Concepções de linguagem e ensino gramatical. Alba Maria Perfeito – UEL 0 INTRODUÇÃO As concepções de linguagem, relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, têm sido abordadas, embora de forma sucinta, por diversos autores. Nesse sentido, ao discutir uma alternativa de ação para a crise de ensino instalada no país, desde há 30 anos, particularmente a de Língua Portuguesa, Geraldi (1984) propõe uma questão prévia a respeito do processo de ensino-aprendizagem. “Para que ensinamos o que ensinamos? e sua correlata para que as crianças aprendem o que aprendem”. (op. cit. p. 42). Conforme o autor e outros estudiosos da área, no caso específico do ensino da língua materna, a possível resposta envolve a articulação metodológica entre uma concepção de linguagem e sua correlação com a postura educacional. Atendo-se a considerar o aspecto relativo à concepção de linguagem, propõe, basicamente, três modos de concebê-la: como expressão do pensamento; como instrumento de comunicação e como forma de interação. Consideramos, tal como os autor, que a discussão deste tema é de fundamental importância nos cursos de formação de professores que ministram Língua Portuguesa. Desse modo, o enfoque do artigo em tela é discutir as concepções de linguagem, as teorias que lhe são subjacentes, confrontando-as com a prática dos professores, em termos de ensino gramatical. Faz parte do Projeto de Pesquisa "Escrita e ensino gramatical: um novo olhar para um velho problema", constituído por professores, alunos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em conjunto com a Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Universidade do Norte do Paraná (UNOPAR). O Projeto, em andamento, em Língüística Aplicada, de cunho processual e etnográfico, busca diagnosticar, através da gravação em 20 horas-aula consecutivas, em salas de 4ªs e 8ªs séries, e intervir, nas escolas-alvo, na abordagem gramatical contextualizada. 0 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 2 Em virtude do exposto, nesse item discutiremos as concepções de linguagem, as teorias subjacentes a estas visões e sua relação com o ensino da gramática. 0.1 A linguagem como expressão de pensamento A concepção de linguagem como expressão de pensamento é um princípio sustentado pela tradição gramatical grega, passando pelos latinos, pela Idade Média e Moderna e, teoricamente, só rompida no início do século XX, de forma efetiva, por Saussure (1969). Dessa forma, preconiza que a expressão é produzida no interior da mente dos indivíduos. E da capacidade de o homem organizar a lógica do pensamento dependerá a exteriorização do mesmo (do pensamento), por meio de linguagem articulada e organizada. Assim, a linguagem é considerada a “tradução” do pensamento. Essa concepção, portanto, fundamenta os estudos tradicionais de língua. Parte, então, da hipótese de que a natureza da linguagem é racional, por entender que os homens pensam conforme regras universais (de classificação, divisão, segmentação do universo). Sob o enfoque em tela, segundo Leroy (1971), a Gramática Geral e Racional (ou Razoada) de Port Royal (1660), de Arnaud e Lancelot acaba consolidando o princípio gramatical dos alexandrinos (séculos II e I a.C.). Port Royal, no entanto, embora retome a visão greco-alexandrina, estabelece princípios não diretamente ligados à descrição de uma língua particular, e sim, de princípios universais, ao construir, de acordo com a lógica cartesiana, “uma espécie de esquema de linguagem, ao qual, de bom ou mal grado, as múltiplas aparências da língua real devem se submeter” (LEROY, op. cit. p. 27). Ou seja, deixa de considerar a heterogeneidade lingüística, as variações determinadas pelas diferentes situações de uso. Essa concepção de linguagem permeou o ensino de língua materna no Brasil e foi mantida, praticamente inconteste, até o final da década de 60, embora tenha repercussões, mesmo atualmente, no ensino em questão. A seguir, detalharemos os vínculos estabelecidos entre a concepção de linguagem como expressão de pensamento e o ensino gramatical. 3 0.1.1 Gramática Se há princípios gerais e racionais a serem seguidos, para a organização do pensamento e, nesse sentido, da linguagem, passa-se a exigir clareza e precisão dos falantes, pois as regras “a serem seguidas” são as normas do “ bem falar e do bem escrever”. Assim, o ensino de língua enfatiza a gramática teórico-normativa: conceituar, classificar, para, sobretudo, entender e seguir as prescrições – em relação à concordância, à regência, à acentuação, à pontuação, ao uso ortográfico. O eixo da progressão curricular e dos manuais didáticos são os itens gramaticais. Tal ensino, como dissemos, enfatizado até os anos 60, no Brasil, apesar de o surgimento de inovações teóricas lingüísticas e educacionais, apresenta-se, ainda, prática acentuada nas escolas de ensino fundamental e médio. Por conseguinte, quase sempre desvinculado das atividades de leitura e produção textual. 1.2 A linguagem como instrumento de comunicação Na linguagem como instrumento de comunicação, a língua é vista, ahistoricamente, como um código, capaz de transmitir uma mensagem de um emissor um receptor, isolada de sua utilização. Para maior compreensão do exposto, apresentamos um breve resgate teórico necessário. A grande ruptura à concepção de linguagem como expressão do pensamento é observada em Saussure (1969), em publicação do início do século XX, conforme já explicitado. Estabelecendo a célebre dicotomia “Langue/Parole” (grosso modo, Língua/Fala), elege a “Langue” como objeto de estudo.. Em oposição à “Parole”, manifestação individual concreta dos falantes, sujeita a variações, a “Langue” é conceituada como um sistema de signos (um conjunto de unidades que estão organizadas, formando um todo), de caráter social, homogêneo, abstrato, internalizados na mente do falante. A Langue “paira” sobre o falante, que a incorpora, utilizando-a em situações reais e diversificadas de uso. Caudatários de Saussure (op.cit.) atribuíram à organização interna da língua (a Langue) o nome de estrutura. Devido a empréstimos da teoria da Comunicação/Informação, a dicotomia saussureana acaba sendo analisada, depois, em 4 termos de código-mensagem, com simplificação excessiva da comunicação lingüística à função informativa. A função essencialmente informativa da linguagem, na visão estruturalista, é revista por Jakobson (1973), ao ampliar o modelo de Karl Bühler, o qual reconhece três funções básicas de linguagem, de acordo com a incidência no emissor (função expressiva/ emotiva); no receptor (função apelativa/conativa) ou no referente/contexto (função referencial/informativa). Jakobson (op. cit.) considera outros fatores intervenientes (funções constitutivas) no ato de comunicação verbal: a mensagem, o canal e o código, classificando as funções, de acordo com o fator que se destaca no ato de comunicação. O estruturalismo, a teoria da comunicação e o estudo das funções da linguagem, sobretudo, serviram de fundamento na produção de um modelo de ensino de Língua Portuguesa, enfatizado a partir da promulgação das Leis de Diretrizes e Bases 5692, de 1971, no Brasil. A Língua Portuguesa, no ensino de 1o grau, passa a integrar, como carro-chefe, a área de Comunicação e Expressão, aí incluídas as disciplinas de Educação Física, Educação Artística e Língua Estrangeira. Integração esta quase inexistente na prática. Nessa ótica, a linguagem, como já posto, é entendida como código. E o estudo da língua, apesar de proposição de inovações, ainda tende ao ensino gramática e embora a leitura e a produção textual comecem a ganhar maior relevância na escola, ao lado dos elementos da teoria da comunicação. Somando-se ao dito, predominava à época, no país, a concepção tecnicista de ensino (período de consolidação da ditadura militar, iniciada em 1964). Na concepção tecnicista de ensino, a visão de reforço é acentuada, pois a aprendizagem é vista como processada pela internalização inconsciente de hábitos (teoria comportamentalista/behaviorista). 1.2.1 Gramática e Elementos da Comunicação Em termos gramaticais, sem o abandono do ensino da gramática tradicional, focaliza-se o estudo dos fatos lingüísticos por intermédio de exercícios estruturais morfossintáticos, na busca da internalização inconsciente de hábitos lingüísticos, próprios da norma “culta” (os exercícios estruturais ou de preenchimento de lacunas). 5 Ressaltamos, ainda, que alguns compêndios, à época, traziam noções com base na teoria da comunicação (conceitos/exercícios sobre o código, a mensagem, o emissor, o receptor etc.). Observamos, inclusive, que livros didáticos do ensino médio acabam abordando superficialmente, ao lado da literatura, da produção de “técnicas de redação” e do ensino teórico gramatical, as “funções da linguagem”. Geralmente, destacam apenas a função predominante do texto, sem evidenciar a possibilidade de entrelaçamento das funções, como numa poesia lírica em que, juntamente à função poética, apresenta-se a emotiva. 1.3 A linguagem como forma de interação Conceber a linguagem como forma de interação significa entendê-la como um trabalho coletivo, portanto em sua natureza sócio-histórica e, então, "como uma ação orientada para uma finalidade específica (...) que se realiza nas práticas sociais existentes, nos diferentes grupos sociais, nos distintos momentos da história". (BRASIL, 1998, p. 20) A linguagem, sob esse enfoque, é o local das relações sociais em que falantes atuam como sujeitos. O diálogo, assim, de forma ampla, é tomado como caracterizador da linguagem. Nessa perspectiva, discurso, gênero e texto, e não mais possibilidades de explicação dos fenômenos básicos da frase passa a ser considerados. Ademais, a questão do sujeito é retomada em várias áreas de estudo. Em termos de estudos lingüísticos, para Travaglia (1996), a concepção de linguagem em pauta recebeu contribuições de várias áreas de estudos mais recentes, que buscaram analisar a linguagem em situação de uso, abrigadas sob um grande rótulo: lingüística da enunciação (a Teoria da Enunciação de Benveniste, a Pragmática, a Semântica Argumentativa, a Análise da Conversação, a Análise do Discurso, a Lingüística Textual, a Sociolingüística, a Enunciação Dialógica de Bakhtin). Disseminadas na década de 80, sedimentam-se na década posterior, as idéias bakhtinianas - em relação ao processo de ensino-aprendizagem de língua materna no país -, ao analisarem a linguagem na perspectiva dialógica, assinalando os gêneros como elementos organizadores do processo discursivo. Conforme a visão dialógica de Bakhtin (1988), é na interação verbal, estabelecida pela língua com o sujeito falante e com os textos anteriores, e posteriores, 6 que a palavra (signo social e ideológico) se torna real e ganha diferentes sentidos conforme o contexto. Para o autor (1992), os modos de dizer de cada indivíduo (a mobilização de recursos lingüístico-expressivos pelo locutor) são realizados a partir das possibilidades oferecidas pela língua e só podem concretizar-se por meio dos gêneros discursivos. Os gêneros discursivos são enunciados relativamente estáveis que circulam nas diferentes áreas de atividade humana, caracterizados pelo(a): - conteúdo temático: "o que é e pode ser dizível nos textos pertencentes a um gênero". (BRASIL, 1998, p.21): - construção composicional: a estrutura (o arranjo interno) de textos pertencentes a um gênero; - estilo: os recursos lingüístico-expressivos do gênero e as marcas enunciativas do produtor do texto. Assim, podemos considerar que, na concepção interativa de linguagem, o discurso, quando produzido, se manifesta por meio de textos e todo o texto se organiza dentro de determinado gênero. Em termos pedagógicos, tomando a linguagem na percepção discursiva, os gêneros discursivos, segundo os PCNs (BRASIL,1998), tornam-se objeto de ensino (responsáveis pela articulação/progressão dos programas curriculares). Embora os gêneros sejam inúmeros e sofram constantes mudanças e hibridizações, uma tarefa difícil é a de categorizá-los. No entanto, constitue-se em trabalho necessário, no processo de transposição didática. Acreditamos que, para o trabalho em sala de aula, em termos de “categorização" seja mais produtiva a proposta de Dolz e Scheneuwly (1996/2004), como eixo de articulação/progressão curricular, já que “A própria diversidade dos gêneros, seu número muito grande, sua impossibilidade de sistematização impede-nos, pois de tomá-los como unidade de base para a progressão” (DOLZ e SCHENEUWLY: 2004, p. 57) Os autores, então, postulam que os gêneros possam ser agrupados, no processo de ensino-aprendizagem, em função de regularidades. Propõem, desse modo, os agrupamentos dos gêneros em ordens, a partir do domínio social (áreas de atividade humana em que circulam); tipologia (estrutura, construção composicional) e capacidades de linguagem (estilo): do narrar; do relatar; do argumentar; do expor e do prescrever. 7 Nessa ótica, o gênero é tomado como objeto de ensino de língua e o texto, como unidade de significação e de ensino: elemento integrador, sem artificialidade, das práticas de leitura, análise lingüística e de produção/refacção textual. Sob o enfoque em tela, discutiremos, especificamente, a abordagem de análise lingüística do ensino gramatical. 1.3 Análise lingüística Compreendemos por análise lingüística o processo reflexivo (epilingüístico) dos sujeitos-aprendizes, em relação à movimentação de recursos textuais, lexicais e gramaticais, no que tange ao contexto de produção e aos gêneros discursivos, veiculados, no processo de leitura, de construção e de reescrita textuais (mediado pelo professor). Em decorrência, sugerimos que, contextualizadamente, possa ser levada a efeito em dois momentos, particularmente: - na mobilização dos recursos lingüístico-expressivos, propiciando a coprodução de sentidos, no processo de leitura, tendo em vista o(s) gênero(s) discursivo(s) em que os textos são apresentados. - no momento da reescrita textual, local de análise da produção de sentidos; de "aplicação" de elementos, referentes ao arranjo composicional, às marcas lingüísticas (do gênero) e enunciativas (do sujeito-autor), de acordo com o gênero(s) selecionado(s) e com o contexto de produção, na elaboração do texto. E, desse modo, oportunizar a maior abordagem de aspectos formais e da coerência (progressão retomada, relação de sentidos e não-contradição), sempre de acordo com a situação de comunicação, socialmente produzida. 1 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Os excertos retirados do "corpus", em quatro escolas da rede pública, duas quartas séries e duas oitavas séries, já diagnosticados (em dissertações e monografia) e em fase de intervenção, são reveladores da(s) "concepção(ões) de linguagem dos professores, ou do livro didático/apostilas dos quais são seguidores. Cabe ressaltar a boa vontade e 8 presteza com que os docentes em pauta engajaram-se na pesquisa, buscando "aprimorar" sua formação, sobretudo referente ao ensino gramatical. Uma professora de 4ª série, escola municipal, licenciada em Educação Física, utilizando uma apostila "didatizada", revela em sua prática a visão descontextualizada, tradicional do ensino gramatical, e ainda, aborda conceitos equivocados. Exemplo 1: P: isso ... por que ( ) que é diminutivo ... às vezes a gente acha que tudo que é pequenininho termina com INHO ou com INHA não é? AA: é ... ( ) P: ( ) quando é aumentativo termina em ÃO AA: ( ) P: genTE .... vamos ver alguns exemplos que às vezes a gente acha que tá errado ... tá? A1: certo ... A2: ( ) isso aqui é verbo? P: olha lá eu vou ler ... o da fala normal e vocês vão ler o diminutivo ... tá bom? [ ] P: anel AA: anelzinho P: árvore AA: arvorezinha P: barca AA: ( ) ((uma parte diz barbinha e outra, barbicha)) ((em seguida, risos e um comentário incompreensível da professora)) [...] a1: ( ) tia agora vamos ( )? P: não .... ( ) que vocês falem o aumentativo ((alguns alunos reclamam)) P: olha lá ... (gato) AA: gato P: anel AA: anelão [...] P: nariz AA: marigão P: não é narizão ... é narigão... ((risos)) P: ( ) não é narizudo não ... ((riscos)) (Cheron, 2004, p. 46, 47) A autora da dissertação, que focalizou o trabalho da professora (op. cit. p. 47) assim analisa estes dados: "Com relação aos trechos negritados, percebemos, num primeiro momento, que a professora parece crer que nem tudo que termina em inho ou inha refere-se a diminutivo, pois ela diz: às vezes a gente acha que tudo que é pequenininho termina com INHO ou com INHA não é? Porém, não há maiores explicações a respeito e nenhuma menção, por exemplo, à questão 9 de outras palavras que terminam em inho e não são diminutivos, como é o caso de 'ninho'. Já com relação ao aumentativo, a professora parece crer que tudo que termina em ão refere-se a ele: quando é aumentativo termina em ÃO. Como ficariam, por exemplo, as palavras 'fogão, rojão, mão' nesse contexto? Além do mais, não há referência, por exemplo, aos aspectos de aproximação afetiva ao se usar um diminutivo, como é o caso de mãezinha, paizinho, etc.¸ e nem à função de intensidade pejorativa, como é o caso de tontão, doidão, etc. A questão maior ainda seria: como fica, em meio a isso, o constructo teórico que os alunos, supostamente, estariam formando?" Às vezes, a mesma visão é compartilhada também por docentes, seguidores de apostilas e/ou livros didáticos, professores de 4ª e 8ª séries, que se dizem "interativos". Contudo, oscilam entre uma abordagem tradicional; o uso do texto como pretexto e, às vezes conseguem "contextualizar" algum aspecto gramatical. Vejamos a análise elaborada por Porto (2004) e Nantes (2005): Exemplo 2: "A professora passa uma outra atividade, na qual os alunos colocam vírgulas em frases retiradas do próprio texto. Essa atividade está desvinculada da anterior e do contexto, por isso pode ser caracterizada como um exemplo de ensino tradicional de gramática. Coloque vírgulas nas frases abaixo: a) Vaska o gato malandro continuou comendo o frango b) Gato guloso miserável patife padrão saia já daí c) O cozinheiro mestre em culinária gastou à toa sua oratória d) O cozinheiro fez o assado saiu para beber conversou com o compadre voltou para o restaurante. A princípio, há interação e reflexão sobre o uso da vírgula, quando a aluna comenta uma situação de uso e cita um exemplo. P: só um minutinho ... atenção ... primeiro eu gostaria que vocês fizessem esse aqui ... parem um pouquinho para eu explicar a segunda atividade ... a segunda atividade é colocação de vírgulas ... quando é que a gente pode colocar vírgula em determinadas orações ... em determinadas frases? ... como? ... P: no começo? A: depois que eu chamo uma pessoa ... P: depois que eu chamo uma pessoa ... então em um chamamento ... quando eu chamo alguém ... depois do nome dessa pessoa ... ou se eu falo com essa pessoa eu coloco vírgulas ... você pode dar um exemplo? A: Natália ... venha tomar banho pra jantar ... P: onde cê colocaria vírgula? A: depois de Natália ... Mas, na seqüência, a docente começa a relatar todos os possíveis usos dessa pontuação, restringindo a participação dos alunos no processo de reflexão e análise sobre os recursos da língua, momento em que se, melhor explorado, seria caracterizado pelos enfoques da gramática reflexiva e teórica, conforme postulado por Travaglia (1996). (Porto, op. cit., p. 62-63). 10 Exemplo 3: "Ainda nessa aula (discussão descontextualizada sobre pontuação), ao ler o enunciado desse exercício sobre a vírgula, - Explique o sentido de cada frase, observando a posição ocupada pela vírgula ou a ausência dela - a professora adotou uma postura metodológica, que consideramos relevante: aproveitou o próprio enunciado do exercício para abordar o ensino gramatical, no caso específico se refere à retomada pronominal: P: [...] explique o sentido de cada frase... observando a posição ocupada pela vírgula... ou a ausência dela... quem que é esse dela qui? AA: a vírgula P: auSÊNcia? AA: da vírgula P: da vírgula... então o dela está se referindo à... vírgula... então pra não repetir... foi substituído por um pronome ali... tá? então expliquem a/a posição ocupada pela vírgula ou a ausência... da vírgula... então esse dela é extremamente importante... alguns exercícios que eu vi no banco de itens... do CES ali do centro... não deve ser diferente de lá... pedem pra que faça essa reflexão "olha essa palavra está se referindo a qual palavra na frase anterior" ou às vezes é só uma letra de música mas assim... quem que é esse sua... sua eh::... a quem está se referindo... então sempre que eu me lembrar disso que eu puder eu vou estar fazendo esse exercício com voCÊS... que é pedindo no banco de itens pra que vocês estendam os enunciados também porque isso é fundamental quando eu vou estar fazendo o:: exercício. A: no caso aí é pronome demonstrativo P: é... é... da qual estou falando... "a turma toda... veio assistir à palestra... eu não faltei"... "a turma toda veio assistir à palestra... eu não... faltei"... (Nantes, op. cit., p. 96-97). A prática efetiva, em termos de concepção interativa é realizada, por uma participante do projeto e aluna de Mestrado em Estudos da Linguagem na UEL, em pesquisa-ação, na 8ª série. Ao abordar o gênero "propaganda comercial", busca contextualizar o ensino gramatical. O relato e análise de sua experiência faz a seguir: Exemplo 4: "Das especificidades da linguagem publicitária, verificadas nas propagandas estudadas, ressaltamos o uso do modo verbal imperativo, presentes nos anúncios como indicação de atitudes para promover produtos ou idéias e também atentamos para outras formas lingüísticas com valores de imperativo. P: o imperativo... isso mesmo... se nós formos analisar as propagandas... olharmos os verbos... nós vamos ver que eles estarão quase sempre no imperativo... e que... se eles não estiverem claramente no imperativo... a maneira que foi escrito vai mostrar uma sugestão... um conselho... use determinado produto... vá a determinada loja... quem me daria um exemplo aí de um verbo no imperativo? (Cecílio, 2004, p. 92) Os exercícios estruturais, quando raramente levados a efeito, são aqueles apresentados pela apostila ou livro didático. 11 Em termos de refacção textual, os dados demonstraram que, quando realizados, o são quase sempre higienização textual, limitados aos aspectos formais. A exceção é encontrada no texto de Cecílio (2003), ao analisar sua própria aula de refacção textual. Exemplo 5: "No dia vinte e três de junho, levamos para a sala de aula os textos dos alunos, lidos e feitas as anotações necessárias e relevantes em cada produção. Cabe ressaltar que tais anotações não se restringiram a aspectos negativos, como problemas ortográficos, de ordem sintática e semântica, enfim, problemas de coerência e coesão. Todas as vezes que observamos textos bem organizados, com clareza de idéias, originalidade, tecemos comentários construtivos que podem ter o poder de conduzir o aluno a crer em seu potencial, encorajando-a a buscar mais conhecimentos a fim de aprimorar aquilo que já adquiriu. Antes de devolver-lhes as produções salientamos que faríamos comentários globais, assinalando alguns problemas ocorridos de ordem gramatical, como confusões no uso de mas e mais, tem e têm, linguagem abreviada da Internet, além de problemas de ordem organizacional, como paragrafação e sentidos gerais do texto. Enfatizamos ainda a importância da revisão, visto que muitos alunos não têm o hábito de ler o texto que escrevem, deixando tal função para a professora. Não percebem que o trabalho de revisão podem detectar sentidos diferentes daqueles que realmente querem expressar e não somente "corrigir" problemas de ortografia, concordância e pontuação, o que caracterizaria o trabalho de revisão e/ou reescrita como uma higienização. Com permissão de uma aluna escrevemos no quadro de giz trechos de seu texto para ser reestruturado em sala, juntamente com todos os alunos. A atividade de reescrita foi satisfatória, porque os alunos deram sugestões de como a autora desse texto poderia ter procedido para deixar sua produção mais coerente. Dessa forma, os alunos fizeram reflexões acerca das escolhas utilizadas pela aluna autora e das diferenças de sentidos obtidos com a mudança de palavras e formas lingüísticas. Todavia, tentamos explicitar para os alunos a importância de se respeitar a individualidade do outro, que faz escolhas em diferentes instâncias na construção de seus textos para atingir suas metas. (Cecílio, 2004, p. 83-84). À GUISA DE CONCLUSÃO Cardoso (1999, p. 10) assinala a importância do conhecimento das três concepções de linguagem pelo professor que ministra Língua Portuguesa, por estar convencida "de que a dificuldade que a escola tem de alfabetizar, em garantir o uso eficaz da linguagem em todos os níveis, é decorrente de concepções equivocadas sobre língua, linguagem e ensino". Diríamos, equivocadas ou simplesmente ignoradas. 12 Nesta perspectiva, buscamos, de forma sucinta, demonstrar a importância e a necessidade do conhecimento do aspecto teórico posto, relacionando-o à abordagem do ensino gramatical. Em decorrência, objetivamos, ainda, com artigo, trazer elementos da "realidade", sobretudo com o intuito de "caminhar" no processo de visualização do professor como sujeito de seu papel produtivo, no espaço dialógico escolar, via trabalho mediador entre os alunos e objeto de aprendizagem: o ensino gramatical, no caso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4a. ed. Trad. de M. Lahud e Y.W. Pereira. São Paulo: Hucitec, 1988. _________. Estética da criação verbal. Trad. de M. M. E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa: terceiro e quarto ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998. CARDOSO, S.B.C. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. CECÍLIO, S.R. Investigando a própria ação: um estudo sobre o ensino de gramática na 8ª série. Dissertação de Mestrado. Londrina: Programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem/Universidade Estadual de Londrina, 2004. CHERON, M.N. Lingüística Aplicada e o ensino de gramática em língua materna: o processo de diagnóstico em uma 4ª série. Dissertação de Mestrado. Londrina: Programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem/Universidade Estadual de Londrina, 2004. DOLZ, B.; SCHENEWLY, D. Genres et progression en expression orale et écrite: eléments de réflexion à propos d'une expérience romande. Genebra, Suíça: Enjeux, p. 31-39: Trad. de Roxane Rojo (mimeo.). 13 DOLZ, B.; SCHNEUWLY B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita: elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). Gêneros do oral e do escrito na escola. Trad. e org.de Rojo, R. e Cordeiro, G. L.. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 41-70. GERALDI, J.W. O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1984. JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. 6a ed. São Paulo: Cultrix,1973. JESUS de, C.A. Reescrevendo o texto: a higienização da escrita. In: Ensinar e aprender com textos de alunos. Geraldi, J.W. e Citelli, B. (orgs.). São Paulo: Cortez, 1997. p. 99-117 LEROY, M. As grandes correntes da lingüística moderna. Trad. de I. Blikstein; J.P. Paes e F.P. de Barros. 5ed. São Paulo: Cultrix, 1971. NANTES, E.A.S. Uma reflexão sobre ensino de gramática em língua materna, a luz dos pressupostos teóricos da lingüística aplicada. Dissertação de Metrado. Londrina: Programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem/Universidade Estadual de Londrina, 2005. PORTO, I.M.N. Gramática e ensino de português: no contexto da Lingüística Aplicada e da sala de aula. Monografia. Londrina: Especialização em Língua Portuguesa/Universidade Estadual de Londrina, 2004. SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. Trad. de A. Chelini; J.P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1969. TRAVAGLIA, L.C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.