Two Dogmas of Empiricism e a - Universidade Federal do Piauí

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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
Two Dogmas of Empiricism e a “Guinada Científica” na Filosofia Analítica
Leonardo Bruno Vieira Santos
Teresina, PI
2012
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
Two Dogmas of Empiricism e a “Guinada Científica” na Filosofia Analítica
Leonardo Bruno Vieira Santos
Dissertação
apresentada
ao
Mestrado em Ética e Epistemologia
da Universidade Federal do Piauí,
sob a orientação da Profª. Drª. Maria
Cristina de Távora Sparano, como
requisito para obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Teresina, PI
2012
3
FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco
Serviço de Processamento Técnico
S237t
Santos, Leonardo Bruno Vieira
Two dogmas of empiricism e a “guinada cientifica” . / Leonardo
Bruno Vieira Santos - Teresina: 2012.
70 fls.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) Universidade Federal do Piauí,
Teresina, 2012
Orientação: Profª. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano
1.Empirismo. 2. Epistomologia.3.Analiticidade. I. Título.
C D D 121
Orientação: Profª. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano
1.Empirismo. 2. Epistomologia.3.Analiticidade. I. Título.
4
Dissertação
defendida
em
________
de
________
de
2012,
considerada_______________ pela banca examinadora.
Teresina, _______de ________ de 2012.
________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina de Távora Sparano – UFPI (Orientadora)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Celso Reni Braida – UFSC (Examinador externo)
__________________________________________________________
Prof. Dr. Gérson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI (Examinador/MEE)
5
Agradecimentos
Agradeço a DEUS, por todas as coisas boas que aconteceram na minha
vida, sem Ele o caminho teria sido mais doloroso;
Agradeço à minha mãe, Djanira Vieira da Silva Santos, pelo amor, carinho
e dedicação que me permitiram prosseguir na minha formação acadêmica apesar
de tantas dificuldades;
Agradeço à Profª Maria Cristina de Távora Sparano, minha eterna
orientadora, pela oportunidade de me desenvolver como um estudante de filosofia
e por tudo o que fez por mim ao logo desta caminhada até o mestrado;
Agradeço à Luciana Luiza de Carvalho, pelo amor e companheirismo tão
essenciais na vida de qualquer pessoa;
Agradeço às minhas grandes amigas Socorro Maria de Sousa, Ana Belisa
da S. Fiquereido e Antonia da Cruz da Rosa Araújo pelo incentivo e pela amizade
sincera;
Agradeço ao professor Elvécio Paraguai por ter me colocado no caminho
que me trouxe até este momento;
Agradeço aos meus irmãos Eduardo Henrique Vieira Santos, pela ajuda
com a revisão ortográfica deste trabalho e pelo incentivo, e Francisco das Chagas
Santos Filhos pelo incentivo;
Agradeço também o apoio dos novos amigos, em particular Ladyane
Francisca Caminha.
Agradeço à Tomas Sparano Martins pela ajuda com o abstract do presente
trabalho.
6
Se o mundo é mesmo parecido com o que
vejo prefiro acreditar no mundo do meu
jeito.
Renato Russo
The future is unwritten
Joe Strummer
A filosofia se recupera quando cessa de
ser
um artifício
para
lidar
com os
problemas dos filósofos e se torna um
método, cultivado pelos filósofos, para
lidar com os problemas dos homens.
John Dewey
7
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar um clássico da filosofia analítica,
Two Dogmas of Empiricism, de W. V. Quine. O impacto das teses presentes neste
artigo promoveram uma revolução no âmbito da tradição analítica da filosofia. A
distinção analítico/sintético, o qual é o principal alvo do ceticismo de Quine em
Two Dogmas of Empiricism, é um dos dualismos mais persistentes da história da
filosofia. De Leibniz à Kant, passando por Locke e Hume, este dualismo,
independente do nome adotado pelos filósofos, esteve imune ao rigor dos
grandes mestres. Entretanto, o século XX assistiu ao início de um debate que
teve consequências significativas para a tradição analítica: de um lado os
positivistas lógicos defendendo a analiticidade e do outro Nelson Goodman,
Morton White e W. V. Quine colocando em xeque esta noção. O percurso trilhado
no presente trabalho tem seu ponto de partida nos argumentos de Quine contra a
analiticidade apresentados em Two Dogmas of Empiricism. Defenderemos que
neste artigo Quine tem como alvo pelo menos quatro versões da noção de
analiticidade. A primeira é a versão clássica que estipula que para um enunciado
ser classificado como analítico, seu valor de verdade deve estar vinculado
unicamente ao significado dos seus termos componentes. O argumento principal
de Quine é contra a noção de analiticidade que depende da noção de sinonímia.
Quine argumenta que mesmo ao recorrer às definições ou a permutabilidade
salva veritate, não há como fugir do círculo vicioso no qual caímos com esta
noção da analiticidade. A tese Duhem-Quine, ou o holismo, que Quine propõe
contra o dogma do reducionismo, acaba por possibilitar que se apresente uma
nova versão da distinção analítico/sintético. Defenderemos, também, que o
holismo é uma tese de Duhem, sendo que Quine apenas faz uso desta tese, sem,
no entanto, lhe acrescentar nada de significativo. A “guinada científica”, que seria
a consequência do abandono dos dois dogmas empiristas pode ser posta em
xeque, uma vez que a alegação de que filosofia e ciência não podem ser
desvinculadas, ou melhor, não há uma fronteira clara entre elas, é fruto de um
equívoco por parte de Quine. Como veremos, é possível fazer uma clara distinção
entre filosofia e ciência.
PALAVRAS-CHAVE: Analiticidade; Empirismo; Filosofia; Ciência; Epistemologia.
8
ABSTRACT
The present study aims to analyze a classic of analytic philosophy, W. V. Quine’s
Two Dogmas of Empiricism. The impact of the theses presented in this article
promoted a revolution within the analytic philosophy tradition. The analytic /
synthetic distinction, which is the main target of Quine's skepticism in Two
Dogmas of Empiricism, is one of the most persistent dualisms of the history of
philosophy. From Leibniz to Kant, through Locke and Hume, this dualism,
regardless of name adopted by philosophers, has been immune to the great
masters’ rigor. However, the twentieth century saw the beginning of a debate that
had significant consequences for the analytic tradition: on one side the logical
positivists defending analyticity and the other side Nelson Goodman, Morton White
and W. V. Quine jeopardizing this notion. The paths followed in this study have
their starting points in Quine's arguments against analyticity presented in Two
Dogmas of Empiricism. We will argue that this article Quine has targeted at least
four versions of the notion of analyticity. The first is the classic version which
states that an utterance to be classified as analytical, its truth value should be tied
solely to the meaning of its components. Quine's main argument against notion of
analyticity depends on the notion of synonymy. Quine argues that even when
referring to definitions or interchangeability salva veritate, there is no escape from
the vicious circle in which we fall with this notion of analyticity. The Duhem-Quine
thesis, or holism, that Quine proposes against the dogma of reductionism,
ultimately enabling it to present a new version of the analytic / synthetic distinction.
We also defend that holism is a thesis of Duhem, and Quine only makes use of
this thesis, without, however, adding nothing significant. The "scientific turn," which
would be the consequence of the abandonment of the two empiricists dogmas
may be called into question, since the claim that science and philosophy cannot be
dissociated, or better, there is no clear boundary between them, is the result a
mistake by Quine. As we shall see, it is possible to make a clear distinction
between philosophy and science.
KEYWORDS: Analyticity; Empiricism, Philosophy, Science, Epistemology.
9
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................... 11
1
Analiticidade e Significado..................................................................
15
1.1.
Introdução...............................................................................................
16
1.2.
Breve histórico da analiticidade..............................................................
18
1.2.1. A fase pré-kantiana................................................................................
18
1.2.2. A fase kantiana.......................................................................................
19
1.2.3. A fase pós-kantiana................................................................................
20
1.3.
Verdadeiro em virtude de significados...................................................
23
2.
Analiticidade e Sinonímia....................................................................
30
2.1.
Introdução...............................................................................................
31
2.2.
A analiticidade como um dogma............................................................
32
2.2.1. Definição.................................................................................................
32
2.2.2. Permutabilidade......................................................................................
35
2.2.3. Regras semânticas.................................................................................
37
3.
A “guinada científica” na Filosofia Analítica.....................................
47
3.1.
Introdução...............................................................................................
48
3.2.
Analiticidade e reducionismo..................................................................
48
3.3.
A tese Duhem-Quine..............................................................................
51
3.3.1. Pierre Duhem.........................................................................................
52
10
3.4.
A “guinada científica” na Filosofia Analítica...........................................
57
Considerações Finais..........................................................................................59
Referências
Bibliográficas..............................................................................................65
11
INTRODUÇÃO
A analiticidade é uma noção que, de um modo ou de outro, tem
atravessado a história da filosofia. Esta noção, ao longo da modernidade, vai
ganhando contornos e conteúdos mais claros. Na filosofia contemporânea acabou
por ser o motivo de grande controvérsia, motivando um dos mais fecundos
debates desta tradição da Filosofia.
As discussões de Quine e Carnap no que diz respeito à analiticidade
ecoaram ao longo da curta existência da tradição analítica. Two Dogmas of
Empiricism de Quine é fruto deste debate e se tornou um clássico da filosofia
desde o momento em que foi apresentado em público.
As revoluções na filosofia são resultado de trabalhos bem distintos quanto
a sua extensão. Por exemplo, se compararmos a Crítica da Razão Pura de Kant à
Two Dogmas of Empiricism chega a ser difícil de acreditar que um texto tão
pequeno possa ter motivado tantos debates.
As consequências das teses de Quine no referido artigo colocaram fim ao
Positivismo Lógico e levaram a filosofia analítica a um estágio científico. A
Filosofia analítica, a partir daquele momento estaria “nas vias seguras de uma
ciência”, compartilhando seus resultados e não tendo a pretensão de lhe servir de
fundamento, a filosofia era tida como uma continuidade, uma ciência.
Desse modo no primeiro capítulo nos voltaremos para noção de
analiticidade que se tornou clássica na Filosofia analítica, ou seja, a que defende
que um enunciado é analítico unicamente em virtude de significados. Esta noção
advém dos trabalhos de Frege e Carnap.
Iniciaremos os capítulos com uma breve consideração histórica sobre a
analiticidade. De forma a tornar a exposição mais clara dividiremos a história da
analiticidade em três períodos tendo como referência Kant.
O primeiro período denominaremos fase pré-kantiana. Neste período
destacam-se filósofos como Leibniz, Hume e Locke. Leibniz se referiu aos
12
enunciados que posteriormente seriam conhecidos como analíticos com a
denominação verdades de razão.
Como o próprio nome deixa transparecer, as verdades de razão não tinham
sua verdade vinculada a fatos. Leibniz caracterizou tais verdades como aquelas
que poderiam ser verdadeiras em todos os mundos possíveis. Esta noção de
“mundos possíveis” será reformulada posteriormente por Carnap em suas
descrições de estado.
Hume, por seu turno, nos fala em relações de ideias. Essas relações de
ideias são exemplificadas por Hume com os enunciados da matemática. Que dois
mais dois resulta em quatro é algo que pode ser obtido por meio de raciocínio,
não havendo qualquer dependência com o modo pelo qual o mundo se apresenta.
Locke utilizou uma terminologia que deixava transparecer certo ceticismo
sobre o papel deste tipo de enunciado no que diz respeito ao progresso do
conhecimento. As proposições frívolas, segundo Locke, são de dois tipos:
proposições de identidade e proposições predicativas.
Em ambos os casos, ressalta Locke, este tipo de proposição não pode
aumentar o conhecimento de um indivíduo, mesmo que este enuncie mil
proposições de identidade, por exemplo. Quando muito, este tipo de proposição
pode servir para fins de explicação de uma determinada palavra, no caso das
proposições predicativas.
Diferentemente dos filósofos acima citados, Kant, dedicou atenção especial
aos juízos analíticos e foi responsável por refinar esta noção. Desse modo, para
Kant, um juízo analítico é aquele juízo da forma sujeito-predicado em que esta
relação se dá de três modos: Contenção, identidade e contradição. Esta é a fase
kantiana da história da analiticidade.
Na fase pós-kantiana sobressai-se a tradição analítica e sua relação de
amor e ódio com a noção de analiticidade. Nesse período temos a reviravolta
linguística na Filosofia, revolução essa que converteu a teoria cognitivista da
analiticidade kantiana em uma teoria lógico-liguística.
13
Desse modo, nos primórdios da tradição analítica a analiticidade é
esposada pelos Positivistas Lógicos, mas acaba sendo posta em xeque
posteriormente pelos filósofos que de um modo ou de outro estavam ligados aos
positivistas, tal é o caso de Quine.
Em 1951 Quine lança seu ataque mais significativo contra a analiticidade
ao apresentar seu artigo Two Dogmas of Empiricism. Dentre as quatro versões da
noção de analiticidade contra a qual Quine se volta em seu artigo, nosso primeiro
capítulo tem sua segunda parte dedicada à noção de analiticidade cujo
fundamento é a noção de significado.
O capítulo um será dedicado ao argumento de Quine contra a noção de
significado, que serve como fundamento para a noção de analiticidade. Veremos
que este argumento, embora apareça de forma resumida em Two Dogmas of
Empiricism, está presente em outro artigo, On What There Is. Os dois artigos
compõem a coletânea From a logical point of view.
O capítulo dois será dedicado ao argumento principal de Two Dogmas of
Empiricism contra a analiticidade, mais especificamente a noção de analiticidade
que é atribuída a Frege e que se vale da noção de sinonímia.
Quine mostrou que, uma vez que os enunciados analíticos podem ser
divididos em duas classes distintas, sendo que a primeira é logicamente
verdadeira enquanto que a segunda necessita da sinonímia para se tornar uma
verdade lógica, pouco importa se recorramos às definições ou a permutabilidade
salva veritate para obter a sinonímia necessária para tal processo.
Nos dois casos caímos em um círculo vicioso, pois em vez de produzir a
sinonímia, tais procedimentos exigem sinonímias estabelecidas previamente.
Quine se volta então para as regras semânticas de Carnap de modo a determinar
se é possível obter a analiticidade.
Quine conclui que é um erro pensar que as linguagens artificiais, por
estarem livres das ambiguidades das linguagens naturais, possuem os elementos
necessários para uma definição clara de analiticidade.
14
Assim, Quine apresenta sua famosa conclusão de que a divisão
analítico/sintético não passa de um artigo metafísico na qual os empiristas
depositam suas esperanças.
No capitulo três abordaremos a “guinada científica” promovida por Quine
na Filosofia analítica a partir de Two Dogmas. O capítulo iniciará com os
argumentos de Quine contra a quarta versão de enunciado analítico que está
ligada ao segundo dogma do empirismo, ou seja, o reducionismo. Contra o
reducionismo Quine lança mão do holismo.
A principal consequência do abandono dos dois dogmas do empirismo,
segundo Quine, é a destruição da fronteira entre Filosofia e Ciência, de tal modo
que conduz a Filosofia analítica a sua fase científica.
15
CAPÍTULO I
A ANALITICIDADE E SIGNIFICADO
RESUMO
O presente capítulo será dedicado a apresentar e discutir a crítica de
Quine, em Two Dogmas of Empiricism, à noção de analiticidade que depende da
noção de significado.
O percurso a ser trilhado começa com algumas considerações sobre a
analiticidade na modernidade fazendo uma breve referência a Leibniz e suas
verdades de razão e Hume com suas relações de ideias.
Daremos maior atenção às considerações de Locke para o que ele
denominou de proposições frívolas. Indiscutivelmente Kant merece um lugar de
destaque na história da analiticidade, por esse motivo, resumidamente,
apresentaremos sua teoria da analiticidade.
Veremos, por fim, o argumento de Quine contra a noção de significado.
16
1.1.
Introdução
Deve-se ter em mente que Quine não foi o único filósofo contemporâneo a
colocar em xeque a divisão analítico/sintético. Na “virada linguística” que ocorreu
na Filosofia, a teoria cognitivista da analiticidade de Kant foi convertida em uma
teoria lógico-linguística da analiticidade, sendo que esse feito é atribuído a Frege
e Carnap.
É exatamente contra essa noção de analiticidade proposta por Frege e
Carnap que muitos filósofos da tradição analítica, herdeiros da tendência
antidualista dos pioneiros do pragmatismo americano, sendo que essa tendência
é mais evidente em John Dewey e Peirce, se opuseram. Figuram entre esses
opositores Nelson Goodman (1906-1998), Morton White (1917- ).
Alguns anos antes da publicação de Two Dogmas of Empiricism, os
filósofos acima já haviam publicado artigos que anteciparam as críticas de Quine
no que diz respeito à analiticidade.
No entanto, Two Dogmas of Empiricism (1951) de Quine, que é o objeto de
estudo da presente dissertação, que se sobressaiu em relação aos outros artigos
que o precederam e tinha objetivo semelhante, era mais direto em suas críticas, e
teve como alvo pelo menos quatro versões da noção de analiticidade:
(1)
a noção que caracteriza a analiticidade como verdadeira em virtude
de significados;
(2)
a noção que caracteriza a analiticidade em termos de sinonímia;
(3)
a noção que apela às regras semânticas;
17
(4) a noção que está ligada à teoria verificacional do significado ou
reducionismo.
Discutiremos, inicialmente, o ataque controverso de Quine a noção de
enunciado analítico como aquele que é verdadeiro em virtude unicamente dos
significados dos termos que o compõe. No capítulo seguinte abordaremos os
argumentos principais de Two Dogmas of Empiricism às outras três noções de
analiticidade e especialmente à noção que depende da sinonímia.
Iniciemos, então, com uma breve consideração histórica sobre a
analiticidade, tendo em vista ressaltar o fato de que esta noção está presente na
história da Filosofia há vários séculos, sendo alvo das considerações de filósofos
renomados, que contribuíram significativamente para o desenvolvimento do
pensamento ocidental.
Assim, a história da noção de analiticidade tem suas raízes na Antiguidade,
se levarmos em conta que a analiticidade é um tipo de modalidade 1·, mas uma
definição clara remonta da Modernidade.
As modalidades, como objeto de estudo, remontam a Aristóteles, como é
possível comprovar em sua obra sobre lógica reunida com o título de Organum.
A analiticidade é uma modalidade semântica, pois um enunciado é
classificado como analítico quando o valor de verdade deste enunciado pode ser
determinado observando unicamente o significado dos termos que compõem tal
enunciado. 2
Na contemporaneidade foi empreendida uma distinção que visou tornar
mais claros os conceitos que eram tidos como co-extensivos com o conceito de
enunciado analítico.
1
Há três tipos de modalidades: as modalidades aléticas (necessário ou contingente); as
modalidades epistêmicas (a priori ou a posteriori); as modalidades semânticas (analítico ou
sintético). No entanto, há ainda aqueles que colocam em dúvida a co-extensionalidade das três
noções.
2
BRANQUINHO, 2006, p. 526.
18
Conceitos como necessário e a priori passaram ao mesmo nível que o
conceito de “analítico”. Entretanto, há ainda aqueles que relutam em aceitar essa
classificação
1.2.
Breve histórico da analiticidade
1.2.1. A fase pré-kantiana da analiticidade
A história da analiticidade pode ser dividida em três momentos distintos:
fase pré-kantiana, fase kantiana, fase pós-kantiana ou analítica. Esta distinção
visa a apenas fins didáticos, não havendo, portanto, qualquer pretensão em supor
que esta distinção é a mais adequada, seu objetivo é unicamente facilitar a
exposição do tema em questão, tendo como ponto de referência o refinamento
empreendido por Kant.
Na fase pré-kantiana encontramos filósofos como Leibniz e Hume fazendo
uso de uma distinção entre enunciados verdadeiros em si mesmos e enunciados
que necessitam da experiência para serem verdadeiros.
Leibniz usou os termos verdades de razão e verdades de fato, enquanto
Hume se referia a essa dicotomia como relações de ideias e questões de fato. A
abordagem de Locke, no entanto, merece destaque em relação aos demais
filósofos dessa época.
Locke (1632-1704) no capítulo VII, do livro III, de seu Ensaio sobre o
entendimento humano, descreveu as proposições analíticas de um modo que já
colocava em xeque sua utilidade para o progresso do conhecimento humano.
Locke dividiu essas proposições em dois tipos: proposições idênticas e
proposições predicativas.
As proposições idênticas se apresentam na forma o que é, é. São
proposições em que afirmamos o mesmo termo de si mesmo, por exemplo, um
homem é um homem.
19
Locke chama nossa atenção para o fato de que um sujeito poderia
enunciar infinitas proposições desse tipo e ainda assim, embora admitamos que
sejam válidas, não acrescentará nada ao conhecimento que já possui. Nas
palavras do próprio Locke, não passa de uma frivolidade por parte de quem se
aventurar em tal empreendimento.
As proposições predicativas, por seu turno, são aquelas em que “uma
palavra da definição é afirmada da palavra definida”.
3
Um exemplo que Locke
utiliza é o ouro é um metal.
A única utilidade que Locke aponta para uma proposição predicativa é
simplesmente instruir de modo mais curto uma pessoa sobre o significado de uma
palavra. Uma pessoa que não soubesse o que a palavra ‘ouro’ quer dizer, poderia
receber como explicação ouro é um metal.
1.2.2. A fase kantiana da analiticidade
Kant (1724-1804) desempenha um papel de destaque na história da
analiticidade, pelo fato de ter sido o primeiro a lhe dedicar maior atenção, além de
definir a denominação e o conceito de tais enunciados.
O ponto que deve ser ressaltado na teoria kantiana da analiticidade é seu
caráter cognitivista. Para Kant, os juízos analíticos eram a priori, sendo que esse
tipo de conhecimento se caracteriza por ser necessário e universal.
Assim, para Kant a consciência é o lócus de toda possibilidade de
conhecimento, na medida em que os dados empíricos chegam de forma
desordenada e caótica, torna-se necessário que se ponha ordem nesse caos para
que possamos ter acesso a um conhecimento claro, e segundo Kant, essa função
é desempenhada pelas categorias do entendimento.
Tendo em mente o que foi exposto acima, podemos agora nos voltar para a
teoria da analiticidade kantiana.
3
LOCKE, 1999, p. 845.
Kant entendia que um enunciado analítico é
20
aquele em que o sujeito pertence ao predicado de três modos: contenção,
identidade e contradição.
Em termos de contenção4, um juízo da forma sujeito-predicado é analítico
se o conceito do predicado estiver contido no conceito do sujeito. Destacam-se
três características:
(1) Uma vez que para Kant há dois tipos de proposições necessárias, a
saber, analíticas e sintéticas, o conceito de necessidade não está
exclusivamente vinculado ao conceito de analiticidade, desse modo
pode servir para explicá-lo;
(2) A contenção não é um critério de analiticidade, estipula apenas que
uma
condição
proposta
se
aplica
a
proposições
da
forma
sujeito/predicado;
(3) A Crítica da Razão Pura estabelece uma condição suficiente e não
necessária para a analiticidade; 5
Por sua vez, em termos de identidade6 um juízo da forma sujeito-predicado
é analítico se o conceito do predicado for idêntico ao conceito do sujeito. Assim,
como no caso da contenção, a identidade estipula simplesmente condições
suficientes para a analiticidade.
Em termos de contradição7 um juízo da forma sujeito-predicado é analítico
se sua negação implicar contradição. O princípio de contradição, ao contrário da
contenção e da identidade, fornecem condições necessárias para a analiticidade,
em vez de prover apenas condições suficientes.
1.2.3. A fase pós-kantiana
4
A6-7/B10-11
HANNA, 2005, p. 190.
6
A7/B10-11
7
A151/B190-1
5
21
A chamada Virada Linguística na Filosofia, ocorrida no final do século XIX
e início do século XX, revolução essa impulsionada pelos escritos de Russell
(1872-1970), Frege (1848-1925), Moore (1873-1958) e o Tractatus Logico
Philosophicus de Wittgenstein (1889-1951), converteu a teoria cognitivista da
analiticidade de Kant em uma teoria lógico-linguística da analiticidade.
Os filósofos posteriores a Kant já haviam percebido as limitações da noção
kantiana de analiticidade e empreenderam seus esforços em tornar a noção de
analiticidade mais abrangente, pois, por exemplo, a noção kantiana se limitava a
enunciados da forma sujeito-predicado.
Frege, por exemplo, em sua obra Os Fundamentos da Aritmética, se volta
para a questão de um novo modo. Nas palavras de Frege:
A questão é assim retirada do domínio da psicologia e remetida,
tratando-se de uma verdade matemática, ao da matemática.
Importa então encontrar sua demonstração e nela remontar até as
verdades primitivas. Se neste caminho esbarra-se apenas em leis
lógicas gerais e definições, tem-se uma verdade analítica,
pressupondo-se que sejam também levadas em conta as
proposições sobre as quais se assenta a admissibilidade de uma
definição. Se não é possível, porém, conduzir a demonstração sem
lançar mão de verdades que não são de natureza lógica geral, mas
que remetem a um domínio científico particular, a proposição é
sintética. Para que uma verdade seja a posteriori requer-se que sua
demonstração não se possa manter sem apelo a questões de fato,
isto é, a verdades indemonstráveis e sem generalidade, implicando
enunciados acerca de objetos determinados. Se, pelo contrário, é
possível conduzir a demonstração apenas a partir de leis gerais que
não admitem nem exigem demonstração, a verdade é a priori. 8
Assim, Frege, diferentemente de Kant, aplicará critérios puramente lógicos
para determinar os enunciados analíticos. Além disso, Frege defende que as
proposições analíticas não são vazias, sob certo aspecto.
Pois elas conteriam “toda uma cadeia de raciocínio”, sendo diretamente
relevantes para o trabalho de “descobrir e expor” as relações de consequência
entre proposições.
8
FREGE, 1983, p. 204-205.
22
Isto o leva a recusar a noção de inclusão conceitual, sobretudo, por ela
supor um conceito de conceito como uma conjunção de notas características.
9
De um modo geral, a teoria da analiticidade de Frege tem como
fundamento um logicismo moderado, que pode ser expresso por meio de duas
teses:
(1) Todas as verdades da aritmética são verdades lógicas;
(2) Todos os conceitos aritméticos são exprimíveis em termos puramente
lógicos. 10
O componente principal da apresentação de Frege é sua noção de
definição lógica. Nenhuma das verdades analíticas “é acessível por meio de
derivações a partir apenas de leis lógicas gerais, mas, na verdade, requerem
também definições lógicas como premissas”. 11
Entretanto:
A definição fregeana aparece em toda a sua riqueza quando
associada às outras distinções, a saber, entre sentido e significado,
e entre conceito e objeto. As verdades analíticas constituiriam
aquelas proposições que explicitam as relações que se
estabelecem entre os sentidos (Sinn), ou ainda entre os conceitos,
independentemente dos fatos particulares. As verdades analíticas,
aquelas em cuja justificação não se é remetido a nenhum fato
particular, fundar-se-iam apenas através do pensamento (Denken).
Desse modo, fica claro que a estrutura constitutiva de uma verdade
analítica, para Frege, é uma estrutura de sentido (Sinn) ou
pensamento (Gedanken): uma proposição é analiticamente
verdadeira em virtude da estrutura de sentido nela estabelecida,
independentemente dos indivíduos particulares ou fatos, enfim,
independentemente da referência (Bedeutung) das expressões
utilizadas. 12
9
BRAIDA, 2009, p. 33.
HANNA, 2005, p. 232.
11
HANNA, 2005, p. 234.
12
BRAIDA, 2009, p. 34.
10
23
No século XX a analiticidade começa a ser alvo do ceticismo de filósofos
de renome como Nelson Goodman (1906-1998) e W. V. Quine (1908-2000). Além
dos filósofos acima citados, Austin em 1940 no artigo The Meaning of a Word e
White em 1950 no artigo The Analytical and the Synthetic: An Untenable Dualism,
também procuraram mostrar o quão duvidosa é esta noção.
Entretanto, as críticas à analiticidade alcançaram seu auge em 1951, com
a publicação do artigo Two Dogmas of Empiricism de Quine. Os argumentos de
Quine se sobressaíram com relação aos demais críticos da analiticidade.
Uma das possíveis razões para o artigo de Quine ter recebido maior
atenção que os artigos de White e Goodman, que são anteriores a Two Dogmas
of Empiricism, se deve ao fato de que Quine ter sido mais explícito e radical em
sua crítica, além de propor uma alternativa ao problema, ou seja, o holismo,
enquanto White se limita a denunciar a obscuridade da sinonímia, mostrando que
os critérios propostos para se determinar a sinonímia de duas expressões
linguísticas são insatisfatórios.13
Voltemos-nos então para as críticas de Quine a noção de significado que
serve de fundamento a analiticidade.
1.3.
Verdadeiro em virtude do significado
O conceito de enunciado analítico como aquele em que seu valor de
verdade é determinado por significados é fruto da rejeição do sintético a priori
kantiano. Ao rejeitarem essa ideia os empiristas se viram diante de tipos únicos
de enunciados necessários, ou seja, os enunciados analíticos.
Desse modo, definir os enunciados analíticos em termos de significados
possibilitou a conciliação de dois princípios divergentes:
13
A semelhança dos argumentos de Quine e White não é mera coincidência. Two Dogmas of
Empiricism, na verdade é composto por ideias que estão presentes em outros artigos de Quine,
sendo que o próprio White faz referencia ao artigo Notes on Existence and Necessity de 1943.
24
(1) Todo conhecimento advém da experiência;
(2) Há verdades necessárias.
Nos primeiros parágrafos de Two Dogmas of Empiricism Quine inicia com
algumas considerações históricas sobre a analiticidade que como vimos acima e
Quine também ressalta a noção kantiana de analiticidade foi convertida em uma
noção lógico-linguística por meio da substituição do a priori pela noção de
significado.
Quine dedicou apenas cinco parágrafos de Two Dogmas of Empiricism à
questão do significado. As considerações de Quine sobre o significado se limitam
a ressaltar a distinção entre significar e nomear, que nada deixam transparecer
alguma solução para a duvidosa noção de significado que serve de fundamento à
analiticidade.
Além disso, Quine propõe uma suposta relação entre a noção de
significado e o essencialismo aristotélico. O essencialismo aristotélico é a doutrina
que defende que as coisas têm propriedades acidentais e propriedades
essenciais.
Mas, embora faça referência ao essencialismo aristotélico em Two Dogmas
of Empiricism, é somente em Word and Object que Quine apresenta argumentos
contra essa doutrina.
O argumento antiessencialista de Quine ficou conhecido como o
argumento do matemático ciclista. Quine nos convida a considerar um
indivíduo que é ao mesmo tempo matemático e ciclista.
Se levarmos em conta o que defende o essencialismo, então como
matemático esse indivíduo tem que ser necessariamente racional, racionalidade
que pode ser acidental se o tomarmos como um ciclista.
25
Quine, com este exemplo, quer mostrar que a distinção entre acidental e
essencial é absurda, pois o indivíduo que é tanto matemático quanto ciclista tem
atribuído a ele uma racionalidade que é ao mesmo tempo essencial e acidental.
Para Quine não há qualquer equivalente metafísico para essa distinção
entre propriedades essenciais e propriedades acidentais, essa distinção é
meramente linguística.
Pois não faz sentido dizer que “X deve ser P” fora do âmbito de uma
determinada linguagem ou sistema conceitual. Essas propriedades estão na
dependência do modo como nos referimos a um determinado objeto, não ao
objeto em si mesmo.
Um dos argumentos levantados contra Quine é o de que essa distinção
entre propriedades essenciais e acidentais não se aplica a indivíduos, mas a
espécies.
Logo, o argumento do matemático ciclista não teria qualquer efeito sobre o
essencialismo. Mas não discutiremos essas críticas, pois para a presente
discussão o essencialismo aristotélico não é relevante. Voltemos ao nosso tema,
então.
Quanto à distinção entre significar e nomear as considerações de Quine
são as seguintes: a distinção entre significar e nomear no que se refere a termos
singulares como estrela da manhã e estrela da tarde deixa pouca margem para
enganos.
Os dois termos nomeiam o planeta Vênus, mas diferem em significado:
estrela da manhã tem seu significado relacionado ao fato de observamos o
planeta Vênus pela manhã; estrela da tarde tem seu significado relacionado ao
fato de observarmos o planeta Vênus à tarde.
Os dois termos singulares compartilham a mesma referência diferindo em
significado. A menção pode ser estendida aos termos gerais.
Mas, de acordo com Quine, são poucos os que percebem:
26
(...) que há um abismo entre significar e nomear, mesmo no caso
de um termo singular que é genuinamente um objeto. O seguinte
exemplo de Frege (1893) será suficiente. A expressão “estrela da
tarde” nomeia certo objeto físico grande e de forma esférica, que
vaga pelo espaço a alguns milhões de quilômetros daqui. A
expressão “estrela da manhã” nomeia a mesma coisa, como
constatou, provavelmente pela primeira vez, um observador
babilônico. Mas não se pode considerar que as duas expressões
tenham o mesmo significado; do contrário, aquele babilônico
poderia ter abandonado suas observações e se contentado em
refletir sobre o significado de suas palavras. Os significados, então,
sendo diferentes um do outro, têm de ser distintos do objeto
nomeado, que é uma e a mesma coisa em ambos os casos. 14
Assim, essa separação entre a teoria do significado e a teoria da referência
permite-nos perceber que a primeira se ocupa da sinonímia, significância e
analiticidade dos termos.
Como visto anteriormente, a obscura noção de significado – que seria a
ponte entre palavra e objeto – é descartável. Por seu turno, a teoria da referência
agrupa conceitos tais como nomeação, verdade, denotação e extensão.
Entretanto, Quine, observa que:
As fronteiras entre os domínios não são barreiras. Dados dois
domínios, nada impede que um conceito possa ser composto de
conceitos dos dois domínios. Mas, se isso acontece no caso da
teoria do significado e da teoria da referência, nós provavelmente
colocaríamos o conceito híbrido como parte da teoria do significado
simplesmente porque a teoria do significado está em um estado
pior do que a teoria da referência e, entre as duas, é a que,
portanto, tem os pressupostos mais complicados. 15
Desse modo, fica claro que o que Quine chama de “teoria do significado” é
uma das áreas da semântica que se ocupa de noções que necessitam de uma
elucidação tal, que não faz qualquer sentido tomá-las como fundamento para
qualquer tipo de teoria, pois elas, por si só necessitam ser fundamentadas.
14
15
QUINE, 2011, p. 21.
QUINE, 2011, p. 184.
27
Segundo Quine há aqueles que pensam que questionar ou abandonar a
noção de significado é supor um mundo em que há apenas linguagem e nada a
que a linguagem referir.
Mas Quine defende a posição segundo a qual podemos conceber um
mundo cheio de objetos e uma linguagem para se referir a eles do modo como
nos aprouver, sem que com isso tenhamos que recorrer a significados.
Quine conclui que se deve operar uma cisão entre a teoria do significado e
a teoria da referência, afirmando que desse modo:
Uma vez que a teoria do significado esteja nitidamente separada da
teoria da referência, é necessário apenas um pequeno passo para
reconhecer como primeira ocupação da teoria do significado tão
somente a sinonímia de formas linguísticas e a analiticidade dos
enunciados;
os
próprios
significados,
como
entidades
intermediárias obscuras, podem muito bem ser abandonados. 16
Na tentativa de entender a transição do problema do significado para o
problema da sinonímia, nos voltemos um pouco para outro texto de Quine,
presente no livro From a Logical Point of View.
Em O Problema do Significado na Linguística, Quine se volta para a
questão dos significados do seguinte modo: “A confusão entre significado e
referência estimulou a tendência a tomar a noção de significado como dada”
17
.
O problema do significado é que ele é tomado como uma entidade. Assim,
o significado de uma expressão é a ideia expressa. O problema advém do fato de
que ao se falar de ideia de uma ideia gera o equívoco de se ter explicado alguma
coisa.
Como afirmamos anteriormente, o tratamento descuidado da noção de
significado empreendido por Quine em Two Dogmas of Empiricism, não
compromete seu argumento principal, visto que a sinonímia ou a semelhança de
significado é uma área importante do significado. 18
16
QUINE, 2011, p. 40.
QUINE, 2011, p.74.
18
QUINE, 2011, p. 75.
17
28
Entretanto, o fato de Two Dogmas of Empiricism ser precedido pelo artigo
On What There Is, na coletânea From a logical point of view não é obra de uma
escolha arbitraria por parte de Quine.
No artigo On What There Is Quine, ao discutir a questão dos compromissos
ontológicos, nos mostra como podemos usar termos gerais sem nos
comprometermos com qualquer tipo de entidade abstrata.
Segundo Quine, uma coisa é significar outra coisa é nomear. Os problemas
de postular entidades abstratas surgem da confusão entre significar e nomear,
pois há aqueles que defendem que há alguma entidade ao qual os termos fazem
referência.
Assim, se quisermos negar a existência de um unicórnio, por exemplo,
teríamos que admitir que o unicórnio de algum modo é. Este é o problema do não
ser, apelidado por Quine se a barba de Platão.
A estratégia de Quine se vale da aplicação das variáveis ligadas à teroria
das descrições de Russell. Assim:
As variáveis de quantificação “algo”, “nada”, “tudo”, perpassam toda
nossa ontologia, qualquer que seja ela; e estamos presos a uma
pressuposição ontológica particular se, e apenas se, o objeto
presumido da pressuposição tiver de ser reconhecido entre as
entidades que nossas variáveis percorrem para tornar uma de
nossas afirmações verdadeiras. 19
A teoria das descrições de Russell é um recurso utilizado para resolver o
problema dos universais negativos. Quando negamos a existência de algo como
um unicórnio, papai Noel etc., caímos no problema do não ser.
Russell, para resolver este problema, transforma o termo em uma
descrição, evitando assim se comprometer com a existência de qualquer tipo de
entidades abstratas.
Conclusão
19
QUINE, 2011, p. 26.
29
Vimos no presente capitulo um breve histórico da noção de analiticidade,
passando
pela
modernidade
(Locke,
Hume,
Kant)
e
chegando
à
contemporaneidade. Vimos como Quine faz uma primeira abordagem dessa
noção, uma abordagem crítica, atacando o fundamento da noção contemporânea
de analiticidade, ou seja, a noção de significado.
30
CAPÍTULO II
A ANALITICIDADE E SINONÍMIA
Resumo
O presente capítulo se destina a apresentar e analisar o argumento central
de Two Dogmas of Empiricism contra a analiticidade e analisar algumas críticas
contra tais argumentos, sendo que daremos destaque a Carnap, Benson Mates,
Grice e Strawson. A justificativa para a escolha destes autores se baseia
simplesmente no fato de julgarmos que as críticas e alternativas propostas ao
ceticismo de Quine com relação à analiticidade tem impacto considerável sobre
as teses de Quine.
A primeira parte do capítulo apresentará a tese de Quine contra a
analiticidade que necessita da sinonímia. Este argumento demonstra que os
critérios propostos para se produzir a sinonímia que permite converter enunciados
analíticos de segunda classe em verdades lógicas não cumprem tal tarefa de
modo satisfatório, pois a maioria desses critérios pressupõe a própria sinonímia
ou que já tenhamos uma compreensão clara da analiticidade.
31
2.1.
Introdução
No capítulo anterior fizemos referência à passagem da crítica às intensões,
mais especificamente aos significados, para a crítica à sinonímia. Após suas
considerações sobre o significado, Quine nos diz que os enunciados analíticos
são divididos em duas classes: as verdades lógicas ou enunciados analíticos
estreitos e os enunciados analíticos amplos.
A primeira classe de enunciados analíticos é caracterizada pelo fato de que
sua verdade é definida por sua forma lógica, independentemente da interpretação
adotada aos outros termos componentes, excetuando as partículas lógicas.
O exemplo de Quine para a primeira classe é Nenhum homem não
casado é casado. Dada uma lista de partículas lógicas “nenhum”, “não”, “se”
“então”, “e” etc., dizer que uma sentença S é uma verdade lógica é dizer não
apenas que S é verdadeira, mas que sua verdade é indiferente à natureza
particular de seus símbolos não lógicos.
As verdades lógicas, assim como os significados, não recebem muita
atenção de Quine em Two Dogmas of Empiricism. Somente em texto posteriores
é que as verdades lógicas são mais bem detalhadas. No livro Filosofia da Lógica
elas ganham a devida atenção, como demonstra o capítulo IV do referido livro.
No artigo de 1954 intitulado Carnap and Logical Truth, Quine nos diz que
as verdades lógicas são aquelas em que as partículas lógicas ocorrem
essencialmente, excetuando as outras palavras que as compõem, pois estas
podem variar sem que com isso afete a verdade assegurada pelas partículas
lógicas. 20
Mas ao menos no caso das verdades lógicas Quine apresenta um motivo.
Segundo ele, o problema reside na segunda classe de enunciados analíticos.
Essa classe é problemática, pois ela necessita da noção semântica de sinonímia
para ser transformada em uma verdade lógica. O exemplo apresentado por Quine
para essa segunda classe de enunciados analíticos é Nenhum solteiro é
casado.
20
QUINE, 1976, p. 109-110.
32
2.2.
Analiticidade como um dogma
A simplicidade no procedimento de conversão da segunda classe na
primeira é exatamente o problema. O que garante a sinonímia de “solteiro” e
“homem não casado”? Quine examina dois critérios em que se poderia criar a
sinonímia necessária para a segunda classe de enunciados analíticos se
transformarem em verdades lógicas: definição e permutabilidade.
2.2.1. Definição
As definições são partes fundamentais da atividade científica. Este método
é essencial na medida em que os conceitos necessitam ser esclarecidos. Carnap
dedicou atenção às definições, como veremos adiante. Desse modo, Quine
começa examinando três tipos de definições: definição lexical, explicação e
definição notacional. O motivo porque Quine se volta para as definições é
apresentado no início da segunda seção de Two Dogmas of Empiricism:
Existem aqueles que acham reconfortante dizer que os enunciados
analíticos da segunda classe se reduzem aos da primeira, as
verdades lógicas, por definição; “solteiro”, por exemplo, é definido
como “homem não casado”. Mas como descobrimos que “solteiro” é
definido como “homem não casado”? 21
Sigamos, portanto, os argumentos de Quine no que diz respeito à definição
e sua possibilidade de criar a sinonímia necessária à analiticidade. Mas, para
tornar clara nossa descrição, devemos ter em mente o que Quine pretende. Há
duas classes de enunciados analíticos, as verdades lógicas e os enunciados
analíticos amplos.
As verdades lógicas, em um primeiro momento parecem não apresentar
qualquer dificuldade para Quine, o problema está na segunda classe, que devido
21
QUINE, 2011, p. 43.
33
a sua forma, não tem o privilégio das verdades lógicas e necessitam serem
convertidas nesse tipo de enunciado que é verdadeiro unicamente devido às
partículas lógicas que ocorrem nela essencialmente. As verdades analíticas da
segunda classe padecem por estar na dependência da linguagem em que ela é
apresentada.
Assim, a segunda classe dos enunciados analíticos fica refém de uma
noção semântica tão obscura quanto à própria analiticidade, ou seja, a sinonímia.
Essa noção de analiticidade é atribuída a Frege
22
. Desse modo, tendo em mente
as considerações acima, sigamos de perto a argumentação de Quine.
O primeiro tipo de definição que entra em cena em Two Dogmas of
Empiricism é a definição lexical ou a definição do dicionário. Esse tipo de
definição é fruto do trabalho do lexicógrafo. Quando não compreendemos uma
determinada palavra recorremos ao dicionário para clarificar nossa compreensão.
Se não sabemos o que “solteiro” quer dizer e devido a isso recorremos a
um dicionário, como o Aurélio, por exemplo, encontramos que tal palavra pode ser
definida como “homem não casado”.
Segundo Quine o problema com a definição lexical está no fato de que o
lexicógrafo, sendo um cientista empírico, trabalha com base em uma crença de
que há uma relação de sinonímia entre “solteiro” e “homem não casado”, que é
“implícita no uso geral ou preponderante, anterior a seu próprio trabalho”
23
Como o objetivo era derivar a sinonímia por meio da definição lexical, viuse claramente que, na verdade, a sinonímia era pressuposta para esse tipo de
definição. Logo, devemos deixar de lado esse tipo de definição e nos voltarmos
para outro tipo de definição.
O segundo tipo de definição analisado por Quine é a explicação. A
explicação consiste em tornar vagas e ambíguas as expressões da linguagem
cotidiana. Temos desse modo, de um lado, o explicandum, ou seja, a expressão
22
23
BRANQUINHO, 2006, p. 37.
QUINE, 2011, p. 43.
34
que necessita ser precisada e de outro lado o explicantum, a expressão exata que
deve substituir o explicandum.
A explicação de conceitos não é verdadeira nem falsa, porém mais ou
menos adequada. Assim, Carnap estipulou quatro critérios para avaliar a
adequação de uma explicação de conceitos:
(1) Semelhança;
(2) Exatidão;
(3) Fecundidade;
(4) Simplicidade.
O objetivo desse tipo de definição “não é apenas parafrasear o definiendum
em um sinônimo imediato, mas na verdade aperfeiçoar o definiendum, refinando
ou complementando seu significado”
24
. Entretanto, assim como a definição
lexical, a explicação, baseia-se em sinonímias preexistentes.
Nas palavras de Quine:
Dois definientia alternativos podem ser igualmente apropriados para
os propósitos de uma dada tarefa de explicação e, ainda assim, não
serem sinônimos um do outro, pois eles podem ser apropriados de
maneira intersubstituível em contextos privilegiados e divergir em
outros contextos. Sendo fiel a um desses definientia e não ao outro,
uma definição de tipo explicativo gera, por decreto, uma relação de
sinonímia entre definiendum e definiens que não valia antes. Mas
essa definição ainda deve sua função explicativa, como foi visto, a
sinonímias preexistentes. 25
24
25
QUINE, 2011, p. 44.
QUINE, 2011, p. 44-45.
35
O terceiro tipo de definição é a definição notacional. O objetivo deste tipo
de definição é simplesmente introduzir uma nova convenção notacional para fins
de abreviação. De acordo com Quine, diferentemente dos outros dois tipos de
definição, a definição notacional gera o tipo de sinonímia por definição sem, no
entanto, depender da própria sinonímia. O definiendum é criado para ser sinônimo
do definiens. Mas esse tipo de definição tem nada a ver com o problema da
analiticidade.
2.2.2. Permutabilidade Salva Veritate
A definição se mostrou incapaz de servir ao propósito de criar a sinonímia
necessária à analiticidade, pois ela depende de sinonímias anteriores. Assim,
Quine se volta para outro modo de se criar a sinonímia que fundamenta a
analiticidade, ou seja, a permutabilidade salva veritate ou indiscernibilidade dos
idênticos. A permutabilidade consiste em substituir sinônimos por sinônimos.
No entanto, como observa Quine, há casos em que o valor de verdade é
comprometido pelo apelo à permutabilidade, como é o caso da ocorrência da
palavra “solteiro” em “cabo solteiro”, e no enunciado:
“Solteiro” tem oito letras.
Como claramente se percebe, se tomarmos “homem não casado” como
sinônimo de “solteiro”, a substituição desses sinônimos nos exemplos acima se
torna problemática.
No entanto, Quine reconhece que a permutabilidade acima é problemática
por se tratar de ocorrências fragmentárias dentro de uma palavra.
26
Esses tipos
de ocorrência devem ser deixadas de lado.
Quine se volta então para a questão de saber se a permutabilidade salva
veritate serve ao propósito de criar a sinonímia necessária à conversão da
segunda classe de enunciados analíticos em verdades lógicas.
26
QUINE, 2011, p.48.
36
Deve-se deixar claro que o tipo de sinonímia ao qual Quine se refere é a
sinonímia cognitiva, ou seja, a “sinonímia devido ao significado literal dos termos
integrantes”. 27
O argumento de Quine mostra que a permutabilidade salva veritate
também é incapaz de gerar a sinonímia cognitiva, pois mesmo que façamos uso
do advérbio “necessariamente”, em um enunciado como:
Necessariamente todos e somente os solteiros são solteiros.
Que em um primeiro momento torna a permutabilidade salva veritate uma
condição suficiente para a sinonímia cognitiva. Desse modo, a substituição de
“solteiro” por “homem não casado” deveria manter o valor de verdade do
enunciado:
Necessariamente todos e somente os solteiros são homens não casados.
No
entanto,
Quine
chama
nossa
atenção
para
o
advérbio
“necessariamente”. Aceitar que ele faz sentido é “supor que já demos um sentido
satisfatório para “analítico” 28.
O problema é que a permutabilidade salva veritate só pode ser utilizada em
uma linguagem extensional. Mas mesmo neste caso não há garantia de sinonímia
cognitiva:
Não há garantia (...) de que a concordância extensional de “solteiro”
e “homem não casado” se baseie no significado em vez de se
basear meramente em questões de fato acidentais, como acontece
com a concordância extensional entre “criatura com coração” e
“criatura com rins”. 29
Quine conclui que tentar derivar a analiticidade da sinonímia é um modo
equivocado de abordar o problema. Um modo mais apropriado poderia ser tentar
clarificar a analiticidade sem recorrer à noção de sinonímia cognitiva.
É interessante observar que Two Dogmas of Empiricism não é o primeiro
texto em que Quine se volta para o problema da permutabilidade. No livro O
27
STEIN, 2009, p. 108.
QUINE, 2011, p. 50.
29
QUINE, 2011, 52.
28
37
Sentido da Nova Lógica, por exemplo, o tema é abordado no capítulo III
Identidade e Existência.
Parte deste capítulo deu origem ao artigo Notes on Existence and
Necessity. A questão levantada nesses textos é que dado um enunciado de
identidade como:
Giorgione = Barbarelli.
E dado o enunciado:
Giorgione era assim chamado por ser gordo.
A identidade do primeiro enunciado nos autoriza a aplicar o princípio da
substitutividade da identidade ao segundo enunciado. Esse princípio nos diz que
“dado um enunciado verdadeiro de identidade, um dos dois termos pode ser
substituído pelo outro em qualquer verdade, permanecendo o resultado
verdadeiro”. 30
Assim, a substituição de Giorgione por Barbarelli no segundo enunciado
deveria manter o valor de verdade deste enunciado, o que facilmente
comprovamos que não ocorre.
O mesmo argumento é retomado em Referência e Modalidade, que por sua
vez é composto do artigo acima referido Notes on extence and necessity e pelo
artigo The Problem of Interpreting Modal Logic.
2.2.3. Regras Semânticas
A seção IV de Two Dogmas of Empiricism começa com um breve resumo
do percurso trilhado por Quine no que diz respeito a suas considerações sobre a
analiticidade.
A analiticidade pareceu, em princípio, ser mais naturalmente
definível recorrendo a um reino de significados. Fazendo um
refinamento, o recurso aos significados deu lugar a um recurso à
30
QUINE, 1996, p. 119-120.
38
sinonímia ou à definição. Mas a definição se revelou um fogo-fátuo,
e a sinonímia pôde ser mais bem compreendida apenas por força
de um recurso anterior à própria analiticidade. 31
Deixando de lado a sinonímia e se voltando exclusivamente para a
analiticidade, Quine se propõe a discutir um argumento segundo ao qual o
problema de traçar uma fronteira clara entre enunciados analíticos e enunciados
sintéticos nas linguagens naturais se deve ao fato dessas linguagens serem
imprecisas e ambíguas.
Se nos voltamos para uma linguagem artificial à situação é completamente
diferente, pois essas linguagens possuem regras semânticas explícitas. Esse
argumento, como mostra claramente Quine, é fruto de uma confusão.
Quando nos referimos a regras semânticas, nos lembra Quine, os trabalhos
de Carnap entram em cena. Carnap apresentou essas regras semânticas sob
diversas formas. Seguindo o argumento de Two Dogmas of Empiricism
consideremos duas formas em que Carnap considera estas regras semânticas no
que concerne à questão da analiticidade.
O primeiro conjunto de regras semânticas considerados por Quine são
aquelas em que dada uma linguagem artificial L o em que as regras semânticas
estipulam quais enunciados são analíticos.
O problema está obviamente com a palavra “analítico”, pois não
poderemos compreender “analítico para L” se não foi esclarecido o que a palavra
“analítico” quer dizer.
O segundo conjunto de regras semânticas não tem a pretensão de dizer
quais enunciados são analíticos, mas nos diz que esses enunciados estão
incluídos entre as verdades. Desse modo:
Uma regra semântica desse segundo tipo, uma regra de verdade,
não tem de especificar todas as verdades da linguagem; ela apenas
estipula, recursivamente ou de outro modo, certa quantidade de
31
QUINE, 2011, 53-54.
39
enunciados que, com outros não especificados, devem ser
considerados verdadeiros. 32
Temos, assim, os enunciados analíticos sendo definidos como se segue:
um enunciado é analítico se é verdadeiro segundo a regra semântica. Nesse caso
há apenas uma mudança de foco, mas o problema permanece.
O termo “regras semânticas”, de acordo com Quine necessita da mesma
clarificação que o termo “analítico para”. Quine conclui que recorrer a regras
semânticas para especificar os enunciados analíticos de uma linguagem artificial
não faz sentido se não clarificarmos antes o conceito de analiticidade. Essas
regras semânticas não têm qualquer utilidade para obter essa clarificação.
Após expor suas supostas teses contra a analiticidade Quine apresenta
uma das passagens mais famosas de Two Dogmas of Empiricism:
É óbvio que a verdade em geral depende tanto da linguagem como
de fatos extralinguísticos. O enunciado “Brutus matou César” seria
falso se o mundo tivesse sido diferente sob certos aspectos, mas
também seria falso se “matou” tivesse o sentido de “gerou”. Assim,
é-se tentado a supor, em geral, que a verdade de um enunciado é
de alguma forma decomponível em um componente linguístico e
um componente factual. Dada essa suposição, parece em seguida
razoável que, em alguns enunciados, o componente factual deva
ser nulo; e estes são os enunciados analíticos. Mas, apesar de
razoável a priori, simplesmente não foi traçada uma fronteira entre
enunciados analíticos e sintéticos. Que tal distinção deva ser feita é
um dogma não empírico dos empiristas, um metafísico artigo de fé.
33
A conclusão de Quine decorre do fato de que, uma vez que não foi
apresentado qualquer critério que possa fazer uma distinção clara entre
enunciados analíticos e sintéticos, então esta divisão é apenas um dogma que
deve ser abandonada.
32
33
QUINE, 2011, p. 56.
QUINE, 2011, p. 59.
40
0
O ceticismo de Quine com relação à analiticidade não é
unanimidade na comunidade filosófica. Desde a publicação de Two Dogmas of
Empiricism em 1951, várias foram as tentativas de defender a analiticidade dos
ataques de Quine.
É interessante observar que há alguns pontos em comum entre todos
aqueles que se propuseram a defender a distinção analítico/sintético do ceticismo
de Quine: para esses autores Quine é radical demais em suas exigências de um
critério que possa nos ajudar a compreender o que quer dizer o termo “analítico”.
Tendo em vista certa semelhança no que diz respeito ao argumento
levantado contra o ceticismo de Quine no que diz respeito à noção de
analiticidade, os trabalhos de Carnap, Grice e Strawson, Benson Mates.
Um ponto em comum na defesa da analiticidade empreendida por esses
autores, como veremos detalhadamente adiante, é a acusação de que Quine está
sendo muito rigoroso em suas exigências para que se apresentem critérios claros
e seguros para a analiticidade.
Como é de conhecimento de todos, os trabalhos de Quine são um diálogo
direto com Carnap. Tendo em vista a questão da analiticidade, poderíamos lançar
mão da seguinte questão: Por que a distinção analítico/sintético é tão importante
para a Filosofia a ponto de filósofos como Quine dedicarem tanto esforço em
refutá-la?
Uma resposta a essa questão é apresentada por Carnap no livro An
Introduction to the Philosophy of Science, editado em 1966 por Martin Gardner.
No capítulo XXVII do referido livro, Carnap nos diz que uma nítida distinção entre
enunciados analíticos e enunciados sintéticos é importante para a Filosofia da
Ciência:
The theory of relativity, for example, could not have been developed if
Einstein had not realized that the structure of physical space and time
cannot be determined without physical tests. He saw clearly the sharp
dividing line that must always be kept in mind between pure mathematics,
with its many types of logically consistent geometries, and physics, in which
41
only experiment and observation can determine which geometries can be
applied most usefully to the physical world. 34
É interessante observar, a partir da citação acima, que a teoria da
relatividade, assim como a tese heliocêntrica de Copérnico se valem desta
distinção entre elementos teóricos e elementos factuais. Assim, uma distinção
entre enunciados analíticos e sintéticos, no âmbito da construção de teorias
científicas é de fundamental importância.
Para Carnap, acreditando ser de fundamental importância a distinção entre
enunciados verdadeiros unicamente em virtude do significado (analíticos) e
enunciados que necessitam de conteúdo factual para determinar seu valor de
verdade (sintético), elaborou algumas réplicas ao ceticismo de Quine com relação
à distinção analítico/sintético.
Em Meaning Postulates a estratégia de Carnap foi acrescentar às regras
da linguagem um conjunto indefinidamente grande de frases formais que
representam frases intuitivamente analíticas em português como “solteiros são
não casados”.
Como ele diz “se há relações lógicas (por exemplo, implicação lógica ou
incompatibilidade) entre os predicados primitivos de um sistema, então a
explanação da analiticidade requer que sejam especificados postulados para
todas essas relações”.
Em outras palavras, postulados de significado são axiomas suplementares
da linguagem formal para estender o alcance lógico das regras semânticas.
Usando postulados juntamente com as regras semânticas originais, todas as
frases analíticas estreitas e amplas podem ser derivadas logicamente como
teoremas e, portanto, como verdades lógicas adicionais.
Outra defesa elaborada por Carnap pode ser encontrada em um texto
publicado no livro Dear Carnap, Dear Van. No texto Quine on analyticity, Carnap
mostra que diferentemente do Quine alega, o problema com um enunciado como
34
CARNAP, 1995, p. 257.
42
“Tudo o que é verde é extenso”, não está no fato dele ser classificado como
analítico, mas sim na ambiguidade das palavras que o compõem.
No artigo Analytic Sentenses Benson Mates, contra a alegação de Quine
de que as tentativas de explicar a analiticidade são circulares, observa que
“definições circulares são frequentemente muito eficazes na produção de
conhecimento”. 35
Mesmo diante da alegação de que todas as definições de analiticidade
acima
apresentadas
são
circulares,
ainda
assim,
elas
podem
muito
satisfatoriamente ajudar a clarificar nosso entendimento do termo “analítico” que
Quine diz não entender.
Mates acrescenta que do fato de não ser capaz de dizer quais casos um
determinado
predicado
pode
abranger,
não
podemos
inferir
que
não
compreendemos esse predicado. Se não somos capazes de decidir se um
enunciado como “Tudo que é verde é extenso”, isso não nos coloca em uma tal
situação em que somos obrigados a admitir que não entendemos o termo
“analítico”.
As exigências de Quine para uma definição satisfatória de “analítico”,
adverte Mates, podem ser altas demais a ponto de não ser possível apresentar tal
definição. Mates apresenta um resumo das críticas de Quine às diversas versões
da noção de analiticidade.
A primeira definição considerada é a que estipula que um enunciado é
analítico se e somente se for verdadeiro em todos os mundos possíveis. Esta
definição para Quine, segundo Mates, não serve ao propósito de nos auxiliar na
compreensão
do
termo
“analítico”,
pois
admitir
que
advérbios
como
“necessariamente” e “possivelmente” fazem algum sentido é supor que já
estamos de posse de uma clara compreensão de “analítico”, quando na verdade é
exatamente esta clara compreensão que estamos buscando.
35
MATES, 1951, p. 528.
43
A mesma crítica pode ser estendida à segunda definição, um enunciado é
analítico se e somente se não puder ser falso. Neste caso, assim como no caso
anterior, está sendo pressuposto que já compreendemos o que “analítico” quer
dizer e no entender de Quine, nós não sabemos o que esse termo quer dizer. As
duas primeiras definições de enunciados analíticos são inúteis em esclarecer o
significado claro do termo.
A terceira definição de analiticidade é a que se vale da noção de
autocontrariedade, desse modo, um enunciado analítico seria aquele em que sua
negação implica contradição.
Entretanto, a noção de autocontrariedade utilizada para fundamentar a
analiticidade nesse caso é tão duvidosa quanto à própria noção que ela tem que
fundamentar, segundo Quine são os dois lados da mesma e duvidosa moeda.
A quarta definição, que foi analisada no primeiro capítulo do presente
trabalho, nos diz que um enunciado é analítico se e somente se for verdadeiro em
virtude de significados sem que haja a necessidade de se recorrer a fatos.
O problema com essa definição é que essas entidades chamadas
“significados”, para Quine, ou são mentais ou são platônicas, logo, não há como
fundar uma ciência sobre tão duvidoso fundamento.
A quinta definição, como vimos no começo deste capítulo é problemática
porque se vale da noção de sinonímia, que também necessita ser clarificada. E,
no entender de Quine, todos os critérios utilizados para derivar a analiticidade da
sinonímia falham, pois ou eles já pressupõem a sinonímia ou pressupõem que já
compreendemos claramente a analiticidade.
A sexta definição de analiticidade é atribuída a Carnap. Um enunciado é
analítico se for verdadeiro em todas as descrições de estado. Logicamente, que
tal definição não é aplicável às linguagens naturais, mas visa às linguagens
artificiais.
Aqui o motivo de Quine parece ser que se esta definição fosse
aplicada à linguagem natural seria insatisfatória. Pressupõe que as
frases atômicas da linguagem são logicamente independentes uma
da outra, que não poderia ser o caso se houvesse qualquer
44
sinônimo extralógico pares na notação primitiva. Assim, o conjunto
de frases definida pela definição (6) é, com efeito, somente o
conjunto de verdades lógicas e não de sentenças analíticas na sua
integralidade. Quine não discute o que aconteceria se estávamos a
rever a definição de "descrição de estado" para cuidar da
possibilidade de tais sinônimos, mas provavelmente teremos que
usar a “regra semântica”, que também não vai passar no teste. 36
A sétima definição recorre às definições para fundamentar a analiticidade.
Um enunciado seria analítico quando fosse reduzido a verdades lógicas por meio
de definições. Vimos que Quine havia mostrado que os tipos de definições que se
poderiam recorrer nesse caso são insatisfatórios, pois pressupõem a controversa
noção de sinonímia.
A oitava definição, também atribuída a Carnap, diz respeito às regras
semânticas. Nesse caso, a analiticidade é considerada para uma linguagem
artificial, onde é possível evitar as ambiguidades das linguagens naturais, mas
ainda assim, ressalta Quine, tais linguagens fazem uso do termo “analítico” que
não compreendemos bem.
Uma das defesas clássicas da analiticidade encontra-se no artigo In
Defense of Dogma de H. P. Grice e P. F. Strawson, publicado em 1956. Neste
artigo os autores defendem que a distinção analítico/sintético tem um uso
filosófico estabelecido, sendo que isso é um motivo suficiente para considerar
absurdo negar que tal distinção deva ser feita.
Os autores defendem a opinião de que alegar falta de precisão não justifica
a rejeição de um conceito como “analítico”. Entretanto, é essa a sugestão de
Quine. Se até o momento ninguém conseguiu apresentar um conceito claro ou
mesmo um critério objetivo que nos ajude a elucidar o problema da analiticidade,
então toda a tradição filosófica que defendeu tal distinção estava equivocada.
Esse é outro ponto que os autores chamam a atenção: é correto colocar
em xeque toda uma tradição de filósofos que se utilizaram da distinção
analítico/sintético (embora haja diferença quanto à terminologia empregada),
figurando nesta lista nomes como Kant e Hume? Obviamente a resposta é
36
MATES, 1951, p. 526.
45
negativa. Todos esses filósofos parecem não ter duvida sobre os casos em que
podem aplicar tal distinção.
Eles aplicam o termo “analítico”, por exemplo, aos mesmos casos:
(...) se um para de expressões contrastantes são habitualmente e
geralmente usados na aplicação dos mesmos casos, onde estes
casos não formam uma lista fechada, isto é uma condição
suficiente para dizer que há tipos de casos ao quais as expressões
se aplicam; e nada mais é necessário para distinguir uma distinção.
37
Assim, o argumento de Grice e Strawson tem como base a constatação
histórica de que o termo “analítico” serviu a toda uma tradição filosófica e foi
utilizado eficientemente nas analises dos grandes filósofos. Inicialmente, o que
está sendo defendido é que uma vez que sabemos usar termos como “analítico”,
não justifica sua rejeição o fato de não sermos capazes de apresentar uma
definição clara de tal conceito. Como veremos adiante, Searle leva as últimas
consequências esse argumento.
Toda a argumentação de Quine, segundo Strawson e Grice, sustenta-se
na exigência de clarificação de certos conceitos filosóficos. Essa clarificação,
entretanto, deve seguir certas condições; sendo que a principal condição é a de,
ao se tentar definir conceitos, não se utilizar, do conjunto daquelas que pertencem
à mesma família do conceito a ser definido, expressões ainda não clarificadas.
Os autores aceitam, até certo ponto, este requerimento de precisão, por
reconhecerem a peculiaridade de termos como “analítico”, que são termos
técnicos, isto é, termos da linguagem ordinária usados em sentido restrito. Mas
insistem no fato de que Quine faz exigências exageradas quanto à forma das
definições dos termos técnicos. “O fato, se for um fato, que as expressões não
podem ser explicadas na forma precisa em que Quine parece requerer, não
significa que elas não possam ser de nenhuma forma explicadas”.
É interessante observar como os autores utilizam-se do argumento que
defendem que a possibilidade de uso de uma expressão, em certas
circunstâncias apropriadas, delega sentido à expressão. Segundo os autores, não
37
GRICE; STRAWSON, 1954, p. 143.
46
parece haver necessidade de definirmos primeiramente uma expressão para,
somente após, a utilizarmos em certos contextos linguísticos.
Podemos aprender a usar uma expressão sem conseguir defini-la, sem
com isso a expressão seja sem sentido. Podemos simplesmente negar que exista
tal distinção apenas porque ela não nos parece clara? Não dependemos da noção
de analiticidade, ou da de relação de expressões a priori, para poder explicar a
estrutura de uma linguagem?
47
CAPÍTULO III
A “GUINADA CIENTÍFICA” NA FILOSOFIA ANALÍTICA E O PRAGMATISMO
Resumo
O presente capítulo se destina a apresentar como Quine promoveu a
“guinada científica” na Filosofia Analítica a partir de Two Dogmas of Empiricism.
O percurso trilhado vai da crítica ao dogma do reducionismo e chega até a
alternativa apresentada por Quine: o holismo.
Veremos que essa proposta tem sua inspiração na ideia de Duhem. Há
também algumas considerações sobre o pragmatismo, para por fim podermos
concluir o trabalho proposto.
48
3.1.
Introdução
Os capítulos anteriores serviram como uma preparação para o presente
capítulo. Até agora discutimos a crítica de Quine à noção de analiticidade em Two
Dogmas of Empiricism. Agora nos voltaremos para a alternativa proposta por
Quine à distinção analítico/sintético e ao reducionismo, ou seja, o holismo.
O passo seguinte neste capítulo será nos voltarmos para a sugestão do
Robert Hanna de que Quine proporcionou uma “guinada científica” na Filosofia
Analítica. Essa revolução na Filosofia Analítica, queremos defender, começa com
o texto Two Dogmas of Empiricism..
De modo resumido, nosso percurso até o momento foi o seguinte. Nossa
discussão tem como centro as críticas de Quine à noção de analiticidade
apresentadas em seu artigo Dois Dogmas do Empirismo, publicado em 1951 na
revista Philosophical Review.
No primeiro capítulo nos focamos na relação analiticidade e significado,
constatando que os argumentos de Quine, no que diz respeito ao primeiro ser
fundamentado pelo segundo, dependem de uma leitura contextualizada de Two
Dogmas.
No segundo capítulo, nos voltamos para a questão da sinonímia como
fundamento da analiticidade. De acordo com Quine há duas classes de
enunciados analíticos: os logicamente verdadeiros e os que podem ser
transformados em verdades lógicas por meio da substituição de sinônimos por
sinônimos.
1.2.
Analiticidade e Reducionismo
Como foi anunciado no primeiro capítulo do presente trabalho, uma das
quatro concepções de analiticidade criticadas por Quine em Two Dogmas of
49
Empiricism se relaciona com o que ele chamou de segundo dogma do empirismo,
ou seja, o reducionismo.
O Positivismo Lógico almejava fazer uma filosofia científica e para alcançar
tal fim este grupo apresentou teses segundo a qual visavam mostrar porque a
filosofia tinha falhado em ser científica. Uma destas teses foi a teoria do
significado, que é composta de dois princípios:
(1) O princípio de verificação: O significado de uma sentença é seu método
de verificação ou confirmação;
(2) Os enunciados da lógica e da matemática, juntamente com enunciados
que explicam as relações de significados, são analíticos no sentido de
que elas são verdadeiros unicamente em virtude de significados e não
fornecem nenhuma informação sobre o mundo.
O princípio de verificação tinha o objetivo explícito de mostrar porque a
Filosofia, em particular, a metafísica, foi mal sucedida.
No primeiro capítulo nos deparamos com a noção de analiticidade que se
valia da duvidosa noção de significado, no entender de Quine; no segundo
capítulo fomos confrontados com a questão da sinonímia como fundamento da
analiticidade e com a tentativa de definir a analiticidade em uma linguagem
artificial por meio de regras semânticas.
Nas palavras de Quine:
O dogma do reducionismo, mesmo em sua forma mais atenuada,
está intimamente ligada a outro dogma: o de que há uma
separação entre analítico e o sintético. Com efeito, fomos levados
deste problema ao primeiro por meio da teoria verificacionista do
significado. De modo mais direto, um dogma claramente apoia o
outro da seguinte forma: enquanto se considerar que em geral há
sentido em falar de confirmação e invalidação de um enunciado,
parece ter sentido falar também de um tipo-limite de enunciado que
50
é confirmado vacuamente ipso facto, aconteça o que acontecer, e
tal enunciado é analítico. 38
Para Quine a teoria verificacionista do significado é um método da qual se
valiam os Positivistas Lógicos para confirmar ou invalidar um enunciado. Dentro
da perspectiva desta teoria, os enunciados analíticos se apresentam como
aqueles que podem ser confirmados em todos os casos.
Refinando o conceito, tendo em mente a noção de sinonímia requerida
anteriormente para a analiticidade, teremos o seguinte conceito: um enunciado
analítico pode ser considerado sinônimo de outro enunciado analítico se, e
somente se, são semelhantes no que se refere ao método de confirmação ou
invalidação empírica. 39
O dogma do reducionismo surge, então, do equívoco de se supor que todo
enunciado significativo pode ser traduzido em outro enunciado sobre a
experiência imediata.
Esse reducionismo foi esposado por Carnap em seu Der Logische Aufbau
der Welt, mas suas raízes remontam ao empirismo de Locke e Hume. Entretanto,
Carnap não chegou nem perto de efetivar a redução dos dados empíricos em
construções lógicas.
Segundo Quine, o dogma do reducionismo persiste na medida em que
ainda se cultiva a ideia de se que pode confirmar ou invalidar um enunciado
isoladamente.
Os enunciados analíticos, portanto, seriam aqueles aos quais estão
associados um “domínio único de eventos sensoriais possíveis tais que a
ocorrência de qualquer um deles aumentam a probabilidade da verdade do
enunciado”. 40
38
QUINE, 2011, p. 65.
QUINE, 2011, p. 60.
40
QUINE, 2011, p. 64.
39
51
A contraproposta de Quine a esse reducionismo é o holismo: a ideia de que
os enunciados não podem ser confirmados ou invalidados um a um, de modo
isolado; estes enunciados enfrentam o “tribunal da experiência” como um “corpo
organizado”.
1.3.
A Tese Duhem-Quine
A proposta holística de Quine é a de que a ciência (ou nossas teorias) se
assemelha a um campo de força que está em contato com a experiência apenas
em suas extremidades. Se há qualquer desacordo nessas extremidades podemos
fazer ajustes de modo a tentar resolver o conflito.
Se reavaliarmos um enunciado, os outros também devem ser revisados,
pois todos os enunciados estão ligados logicamente, não havendo espaço para
enunciados privilegiados que podem ser usados para refutar a teoria.
Essa tese centro-periferia de Quine pode ser melhor explicitada como se
segue. Diferentemente do que acreditavam os defensores da distinção
analítico/sintético, que do ponto de vista metodológico tem como uma
característica importante a bifurcação de nossos padrões de conhecimento, a
saber, os padrões de aceitação, justificação e revisão de enunciados analíticos
diferem dos padrões para a aceitação, justificação e revisão de enunciados
sintéticos; Quine rejeitou esta bifurcação em nossos padrões de conhecimento,
alegando que nosso conhecimento está sujeito a ambos, pois estão sujeitos ao
princípio de revisibilidade universal.
De acordo com tal princípio, não há enunciados que não possam ser
revisados, mesmo as leis lógicas estão a mercê desse princípio. Desse modo,
somos confrontados com outra característica da tese centro-periferia (o holismo)
de Quine: seu caráter falibilista.
Essa tese ficou conhecida como tese Duhem-Quine, pois ela já havia sido
proposta em 1906 por Pierre Duhem no livro La Théorie Physique: Son Objet, As
52
Structure. Voltemos-nos para Duhem no intuito de apresentar, mesmo que
resumidamente, a proposta do cientista francês.
1.3.1. Pierre Duhem
No capítulo VI do livro The Aim and Structure of Physical Theory, o francês
Pierre Duhem apresenta sua proposta “Um experimento isolado na física nunca
pode condenar uma hipótese isolada, mas somente todo um conjunto teórico”
41
.
O objetivo de Duhem é mostrar que não faz sentido tentar refutar uma
hipótese isoladamente. Nas palavras do próprio Duhem:
(...) o físico nunca pode submeter uma hipótese isolada ao teste
experimental, mas apenas todo um conjunto de hipóteses; quando
o experimento está em desacordo com suas previsões, o que ele
aprende é que ao menos uma das hipóteses que constituem este
grupo é inaceitável e deve ser modificada; mas o experimento não
designa qual hipótese que deve ser mudada. 42
O argumento de Duhem para justificar tal hipótese se vale de alguns
exemplos que mostram sua veracidade. Para ele, um físico, ao realizar um
experimento implicitamente reconhece a precisão de um conjunto teórico como
um todo. Nesse sentido, Duhem caracteriza dois tipos de experimentos:
(1) Experimento de aplicação, o conjunto de teorias que permitem
solucionar
um
determinado
problema;
embora
de
fundamental
importância para a ciência, o experimento de aplicação deve ser
acompanhado do experimento de teste;
41
42
DUHEM, 1977, p. 183.
DUHEM, 1977, p. 187.
53
(2) Experimento de teste, de uma proposição que é posta em dúvida,
deriva-se a previsão de um fato experimental, mesmo que se disponha
as condições necessárias para que tal previsão se concretize e tal
previsão não ocorra, a proposição que serviu de fundamento deve ser
condenada;
Valendo-se de dois exemplos Duhem demonstra que uma proposição
nunca está desvinculada de um conjunto teórico. Se as previsões falham, não é
só a proposição avaliada que falha, mas todo o fundamento teórico da qual se
valia o físico.
Duhem conclui, então, que a teoria física é como um organismo, assim
como o médico não pode dessecar o paciente para determinar a origem de um
determinado problema, seja uma dor de cabeça ou uma hemorragia, o físico
também não tem esse privilégio, como vimos acima o experimento não indica qual
hipótese deve ser modificada.
1.4.
Rumo ao Pragmatismo?
Na introdução de Two Dogmas of Empiricism Quine nos diz que uma das
consequências de se abandonar os dois dogmas cultivados pelo empirismo é
“uma mudança de direção rumo ao pragmatismo”
43
No entanto, como veremos essa “mudança de direção” é controversa.
Quine não era um pragmatista, o próprio Quine chamava a atenção para o fato de
que classificá-lo como pragmatista era interpretar de modo equivocado os últimos
parágrafos de Two Dogmas of Empiricism.44
43
44
QUINE, 2011, p. 37.
DE WALL, 2007, p. 203.
54
Para entendermos melhor essa questão nos voltemos para as raízes do
pragmatismo americano. Veremos que pragmatismo e pragmático, de um ponto
de vista filosófico, não são sinônimos.
O pragmatismo é caracterizado de dois modos distintos:
(1) Há estudiosos que definem o pragmatismo como uma teoria do
conhecimento; 45
(2) Outros defendem que o pragmatismo é um método com o qual se faz
filosofia, e não uma teoria filosófica. 46
Essa divergência não é privilégio somente dos estudiosos do pragmatismo,
o seu fundador Charles S. Peirce já havia constatado esse problema, no que se
refere às inúmeras ramificações que se proliferaram no seio do pragmatismo, a
ponto de declarar que o pragmatismo era “uma casa em guerra contra si mesma”
47
Vamos analisar mais a fundo estas duas interpretações do pragmatismo.
Tal análise tem um objetivo definido. Como veremos adiante o naturalismo em
epistemologia não é de modo algum privilégio de Quine.
A proposta de uma epistemologia naturalizada de Quine remonta de seu
artigo homônimo de 1970 e, para se ter uma noção do quão avançados estavam
os pioneiros do pragmatismo, nesta perspectiva, basta lembrar que John Dewey
faleceu em 1959, apenas oito anos após Quine ter apresentado Two Dogmas of
Empiricism.
Do ponto de vista da interpretação (1) o pragmatismo é uma teoria do
conhecimento que visa dar uma resposta adequada para a questão “como se dá o
conhecimento?”.
A hipótese pragmatista é que o homem dispõe de apenas uma metodologia
complexa de conhecimento, que apresenta vários níveis de habilidade.
45
SHOOK, 2002, p. 11.
DE WALL, 2007, p. 22.
47
DE WALL, 2007, p. 15.
48
SHOOK, 2002, p. 11-12.
46
48
Há,
55
entretanto, uma forma básica de investigação inteligente que garante a
continuidade desses níveis.
Por mais que divergissem em vários pontos, Peirce, James e Dewey
concordavam que apesar da experiência ser o fundamento do conhecimento, a
mente transforma a experiência em objeto de conhecimento, sendo que este
processo visa atenuar a dúvida (a etapa preparativa de uma ação com vista a um
fim específico).
É por meio da atividade experimental que a mente transforma a experiência
em objeto do conhecimento, pois ela visa a uma crença prática. Por fim, o
processo experimental de criar crenças sólidas pode ser logicamente avaliado
com base em sua função de nos possibilitar prever confiavelmente e controlar
nosso ambiente.
Peirce, por exemplo, discutiu a questão da fixação de crenças. Para ele
esse processo poderia ser alcançado recorrendo a quatro métodos distintos:
(1) Método da tenacidade;
(2) Método da autoridade;
(3) Método a priori;
(4) Método científico.
Desse modo:
O quarto e último método que Peirce distinguiu é o método
científico. Esse método difere dos três primeiros em que a fixação
da crença não é mais um esforço puramente humano, no sentido
de que quais ideias são fixadas é determinado em última instância
pelo que desejamos acreditar. Nesse método, nossas crenças são
56
determinadas “por algo sobre o que nosso pensamento não tem
efeito algum”. 49
Assim o pragmatismo promoveu duas contribuições significativas ao
empirismo:
(1) O ponto de vista naturalista: surge da tentativa de naturalizar nossa
compreensão de como o sujeito conhece e o que é o conhecimento;
(2) Ponto
de
vista
historicista:
os
pragmatistas
defenderam
que,
diferentemente do que acreditavam os empiristas e racionalistas
clássicos, o modo em que a mente conhece é dinâmico, está em
evolução;
Outro ponto interessante, que deve ser ressaltado é que a filosofia de
Peirce e Dewey era antidualista, ou seja, eles se voltavam contra todos os
dualismos da filosofia. Assim, o empirismo defendido pelos pragmatistas não era
dualista, pois eles não acreditavam que a experiência humana ocorresse fora do
mundo natural. 50
A segunda interpretação do pragmatismo referida acima é a que o concebe
como um método para se fazer filosofia. Nessa interpretação do pragmatismo tem
uma ênfase no método em vez do conteúdo da investigação, mas isso não
significa que os pragmatistas defendiam um dualismo método/conteúdo, pelo
contrário esses dois elementos não podem ser desvinculados.
O pragmatismo, em sua origem, se assemelhava ao empreendimento
proposto pela tradição analítica, ou seja, clarificar termos obscuros. O objetivo era
49
50
DE WALL, 2007, p. 35.
SHOOK, 2002, p. 33.
57
mostrar que um grande número de termos filosóficos não tinha significado e por
isso muitos problemas filosóficos surgiam da falta de clareza desses termos. 51
1.5.
A “Guinada Científica” na Filosofia Analítica
A guinada científica é fruto da tese de Quine segundo o qual não há uma
demarcação clara entre enunciados analíticos e sintéticos, portanto não há
enunciados privilegiados que serão verdadeiros aconteça o que acontecer, até
mesmo a lógica é passível de revisão.
A noção de Filosofia esposada por Quine advém do Positivismo Lógico. Os
Positivistas haviam reduzido a Filosofia à Filosofia da Ciência. Questões
metafísicas e morais eram rejeitadas como sendo sem sentido. O próprio Carnap
tentou mostrar o absurdo da metafísica em seu texto A superação da metafísica
através da análise lógica da linguagem.
Do ponto de vista do Positivismo Lógico só havia espaço para discutir
questões referentes ao âmbito da Filosofia da Ciência. Do mesmo modo, Quine
ainda mantém essa imagem da Filosofia, por isso ele fala em uma continuidade
entre Filosofia e Ciência, na melhor das hipóteses, na pior das hipóteses não
existe uma fronteira entre elas.
Em Espécies Naturais, por exemplo, Quine nos que:
(...) encaro a filosofia não como um embasamento ou como um a
priori propedêutico para ciência, mas como algo em continuidade
com esta última. Para mim, a filosofia e a ciência estão no mesmo
barco – um barco que, para retomar a imagem de Neurath, como
faço tão frequentemente, só podemos reconstruir no mar, enquanto
nele estamos navegando. Não há mirante externo, não há filosofia
primeira. 52
Em Two Dogmas of Empiricism esta continuidade não é explícita, mas
ainda assim se faz presente de modo implícito. Quando Quine, na introdução, nos
51
52
DE WALL, 2007, p. 22.
QUINE, 1975, p. 198.
58
antecipa uma das consequências do abandono dos dois dogmas é a destruição
da fronteira entre uma filosofia primeira e as ciências naturais.
Em Two Dogmas of Empiricism Quine defende uma Filosofia da Ciência
que
contém
tendências
fenomenalistas
e
instrumentalistas,
que
serão
abandonadas em Word and Object, dando lugar a uma Filosofia da Ciência
realística. A ciência, nesta perspectiva, seria uma ferramenta útil para lidar com
experiências futuras, tendo como parâmetro experiências passadas.
O que está em jogo é um novo modo de conceber a estrutura das teorias.
Anteriormente havia a crença de que se poderia fazer uso de enunciados que
seriam verdadeiros em todos os casos possíveis e que tais enunciados poderiam
servir de fundamento.
Quine chama nossa atenção para o fato de que até mesmo a lógica pode
ser revisada quando há qualquer desacordo com a experiência. Não há mais
necessidade de descartarmos uma teoria só com base em enunciados isolados,
temos a possibilidade de fazer reajustes tais que os desacordos podem ser
superados.
A metáfora de Neurath é a imagem perfeita desta guinada promovida por
Quine: estamos em um barco em alto mar, mas não podemos voltar para um cais
onde possamos reconstruir e aperfeiçoar nosso navio. Todo e qualquer
aperfeiçoamento deve ser feito em alto mar.
59
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa discussão teve como centro as críticas de Quine à noção de
analiticidade apresentadas em seu artigo Dois Dogmas do Empirismo, publicado
em 1951 na revista Philosophical Review.
Embora Quine faça referência à Kant em seu texto, chegando até a
reformular o conceito de analiticidade kantiano da seguinte forma: um enunciado
é analítico quando em virtude de significado e independente de fatos, suas
críticas se dirigem à noção de analiticidade que a Filosofia Analítica herdou de
Frege.
De acordo com Quine há duas classes de enunciados analíticos: os
logicamente verdadeiros e os que podem ser transformados em verdades lógicas
por meio da substituição de sinônimos por sinônimos.
A crítica de Quine se dirige justamente a esse segundo tipo de enunciados
analíticos, que necessitam da noção de sinonímia para se tornarem logicamente
verdadeiros. E é justamente este segundo tipo de enunciado analítico que
caracteriza a noção de analiticidade fregeana.
Para Frege uma frase é uma verdade analítica se, e somente se for uma
verdade lógica ou transformável em verdade lógica pela substituição de sinônimos
por sinônimos.
Frege argumenta, ainda, que a analiticidade de uma proposição depende
totalmente de sua demonstrabilidade lógica – mais precisamente, que essa prova
é o princípio objetivo último da justificação epistêmica para a crença na
proposição e que toda derivação lógica começa com premissas verdadeiras
primitivas ou indemonstráveis que são leis lógicas gerais.
A definição fregeana de verdade analítica mostra seu valor somente
quando relacionada a outros conceitos fregeanos como sentido e significado e
conceito e objeto.
60
As verdades analíticas seriam, então, proposições que revelam as relações
que podem ser estabelecidas entre os sentidos ou ainda entre os conceitos, com
autonomia de fatos particulares, fundam-se apenas através do pensamento.
Assim, percebemos que a estrutura que constitui uma verdade analítica é
uma estrutura de sentido ou pensamento. Para Frege, uma proposição é
analiticamente verdadeira somente em virtude da estrutura de sentido nela
estabelecida, tendo autonomia dos indivíduos particulares ou fatos, enfim,
independentemente da referência das expressões utilizadas.
Quine, por sua vez, passa a examinar, então, se é possível obter o tipo de
sinonímia ideal para a segunda classe de enunciados analíticos tendo como
fundamento alguma forma de definição.
No entanto, segundo Quine, a palavra “definição”, devido a seu uso
freqüente em escritos lógicos e matemáticos acabou assumindo um “tom
perigosamente tranqüilizante”.
Mas, de qualquer modo, tanto no trabalho formal quanto no informal a
definição está na dependência de relações de sinonímia anteriores. Assim sendo,
a definição não pode nos ajudar na questão da sinonímia e da analiticidade,
segundo Quine.
Tendo examinado a relação da sinonímia e a definição e descoberto que
esta não possui a chave daquela, Quine passa a examinar se a permutabilidade
pode nos dar acesso ao tipo de sinonímia necessária para transformar
enunciados analíticos da segunda classe em verdades lógicas.
Mas
a
permutabilidade
que
Quine
leva
em
consideração
é
a
permutabilidade salva veritate, ou seja, aquela que conserva o valor de verdade.
Assim, de acordo com Quine, permanece a questão de saber se a
permutabilidade salva veritate (excetuando as ocorrências no interior das
palavras) é condição suficientemente rigorosa de sinonímia, ou se, ao contrário,
algumas expressões heterônimas podem ser, deste modo, permutáveis.
Porém, esclarecemos que não se trata aqui de sinonímia no sentido da
completa identidade nas associações psicológicas ou da qualidade poética; não
61
existem verdadeiramente duas expressões sinônimas neste sentido. Apenas
interessa o que pode ser chamado sinonímia cognitiva.
Sinonímia cognitiva é aquela que vale para o conhecimento. Assim, o que
Quine pretende é tentar derivar a analiticidade da sinonímia cognitiva. Entretanto,
tal forma de permutabilidade não tem qualquer significado até que seja
relativizada a uma linguagem cuja amplitude esteja especificada em aspectos
relevantes.
E mesmo aplicada a uma linguagem do tipo extencional a permutabilidade
salva veritate não é possibilidade de uma sinonímia do tipo que Quine deseja, já
que não se pode, também, derivar a analiticidade.
Assim, Quine conclui que o esforço para explicar primeiramente a
sinonímia cognitiva, para poder dela posteriormente derivar a analiticidade é uma
forma inadequada de abordar o problema. O que deve ser feito é tentar de
alguma forma explicar a analiticidade sem apelar à sinonímia cognitiva.
Deixando de lado a questão da sinonímia, Quine passa a examinar a
possibilidade da analiticidade com base em regras semânticas. Quine nos diz que
o problema em distinguir um enunciado analítico de um enunciado sintético na
linguagem comum se deve a vagueza desta linguagem, sendo que tal distinção
seria mais clara se possuíssemos uma linguagem artificial precisa com regras
semânticas explicitas.
Entretanto, do ponto de vista da analiticidade um linguagem artificial com
regras semânticas, da forma que a permutabilidade salva veritate, não nos ajuda
a obter uma compreensão da analiticidade, visto que, para que tal linguagem
tenha algum interesse, temos que já possuir uma compreensão de analiticidade.
Assim, uma vez que não se pode dar uma explicação não circular de
sinonímia, ou seja, não se pode demarcar a fronteira que separa um enunciado
analítico de um enunciado sintético, então, conclui Quine, tal distinção é apenas
um dogma dos empiristas sem qualquer base empírica, um mero artigo de fé.
62
A crítica de Quine se dirige justamente a esse segundo tipo de enunciados
analíticos, que necessitam da noção de sinonímia para se tornarem logicamente
verdadeiros.
E é justamente este segundo tipo de enunciado analítico que caracteriza a
noção de analiticidade fregeana. Para Frege uma frase é uma verdade analítica
se, e somente se for uma verdade lógica ou transformável em verdade lógica pela
substituição de sinônimos por sinônimos.
Frege argumenta, ainda, que a analiticidade de uma proposição depende
totalmente de sua demonstrabilidade lógica – mais precisamente, que essa prova
é o princípio objetivo último da justificação epistêmica para a crença na
proposição e que toda derivação lógica começa com premissas verdadeiras
primitivas ou indemonstráveis que são leis lógicas gerais².
A definição fregeana de verdade analítica mostra seu valor somente
quando relacionada a outros conceitos fregeanos como sentido e significado e
conceito e objeto.
As verdades analíticas seriam, então, proposições que revelam as relações
que podem ser estabelecidas entre os sentidos ou ainda entre os conceitos, com
autonomia de fatos particulares, fundam-se apenas através do pensamento.
Assim, percebemos que a estrutura que constitui uma verdade analítica é
uma estrutura de sentido ou pensamento. Para Frege, uma proposição é
analiticamente verdadeira somente em virtude da estrutura de sentido nela
estabelecida, tendo autonomia dos indivíduos particulares ou fatos, enfim,
independentemente da referência das expressões utilizadas.
A noção fregeana da analiticidade é que uma proposição é analítica se e
somente se é rigorosamente dedutível de uma ou de ambas as classes especiais
de verdades primitivas ou indemonstráveis leis lógicas gerais e definições lógicas.
Quine, por sua vez, passa a examinar, então, se é possível obter o tipo de
sinonímia ideal para a segunda classe de enunciados analíticos tendo como
fundamento alguma forma de definição.
63
No entanto, segundo Quine, a palavra “definição”, devido a seu uso
frequente em escritos lógicos e matemáticos acabou assumindo um “tom
perigosamente tranquilizante”.
Mas, de qualquer modo, tanto no trabalho formal quanto no informal a
definição está na dependência de relações de sinonímia anteriores. Assim sendo,
a definição não pode nos ajudar na questão da sinonímia e da analiticidade,
segundo Quine.
Tendo examinado a relação da sinonímia e a definição e descoberto que
esta não possui a chave daquela, Quine passa a examinar se a permutabilidade
pode nos dar acesso ao tipo de sinonímia necessária para transformar
enunciados analíticos da segunda classe em verdades lógicas.
Mas
a
permutabilidade
que
Quine
leva
em
consideração
é
a
permutabilidade salva veritate, ou seja, aquela que conserva o valor de verdade.
Assim, de acordo com Quine, permanece a questão de saber se a
permutabilidade salva veritate (excetuando as ocorrências no interior das
palavras) é condição suficientemente rigorosa de sinonímia, ou se, ao contrário,
algumas expressões heterônimas podem ser, deste modo, permutáveis.
Porém, esclarecemos que não se trata aqui de sinonímia no sentido da
completa identidade nas associações psicológicas ou da qualidade poética; não
existem verdadeiramente duas expressões sinônimas neste sentido. Apenas
interessa o que pode ser chamado sinonímia cognitiva.
Sinonímia cognitiva é aquela que vale para o conhecimento. Assim, o que
Quine pretende é tentar derivar a analiticidade da sinonímia cognitiva. Entretanto,
tal forma de permutabilidade não tem qualquer significado até que seja
relativizada a uma linguagem cuja amplitude esteja especificada em aspectos
relevantes.
E mesmo aplicada a uma linguagem do tipo extencional a permutabilidade
salva veritate não é possibilidade de uma sinonímia do tipo que Quine deseja, já
que não se pode, também, derivar a analiticidade.
64
Assim, Quine conclui que o esforço para explicar primeiramente a
sinonímia cognitiva, para poder dela posteriormente derivar a analiticidade é uma
forma inadequada de abordar o problema. O que deve ser feito é tentar de
alguma forma explicar a analiticidade sem apelar à sinonímia cognitiva.
Deixando de lado a questão da sinonímia, Quine passa a examinar a
possibilidade da analiticidade com base em regras semânticas. Quine nos diz que
o problema em distinguir um enunciado analítico de um enunciado sintético na
linguagem comum se deve a vagueza desta linguagem, sendo que tal distinção
seria mais clara se possuíssemos uma linguagem artificial precisa com regras
semânticas explícitas.
Entretanto, do ponto de vista da analiticidade um linguagem artificial com
regras semânticas, da forma que a permutabilidade salva veritate, não nos ajuda
a obter uma compreensão da analiticidade, visto que, para que tal linguagem
tenha algum interesse, temos que já possuir uma compreensão de analiticidade.
Portanto, se nem a noção de analiticidade nem a de sinonímia podem ser
definidas claramente e, além disso, fazem referência ao uso ordinário que não é
explicado pela noção de significado que parecem requerer. Assim, pode-se
concluir que não havendo um enunciado que é verdadeiro por si mesmo, então a
analiticidade não pode ser estabelecida.
Assim, o ponto de partida de Quine é a rejeição da noção de analiticidade.
Desse modo, nos vemos diante de um novo modelo de teoria, ou seja, um modelo
holista, onde não há espaço para enunciados que tem status privilegiado.
O mérito de Quine, assim, foi conduzir a Filosofia Analítica para um novo
estágio. Em um primeiro momento a lógica tinha um lugar de destaque nessa
tradição, por exemplo, vemos Wittgenstein tentar resolver os problemas da
filosofia por meio da análise lógica da linguagem.
Entretanto, o caminho para o progresso da tradição analítica estava além
da lógica. Não há espaço para uma filosofia a priori, por isso Quine propõe seu
holismo, onde não há espaço para este tipo de filosofar.
65
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