1 O QUE É ANTROPOLOGIA? Adaptabilidade humana Adaptação, variação e mudança Antropologia geral As forças culturais formam a biologia humana As subdisciplinas da antropologia Antropologia cultural Antropologia arqueológica “É apenas natureza humana.” “As pessoas são praticamente as mesmas em todo o mundo.” Esse tipo de opinião, que ouvimos em conversas, nos meios de comunicação de massa e em muitas cenas na vida cotidiana, promove a ideia equivocada de que as pessoas de outros países têm os mesmos desejos, sentimentos, valores e aspirações que nós. Essas afirmações proclamam que, como são em essência as mesmas, as pes­ soas estão ávidas por receber ideias, crenças, valores, instituições, práticas e produtos de uma cultura norte-americana que se dissemina em todas as partes do globo terrestre. Muitas vezes, esse pressuposto acaba se revelando equivocado. A antropologia oferece uma visão mais ampla – uma perspectiva comparativa diferenciada e intercultural. A maioria das pessoas pensa que os antropólogos estudam as sociedades não industriais, e eles o fazem. Minha pesquisa me levou a aldeias remotas no Brasil e em Madagascar, uma grande ilha na costa sudeste da África. No Brasil, naveguei com pescadores em simples embarca- Aplicando a antropologia à cultura popular: Indiana Jones Antropologia biológica ou física Antropologia linguística Antropologia e outros campos acadêmicos Antropologia aplicada Antropologia hoje: filho de antropóloga é eleito presidente ções a vela, nas águas do Atlântico. Entre o povo Betsileu de Madagascar, trabalhei em campos de arroz e participei de cerimônias nas quais entrei em túmulos para reembalsamar corpos de ancestrais em decompo­ sição. No entanto, a antropologia é muito mais do que o estudo dos povos não industrializados. É uma ciência comparativa que analisa todas as sociedades, antigas e modernas, simples e complexas. A maioria das outras ciências sociais tende a se concentrar em uma única sociedade, em geral nações industrializadas, como os Estados Unidos ou o Canadá. A antropologia oferece uma perspectiva intercultural única, comparando constantemente os costumes de uma sociedade com os das outras. Para ser antropólogo cultural, costuma-se fazer etnografia (o estudo em primeira mão e pessoal de contextos locais). O trabalho de campo etnográfico geralmente implica passar um ano ou mais em outra sociedade, vivendo com a população local e aprendendo sobre seu modo de vida. 28 Conrad Phillip Kottak Não importa o quanto descubra sobre essa sociedade, o etnógrafo continuará sendo estrangeiro naquele contexto. Essa experiência de estranhamento tem um impacto profundo. Tendo aprendido a respeitar outros costumes e crenças, os antropólogos nunca podem se esquecer de que existe um mundo mais amplo. Existem outros modos normais de pensar e agir que diferem dos nossos. ADAPTABILIDADE HUMANA Os antropólogos estudam os seres humanos em locais e momentos em que os encontram – em um café turco, um túmulo da Mesopotâmia ou em um shopping center nos Estados Unidos. A antropologia é a pesquisa da diversidade humana no tempo e no espaço, estudando o conjunto da condição humana: passado, presente e futuro, biologia, sociedade, língua e cultura. De particular interesse é a diversidade que se dá por meio da adaptabilidade humana. Os seres humanos estão entre os ­animais mais adaptáveis do mundo. Nos Andes, na América do Sul, as pessoas acordam em aldeias cerca de 5.000 m acima do nível do mar e sobem caminhando mais 500 m para trabalhar em minas de estanho. Tribos no deserto australiano cultuam animais e discutem filosofia. As pessoas sobrevivem à malária nos trópicos. Os homens caminharam na Lua. A miniatura da nave estelar Enterprise, na Smithsonian Institution de Washington, simboliza o desejo de “buscar uma nova vida e novas civilizações, de ir audaciosamente onde ninguém jamais esteve”. Os desejos de conhecer o desconhecido, controlar o incontrolável e criar or­ dem a partir do caos encontram expressão entre todos os povos. A criatividade, a adaptabilidade e a flexibilidade são atributos ­humanos básicos, e a diversidade humana é o tema da antropologia. Os estudantes muitas vezes se sur­ preendem com a amplitude da antropolo- gia, que é o estudo da espécie humana e seus ancestrais imediatos. A antropologia é uma ciên­cia exclusivamente comparativa e holística. O holismo se refere ao estudo de toda a condição humana: passado, presente e futuro, biologia, sociedade, língua e cul­ tura. As pessoas compartilham a sociedade – vida organizada em grupos – com outros animais, incluindo babuínos, lobos, toupeiras e até formigas, mas a cultura é mais especificamente humana. As culturas são tradições e costumes transmitidos pela aprendizagem que formam e orientam as crenças e o comportamento das pessoas expostas a eles. As crianças aprendem uma tradição ao crescer em uma determinada sociedade, por meio de um processo chamado de enculturação. As tradições culturais incluem costumes e opiniões desenvolvidos ao longo de gerações, que dizem respeito a comportamentos adequados e inadequados. Essas tradições respondem a perguntas do tipo: Como as coisas devem ser feitas? Como podemos entender o mundo? Como podemos distinguir o certo do errado? O que é certo e o que é errado? Uma cultura produz um grau de coerência de comportamento e de pensamento entre as pessoas que vivem em uma determinada sociedade. O elemento mais fundamental das tradições culturais é sua transmissão pela aprendizagem e não por meio de herança biológica. A cultura, em si, não é biológica, mas se baseia em certas características da biologia humana. Há mais de um milhão de anos, os seres humanos têm pelo menos algumas das capacidades biológicas das quais depende a cultura: aprender, pensar de modo simbólico, usar a linguagem e empregar ferramentas e outros produtos para organizar suas vidas e se adaptar aos seus ambientes. A antropologia enfrenta grandes questões da existência humana e reflete sobre elas ao explorar a diversidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço. Um espelho para a humanidade Examinando ossos e ferramentas antigas, desvendam-se os mistérios das origens humanas. Quando foi que nossos antepassados se separaram daqueles remotos tios-avôs cujos descendentes são os símios? Onde e quando teve origem o Homo sapiens? Como a nossa espécie mudou? O que somos agora e para onde estamos indo? De que forma as mudanças na cultura e na sociedade influenciaram a mudança biológica? Nosso gênero, o Homo, vem mudando há mais de 2 milhões de anos. Os seres humanos continuam se adaptando e mudando, biológica e culturalmente. Adaptação, variação e mudança A adaptação diz respeito aos processos pelos quais os organismos lidam com forças e tensões ambientais, como as que são apresentadas pelo clima e pela topografia, ou os terrenos, também chamados de acidentes geográficos. De que modo os organismos mudam para se ajustar a seus ambientes, como climas secos ou altitudes elevadas nas montanhas? Assim como outros animais, os seres humanos usam recursos biológicos de adaptação, mas são os únicos a também ter solu TABELA 1.1 29 ções culturais. A Tabela 1.1 resume os recursos culturais e biológicos usados para adaptação a grandes altitudes. Os terrenos montanhosos apresentam desafios específicos, associados a altitude elevada e privação de oxigênio. Considere quatro maneiras (uma cultural e três biológicas) com as quais os seres humanos podem lidar com a baixa pressão de oxigênio na altitude elevada. Para ilustrar a adaptação cultural (tecnológica), pensemos em uma cabine pressurizada de avião equipada com máscaras de oxigênio. Existem três maneiras de se adaptar biologicamente à altitude: adaptação genética, adaptação fisiológica de longo prazo e adaptação fisiológica de curto prazo. Primeiro, populações nativas de áreas de altitude elevada, como os Andes, no Peru, e os Himalaias, no Tibete e no Nepal, parecem ter adquirido certas vantagens genéticas para viver nesse ambiente. É provável que a tendência andina de desenvolver peito e pulmões volumosos tenha base genética. Em segundo lugar, independentemente dos seus genes, as pessoas que crescem em uma altitude elevada se tornam fisiologicamente mais eficientes naqueles lugares do que pessoas geneticamente semelhantes que cresceram ao nível do mar, ilustrando adaptação fisiológica de longo prazo durante o crescimento Formas de adaptação cultural e biológica (a altitude) FORMA DE ADAPTAÇÃO TIPO DE ADAPTAÇÃO EXEMPLO Tecnologia Cultural Cabine de avião pressurizada com máscaras de oxigênio Adaptação genética Biológica (ocorre ao longo de gerações) “Peito de barril”, maiores, de nativos de grande altitude Adaptação fisiológica de longo Biológica prazo (ocorre durante o crescimento e desenvolvimento do organismo individual) Sistema respiratório mais eficiente para extrair oxigênio do ar rarefeito Adaptação fisiológica de curto Biológica prazo (ocorre espontaneamente quando o organismo individual entra em novo ambiente) Aceleração dos batimentos cardíacos, hiperventilação 30 Conrad Phillip Kottak e o desenvolvimento do corpo. Terceiro, os seres humanos também têm capacidade para adaptação fisiológica de curto prazo ou imediata. Portanto, quando quem vive nas planícies chega a terras altas, sua respiração e seus batimentos cardíacos se aceleram imediatamente. A hiperventilação aumenta o oxigênio nos pulmões e artérias. Como o pulso também aumenta, o sangue chega aos tecidos mais depressa. Todas essas respostas adaptativas variadas – culturais e biológicas – alcançam um único objetivo: manter o fornecimento adequado de oxigênio para o corpo. No desenrolar da história humana, os meios sociais e culturais de adaptação se tornaram cada vez mais importantes. Nesse processo, os seres humanos criaram diversas formas de enfrentar a gama de ambientes que ocuparam no tempo e no espaço. O ritmo da adaptação e da mudança cultural tem se acelerado, em particular durante os últimos 10 mil anos. Durante milhões de anos, caçar e coletar as dádivas da natureza – o forrageio – foi a base única da subsistência humana, mas a produção de alimentos (o cultivo de plantas e a domesticação de animais), que teve origem cerca de 12 mil a 10 mil anos atrás, levou apenas alguns milhares de anos para substituir a maioria das áreas de forrageio. Entre 6000 e 5000 a.P. (antes do presente), surgiram as primeiras civilizações, que eram sociedades grandes, poderosas e complexas, como o Antigo Egito, que conquistaram e governaram grandes áreas geográficas. Muito mais recentemente, a expansão da produção industrial afetou de forma profunda a vida humana. Ao longo da história da humanidade, grandes inovações se espalharam à custa das anteriores, e cada revolução econômica tem tido repercussões sociais e culturais. A economia global e as comunicações de hoje ligam todas as pes­ soas contemporâneas, de forma direta ou indireta, no sistema-mundo moderno. As pessoas devem lidar com as forças geradas por sistemas cada vez maiores – região, nação e mundo. O estudo dessas adaptações contemporâneas cria novos desafios para a antropologia: “As culturas dos povos do mundo precisam ser constantemente redescobertas à medida que essas pessoas as reinventam ao transformar as circunstâncias históricas” (Marcus e Fischer, 1986, p. 24). ANTROPOLOGIA GERAL A disciplina acadêmica da antropologia, também conhecida como antropologia geral ou antropologia de “quatro campos”, inclui quatro subdisciplinas ou subcampos principais: sociocultural, arqueológica, biológica e linguística. (Daqui em diante, a antropologia cultural de mais curto prazo será usada como sinônimo de “antropologia sociocultural”.) Entre os subcampos, a antropologia cultural é a que tem o maior número de membros, e a maioria dos departamentos de antropologia ministra disciplinas dos quatro campos. Há razões históricas para a inclusão de quatro subcampos em uma única disciplina. A origem da antropologia como campo científico, especificamente a antropologia nos Estados Unidos, pode ser identificada no século XIX. Os primeiros antropólogos do país estavam preocupados sobretudo com a história e as culturas dos povos nativos da América do Norte. O interesse nas origens e na diversidade dos índios norte-americanos reuniu estudos sobre costumes, vida social, língua e características físicas. Os antropólogos ainda consideram questões como: de onde vieram os índios da América do Norte? Quantas ondas de migração os trouxeram ao Novo Mundo? Quais são as relações linguísticas, culturais e biológicas entre esses povos, e entre eles e a Ásia? (Observe que não se desenvolveu uma antropologia de quatro campos unificada na Europa, onde os subcampos tendem a existir de modo separado.) Um espelho para a humanidade Também há razões lógicas para a unidade da antropologia norte-americana. Cada subcampo trata da variação no tempo e no espaço (i.e., em diferentes áreas geográficas). Os antropólogos culturais e os arqueólogos estudam (entre muitos outros temas) as mudanças na vida social e nos costumes. Os arqueólogos lançam mão de estudos de sociedades vivas para imaginar como poderia ter sido a vida no passado. Os bioantropólogos examinam mudanças evolutivas na forma física, por exemplo, alterações anatômicas que poderiam ter sido associadas à origem do uso de ferramentas ou da linguagem. Os antropólogos linguistas podem reconstruir os fundamentos dos idiomas antigos estudando os modernos. Os subcampos influenciam uns aos outros à medida que antropólogos falam entre si, leem livros e revistas e se reúnem em organizações profissionais. A antropologia geral explora os conceitos básicos da biologia, da sociedade e da cultura humanas e considera suas inter-relações. Os antropólogos compartilham determinados pressupostos essenciais, dos quais talvez o mais fundamental seja a ideia de que as conclusões sólidas sobre a “natureza humana” não podem ser derivadas do estudo de uma única população, nação, sociedade ou tradição cultural, sendo essencial uma abordagem comparativa e intercultural. As forças culturais formam a biologia humana A perspectiva comparativa e biocultural da antropologia reconhece que as forças culturais moldam constantemente a biologia humana. (O termo “biocultural” se refere a inclusão e combinação das perspectivas biológica e cultural e a abordagens para comentar ou resolver um determinado problema ou questão.) A cultura é uma força ambiental fundamental na determinação de como os corpos humanos crescem e se de- 31 Em seus primórdios, a antropologia nos Estados Unidos estava preocupada sobretudo com a história e as culturas dos povos nativos norte-americanos. Ely S. Parker, ou Ha-sa-no-an-da, foi um indígena Seneca que deu contribuições importantes ao início da antropologia. Parker também foi Comissário de Assuntos Indígenas dos Estados Unidos. senvolvem. As tradições culturais promovem certas atividades e habilidades, desencorajando outras, e estabelecem padrões de bem-estar e atratividade físicos. As atividades físicas, incluindo esportes, que são influenciadas pela cultura, ajudam a moldar o corpo. Por exemplo, as meninas norte-americanas são estimuladas a praticar competições que envolvem patinação artística, ginástica, atletismo, natação, mergulho e muitos outros esportes e, portanto, ter um bom desempenho nessas atividades; as brasileiras, ainda que se destaquem nos esportes coletivos, como basquete e vôlei, não se saem tão bem em esportes individuais, como as norte-americanas e canadenses. Por que as pessoas são estimuladas a se notabilizar como atletas em alguns países, mas não em outros? Por que as pessoas em alguns países investem tanto tempo e esforço em esportes competitivos a ponto de que seus corpos se alterem significativamente como resultado disso? 32 Conrad Phillip Kottak Padrões culturais de atratividade e adequação influenciam a participação e o desempenho nos esportes. Os norte-americanos correm ou nadam não apenas para competir, mas para se manter em forma e em boas condições físicas. Os padrões de beleza do Brasil tradicionalmente aceitaram mais gordura, em especial nas nádegas e nos quadris das mulheres. Os homens brasileiros têm obtido algum sucesso internacional na natação e em corridas, mas o Brasil raramente envia nadadoras ou corredoras às Olim­ píadas. Uma das razões para as brasileiras evitarem a natação competitiva podem ser os efeitos que o esporte tem sobre a modelação do corpo. Anos de natação esculpem um físico diferenciado: torso superior alargado, pescoço grosso e ombros e costas robustos. As nadadoras de sucesso tendem a ser grandes, fortes e volumosas. Os países que mais produzem atletas femininas da natação são Estados Unidos, Canadá, Austrália, Alemanha, os países escandinavos, a Holanda e a ex-União Soviética, onde esse tipo de corpo não é tão estigmatizado como em países latinos. As nadadoras desenvolvem corpos rígidos, mas a cultura brasileira diz que as mulheres devem ser delicadas, com quadris e nádegas grandes, sem ombros largos. Muitas jovens nadadoras do Brasil optam por abandonar o esporte para manter o corpo “feminino” ideal. Quando você estava crescendo, qual era o esporte de que mais gostava: futebol, natação, futebol americano, beisebol, tênis, golfe ou algum outro (ou talvez nenhum)? Isso se dá em função de “quem você é” ou por causa das oportunidades que teve para praticar e participar nessa atividade específica quando era criança? Quando você era pequeno, talvez os seus pais tenham lhe dito que tomar leite e comer legumes iriam ajudá-lo a ficar “grande e forte”. Eles provavelmente não reconheceram de forma imediata o papel que a cultura cumpre na definição de corpos, personalidades e saúde pessoal. Se a nutrição é importante para o O Brasil raramente envia nadadoras para as Olimpíadas. Uma exceção é Fabíola Molina, que competiu nas Olimpíadas de 2000 e 2008. Nessa foto, em maio de 2009, Fabíola dá um mergulho vencedor na final feminina dos 100 metros – nado costas, do Troféu Maria Lenk, no Rio de Janeiro. De que forma anos de natação competitiva podem afetar o fenótipo? crescimento, o mesmo se aplica às orientações culturais. Qual é o comportamento adequado a meninos e meninas? Que tipo de trabalho os homens e as mulheres devem fazer? Onde as pessoas deveriam viver? Quais são os usos apropriados do seu tempo de lazer? Que papel deve cumprir a religião? Como as pessoas devem se relacionar com seus parentes, amigos e vizinhos? Embora nossos atributos genéticos proporcionem uma base para o nosso crescimento e desenvolvimento, a biologia humana é bastante plástica, isto é, maleável. A cultura é uma força ambiental que afeta o nosso desenvolvimento, tanto quanto a nutrição, o calor, o frio e a altitude, e também orienta o nosso crescimento emocional e cognitivo, ajudando a determinar o tipo de personalidade que temos como adultos. Um espelho para a humanidade AS SUBDISCIPLINAS DA ANTROPOLOGIA Antropologia cultural A antropologia cultural é o estudo da sociedade e da cultura humanas, o subcampo que descreve, analisa, interpreta e explica as semelhanças e diferenças sociais e culturais. Para estudar e interpretar a diversidade cultural, os antropólogos culturais realizam dois tipos de atividade: etnografia (com base no trabalho de campo) e etnologia (com base na comparação intercultural). A etnografia fornece uma descrição de determinada comunidade, sociedade ou cultura. Durante o trabalho de campo etnográfico, o etnógrafo reúne dados que organiza, descreve, analisa e interpreta para construir e apresentar essa descrição, que pode se dar na forma de livro, artigo ou filme. Tradicionalmente, os etnógrafos têm morado em pequenas comunidades e estudado comportamentos, crenças, costumes, vida social, atividades econômicas, política e religião locais (ver Wolcott, 2008). A perspectiva antropológica derivada do trabalho de campo etnográfico costuma ser bastante diferente da que deriva da economia ou da ciência política. Esses campos trabalham com organizações e políticas nacionais e oficiais e, muitas vezes, com elites, mas os grupos que os antropólogos têm estudado costumam ser relativamente pobres e desprovidos de poder. Os etnógrafos observam muitas práticas discriminatórias voltadas a essas pessoas, que enfrentam escassez de alimentos, deficiências alimentares e outros aspectos da pobreza. Os cientistas políticos tendem a estudar os programas que os planejadores nacionais desenvolvem, enquanto os antropólogos descobrem como esses programas funcionam em nível local. As culturas não são isoladas. Como observado por Franz Boas (1940/1966) há muitos anos, o contato entre tribos vizinhas sempre existiu e se estendeu sobre áreas 33 enormes. “As populações humanas cons­ troem suas culturas em interação umas com as outras, e não isoladamente” (Wolf, 1982, p. ix). Moradores de aldeias participam cada vez mais de eventos regionais, nacionais e mundiais. A exposição a forças externas se dá pelos meios de comunicação de massa, pela migração e pelo transporte moderno. A cidade e a nação cada vez mais invadem as comunidades locais com a chegada de turistas, agentes de desenvolvimento, autoridades governamentais e religiosas e candidatos a cargos políticos. Essas ligações são componentes importantes de sistemas regionais, nacionais e internacionais de política, economia e informações. Esses sistemas maiores afetam mais e mais as pessoas e os lugares tradicionalmente estudados pela antropologia. O estudo desses vínculos e sistemas faz parte do tema da antropologia moderna. A etnologia examina, interpreta, analisa e compara os resultados da etnografia – os dados coletados em diferentes sociedades – e os usa para comparar, contrastar e fazer generalizações sobre a sociedade e a cultura. Olhando além do particular e vislumbrando o mais geral, os etnólogos tentam identificar e explicar as diferenças e similaridades culturais, testar hipóteses e construir teorias para melhorar nossa compreensão de como funcionam os sistemas sociais e culturais. A etnologia obtém seus dados para comparação não apenas da etnografia, mas também de outros subcampos, em especial da antropologia arqueológica, que reconstrói os sistemas sociais do passado. (A Tabela 1.2 resume os principais contrastes entre etnografia e etnologia.) Antropologia arqueológica A antropologia arqueológica (dito de forma mais simples, “arqueologia”) reconstrói, descreve e interpreta o comportamento e os padrões culturais humanos por meio 34 Conrad Phillip Kottak de restos materiais. Em locais onde as pessoas vivem ou viveram, os arqueólogos encontram artefatos – itens materiais que os seres humanos produziram, usaram ou modificaram, como ferramentas, armas, acampamentos, construções e lixo. Os restos de vegetais e animais e o lixo antigo contam histórias sobre consumo e atividades. Os grãos selvagens e os domesticados têm características diferentes que permitem que os arqueólogos distingam entre coleta e cultivo. O exame de ossos de animais revela a idade dos animais abatidos e fornece outras informações úteis para determinar se as espécies eram selvagens ou domesticadas. Analisando esses dados, os arqueólogos respondem a várias perguntas sobre as antigas economias. O grupo obtinha sua carne da caça ou domesticava e criava animais, matando apenas os de certa idade e determinado sexo? Os alimentos vegetais vinham de plantas silvestres ou da semeadura, cuidado e colheita dos cultivos? Os moradores produziam, comercializavam ou compravam determinados itens? As matérias-primas estavam disponíveis localmente? Se não, de onde vinham? A partir dessas informações, os arqueólogos reconstroem os padrões de produção, comércio e consumo. Os arqueólogos passaram muito tempo estudando fragmentos de cerâmica, pois são mais duráveis do que muitos outros artefatos, como os têxteis e a madeira. A quantidade de fragmentos de cerâmica permite estimar tamanho e densidade da TABELA 1.2 população. A descoberta de que os ceramistas usavam materiais que não estavam disponíveis localmente sugere sistemas de comércio. Semelhanças na fabricação e decoração em locais diferentes podem ser prova de conexões culturais. Grupos que tenham vasilhames semelhantes podem ter relações históricas e, talvez, compartilhem antepassados culturais, tenham negociado entre si ou pertençam ao mesmo sistema político. Muitos arqueólogos examinam a paleoecologia. A ecologia é o estudo das inter-relações entre seres vivos em um ambiente. Juntos, organismos e ambiente constituem um ecossistema, uma configuração de fluxos de energia e intercâmbios que segue determinados padrões. A ecologia humana estuda os ecossistemas que incluem pessoas, enfocando as formas como o uso humano “da natureza influencia a organização social e os valores culturais e por eles é influenciado” (Bennett, 1969, p. 10-11). A paleoecologia observa os ecossistemas do passado. Além de reconstruir padrões ecológicos, os arqueólogos podem inferir transformações culturais, por exemplo, ao observar mudanças no tamanho e no tipo dos sítios e na distância entre eles. Uma cidade grande se desenvolve em uma região onde, alguns séculos antes, só existiam cidadezinhas, aldeias e vilarejos. O número de níveis de assentamento (cidade grande ou pequena, povoado, aldeia) em uma sociedade é uma medida da complexidade social. As construções dão pistas sobre as características políticas e religiosas. Templos e pirâmides Etnografia e etnologia – duas dimensões da antropologia cultural ETNOGRAFIAETNOLOGIA Exige trabalho de campo para coletar dados Utiliza os dados coletados por uma série de pesquisadores Muitas vezes descritiva Normalmente sintética Específica de um grupo ou comunidade Comparativa/intercultural Um espelho para a humanidade 35 Uma equipe de arqueólogos trabalha em Harappa, onde esteve uma antiga civilização do Vale do Indo, que remonta a aproximadamente 4.800 anos. sugerem que uma antiga sociedade tinha uma estrutura de autoridade capaz de mobilizar o trabalho necessário para construir esses monumentos. A presença ou a ausência de determinadas estruturas, como as pirâmides do Egito e do México antigos, revela diferenças de funções entre os assentamentos. Por exemplo, algumas cidades eram lugares a que as pessoas iam para assistir a cerimônias, outras eram locais de sepultamento e outras, ainda, comunidades agrícolas. Os arqueólogos também reconstroem os padrões de comportamento e estilos de vida do passado fazendo escavações, ou seja, cavando uma sucessão de níveis em um sítio. Em uma determinada área, ao longo do tempo, os assentamentos podem mudar de forma e propósito, assim como as conexões entre eles. As escavações podem documentar alterações em atividades econômicas, sociais e políticas. Embora sejam mais conhecidos pelo estudo da pré-história, isto é, o período anterior à invenção da escrita, os arqueólogos também estudam as culturas dos povos históricos e até mesmo dos que ainda vivem (ver Sabloff, 2008). Estudando navios afundados na costa da Flórida, arqueólogos ­subaquáticos foram capazes de verificar as condições de vida nos navios que trouxeram ancestrais afro-americanos para o Novo Mundo, na condição de pessoas escravizadas. Em um projeto de pesquisa que iniciou em 1973, em Tucson, Arizona, o arqueólogo William Rathje aprendeu sobre a vida contemporânea com o estudo do lixo moderno. O valor da “lixologia” (garbology), como Rathje a chama, é que ela fornece “evidências do que as pessoas faziam, e não do que elas acham que faziam, do que acham que deveriam ter feito ou do que o entrevistador acha que elas deveriam ter feito” (Harrison, Rathje e Hughes, 1994, p. 36 Conrad Phillip Kottak 108). O que as pessoas informam pode ser muito diferente do seu comportamento real, como revelado pela lixologia. Por exemplo, o lixólogos descobriram que os três bairros de Tucson que relataram o menor consumo de cerveja tinham, na verdade, o maior número de latas de cerveja descartadas por domicílio (Podolefsky e Brown, 1992, p. 100)! A lixologia de Rathje também mostrou ideias equivocadas sobre a quantidade de diferentes tipos de lixo que está em aterros sanitários: embora a maioria das pessoas considerasse as embalagens de fast-food e as fraldas descartáveis como os grandes problemas em termos de lixo, na verdade, elas eram relativamente insignificantes em comparação com o papel, incluindo o papel reciclável, que não seria prejudicial ao meio ambiente (Rathje e Murphy, 2001). Antropologia biológica ou física O tema da antropologia biológica, ou física, é a diversidade biológica humana no tempo e no espaço. O foco na variação biológica une cinco interesses especiais na antropologia biológica: 1. Evolução humana segundo a revela o registro fóssil (paleoantropologia). 2. Genética humana. 3. Crescimento e desenvolvimento humanos. 4. Plasticidade biológica humana (capacidade do corpo para mudar ao enfrentar estresse, como calor, frio e altitude). 5. A biologia, a evolução, o comportamento e a vida social de macacos, símios e outros primatas não humanos. Esses interesses ligam a antropologia física a outros campos: biologia, zoologia, geologia, anatomia, fisiologia, medicina e saúde pública. A osteologia – o estudo dos ossos – ajuda os paleoantropólogos, que examinam crânios, dentes e ossos, a identificar os ancestrais humanos e acompanhar as mudanças na anatomia ao longo do tempo. O paleontólogo é um cientista que estuda os fósseis. Um paleoantropólogo é uma espécie de paleontólogo que estuda o registro fóssil da evolução humana. Os paleoantropólogos muitas vezes trabalham em conjunto com os arqueólogos, que estudam artefatos, na reconstrução de aspectos biológicos e culturais da evolução humana. É comum serem encontrados fósseis e ferramentas juntos. Diferentes tipos de ferramentas fornecem informações sobre os hábitos, os costumes e o estilo de vida dos humanos ancestrais que as usavam. Mais de um século atrás, Charles Dar­ win percebeu que a variedade que existe em toda a população permite que alguns indivíduos (com características privilegiadas) se saiam melhor do que outros na sobrevivência e na reprodução. A genética, que se desenvolveu mais tarde, ajuda a esclarecer Aplicando a antropologia à cultura popular INDIANA JONES Pensemos em qualquer um dos quatro filmes de Indiana Jones, dirigidos por Steven Spielberg. Os arqueó­ logos costumam se queixar de que esses filmes distorcem a percepção pública de seu campo de trabalho, retratando-os como saqueadores gananciosos, aventureiros, amorais e não científicos. De que forma Indiana Jones influenciou sua opinião sobre a arqueologia, se é que houve alguma influência? Falando em termos mais gerais, as imagens dos arqueólogos na mídia fazem você ter uma opinião melhor ou pior do campo da arqueologia? Um espelho para a humanidade as causas e a transmissão dessa variedade. No entanto, não são apenas os genes que causam a variedade. Durante a vida de qualquer indivíduo, o ambiente funciona junto com a hereditariedade para determinar as características biológicas. Por exemplo, pessoas com tendência genética a ser altas serão menores se forem mal alimentadas na infância. Assim, a antropologia biológica também investiga a influência do ambiente sobre o corpo à medida que o indivíduo cresce e amadurece. Entre os fatores ambientais que influenciam o corpo em sua evolução estão altitude, nutrição, temperatura e doenças, bem como os fatores culturais, como os padrões de atratividade. A antropologia biológica (junto com a zoologia) também inclui a primatologia. Os primatas incluem os nossos parentes mais próximos: símios e macacos. Os primatólogos estudam a biologia, a evolução, o comportamento e a vida social daqueles primatas, muitas vezes em seus próprios ambientes naturais. A primatologia auxilia a paleoantropologia, porque o comportamento dos primatas pode ajudar a explicar o início do comportamento humano e da natureza humana. Antropologia linguística Não sabemos (e é provável que nunca chegaremos a saber) quando nossos ancestrais adquiriram a capacidade de falar, embora os bioantropólogos tenham examinado a anatomia do rosto e do crânio para especular sobre a origem da linguagem, e os primatólogos descrito os sistemas de comunicação de macacos e símios. Sabemos que existem línguas complexas e gramaticalmente bem desenvolvidas há milhares de anos. A antropologia linguística oferece mais um exemplo do interesse da antropologia na comparação, na mudança e na variação. A antropologia linguística estuda a língua em seu contexto social e cultural, no 37 espaço e no tempo. Alguns antropólogos linguistas fazem inferências sobre as características universais da linguagem, ligadas, talvez, a uniformidades no cérebro humano; outros reconstroem línguas antigas comparando suas descendentes contemporâneas e assim fazem descobertas sobre a história; outros, ainda, estudam as diferenças linguísticas para descobrir percepções variadas e padrões de pensamento em culturas diferentes. A linguística histórica considera a variação no tempo, como as mudanças em sons, gramática e vocabulário entre o inglês médio (falado desde aproximadamente 1050-1550 d.C.) e o inglês moderno. A sociolinguística investiga as relações entre variações sociais e linguísticas. Nenhuma língua é um sistema homogêneo em que todos falam da mesma maneira. De que formas os diferentes falantes usam um determinado idioma? Como as características linguísticas se relacionam com os fatores sociais, incluindo as diferenças de classe e gênero (Tannen, 1990)? Uma das razões para a variação é a geografia, como acontece com os dialetos e sotaques regionais. A variação linguística também se expressa no bilinguismo dos grupos étnicos. Os antropólogos linguistas e culturais colaboram no estudo de ligações entre a língua e muitos outros aspectos da cultura, por exemplo, a forma como as pessoas avaliam parentesco e como percebem e classificam as cores. ANTROPOLOGIA E OUTROS CAMPOS ACADÊMICOS Como já mencionado, uma das principais diferenças entre a antropologia e os outros campos acadêmicos é o holismo, a mistura singular que a antropologia faz de perspectivas biológicas, sociais, culturais, linguís­ ticas, históricas e contemporâneas. Para­ doxalmente, embora diferencie a antropologia, essa amplitude é o que também a 38 Conrad Phillip Kottak conecta a muitas outras disciplinas. Técnicas usadas para datar fósseis e artefatos chegaram à antropologia vindas da física, da química e da geologia. Como os restos de plantas e animais são encontrados muitas vezes com ossos humanos e artefatos, os antropólogos colaboram com botânicos, zoólogos e paleontólogos. Como é uma disciplina ao mesmo tempo científica e humanista, a antropologia tem ligações com muitas outras áreas acadêmicas. É uma ciência – um “campo de estudo ou corpo de conhecimento sistemático que visa, por meio de experimentação, observação e dedução, produzir explicações confiáveis de fenômenos, com referência no mundo material e físico” (Webster’s New World Encyclopedia, 1993, p. 937). Os capítulos seguintes apresentam a antropologia como uma ciência humanista dedicada a descobrir, descrever, compreender e explicar semelhanças e diferenças no tempo e no espaço entre os seres humanos e nossos antepassados. Clyde Kluckhohn (1944) descreveu a antropologia como “a ciência das semelhanças e diferenças humanas” (p. 9). Sua declaração sobre a necessidade desse campo ainda permanece: “A antropologia fornece uma base científica para lidar com o dilema crucial do mundo de hoje: como povos de aparência diferente, línguas ininteligíveis entre si e formas diferentes de vida podem conviver pacificamente?” (p. 9). A antropologia elaborou um impressionante corpo de conhecimento que este livro tenta sintetizar. Além de suas ligações com as ciências naturais (p. ex., geologia, zoologia) e as ciên­cias sociais (p. ex., sociologia, psicologia), a antropologia também tem fortes ligações com as humanidades, que incluem inglês, literatura comparada, temas clássicos, folclore, filosofia e artes. Essas áreas estudam idiomas, textos, filosofias, artes, música, atuações e outras formas de expressão criativa. A etnomusicologia, que estuda as formas de expressão musical em nível mun- dial, tem uma ligação particularmente íntima com a antropologia. Também está ligada ao folclore, o estudo sistemático de histórias, mitos e lendas de diversas culturas. Pode-se argumentar que a antropologia está entre os mais humanistas de todos os campos acadêmicos por causa de seu respeito fundamental à diversidade humana. Os antropólogos ouvem, registram e representam as vozes de uma enorme quantidade de nações e culturas. A antropologia valoriza o conhecimento local, visões de mundo diferentes e distintas filosofias. A antropologia cultural e a antropologia linguística, em particular, trazem uma perspectiva comparada e não elitista sobre formas de expressão criativa, incluindo língua, arte, narrativas, música e dança, vistas em seu contexto social e cultural. ANTROPOLOGIA APLICADA A antropologia não é uma ciência do exótico realizada por estudiosos excêntricos em torres de marfim; ela tem muito a dizer ao público. A principal organização de profissionais da antropologia, a American Anthropological Association (AAA), assumiu formalmente um papel de serviço público ao reconhecer que a área tem duas dimensões: 1. antropologia acadêmica ou geral e 2. antropologia aplicada ou profissional. Esta última se refere à aplicação de dados, perspectivas, teoria e métodos antropológicos para identificar, avaliar e resolver problemas sociais contemporâneos. Como afirma Erve Chambers (1987, p. 309), a antropologia aplicada é o “campo de pesquisa que trata das relações entre o conhecimento antropológico e os usos desse conhecimento no mundo para além da antropologia”. Cada vez mais antropólogos dos quatro subcampos trabalham nessas áreas “aplicadas”, como Um espelho para a humanidade 39 ANTROPOLOGIA HOJE Filho de antropóloga é eleito presidente É sabido que Barack Obama é filho de pai queniano e mãe branca norte-americana, do Kansas. Menos reconhecido é o fato de que o 44o presidente dos Estados Unidos é filho de uma antropóloga, a Dra. Stanley Ann Dunham Soetoro (em geral chamada apenas de Ann Dunham). Essa descrição centra-se em sua vida e sua atração pela diversidade, que a levou a trabalhar em antropologia. Antropóloga sociocultural por formação, Dunham trabalhou com microfinanças e questões socioeconômicas que afetam as mulheres da Indonésia, um exemplo de aplicação da antropologia para identificar e resolver problemas contemporâneos. Em outras palavras, ela fazia, ao mesmo tempo, antropologia cultural e aplicada. Os antropólogos estudam a humanidade em tempos e lugares variados e em um mundo em rápida transformação. Em virtude de suas origens, sua enculturação e sua experiência no exterior, Barack Obama é um excelente símbolo da diversidade e das interconexões que caracterizam um mundo desse tipo. Além disso, sua eleição é uma homenagem aos Estados Unidos como país cada vez mais diversificado. O menino Barack Obama com sua mãe, a Na versão resumida da história de Barack Obama, sua mãe é simplesmente a mulher branca do Kan- antropóloga Ann Dunham. sas... Durante a campanha eleitoral, ele a chamou de sua “mãe solteira”. No entanto, nenhuma dessas descrições consegue retratar a vida não convencional de Stanley Ann Dunham Soetoro, quem mais influenciou Obama entre seus pais. No Havaí, ela se casou com um estudante africano aos 18 anos. Depois, casou-se com um indonésio, mudou-se para Jacarta, tornou-se antropóloga, escreveu uma dissertação de 800 páginas sobre a atividade dos ferreiros camponeses de Java, trabalhou para a Fundação Ford, defendeu o trabalho das mulheres e ajudou a levar o microcrédito aos pobres do mundo. Ela tinha grandes expectativas para seus filhos. Na Indonésia, acordava o filho às 4h da manhã para que fizesse cursos de inglês por correspondência antes de ir à escola. Trazia para casa gravações de Mahalia Jackson, discursos do reverendo Dr. Martin Luther King Jr. e, quando Obama pediu para ficar no Havaí para cursar o ensino médio, em vez de voltar à Ásia, ela aceitou viver longe dele – uma decisão que sua filha diz ter sido uma das mais difíceis na vida de Stanley Ann. “Ela achava que, de alguma forma, vagando por territórios desconhecidos, poderíamos tropeçar em algo que, em um instante, pareceria representar quem somos no íntimo”, disse Maya Soetoro-Ng, meia-irmã de Obama. “Essa era basicamente a sua filosofia de vida: não se limitar por medo de definições estreitas, não construir muros ao redor de nós mesmos e fazer o melhor que pudermos para encontrar a afinidade e a beleza em lugares inesperados”. Barack Obama... pouco viu o pai após os 2 anos de idade. Embora seja impossível precisar a influência de um pai sobre a vida de um filho, as pessoas que conheceram bem Stanley Ann afirmam ver sua influência de forma evidente em Obama. (continua) 40 Conrad Phillip Kottak ANTROPOLOGIA HOJE Filho de antropóloga é eleito presidente (continuação) “Ela era uma grande pensadora”, disse Nancy Barry, ex-presidente do Banco Mundial das Mulheres, uma rede internacional de fornecedores de microfinanças na qual Soetoro trabalhou em Nova York no início da década de 1990. Em uma aula de russo na Universidade do Havaí, Ann Duham conheceu o primeiro aluno africano da faculdade, Barack Obama. Eles se casaram e tiveram um filho em agosto de 1961, uma época em que o casamento inter-racial era raro nos Estados Unidos. O casamento durou pouco. Em 1963, Obama partiu para Harvard, deixando a esposa e o filho. Ela então se casou com o estudante indonésio Lolo Soetoro. Quando ele foi chamado a seu país, em 1966, após a agitação em torno da ascensão de Suharto, Stanley Ann e Barack foram junto com ele. Seu segundo casamento também acabou, na década de 1970. Stanley Ann queria trabalhar, disse um amigo, e seu marido queria mais filhos. Ele ia se tornando mais norte-americano, ela disse uma vez, enquanto ela se tornava mais javanesa. “Existe uma crença javanesa de que, se você estiver casado com alguém e não funcionar, a situação vai deixá-la doente”, disse Alice G. Dewey, antropóloga e amiga. “É simplesmente uma idiotice permanecer casada.” Em 1974, Stanley Ann estava de volta a Honolulu, fazendo pós-graduação e criando Barack e Maya, nove anos mais nova. Quando ela decidiu retornar à Indonésia, três anos mais tarde, para fazer seu trabalho de campo, Barack decidiu não ir. Fluente em indonésio, Stanley Ann mudou-se com Maya primeiro para Yogyakarta, o centro do artesanato javanês. Tendo sido tecelã na faculdade, ela ficou fascinada com o que Soetoro-Ng chama de “as deslumbrantes minúcias da vida”. Esse interesse inspirou seu estudo sobre indústrias de aldeia, que se tornou a base da sua tese de doutorado em 1992. “Ela adorava morar em Java”, disse a Dra. Dewey, que se lembra de acompanhar Stanley Ann até uma aldeia onde se trabalhava com metal. “As pessoas diziam: ‘Oi, tudo bom?’. E ela dizia: ‘Como vai a sua esposa? A sua filha ganhou nenê?’. Eles eram amigos. Aí ela pegava o caderno e dizia: ‘Quantos de vocês têm energia elétrica? Você está tendo problemas para conseguir ferro?’”. Ela se tornou consultora da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional na criação de um programa de crédito em aldeias e, em seguida, responsável de programas da Fundação Ford em Jacarta, especializada em trabalho de mulheres. Mais tarde, foi consultora no Paquistão e, em seguida, trabalhou no banco mais antigo da Indonésia, naquilo que é descrito como um programa mundial de microfinanças sustentáveis, criando serviços como crédito e poupança para os pobres. Os visitantes sempre frequentavam o escritório dela na Fundação Ford, no centro de Jacarta, e sua casa em um bairro ao sul, onde mamoeiros e bananeiras cresciam no jardim e eram servidos pratos javaneses no jantar. Os seus convidados eram líderes do movimento indonésio de direitos humanos, gente de organizações de mulheres, representantes de grupos comunitários que faziam desenvolvimento de base. Soetoro-Ng se lembra de conversas com a mãe sobre filosofia ou política, livros, motivos esotéricos em trabalhos indonésios em madeira. “Ela nos deu um entendimento muito amplo do mundo”, disse sua filha. “Ela detestava a intolerância e estava muito determinada a ser lembrada por uma vida de serviço e achava que servir era de fato a verdadeira medida de uma vida”. Muitos de seus amigos veem seu legado em Obama – na autoconfiança e motivação que ele demonstra, em sua disposição para ir além dos limites e até mesmo seu conforto aparente com mulheres fortes. Ela morreu em novembro de 1995, quando Obama estava começando sua primeira campanha para um cargo público. Depois de uma cerimônia fúnebre na Universidade do Havaí, disse um amigo, um pequeno grupo de amigos partiu de carro para o litoral sul, em Oahu. Com o vento arremessando as ondas sobre as pedras, Obama e Soetoro-Ng colocaram as cinzas de sua mãe no Pacífico, enviando-as na direção da Indonésia. Fonte: Janny Scott, “A free-spirited wanderer who set obama’s path”, New York Times, 13 de março de 2008. Direitos autorais © 2008 The New York Times. Co. Reproduzido com permissão. Um espelho para a humanidade saúde pública, planejamento familiar, negócios, desenvolvimento econômico e gestão de recursos culturais. A antropologia aplicada abrange qualquer uso de conhecimentos e/ou técnicas dos quatro subcampos para identificar, avaliar e resolver problemas práticos. Em função de sua amplitude, a antropologia tem muitas aplicações. Por exemplo, os profissionais da antropologia da saúde aplicada consideram os contextos socioculturais e biológicos e as implicações de doenças e problemas de saúde. As percepções de saúde boa e ruim, junto com ameaças à saúde e problemas reais, diferem entre as sociedades. Vários grupos étnicos reconhecem diferentes doenças, sintomas e causas, e desenvolveram diferentes sistemas de saúde e estratégias de tratamento. A arqueologia aplicada, em geral chamada de arqueologia pública, inclui atividades como gestão de recursos culturais, serviços de arqueologia prestados por contrato, programas de educação pública e preservação histórica. Um papel importante para a arqueologia pública foi criado pela lei que exige a avaliação de locais ­ameaçados por barragens, rodovias e outras atividades de construção. Decidir o que precisa ser salvo e preservar informações importantes sobre o passado quando isso não puder ser feito é o trabalho da gestão de recursos culturais (GRC). A GRC envolve não só a preservação de locais, mas também permite sua destruição, se eles não forem importantes. A parte relativa a “gestão” diz respeito a avaliação e TABELA 1.3 41 tomada de decisão. Os gestores de recursos culturais trabalham para órgãos federais, estaduais e municipais e para outros clientes. Os antropólogos culturais que fazem trabalho aplicado por vezes trabalham com os arqueólogos públicos, avaliando os problemas humanos gerados pela mudança proposta e determinando como podem ser reduzidos. A Tabela 1.3 relaciona os quatro subcampos da antropologia a suas duas dimensões. RESUMO 1. A antropologia é o estudo holístico, biocultural e comparativo da humanidade. É a exploração sistemática da diversidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço. Examinando as origens e as alterações da biologia e da cultura humanas, a antropologia apresenta explicações para semelhanças e diferenças entre seres humanos e suas sociedades. 2. Os quatro subcampos da antropologia geral são (sócio) cultural, arqueológico, biológico e linguístico. Todos consideram a variação no tempo e no es­ paço. Cada um também examina a adaptação – o processo pelo qual os or­ ­ganismos lidam com as pressões ambientais. A perspectiva biocultural da antropologia é uma forma particularmente eficaz de se aproximar de inter-relações entre biologia e cultura. As forças culturais moldam a biologia hu- Os quatro campos e as duas dimensões da antropologia SUBCAMPOS DA ANTROPOLOGIA (ANTROPOLOGIA GERAL) EXEMPLOS DE APLICAÇÃO (ANTROPOLOGIA APLICADA) Antropologia cultural Antropologia arqueológica Antropologia biológica ou física Antropologia linguística Antropologia do desenvolvimento Gestão de recursos culturais (GRC) Antropologia forense Estudo da diversidade linguística em salas de aula