CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 EISENBERG, José. A natureza da natureza humana: notas acerca de um voto no julgamento no STF. Boletim CEDES [online], Rio de Janeiro, maio e junho de 2008, pp. 03-10. Acessado em: (...) Disponível em: http://www.cedes.iuperj.br. ISSN: 1982-1522. A NATUREZA DA NATUREZA HUMANA: NOTAS ACERCA DE UM VOTO NO JULGAMENTO NO STF José Eisenberg1 Lei de Biossegurança: 11.105, de 24/03/2005. Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica no crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. *** Em março, o ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Alberto Direito pediu vistas da ADIN contra o artigo da Lei de Biossegurança que acabo de ler. Em 28 de maio, Direito reabriu a discussão da ADIN com uma contundente defesa da convergência entre ato e potência na produção do conceito de vida e, portanto, de natureza humana. Evocando o melhor da tradição aristotélica do tomismo, este 1 Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ). 3 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 representante das forças mais conservadoras do catolicismo no Brasil apresentou um voto em que se posiciona contra o utilitarismo laico da ciência positiva. Um voto contra o inusitado casamento que a ciência positiva celebrou com uma curiosa forma de humanismo futurista, em que se contabiliza os ganhos futuros e potenciais para os herdeiros do rebanho atual e se declara estes ganhos maiores que as perdas presentes e atuais para um rebanho potencial, que no momento, congelado e inviável, espera destino incerto. A discussão que ora apresento é resultado de uma reflexão debruçado sobre notas daquele dia, enquanto ouvia na TV Justiça à leitura do voto do Ministro Carlos Alberto Direito. Para um tema em que um dos desafios principais é determinar (ou não) quando coisas, digo, vidas, começam ou terminam, começar com o fim da história é como reconhecer que a etnografia audiovisual do qual resultou esse ensaio já conhecia um destino. Era imanente ao longo dele. O problema de dar substância a um conceito hodierno de natureza humana, tão umbilicalmente atado à antropologia filosófica e à teoria política, não me parece ter encontrado solução nem no laicismo científicopositivo (contra o qual Direito avança com o que há de mais pós-moderno em termos de relativismo epistemológico), nem nos fundamentalismos religiosos que herdamos do passado, muitos dos quais tínhamos por vencidos, mas que, graças à generosidade do nosso presidente de esquerda, ressuscitou na indicação para o STF de um arguto intelectual destes fundamentalismos. Creio que o voto do Ministro Direito demonstra porque hoje ele é expressão contundente do que há de mais inteligente na nossa “esfera pública formal”. Uma análise do voto me pareceu a melhor estratégia para uma reaproximação contemporânea com o tema da natureza humana, investigado anteriormente por mim somente no contexto de uma interpretação do jusnaturalismo da segunda escolástica. No centro da discussão que pretendo suscitar, um argumento central que agora sintetizo e sobre o qual me debruçarei ao longo dessa discussão: a decisão do STF foi certa, porque preservou entre nós o pluralismo de valores que é basilar a uma sociedade que se presume liberal, como a nossa; à decisão acertada, entretanto, faltou o poder da persuasão. A Lei 11.105, e os artigos nela contidos, tratam, como diz o próprio nome que lhe foi dado, de questões de segurança, e quando estamos tratando da segurança da vida humana, não há como se furtar de um debate sobre a natureza da natureza humana. 4 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 As respostas do século XX a esta indagação podem ser resumidas na pergunta com a qual Robert D. Cumming cunhou um artigo de 1973 publicado na Social Research – is man still man? – ou, traduzindo em termos hobbesianos, quando o ser humano perde o direito de abdicar de sua própria humanidade para defender a vida que é só sua? Esta questão estava incrustada na história das grandes guerras mundiais e coloniais que são a tatuagem definitiva do século passado. As questões morais do século XXI, no entanto, me parecem apontar para uma mesma direção, ainda que em sentido inverso: parodiando Cumming, a pergunta que nosso Supremo se furtou de analisar é: is man already man? (já é homem o homem?). No caso, o protagonista é um embrião. Que ele é natural e vivo, ninguém duvida, mas é humana esta sua natureza viva? Há de se agradecer de antemão ao Ministro Direito por nos lembrar que tratavase, e nisso estou de inteiro acordo com ele, de julgamento ético, e não julgamento científico, produzir um juízo sobre o que é certo e não sobre o que é útil para a ciência. E, como lembrou o ministro, “(o)s cientistas não têm qualquer autoridade especial para fazer julgamentos éticos ou políticos." Referindo-se à Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant, Direito deu sentido à sua preocupação com que se realizasse justiça. Não pode a democracia sobrepor-se à razão; todos os relativismos espitemológicos precisam ser debelados. A razão a que se referia Direito, nesse caso, soberana em relação à vontade democrática, não era a racionalidade pura que alimenta a ciência positiva, mas sim a racionalidade prática, moral, que orienta os juízos éticos dos seres humanos. Foi esta razão prática que Direito, em vão, clamou seus colegas de Supremo a utilizar. Carlos Alberto Direito posicionou-se altivo contra o utilitarismo condensado no voto da Ministra Ellen Gracie, reiterado por ela mesma e por vários outros: "O aproveitamento dos embriões nas pesquisas científicas com células-tronco é infinitamente mais útil e nobre do que o descarte vão dos mesmos." Seria vão esse descarte? Não estaria a ciência preparada, no futuro, a dar uso a esses embriões, quiçá usos mais “nobres” do ponto de vista da pesquisa científica, usos melhores que o uso destrutivo que hoje é feito deles para obter suas células-tronco? Até os filósofos do utilitarismo sabem da dificuldade em responder perguntas como estas. Elas abordam um problema que eles chamam de inconsistência temporal: nossa ordenação de preferências hoje não é capaz de dar conta das alterações pelas quais elas passarão 5 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 no futuro e é difícil, senão impossível, incorporá-las como expectativas no cálculo presente. O problema ético que o utilitarismo não pode resolver, argüiu o Ministro Direito, não é com pesquisas com células-tronco embrionárias, mas somente com a forma de extração: matar os embriões. Sem a destruição do embrião, não haveria porque restringir a extração de células-tronco. O Ministro cita pesquisas científicas do americano Robert Lanza. Pesquisas que obtiveram sucesso na extração das célulastronco sem destruição do embrião. Mas a lei fala somente de embriões inviáveis, e não faz ressalvas aos resultados da extração, à morte ou vida severina do embrião. Como lembrou o Ministro Celso de Mello, contudo, há condicionantes ao uso dos embriões nos ditames do artigo 5º da Lei de Biossegurança. Uma das condições centrais para a realização dos estudos é que os embriões estejam “inviáveis” ou congelados há pelo menos três anos – ou seja, sem condições de fertilização. O tema ganha novos contornos: trata-se do problema de quando a natureza humana é inviável. O termo “inviabilidade” é um convite a uma hermenêutica jurídica que poderia nos levar a um debate que só terminaria amanhã. Podemos impor como premissas, entretanto, que “inviabilidade” não é igual a “ausência de vida”. Igualmente, é razoável supor que cientistas não estão classificando embriões como inviáveis, da mesma forma com que restaurantes muitas vezes jogam no lixo um resto da comida perfeitamente comestível porque sobrou no prato do cliente. Em geral, clinicas de fertilidade separam embriões que, em testes genéticos, apresentam, por exemplo, trissomias, algumas malignas do ponto de vista do desenvolvimento do feto ou do néscio, outras de conseqüências desconhecidas, mas temidas. Deveríamos implantar estes embriões? Ou apostamos na ciência futura que, na trama divina, poderá salvá-los? Seria a ciência de amanhã mais valiosa que a ciência presente, que ainda pode muito pouco, é verdade, mas que pode algo – o que já é muito quando se trata de intervir na trama divina. Será que o Ministro Direito crê que estes embriões não são inviáveis, porque os portadores de trissomias não são inviáveis? O voto de Carlos Alberto Direito transpira desconfiança nos avanços futuros da ciência, mas aposta nestes avanços para viabilizar os embriões, hoje congelados e a espera de um futuro próprio. Em seu ataque à ciência e sua pretensão de objetividade, Direito cita Edgard Morin, e as malhas econômicas que acabam por dominar a ciência; 6 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 conhecimento e manipulação como faces de um mesmo jogo. Cita também Wittgenstein, lembrando que, ainda que todos os problemas científicos fossem resolvidos o sentido da vida continuaria sem solução. Adota, em suma, o relativismo cientifico do suposto campo progressivo como forma de colocar a ciência contra ela mesma. Como alternativa ao imperativo do relativismo científico e contra quaisquer possíveis relativismos morais, apresenta uma deontologia radical: “Inexistem certezas, salvo aquelas que existem no campo ético”. O Ministro recorre a Metafísica de Aristóteles: Potencia é pensamento que ganha existência em ato. Quando não há interferência externa (um “principio gerador”), nada ocorre. Se há interferência, se atualiza. "O embrião foi gerado para ser, e não para não ser. É um ser em potência e essência, em ininterrupta atualização”, afirma Direito. “Embrião é embrião, feto é feto, e pessoa humana é pessoa humana.” E a humanidade, não os pais, tem a responsabilidade ética de interferir, ser o princípio gerador, na atualização do embrião, argumentou o Ministro Direito. Fazê-lo nascer é a responsabilidade ética que nos cabe, não um direito de escolha calcado na aposta na ciência. O flanco maior do argumento de Direito aparece quando procura definir a condição ontológica do ser do embrião. Matar o embrião para usar suas células-tronco seria “contrariar a natureza das coisas”. Mas, ou bem a ciência conhece estas coisas objetivamente ou bem ela não detém a verdade, e as coisas não tem natureza. Pode o Ministro Direito sustentar, ao mesmo tempo, o relativismo que retira a autoridade objetiva da ciência e um objetivismo subsumido na idéia de que há uma “natureza das coisas”? Pode. Por um lado, há uma natureza humana, argumenta Direito, divina, e em potência no ser do embrião. Sua crítica à objetividade da ciência é epistemológica, não ontológica. O que está em jogo não é a existência das coisas, inclusive da natureza humana, mas o privilégio do acesso ao conhecimento da natureza desta natureza humana. E é no plano deste conhecimento de segunda ordem que o Ministro não está disposto a sacrificar a teologia e transferir a autoridade dos juízos morais para a ciência. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito abriu a leitura de seu voto contra a constitucionalidade do artigo 5º citando um escrito de Schopenhauer, nascido em 1788, ano da publicação da Crítica da Razão Prática de Kant, como fez questão de salientar. Não anotei a citação e a íntegra do voto ainda não está disponível no site do STF, mas lembro que ela dava relevo à dimensão vitalista do voluntarismo do filósofo alemão. No 7 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 “mais importante julgamento da história do Supremo”, conforme descreveu o ministro Celso de Mello, o Ministro Direito citou Schopenhauer, mas ficou com Kant. Ficou com a razão prática e contra a vontade que reside na alma. O “princípio gerador” do ato que realiza a metamorfose do embrião viável em néscio vivo e fora do útero, lhe é externo, bem sabe o nosso Ministro tomista. Está na maternidade este princípio, ao menos por enquanto, ainda que vá sempre permanecer externo ao embrião mesmo se fora do útero materno. Neste movimento, do embrião ao feto, e do feto ao néscio, há duas metamorfoses sem começo nem fim. E a natureza da natureza humana é somente isto: a natureza da vida vivida pelos homens. Recordemos a parábola medieval por ele citada – Quantos grãos formam um monte?, pergunta o Ministro. Do ponto de vista do seu racionalismo, dois, somente dois grãos, são necessários para formar um monte. Mas bem sabe o Ministro Direito que monte não tem alma. Inúmeras vezes evocada para falar da vida em sua inspirada opinião, a alma infelizmente não encontra morada naquilo que só a ciência permitiu à religião entender: a fecundação e o processo inicial da reprodução sexuada. A alma é a essência, a natureza da natureza humana, e alma, por exigir vida humana para se atualizar, embrião não tem. Bem sabe o Ministro que é impossível instituir soberanamente o momento ex nihil em que emerge vida da ausência dela, especialmente no contexto da teoria aristotélica da metamorfose por ele mesmo mobilizada. A lei, entretanto, precisa ser cortante, soberana e arbitrária, mesmo quando o objeto de seu arbítrio é uma metamorfose ambulante. Contra o humanismo cristão, racionalista e fundamentalista do Ministro Direito, cabia a interpelação de um humanismo de inspiração laica, naturalista e experimentalista. Não há tempo aqui para contrapor essas versões do humanismo e suas diferenças, mas creio que no próprio Schopenhauer citado pelo Ministro encontramos algumas pistas e indagações interessantes para uma interpretação da alma, isto é, da natureza da natureza humana. Ouçam o que diz Schopenhauer no seguinte trecho de Dores do Mundo, na verdade um fragmento de Parerga und Paralipomena: Kleine philosophische Schriften, de 1851, pubicado no Brasil pela Ediouro: A morte é solução dolorosa do laço formado pela geração com a voluptuosidade, é destruição violenta do erro fundamental do nosso ser: o grande desengano...Quando essa mãe soberana, universal, expõe sem escrúpulo algum os filhos a mil perigos iminentes, sabe que quando sucumbem, é para voltarem ao seu seio onde os conserva 8 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 ocultos; a sua morte não passa de uma brincadeira. Sucede com o homem o mesmo que com os animais. O oráculo da natureza estende-se à nós; a nossa vida ou a nossa morte não a comove, e não deveria comover-nos, porque também fazemos parte da natureza. (p.126-132) A perspectiva humanista que compartilho com Direito e com muitos outros inimigos mais progressistas do utilitarismo exige que entendamos que a alma humana reside na humanidade, e não em cada indivíduo a ela pertencente. E a natureza humana é somente isso: a parte humana da natureza. E dado que o oráculo divino, a graça tal qual inscrita na natureza não nos confere nenhum acesso ao segredo da imortalidade, me parece que o fim destes embriões inviáveis não deveria comover-nos tanto. A natureza deles é viva, como é a da formiga sobre a qual acidentalmente pisamos quando andamos na rua, ou mesmo dos milhões de bactérias que em nós residem e que morrem diariamente, simplesmente para que o nosso corpo, o corpo humano, possa continuar a realizar o seu metabolismo e manter-nos vivos. Mas a natureza destes embriões “inviáveis” não é humana. Afinal, é o próprio Ministro Direito quem nos ensina: “Embrião é ser em potência. Foi feito para ser não para nascer”. E se “(a) morte é uma certeza da vida e a ciência não é uma maneira de espantá-la”, como declara o Ministro, permitam-me declarar jocosamente que a descoberta da Penicilina representou o maior genocídio contra organismos vivos unicelulares que se conheceu na era moderna. A certeza da morte não nos impede de desafiá-la e, para isso, para desafiar a certeza do fim da vida humana, necessitamos sacrificar muitas vidas não-humanas. O experimento é parte ao mesmo tempo necessária e incerta desse desafio. Não queremos vencê-lo. Apenas duelar com Deus. O limite dessa experimentação é claro: a natureza da natureza humana é a sua alma, compartilhada igualmente e universalmente por toda a humanidade. E humano é aquilo que, em termos aristotélicos, é “vida humana em ato”, não em potência. A inteligência no Brasil frequentemente é conservadora. O voto com que o Ministro Direito abriu a sessão de 28 de maio é exemplar nesse sentido. E apesar da decisão correta ter prevalecido na sessão do Supremo Tribunal Federal que declarou a constitucionalidade do art. 5º da Lei da Biossegurança, acredito que os representantes das posições presumidamente progressistas (e vencedora) dentro do STF se mostraram profundamente ineptos em apresentar razões qualificadas para a defesa 9 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO E JUNHO DE 2008 constitucional da pesquisa com embriões descartados em processos de fertilização assistida. Não podemos deixar de mencionar as exceções, alguns lampejos de cunho liberal ecoados pelos ministros de sobrenome Mello, o Marco Aurélio e o Celso. Nem de louvar a corte ter por feito prevalecer, no contar dos votos, a posição eticamente correta; afinal, muitos deles foram ambíguos, no estilo “si pero no mucho”. É fato que o STF, em sua primeira intervenção em um tema de aporte ético-universal, o tema da natureza da natureza humana, acertou em sua decisão. Infelizmente, acertou pelas razões erradas. Acontece. Melhor assim. Podia ser pior se a melhor argumentação sempre levasse. 10