. Na proposta fenomenológica de Dardel (2011), a primitividade da imagem opera na dimensão da experiência sensível5, do vivido (intuitivo), pois a percepção é indispensável à imaginação e ambas trabalham juntas no ato de decifrar a imagem geográfica, assim como na fundamentação de sua respectiva linguagem. Já para Bachelard (1991), a primitividade da imagem é de natureza onírica, pois sua realidade é psíquica e depende mais da imaginação do que da percepção. No metapsíquismo de Bachelard (1991), a imagem, antes mesmo de sua recriação, já encontra o seu arquétipo fundamental em repouso nas profundezas dos sonhos, (as pulsões inconscientes). Estes arquétipos fundamentais se originam na mente de forma misteriosa, mas é compreensível, que muitos de seus elementos precipitem no inconsciente por meio da memória, ou da intersubjetividade. Todavia, Bachelard reconhece que na circunstância do devaneio, antes mesmo do efeito de ressonância da imagem, (seja pela percepção ou pela propagação artística) um correlativo à mesma já se encontra no inconsciente do Ser imaginante (na alma). Porém, a imagem inconsciente não é a mesma encontrada na circunstância sensível, mas a sua correspondência faz com que a imagem inconsciente sofra uma sublimação (ou ascensão) ao consciente. Trazida à consciência pela própria potência de estímulo da imagem exterior, a imagem onírica (interior) do Ser imaginante sofre ganhos táteis e passa a confrontar as imagens percebidas, isto é, iluminadas pela luz externa. Tal confronto, ou luta entre imagens internas e externas, abre a possibilidade para o surgimento de uma nova (ou outra) imagem. Para Bachelard (1978), o que está em jogo no súbito minuto do ato poético não é exatamente a percepção material, pois esta, antes mesmo de repercutir sobre as potencialidades racionais do espírito (intelecto), ou mesmo sobre a capacidade empírica ou sensível do corpo, impacta, com grande intensidade, os impulsos mais 4 Postura coincidente com a fenomenologia de Heidegger. Ao contrário do empirismo positivo da ciência moderna, a percepção em Dardel (2011) vai além da supremacia da visão, reconhecendo o valor significativo dos cheiros, gostos, sons e percepções táteis, o que possibilita à totalidade dos sentidos uma maior importância investigativa. 5 5334 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO profundos da alma. Sendo assim, a imagem poética escapa das causalidades lógicas ou mesmo sensíveis, sendo sempre uma criação circunstancial, única e inédita (jovial). É neste sentido que Bachelard (1978) afirma, em “A poética do espaço”, que a imagem poética é livre em sua essência, não possuindo passado, ou histórico de causalidades. Mesmo sem corresponder a primitividade imagética de Bachelard, Dardel (2011) compartilha com o filósofo a compreensão sobre o livre vir-a-ser da imagem poética. O geógrafo atribuiu à paisagem o potencial de constante desdobramento e arrojo, um impulso para o novo, um horizonte de possibilidades à intervenção do homem. O habitar humano sobre o lugar, assim como seu combate pela vida, junto e contra a Terra, faz da paisagem uma dimensão para além do contemplar. Por isso, tanto em Dardel, quanto em Bachelard (1990), o vir-a-ser da paisagem e da imagem poética se configuram como a inquietude e o descontentamento do homem junto ao Ser. Sendo assim, o horizonte da imagem-paisagem se configura, mutuamente nos autores, enquanto alhures, o Ser-noutro-lugar, o Ser-mais, o movimento criativo para o além-do-Ser, o Ser que se faz outro e eternamente novo. Vontade de potência enquanto a força motriz do cosmos imaginário Como o já explorado, a luta entre homem e Terra, presente tanto na Filosofia de Bachelard como na geografia de Dardel, ocorre, basicamente, em duas dimensões, a da experiência vivida e da imaginação. Assim como no jogo de ressonância e repercução, as tais dimensões não podem ser concebidas segregadamente, já que sua comunhão resulta na condição de mútua existência entre Terra e homem. A ação humana contra e sobre a Terra só é possível devido às impulsões da imaginação, sendo que a última necessita dos estímulos do vivido para se renovar em um eterno vir-a-ser-mais. Tanto a luta na dimensão do vivido, quanto a dialética no reino da imaginação são fenômenos animados ou dinamizados por uma troca de caráter quântico, um campo energético, constituído por forças ambivalentes, que ao mesmo tempo se comungam, se resistem e se contradizem. Em nossa interpretação, o animismo que promove a luta de imagem com imagem, imagem com matéria e matéria com matéria, presentes nas propostas de 5335 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Dardel e Bachelard, está intimamente anunciado pelo uso do termo vontade. Para Bachelard (1991), a vontade é o impulso que mobiliza a substância, alimenta sua dinâmica correspondente, ilumina e comunica os sentidos e as imagens associadas à dimensão do real. A vontade, enquanto a vibração que dá vida ao animismo dialético da imagem, também se fez o motor para o jogo de luz e sombra6 e para o ímpeto do habitar presente na geografia existencial de Dardel. A clarividência do papel da vontade nas fenomenologias cosmológicas dos dois autores explorados, não se apresenta enquanto imposição interpretativa. A presença da vontade em Dardel e Bachelard é uma constatação elementar, todavia, a sua origem não expressa clara nitidez, o que faz de tal empreendimento investigativo um esforço de desencobrimento. Na trajetória da Filosofia, a vontade surge, enquanto tema, a partir de variadas fontes. Para Aráujo (2003), ela principia nos movimento arcaicos (pré-socráticos), ganha peso nas lições de Aristóteles e retorna, com muita potência e arrojo, na Filosofia do século XVIII, destaque para a escola romântica e a filosofia da natureza. Na obra de Bachelard é possível sinalizar três sendas fundamentais para o acolhimento da vontade. A primeira e mais visível delas, está em sua inspiração poética e filosófica nos movimentos românticos das literaturas alemã e francesa. Segundo Araújo (2003), poetas e pensadores desta cena criativa traziam em suas imagens filosóficas e literárias a potência representativa da vontade em Goethe, vontade esta que tinha na forma e em sua contemplação, a apreensão quântica da substância. Já a segunda grande referência sobre a vontade em Bachelard (1990) adveio da Filosofia de Arthur Schopenhauer. Para o filósofo francês, a vontade schopenhaueriana não é apenas ação ou emanação quântica da matéria, (como pensado por Goethe), mas a própria coisa-em-si, ou seja, a própria substância em sua essência. Mesmo que a vontade de Schopenhauer corresponda, de forma muito íntima, ao caráter libertário e circunstancial da imaginação bachelardiana, o conceito só corresponde a dimensão concreta, já que o fenômeno da imagem para o filósofo alemão é representação desprendida da substância. Em nosso julgamento, mesmo que Bachelard tenha se inspirado poeticamente nas imagens da emanação estética 6 Imagem que Dardel incorporou da filosofia de Heidegger. 5336 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO da vontade goethiana e da repercussão material da vontade schopenhaueriana, foi na vontade de potência pensada por Nietzsche que o filósofo francês encontrou sua principal influência. Segundo Scarlett Marton (2010), Nietzsche entende o cosmos enquanto uma luta incessante entre múltiplas forças opostas que querem prevalecer em domínio uma sobre as outras, consolidando um movimento que caracteriza a natureza existencial de todo o pensamento nietzschiano. Nesta perspectiva, a vontade, que corriqueiramente é apontada na Tradição como qualidade (virtude) exclusiva do homem, se impõe na filosofia de Nietzsche (2011), enquanto a força fundamental que caracteriza o ente em sua profundidade e totalidade, ideia esta reforçada por Heidegger (2010), em seus escritos sobre os conceitos fundamentais da filosofia nietzschiana. A vontade para Nietzsche está em tudo. Diferentemente de Schopenhauer, Nietzsche (2009, 2011) também sinaliza a vontade de potência enquanto ideia, pois esta advém do corpo, que em embriaguez (estado estético correspondente ao devaneio de Bachelard) é capaz de sentir e pensar (conjuntamente) os estímulos da Terra e os sintomas do corpo. O homem, desperto pelos estímulos da vontade do mundo e atento à potência de sua própria vontade, transforma todo o impulso de vida em arte (ato em sentido grego). A arte para Nietzsche (2005), é o feito da vontade, o grande estilo sinalizado por Heidegger (2010), que tanto se desdobra em um construir material sobre a Terra, quanto em pensamento e valor. O nascimento da vontade humana em Nietzsche (2011), corresponde a gênese da imaginação em Bachelard (1991). O filósofo francês ao afirmar que a imagem surge e é sentida, em primeira instância, na sensibilidade da alma (e não na racionalidade e consciência do espírito) o que aproxima o seu metapsíquismo ao pensar-sentindo nietzschiano. Para Nietzsche (2009), o homem só é verdadeiramente capaz de compreender e agir sobre a realidade mediante o seu retorno (ou fidelidade) à Terra e em afinidade com o corpo. O corpo, para o filósofo alemão, além da matéria que corresponde à dimensão sensível e real do homem, é também sustentação do inconsciente, do instinto e do querer. O corpo para Nietzsche (2011), assim como a alma em Bachelard, é capaz de pensar profundamente e construir imagem (ou a ideia) sem fazer uso do racionalismo 5337 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO convencional. Para os filósofos, corpo e alma se confundem enquanto virtude e razão maior do homem. As proximidades entre Nietzsche e Bachelard, estabelecidas por nós em um âmbito mais abrangente, trata-se na realidade de uma construção interpretativa, porém, ela tomou clareza em nossa exegese devido as identificações pontuais que o próprio Bachelard estabeleceu com a obra célebre do mestre alemão, “Assim falou Zaratustra”. Em o “Ar e os sonhos”, Bachelard (1990), reconhece em Nietzsche o gênio e o poeta ascensional. Segundo o filósofo francês, as imagens que anunciam o pensamento nietzschiano se valem, como em toda grande filosofia, das quatro leis dos elementos da imaginação (Fogo, Terra, Água e Ar). Mas é na imagem aérea, que Nietzsche funda a potência maior de sua poética e pensamento. Na interpretação de Bachelard (1990), terra e água são elementos que prendem (ou fixam), e aprofundam as inclinações poéticas da vontade. O fogo e, mais intensamente, o ar são a imagens que favorecem o dinamismo e a liberdade de querer, pensar e agir que qualificam verdadeiramente o corpus nietzschiano. Para Bachelard, em Nietzsche o ar (superior ao fogo) é a substância mais autônoma e que mais se desvencilha da substancia. O Ar é o fundamento da arte imaginativa, pois em sua dimensão, tal elemento desconhece limites, interpenetra todos os espaços e convida sempre ao voo criativo (a ascensão). Bachelard nomeou a poética filosófica de Nietzsche de psiquismo ascensional principalmente por encontrar intimidade entre a imagem do voo e propósito de alémdo-homem (ou super-homem), tão central na proposta nietzschiana. Mesmo que a imagem aérea tenha oficialmente sinalizado uma aproximação particular entre Nietzsche e Bachelard, em nossa visão, ela evidencia um potência central na filosofia dos dois autores, à saber: o princípio dinâmico e transformador da valoração. Em Bachelard, a força que emana e põe em conflito imagem e substância em busca do alhures (o outro lugar), do ser-mais e da juventude eterna da imagem, é íntima a perspectiva cósmica de Nietzsche (2011). Como frisado por Marton (2011), a cosmologia nietzschiana esta fundamentada na luta entre múltiplas vontades de potências que eternamente buscam um vir-a-ser-mais-forte, caminho para que a vontade humana se revele como jovialidade (ciência que busca sempre conhecer o novo) ato valorativo e renovado sobre o mundo. 5338 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Conclusão: vontade de potência enquanto segredo entre Nietzsche, Bachelard e Dardel Em suas reveladas leituras à Bachelard, Dardel (2011) reafirma e reconhece em Nietzsche o poder de seu psiquismo ascensional. Por outro lado, o geógrafo, explorando a determinação aérea de Bachelard sobre Nietzsche, também foi capaz de trazer as imagens aéreas da montanha, para uma intimidade paralela com o espaço telúrico. Para Dardel (2011), a montanha em Nietzsche (a morada e refúgio de Zaratustra) representa o cerne do que Bachelard (1990) define por filosofia vertical, pois ela funde altura e abismo, luz e sombra, céu e terra em uma mesma dinâmica. Um movimento de subida dolorosa e desafiadora mas que também anuncia a ascensão do homem junto à luz, à clareira (ou o clarão) que revela o sentido de existência junto a Terra e os caminhos para a superação. Heidegger (2010), também iluminou uma imagem muito aproximada à dinâmica vertical sobre a montanha de Zaratustra. Para o autor de “Ser e Tempo” a montanha de Nietzsche faz alusão ao peso mais pesado de sua filosofia, o pensamento do eterno retorno do mesmo. Para Heidegger, ao subir a montanha o homem, na altura em que se encontra, se abre a angustia de sua circunstância. Ao olhar para baixo, aquele que desafia o rochedo vislumbra o passado, assim como o risco de perecimento diante da profundeza do abismo. Ao olhar para cima, o mesmo encontra a iluminação a revelação do pico, o horizonte aberto para a superação e o futuro, o cimo onde repousa a palavra e o desvelamento do Ser. É preciso reconhecer que em “O Homem e a Terra”, Dardel faz um depreciado juízo de valor sobre a poesia filosófica de Nietzsche, definindo-a como fria, dura e cruel, caráter que o geógrafo acredita ser o espelho moral do próprio autor. No entanto, é inegável que o pensamento poético de Nietzsche corresponda, em primeiro lugar e de maneira mais direta, ao conjunto de imagens que anunciam algumas das qualidade centrais dos espaços aéreos e telúricos da geograficidade de Dardel. Além disso, mediante sua forte e já explorada influência na fenomenologia da imaginação (de Bachelard), Dardel acabou absorvendo, de maneira não revelada, (indiretamente como se fosse um segredo) elementos fundamentais do 5339 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO conceito de vontade de potência. Cabe aqui retomar que a filosofia de Nietzsche, enquanto referida fonte inspiradora sobre o reconhecimento da vontade como a força que anima e potencializa o dinamismo da imaginação em Bachelard, também pode ser entendida em Dardel como o estímulo ou quantum que dá vida as forças em luta sobre a Terra, duelo que se desdobra no jogo de encobrimento e desvelamento do Ser-no-mundo, isto é na relação existencial entre Terra e homem. BIBLIOGRAFIA ARAUJO, Frederico G. Bandeira de. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. BACHELARD, Gaston. 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