MUNICÍPIO - Sistema médico-hospitalar

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MUNICÍPIO - Sistema médico-hospitalar - Requisição, mediante decreto, dos
serviços no setor privado - Insuficiência de leitos nos hospitais públicos e nos
contratados e conveniados com o Poder Público - Motivo que não configura
perigo público iminente ou calamidade pública - Interpretação da Lei Federal n.
6.439, de 1977 - Deliberações requisitórias, ademais, revestidas de
indisfarçável desvio de poder - Nulidade do decreto - Segurança concedida Recurso não provido.( TJSP - Apelação Cível n. 149.172-1/1991 – Rel. Des.
Antonio Marson)
MUNICÍPIO - Sistema médico-hospitalar - Requisição, mediante decreto, dos
serviços no setor privado - Insuficiência de leitos nos hospitais públicos e nos
contratados e conveniados com o Poder Público - Motivo que não configura
perigo público iminente ou calamidade pública - Interpretação da Lei Federal n.
6.439, de 1977 - Deliberações requisitórias, ademais, revestidas de
indisfarçável desvio de poder - Nulidade do decreto - Segurança concedida Recurso não provido.
Apelação Cível n. 149.172-1 - São José dos Campos - Recorrente: Juízo Ex
Officio - Apelante: Municipalidade - Apelados: Clínica São José S. C. Ltda. e
outros.
ACÓRDÃO
ACORDAM, em Oitava Câmara Civil do Tribunal de Justiça, por votação
unânime, negar provimento aos recursos de conformidade com o relatório e
voto do Relator, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Custas na forma da lei. O julgamento teve a participação dos Senhores
Desembargadores José Osório (Presidente sem voto), Fonseca Tavares e
Jorge Almeida, com votos vencedores.
São Paulo, 18 de setembro de 1991.
ANTONIO MARSON, Relator.
Voto
1. Trata -se de mandado de segurança impetrado contra ato do Prefeito
Municipal de São José dos Campos, que editou o Decreto n. 7.093, de 1990,
declarando de calamidade pública a situação de assistência médico-hospitalar
naquele Município, requisitando os serviços médicos-hospitalares disponíveis
no setor privado, mediante remuneração pela Tabela do Ministério da
Saúde/INSS, e o Decreto Municipal n. 7.094, de 1990, que requisitou o Hospital
Nossa Senhora de Fátima, indicando serviços à disposição do Poder Público, e
sua integração ao Sistema Único de Saúde. Volta-se a impetração, também,
contra ato do Senhor Secretário Municipal de Saúde daquele Município,
traduzido no Ofício n. 308/90, onde especifica várias providências resultantes
daquelas requisições.
Após concedida a liminar, que foi cassada por esta Egrégia Corte, a respeitável
sentença de fls. 114/130, cujo relatório adoto, concedeu a segurança,
afastando os efeitos dos Decretos Municipais ns. 7.093, de 1990 e 7.094, de
1990, retificado pelo de n. 7.106, de 1990 e das providências determinadas no
Ofício de n. 308/90, expedido pelo Secretário Municipal da Saúde do Município
com relação aos impetrantes. Manifestado o reexame necessário.
A execução da respeitável sentença foi suspensa por decisão do
Excelentíssimo Senhor Presidente deste Egrégio Tribunal, conforme telex de
fls. 151.
Irresignado, apelou o Prefeito Municipal impetrado, através das razões
apresentadas às fls. 153/157, onde busca provimento, para reforma integral da
respeitável sentença.
O recurso foi regularmente processado, com contra-razões (fls. 160/172). O
Doutor Promotor Público opinou no sentido do provimento da apelação e a
ilustrada Procuradoria-Geral da Justiça ofertou parecer pela manutenção da
respeitável sentença. Dispensado o preparo.
É o relatório.
2. Os atos que a presente segurança visam afastar consubstanciam-se nos
Decretos Municipais ns. 7.093, de 1990 e 7.094, de 1990, este retificado pelo
Decreto Municipal n. 7.101, de 1990, além do ofício de 17.8.90, do Senhor
Secretário Municipal, baixado com base naqueles diplomas legais.
Pelo primeiro decreto, o alcaide impetrado, declarando de calamidade pública a
situação de assistência médico-hospitalar no Município, por considerar a
situação “de perigo iminente no setor de saúde, dada a insuficiência de leitos
nos hospitais públicos e nos hospitais contratados e conveniados com o Poder
Público”, requisitou temporariamente os serviços médicos-hospitalares,
pagando os serviços requisitados pela tabela do Ministério da Saúde/INSS (fls.
44-45).
Pelos últimos, o mesmo Prefeito determinou a requisição dos serviços
médicos-hospitalares prestados pelo Hospital Nossa Senhora de Fátima S. C.
Ltda. (fls. 46-47 e 101), especificando o Senhor Secretário Municipal de Saúde
pela aludida correspondência (fls. 48) as providências correlatas e necessárias
para a efetividade daquelas requisições. A segurança foi corretamente
concedida, pela bem lançada sentença da lavra do eminente Magistrado
Doutor Manoel Ricardo Rebello Pinho, devendo ser confirmada em todos os
seus termos.
Como se verifica, para propiciar a requisição dos serviços médicoshospitalares, os impetrados indicaram como situação extraordinária, urgente e
transitória a
“situação de perigo iminente e calamidade pública no setor de saúde, dada a
insuficiência de leitos nos hospitais públicos e nos hospitais contratados e
conveniados com o Poder Público”,
fundamentando os atos praticados em vários dispositivos constitucionais,
dentre outros os artigos 5º, inciso XXV; 30, inciso VII; 198, parágrafo único;
196, caput e 197, da Constituição da República em vigor, bem como no artigo
25, da Lei Federal n. 6.439, de 1977.
Não se duvida que os impetrados possuem legitimidade para a requisição dos
serviços médicos-hospitalares dos impetrantes, por isso que:
a) assumiram os poderes-deveres assegurados pela legislação federal às
entidades do SINPAS, como previstas na Lei Federal n. 6.439, de 1977, artigo
25;
b) referido diploma legal autoriza requisição de bens e serviços em caso de
calamidade pública, perigo público iminente ou ameaça de paralisação das
atividades de interesse da população, a cargo das entidades da Previdência e
Assistência Social;
c) compete ao Município prestar serviços de atendimento à saúde da
população, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado;
d) criou-se o Sistema Único de Saúde, do qual participa o Município, para o
atendimento da “saúde” que é direito de todos e dever do Estado, cujos
serviços serão executados diretamente ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado, nos termos da Lei, sobre sua
regulamentação.
Ocorre, porém, que para a requisição dos supramencionados serviços
relacionados à saúde da população, justificando os atos praticados pelo alcaide
e seu coadjuvante direto, era mister ocorresse situação de perigo público
iminente e calamidade pública no setor de saúde, o que não se verifica no setor
de saúde do Município de São José dos Campos, pois a insuficiência de leitos
nos hospitais públicos e nos hospitais contratados e conveniados com o Poder
Público naquele Município, circunstância e motivação indicadas para justificar o
ato requisitório, não se adequam àquelas situações.
Com efeito, para se caracterizar “perigo público iminente”, a justificar requisição
administrativa, na lição dos doutos, como assinalado no estudo transcrito na
respeitável sentença (fls. 122/126), mister se verifiquem ocasiões de guerra,
revolução, catástrofe provocada por acontecimentos da natureza, verbi gratia,
epidemias, inundações, terremotos e acontecimentos semelhantes.
Por outro lado, para evidenciar “calamidade pública”, conforme lições trazidas à
baila pelo ilustre Julgador e da lavra de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, que
também perfilho, importa que se sucedam aqueles fatores anormais e adversos
afetando gravemente a comunidade, exemplificados pelo eminente
administrativista com secas prolongadas e devastadoras, grandes incêndios e
inundações, outros flagelos semelhantes, a invasão súbita do território de um
Estado por moléstia contagiosa ou pestilencial, apta a expandir-se de forma
epidêmica, de disseminação rápida e de alta letalidade, todas estas
ocorrências bem diversas
“...daquelas que só se desenvolvem ao favor da ausência de providências
adequadas e do descuido no emprego dos meios conhecidos de profilaxia
usual”.
Pois bem. Todas estas situações anômalas não se deram em São José dos
Campos, com relação aos serviços de saúde, nem a elas se adaptam os fatos
indicados como motivação para o Alcaide baixar o ato requisitório malsinado.
Evidente que a insuficiência de leitos nos hospitais públicos e naqueles
contratados e conveniados com o Poder Público, nem de longe e por mais boa
vontade que se imprima na interpretação (o que no caso deve ser feita de
modo restritivo, por configurar ato que restringe direitos), resulta de situações
configuradoras de “perigo público iminente” como acima enunciadas e
descritas, nem evidenciam ocorrência de calamidade pública, desde que não
eclodiram em virtude de fatores anormais e adversos, mas pela ausência de
providências adequadas da administração municipal.
É certo que reina muita incompreensão e mesmo incerteza em se saber quais
as questões que permitem investigação no exame da legalidade. Como bem
assinala SEABRA FAGUNDES, em “O Controle dos Atos Administrativos pelo
Poder Judiciário”, Rio, 1941, pág. 118, nota 7, o “motivo” do ato administrativo
faz parte da sua configuração legal, e a verificação dele está incluída na
análise da legalidade.
O motivo exigido por lei, ou invocado pela autoridade na prática do ato escreveu FRANCISCO CAMPOS -, “constitui a sua razão jurídica de ser”. Por
isso, também ensina ele, com apoio em JÈZE, que, quando a lei exige motivo
determinado, ou, quando a autoridade o declara, mesmo não sendo imposto
por lei, a demonstração de que inexistia “a situação de fato pressuposta... gera,
como conseqüência, a invalidade ou a ineficácia do ato”. (“Os Atos do Governo
e a Teoria dos Motivos Determinantes”, em “Pareceres”, 2ª série, Rio, 1936,
págs. 180 e segs.).
In casu, inexistindo os “motivos” ou situações que a Lei Federal n. 6.439, de
1977, aponta como permissivas para a “requisição administrativa” e como
acima elencadas, evidenciam-se sem base legal os atos que, com base
naquele diploma legislativo, foram praticados pelos impetrados e portanto sem
qualquer validade ou eficácia, podendo ser afastados neste mandamus.
Mas a ilegalidade não permanece somente aqui. Há mais.
A requisição questionada, apesar das justificativas excogitadas expressamente
nos atos administrativos baixados, não visou superar no Município a propalada
crise de saúde no sistema médico-hospitalar, mas tem como finalidade maior
não explícita obrigar os impetrados a firmar convênio com o Sistema Único de
Saúde, com aceitação do pagamento dos serviços pela Tabela do Ministério de
Saúde/INSS.
E tanto isto é correto que, como lucidamente concluiu o Julgador de Primeiro
Grau, logo após baixados os decretos, onde há menção do pagamento pela
Tabela do Ministério da Saúde/INSS, foram os impetrantes notificados para dar
entrada de pedido de restabelecimento do contrato de prestação de serviços
médicos-hospitalares na repartição competente, no prazo de 72 horas.
E mais se encontra desvio de finalidade, quando nas informações os
impetrados dizem que “o ato requisitório é gradual e progressivo”, significando
o seu caráter permanente, o que se contrapõe à definição de “requisição”,
explicitada sempre como um ato visando situações extraordinárias e urgentes,
portanto de nítida transitoriedade.
Como se sabe, sob o Estado democrático de Direito, vige o princípio da
legalidade da Administração, pelo qual, diversamente do particular, que pode
fazer tudo o que a lei não proíbe, não lhe é lícito obrar senão o que lhe permite
a norma, para a satisfação das necessidades ou interesses públicos nela
previstos ou pressupostos. Ocorre, porém, que o legislador ao editar a lei não
tem condições de prever todas as hipóteses de fato ocorrentes na vida de
relação entre as pessoas e que seriam capazes de determinar o
comportamento administrativo mais adequado, em cada caso, para atender aos
objetivos específicos, conferindo por isso a determinados servidores o poder de
escolha, dentre várias soluções possíveis, aquela que mais se adequa à
finalidade que visa alcançar de maneira explícita ou implícita, o que em Direito
Administrativo se caracteriza como o “poder discricionário”.
O exercício deste poder é relativo, porque relativa a eleição do comportamento
mais apropriado para alcançar a finalidade pública da lei, cujos limites estão na
competência do agente e nessa finalidade prevista na norma. Assim, quando o
agente administrativo, apesar de competente, usa do poder para conseguir um
fim diverso daquele tutelado pela lei, ocorre “desvio de poder”, o qual, por
invalidar o ato ou a omissão é suscetível de controle jurisdicional, porque é
vício de legalidade ou legitimidade, como se verifica em noções doutrinárias
correntias, como aquelas indicadas no extenso rol constante de venerando
acórdão inserto na “RT”, vol. 619/60, de cujas observações e ensinamentos
nos forramos na análise destes conceitos e questões.
Aqui, as deliberações requisitórias dos serviços médico-hospitalares dos
impetrantes, revestindo indisfarçável caráter permanente e sem natureza
emergencial, além de se constituir em ato dissimulado, com visos fortes de
ação administrativa para a consecução de outro fim (levar os impetrantes a
firmar o convênio com o SUDS, que antes tinham denunciado), contrariam a
finalidade implícita das normas constitucional e legal antes aludidas, ficando
evidenciado, assim, o desvio de finalidade, com atuação vistosa em abuso de
poder, a determinar declaração de ineficácia frente aos impetrantes daqueles
atos legislativos.
O Alcaide que baixou as deliberações questionadas e seu homem de confiança
nos assuntos de saúde municipal deveriam ter observado a finalidade da
norma, realizando o único comportamento que a assegurava, isto é,
procedendo a requisição dos nosocômios e seus serviços, se realmente tivesse
ocorrido no Município que administram o “iminente perigo público” ou a
“calamidade pública”, tal como conceituadas linhas acima, ou, enfim, ali se
estampasse situação de emergência, extraordinária e urgente.
Assim agindo - repito -, deixaram de observar dispositivo constitucional e legal
informados por manifestas razões de necessidades prementes e urgentes da
comunidade no setor dos serviços médico-hospitalares, e sem esta adequação
entre o ato administrativo e o fim tutelado pela norma ocorre descumprimento
do dever jurídico, passível de invalidamento, a título de desvio de finalidade.
Além da prática do ato em desvio de poder, por desvio de finalidade da norma,
o que já seria bastante para afastar os atos legislativos, deixaram eles de
atribuir valor justo para os serviços prestados, pelos impetrantes ao prefixar o
seu pagamento de acordo com a Tabela do Ministério da Saúde/INSS, a qual
tem valores que não remuneram de forma adequada os serviços.
De tudo resulta que, qualificando-se o mesmo tempo como ilegais, porque o
fato real pressuposto por lei não ocorreu e ficou evidenciado desvio de poder,
os Decretos Municipais e as providências consubstanciadas no Ofício n. 308/90
são nulos e incapazes de continuar a gerar os efeitos que deles se esperavam,
com relação aos impetrantes, não podendo subsistir, devendo assim ser
declarados, com a manutenção da sentença.
3. Pelo exposto, nego provimento aos recursos.
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