GT 2 MARXISMO E CIÊNCIAS HUMANAS A HETERODOXIA NO PENSAMENTO ECONÔMICO DE ERNESTO CHE GUEVARA Amílcar Baiardi1 Janúzia Mendes 2 O TEMA DA COMUNICAÇÃO O presente trabalho tenta explorar a diversidade e a flexibilidade do pensamento econômico de Ernesto Guevara de la Serna, tornado público quando ele esteve à frente do Ministério da Indústria e do Banco Nacional de Cuba, exercitando funções de coordenador do planejamento e do financiamento do desenvolvimento industrial, no período de 1959 a 1965. Os escritos econômicos de Che Guevara não eram absolutamente aderentes àquilo que se poderia definir de pensamento econômico marxista oficial da época, uma espécie de mainstream nos países socialistas que integravam o Komecon, e expresso nos manuais de economia política da Academia de Ciências ou de universidades da URSS. O fato da vertente do pensamento econômico marxista que orientava as políticas econômicas dos países socialistas não ter oferecido na ocasião respostas satisfatórias, nem teóricas e nem práticas, para os inúmeros problemas relacionados com a construção do socialismo em Cuba, obrigou Che Guevara a recorrer a outras fontes de inspiração para suas propostas, estivessem elas no campo da economia marxista, fora dele, ou se constituísse no primeiro caso, posições consideradas renegadas ou utópicas. Na realidade, em que pese a grande dependência econômica que Cuba tinha em relação ao bloco econômico dos países socialistas, o Komecon3, Che Guevara sempre teve resistências a aceitar como modelo para a economia cubana o planejamento absolutamente centralizado e a sobrevivência, na regulação da economia, das denominadas “leis de ferro” do mercado. Segundo Bettelheim e Mandel (1972), Che Guevara entendia que a gestão coletiva e descentralizada da atividade econômica poderia acontecer em uma economia socialista, desde que fosse conduzida por trabalhadores e supervisionada por conselhos de fábricas, evitando assim que se cometessem excessos nas retribuições materiais. Para Che, menos que o controle burocrático do Partido para coibir estas retribuições, deveria prevalecer a consciência política no estabelecer os limites das mesmas, indispensáveis quando as unidades de produção se organizam por setores, exercitam relações inter-setoriais e têm necessidade de ser impulsionadas pelas forças produtivas que dependem da introdução do 1 Professor Titular da Universidade Federal da Bahia. Endereço postal: Av. Paulo VI, 2272, aptº 904, CEP 41810-001, Salvador BA. E-mail: [email protected] e [email protected] 2 Economista, Mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal da Bahia e Coordenadora de Agronegócios da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, SECTI. E-mail: [email protected] 3 Sigla no idioma russo do Conselho de Ajuda Mútua Econômica, também conhecido como CAME ou Council for Mutual Economic Assistance, CMEA. 2 progresso técnico, do controle de custos, etc. A visão de Guevara se aproximava do entendimento que tiveram Rosa Luxemburgo e Bujarin quanto ao funcionamento da economia socialista e o fim da economia política (apud Bettelheim, 1972) e teve fortes opositores internos. Carlos Rafael Rodriguez, então Presidente do Instituto Nacional de Reforma Agrária, e Marcelo Fernandez, que substituiu Che Guevara no Banco Nacional, se alinhavam com o modelo de planejamento e gestão econômica praticado nos países socialistas (James, 1969). Che também discordou da assessoria econômica externa ao governo cubano por parte de René Dumont e de Charles Bettelheim. Com relação ao primeiro a discordância maior se dava quanto ao ritmo de nacionalização da economia e de industrialização visando a substituição de importações. Quanto ao segundo, as divergências se verificavam em vários outros temas (James, 1969 e Retamar, 1969). Começavam com a tese de Bettelheim de que a economia cubana apresentava uma correlação inadequada entre forças produtivas e relações de produção e terminavam com a não aceitação por parte do Che de que a União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS, não mais seria um Estado socialista, mas sim revisionista, (Bettelhein, 1971). Para Guevara, por outro lado, a autonomia da gestão produtiva não se reduziria na fase de transição para o socialismo à produção familiar ou camponesa na agricultura, conforme defendia Lênin (Trapeznikov, 1979), mas poderia se aplicar à indústria de bens de consumo de setores não estratégicos. Por meio desta autonomia se alcançaria uma eficiência não inferior à programação centralizada dos países do Komecon, que teve como determinante maior a decisão política de dotar, em curto prazo, a URSS de infraestrutura e indústrias de base que recuperassem a desvantagem em relação aos países industrializados de economia de mercado. 2) A HETORODOXIA DO PENSAMENTO DE GUEVARA 2.1) O Planejamento no Socialismo A idéia do planejamento não tem uma vinculação de gênese com o pensamento marxista. Planejamento macroeconômico é função de Estado e esta temática não foi tratada por Marx, embora constasse de seu plano de estudos apresentado em ‘Para a Critica da Economia Política’ (Marx, 1982). O planejamento vincula-se à economia marxista somente em 1920 quando houve necessidade de definir como passar no processo de solução dos problemas econômicos pela superação das “leis econômicas naturais”. Nesta ocasião, Trotsky propôs a opção da direção planificada da economia, por meio da utilização de métodos empregados no exército. Assim, constitui-se a Comissão do Plano do Estado, GOSPLAN e a edificação de uma economia monetária planificada se deu por meio da Nova Política Econômica, a NEP que permitiu um balanço da economia nacional por meio da qual Leontieff construiu sua primeira exposição sobre as trocas inter-setoriais. Graças a NEP, em 1924 já se tinha obtido níveis de produção na agricultura e na indústria aproximados do período prérevolucionário (Denis, 1974). Durante o período stalinista o planejamento se consolidou e foi a grande arma para industrializar o país e permitir a vitória sobre o Nazi-fascismo e as demais conquistas do 3 socialismo. O sucesso do modelo rígido de planejamento centralizado de gestão econômica deveu-se, em grande medida, aos conhecimentos matriciais com inspiração em Leontieff (Leontieff W., 1970) e aos conhecimentos de programação matemática que foram, posteriormente, consolidados na obra de Oskar Lange (1971). A planificação continuou se expandindo na URSS como método de intervenção e passou a ser o meio pelo qual se esperava conduzir o desenvolvimento harmônico e proporcional da economia. Foram concebidos e implantados três planos qüinqüenais, planos de menor duração com o propósito de ampliar a capacidade produtiva no leste do país e reconstruir a economia das zonas liberadas da ocupação alemã e após a Segunda Guerra Mundial, concebeu-se o “Plano de Restabelecimento e Desenvolvimento da Economia Nacional para 1946-1950”, o qual se tornou modelo para todos os países do Leste Europeu. Para que o planejamento fosse eficaz criou-se um sistema nacional de indicadores (Sorokin, 19.., s/d). Che Guevara reconhecia a importância do planejamento conduzido na URSS e no Komecon e concordava com o papel do mesmo na sociedade socialista. Entretanto, defendia que o planejamento centralizado deveria englobar ramos chaves responsáveis pela dinâmica da economia (Guevara, 1972e). Sugeria que poderia haver experiências descentralizadas de gestão econômica para atender as necessidades de consumo. Esta idéia de Che Guevara coincidia com o que acontecia nos países socialistas que não integravam o Pacto de Varsóvia como a Iugoslávia, o que foi também proposto por Lange em um dos seus últimos trabalhos (Lange,1972). Era a idéia que a economia conduzida pelo Estado poderia ser eficiente, mas não mais eficiente que a economia conduzida pelo mercado para solucionar problemas microeconômicos e de consumo no varejo.Guevara discordava do planejamento como “uma camisa de força”. Esta mesma visão foi estimulada durante a Perestroika, ver Aganbegyan (1990). Para o Che uma economia planificada democraticamente não seria obra de tecnocratas e especialistas isolados das massas, mas sim resultado de uma crescente participação popular expressa na batalha das idéias e na luta para recriar cotidianamente a hegemonia socialista em todo o ordenamento social. Segundo Tablada (1987) socialismo para o Che representava um projeto histórico de uma nova sociedade que incluía valores como solidariedade, coletivismo, altruísmo revolucionário, livre discussão e participação das massas. 2.2) O Financiamento do Investimento Produtivo e o Custeio da Produção Para Che Guevara, o “Sistema Presupuestario de Financiamiento (SPF)” -, responsável pela alocação de recursos para ampliação e manutenção da capacidade produtiva na economia, deveria ser parte de uma concepção geral de desenvolvimento e de construção do socialismo. Para tanto, o mesmo deveria combinar medidas de centralização com medidas de auto-gestão. O financiamento e as retiradas bancárias com o propósito de investimento deveriam se dar de forma descentralizada, por unidade produtiva ou por setor, e as transferências de recursos para o sistema financeiro nacional, decorrentes dos resultados destas empresas, deveriam estar centralizadas, isto é, sob o controle do Estado. Isto permitiria ao Estado desvincular as receitas das unidades produtivas e das empresas mais eficientes dos investimentos no próprio setor, o que se não feito levaria a uma 4 acumulação que iria priorizar aqueles ramos da economia mais dinâmicos, gerando desequilíbrios (Guevara, 1972a). Com esta combinação seria possível transmitir o dinamismo de uns setores para outros, de unidades de produção para unidades de produção e de empresas (grupos de unidades de produção que produzem os mesmos bens) para empresas. Che Guevara negava a importância do Banco Nacional como elemento estratégico no financiamento à produção. Para ele o Banco Nacional deveria ter meramente a função de regulação monetária e jamais ser a maior autoridade monetária do país, função que deveria estar à cargo do ministro da fazenda. O banco deveria ser meramente uma caixa contábil, provendo as empresas da quantidade de dinheiro fixada no Sistema Orçamentário (Guevara, 1972a e 1972d). Nas relações inter-unidades produtivas os fluxos de produtos e de serviços não deveriam, ser considerados meros fluxos de mercadorias. Os produtos e serviços só deveriam ser considerados mercadorias quando destinados ao consumo de famílias ou de pequenas empresas que não participassem do sistema centralizado de planejamento. O SPF assim concebido permitiria que sua avaliação não se reduzisse a uma questão unicamente quantitativa, referida à acumulação de bens produzidos pelas empresas, mas que incorporasse a dimensão qualitativa.. Por isto incluiu em seu escrito sobe o SPF, itens sobre o sistema de preços, a lei de valor e as recompensas materiais (Guevara, 1972b). As idéias de Che Guevara no concernente às relações produtivas intra e extra unidades de produção e no concernente ao SPF aproximam-se de uma combinação de fragmentos das idéias Fourier, Owen, Saint-Simon e certamente Marx, a respeito da cooperação espontânea e solidária entre os agentes produtivos (Denis,1974). Este tipo de visão não era a adotada no âmbito do bloco de países do Komecon. O pragmatismo e os resultados imediatos pretendidos pelas lideranças encarregadas do planejamento nestas economias levavam, de acordo com Zavialkov (1982), a que as relações intra e extra unidades de produção nos países do Bloco Socialista se dessem com base em preços formados de acordo com a as leis da produção mercantil socialista. 2.3) A Gestão da Produção Che Guevara se negava a abordar as relações sociais, inclusive as relações de produção, prescindindo da subjetividade. Aquilo que do ponto de vista da economia neoclássica seria uma complexificação desnecessária que terminaria por obscurecer e obstaculizar a cientificidade do conhecimento econômico, para Guevara seria uma necessária inclusão, uma vez que a esfera da ideologia, dos valores da cultura, da subjetividade enfim, tem um peso decisivo na conduta dos agentes produtivos. Um dos problemas que mais preocuparam Che Guevara nos primeiros anos da década de sessenta era o dos altos preços alcançados pelos bens de consumo duráveis e não duráveis, em decorrência da escassez provocada pela incapacidade da economia cubana dar respostas em termos de uma oferta sustentada e em decorrência do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos. Embora Che Guevara considerasse que o racionamento impediria que os preços se elevassem demasiadamente, não deixou de admitir que o problema do des- 5 abastecimento era grave, constituindo-se em uma ameaça para a coesão social, para a estabilidade política e, no plano econômico, para que se evoluísse no sentido de aproximar o valor do preço das mercadorias (Guevara, 1972a). Empenhava-se Guevara por evitar que em Cuba ocorresse que a planificação socialista se reduzisse a uma construção de indicadores econômicos e um guia de investimentos que em grande parte dos casos demonstraram eficiência alocativa e produtiva, mas que permitiram que nas relações entre as empresas prevalecesse um jogo mais ou menos livre de fixação dos preços. Este jogo terminava por beneficiar os setores mais dinâmicos que obtinham comparativamente maior produtividade nos processos produtivos e melhor qualidade na produção de bens. Pretendia Che que nas trocas entre as unidades produtivas se estabelecesse que os preços de remuneração fossem justos e não determinados livremente pelo mercado. Guevara também defendia que os preços internos não fossem influenciados pelos preços externos uma vez que os primeiros concerniriam à esfera socialista (Guevara, 1972a). Guevara identificava uma série de fatores que influenciaram os preços internacionais e que não atuariam sobre os preços do segmento socialista da economia cubana. Não obstante, dizia o autor, que não se poderia ignorá-los para sempre. Neste sentido propunha que se construíssem índices que medissem o pareamento dos preços da economia socialista cubana com os preços de mercadorias essenciais do mercado internacional para que os mesmos sinalizassem para medição da eficácia reativa de todos os ramos da economia cubana no mercado internacional e orientassem um esforço nacional de corrigir os desníveis (Guevara, 1972a). As idéias de Che Guevara com relação à cooperação dos agentes no âmbito do tecido produtivo, fundamentada em valores humanistas superiores, encontram contemporaneamente semelhança com os trabalhos de Ostrom (1997) e Putnam (1994) no que se refere à convergência de objetivos dos agentes, bem como nas idéias de rede de cooperação de Granovetter (1992) todas elas com fundamentação no papel da cultura e dos valores na cooperação produtiva e na criação de instituições, que tem inspiração seminal em Douglass North (1990 e 1991). 2.4) A Lei do Valor na Transição do Capitalismo para o Socialismo Guevara travou um debate com Alberto Mora de grande interesse para os rumos da gestão e do planejamento da economia cubana no periódico Nuestra Industria – Revista Econômica. Ele girou em torno da questão do valor dos bens produzidos e das relações que se deveriam construir na esfera do tecido produtivo, sobretudo aquele estatal e planificado. A discordância se estabeleceu em base ao conceito do que seria o trabalho socialmente necessário, o único que conferiria valor aos bens, que para Mora seria o esforço ou a aplicação para atender uma necessidade socialmente reconhecida, em um quadro de recursos escassos. Para Guevara, entretanto, o conceito de necessário não seria o de necessidade social, mas sim o necessário em média, para o conjunto da sociedade. Ou seja, aquela quantidade 6 média de trabalho, considerando o amplo arco de estado da arte ou de avanço tecnológico das unidades produtivas, decorrente de combinações diferentes entre o capital constante e o capital variável, ou seja, composições orgânicas, C / V, diversas na produção de um determinado bem, levando, por conseqüência à alocações diferentes de unidades de trabalho por unidade de produto. Seria, portanto, não o trabalho concreto, aquele observado em uma empresa ou em uma unidade produção, mas sim o trabalho abstrato, substância do valor, como o próprio Marx definiu, que seria uma média do conjunto das necessidades de trabalho concreto e que expressasse um nível médio de desenvolvimento das forças produtivas (Guevara, 1972c). A visão do Che baseava-se em uma interpretação de Marx quando este tentou explicar porque no capitalismo os bens já não tinham seu valor determinado pela quantidade de trabalho concreto necessário à produção de cada um de per se, independente do estado de desenvolvimento das forças produtivas. Isto se deu quando Marx procurava justificar as diferenças na formação do valor das mercadorias na sociedade mercantil simples e no capitalismo plenamente constituído (Marx, 1968). Obviamente que Marx não via o valor das mercadorias surgindo somente do trabalho, mas no bojo da teoria do fetichismo, eixo central da teoria marxista do valor, que explica o porquê das mercadorias passarem a ter certas características outorgadas pelas relações sociais e que parecem lhes ser imanentes ou naturais (Bottomore, 1988). Demais, a teoria marxista do valor tenta contribuir para esclarecer a forma na qual se produz o equilíbrio geral do regime capitalista, procurando assim explicar não somente os desequilíbrios como também as desproporções e as crises. Por esta razão, a teoria do valor constitui una teoria quantitativa e qualitativa, ao mesmo tempo. Explica quanto valem as mercadorias e também porque valem (dimensão qualitativa, vinculada à teoria do fetichismo). A contundência de Che Guevara na crítica à posição de Mora se explica porque a concepção deste último, a do valor ser estabelecido pelo trabalho para atender uma necessidade socialmente reconhecida, uma espécie de trabalho útil, levaria, no limite, a um entendimento de que a relação necessidade/recursos está implícita ao conceito de valor. Para Che, este seria um passo para se mudar esta fórmula para a fórmula de ofertademanda, levando para o interior do tecido produtivo cubano um sistema de preços aceito pelo “socialismo mercantil” dos países do Komecon, mas rejeitado por ele (Guevara, 1972c). Che Guevara tinha notícia da forma como o planejamento nos países socialistas do Komecon levava à distorções na formação dos preços. A necessidade de obtenção de retorno aos investimentos realizados na indústria petroquímica, fazia com que os preços fossem fixados do mesmo modo como procedem os monopólios ou os oligopólios concentrados nas economias de mercado (Zavialkov, 1982). Guevara propunha que as trocas entre as unidades produtivas, relações intra e intersetoriais, se baseassem em supostos de equilíbrio e justa remuneração, razão pela qual se deveria começar buscando fixar preços que não tivessem de imediato uma comparação ou uma aderência ao que ocorria no mercado capitalista.. Para isso, se deveria manejar conscientemente a lei do valor para que os preços progressivamente venham a coincidir 7 com o valor sem que isso prejudique a capacidade de investimento da unidade produtiva ou impossibilite de se estabelecer vantagens para os trabalhadores (Guevara, 1972c). Ao discutir com Mora a vigência, ou não, da lei do valor no setor estatizado da economia, Guevara abstraiu a solução dada por Marx ao problema de conciliar a equalização da taxa de lucro com a teoria do valor trabalho, que implicava em supor que no capitalismo plenamente constituído a lei do valor se transforma em lei do movimento e de valorização do capital. Isto porque o progresso técnico, que leva à maior composição orgânica, funciona como uma renda diferencial. O capitalista que mais investe é o que se apropria de maior parcela da mais valia geral e que tem os preços de produção compostos com maior taxa de lucro, por conta da perequação da taxa de lucro (Belluzzo, 1980). Che provavelmente via a solução dada por Marx para os desvios entre valor e preço - que explicariam preços comparativos mais elevados para aqueles setores mais modernizados -, como coisa própria da economia capitalista e não aplicável à economia socialista Como nos países socialistas agrupados no Komecon a solução para os desequilíbrios intra e inter setoriais estaria em um novo ciclo de planejamento, seria normal que os preços e as apropriações de excedentes (lucros) por meio deles sinalizasse diferentes capacidades técnicas e operacionais. A utopia do Che ia de encontro à consensualização desse entendimento, defendendo que, apesar das dificuldades e da importância de se buscar a qualquer custo a eficácia, não se deveria deixar para depois, para a “calendas gregas”, a harmonização das relações de troca por meio de preços justos na esfera da economia socializada. A visão e Che neste particular, como já assinalado, é semelhante às idéias Fourier, Owen, Saint-Simon, e certamente Marx, a respeito da cooperação espontânea e solidária entre os agentes produtivos. 2.5) Questões Teóricas Relacionadas com o Comércio Internacional O comércio internacional foi um dos temas nos quais Guevara mais exercitou sua heterodoxia. Em várias ocasiões sua crítica também se dirigia às relações comerciais dos países socialistas entre si e destes com os países sub-desenvolvidos, isto porque os termos de intercâmbio não levavam em conta devidamente as dificuldades com as quais se defrontavam os países de economias agrárias, no que concerne à agregação de valor às mercadorias que vendiam (Guevara, 1969a, 1972f e 1972g). O intercâmbio desigual mascarado sob o fetichismo das relações capitalistas seria o instrumento de dominação nas relações internacionais, na medida em que criavam necessidades de consumo para os países subdesenvolvidos as quais não podiam ser preenchidas em condições de uma troca comercial mais justa. O imperialismo estaria precisamente no intercâmbio desigual. Che elaborou uma tabela com o equivalente entre produtos primários e um trator, mediante a qual procurava demonstrar que nas condições estabelecidas pelo mercado internacional o quanto custava às economias não industrializadas a aquisição de um produto obtido com tecnologia avançada, conseqüentemente sem grande dispêndio de energia humana. 8 Che admitia que se os mercados do campo socialistas se abrissem para os países subdesenvolvidos as condições seriam melhores. Reconhecia também que a posição da França oferecendo condições melhores de intercâmbio para a ex-colônias era um avanço. Para ele o comércio internacional deveria ser um instrumento idôneo e rápido para o desenvolvimento econômico. Para Guevara o comércio internacional deveria se basear em relações de equidade, que não é mesma coisa que igualdade. Equidade seria a desigualdade necessária para que os países explorados alcançassem um nível de vida aceitável e base para uma nova divisão internacional do trabalho, que conduzisse ao aproveitamento pleno de todos os recursos naturais. Che reconhecia como avançada a visão da Comissão Econômica para a América Latina, CEPAL, nas discussões sobre relações de troca no comércio e, em particular, o papel de Raul Prebisch (Guevara, 1972g e 1972h). Para o Che, os países socialistas teriam o dever moral de liquidar sua cumplicidade tácita com os termos de intercâmbio estabelecidos no comércio internacional. De outra parte, Che afirmava que o comércio entre países socialistas não se daria com base em preços eqüitativos. Reconhecia a dificuldade em estabelecer critérios para que isso acontecesse, embora reconhecesse que os acordos de Cuba com a URSS e com a China para venda de açúcar seriam vantajosos comparados aos do mercado internacional capitalista. (Guevara, 1972f, 1972g e 1972h) Guevara tinha consciência de que a única forma de estabelecer relações comerciais mais justas era pela via da oferta no comércio internacional de bens com valor agregado pelo conhecimento científico-tecnológico. Por este motivo considerava estratégico para Cuba a criação de uma infra-estrutura científico-tecnológica avançada com capacidade de realizar pesquisa básica, pesquisa aplicada e P&D. A questão da absorção de tecnologias capital intensivo pela indústria cubana para ele não era um problema. Imaginava que a força-detrabalho substituída não iria integrar o exército de reserva nos moldes do capitalismo, mas se dedicar intensamente a treinamentos avançados que a habilitasse para atuar em novos investimentos produtivos, mais exigentes de qualificação (Saenz, 2004). Guevara insistia que o progresso técnico não tinha coloração ideológica e reconhecia a legitimidade de ir busca-las onde estivessem bem como admitia que as unidades de produção dos monopólios internacionais localizados em Cuba detinham técnicas de gestão e controle de produção superiores àquelas possíveis de serem implantadas nos primeiros anos da construção do socialismo. Na visão do Che, para que a indústria e a agricultura cubanas obtivessem condições de participar com menos desvantagens no comércio internacional, deveriam atuar, guardadas as devidas proporções e as diferenças, como os monopólios. Embora não haja confirmação, muito provavelmente a visão de Guevara sobre comércio internacional respaldava-se no célebre artigo de Arghiri Emmanuel sobre intercâmbio desigual, tornado público em 1962 (Amin et alii, 1972). Suas visões sobre o papel do progresso técnico no comércio internacional, por outra parte, são de certa forma pioneiras em relação às assimetrias imperfeições causadas por este fator, como foram tratadas pelos evolucionistas, vide Vernon (1979) e Dosi (1990). 3)-EXPLICITAÇÃO DO DEBATE/CONSIDERAÇÕES FINAIS 9 As questões centrais relacionadas com a economia cubana na fase da chamada transição para o socialismo, envolvendo temas como planejamento, financiamento do investimento produtivo, relações intra e inter setoriais e comércio internacional, foram tratadas por Che Guevara com profundidade conceitual e teórica. A práxis de construção do socialismo em Cuba, com inúmeras tarefas que iam muito além daquelas de ministro da indústria e de presidente do Banco Nacional, não permitia ao Che o aprofundamento que ele desejaria ter na teoria econômica. Não obstante, suas leituras foram suficientes para orientar uma política de industrialização, que teve êxito em permitir a retomada de níveis de produção anteriores à revolução, como também trilhar o caminho da substituição de importações. Do mesmo modo se deve creditar ao Che o sucesso da política de comércio internacional com os países socialistas e com países capitalistas. A posterior abertura de Cuba a investimentos internacionais como aqueles dirigidos ao setor de turismo é, em alguma medida, também compatível com suas idéias de gestão descentralizada e de tratamentos diferentes aos vários setores da economia, mercados diferentes e conseqüentemente sujeitos a normas distintas. A maneira como se nivelou aos seus debatedores dá uma idéia de como a necessidade e a prática provêm conhecimentos e capacidade analítica comparáveis a anos de formação acadêmica e de pesquisa. Não fora tão breve sua incursão no campo da economia, e maior fossem as possibilidades de consolidar o seu aprendizado, Ernesto Guevara poderia, vantajosamente, integrar a galeria de economistas marxistas que brindaram o pensamento econômico com interpretações mais criativas da obra de Marx e de seus principais seguidores. 10 BIBLIOGRAFIA AGANBEGYAN, A. Movendo a Montanha. São Paulo: Ed.Best Seller. 1990. AMIN, S. et alii Imperialismo y comercio internacional: el intercambio desigual. Córdoba: Ediciones Pasado y Presente, 1972. BETTELHEIM, C. Formas y métodos de la planificación socialista y nivel de desarrollo de las fuerzas productivas. In: PASADO Y PRESENTE (Org..), Ernesto Che Guevara / Escritos económicos. Cuadernos de pasado y presente/5. Córdoba: Ediciones Pasado y Presente, 1972. BETTELHEIN, C. e MACCIÒ, M. China e U.R.S.S.: dois modelos de industrialização. Lisboa: Portucalense Editora,1971. BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. 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