A ADESÃO TERAPÊUTICA NOS PACIENTES COM VIH/SIDA A adesão terapêutica define-se como o respeito pelo paciente das prescrições médicas. No quadro da epidemia de VIH-SIDA, a questão da adesão terapêutica, ou observância dos tratamentos, surge a partir de 1996, com a chegada de novos tratamentos: as triterapias antiretrovirais. A questão da observância é crucial no contexto dos tratamentos para o VIH-SIDA, pois a má adesão terapêutica está na origem de resistências virais e, por conseguinte, do insucesso dos tratamentos, isto é, o facto do paciente não seguir com rigor as prescrições médicas permite uma multiplicação viral que de outro modo não ocorreria, provoca o aparecimento de resistências do vírus e a ineficácia da terapêutica antiretroviral. Além da morbilidade e mortalidade do paciente em situação de « escape terapêutico », coloca-se o problema da transmissão de vírus resistentes ou mutantes nos casos em que existem comportamentos de risco. As pessoas infectadas por vírus resistentes terão pois, à partida, um vírus que « escapa » a certos tratamentos (existem actualmente cerca de vinte e dois tratamentos contra o VIH-SIDA) e, portanto, menos soluções terapêuticas (1). Os tratamentos antiretrovirais Apesar dos progressos recentes, as terapias são pesadas e acarretam frequentemente efeitos secundários importantes, tais como: perturbações gastro-intestinais, astenia, dores de cabeça, musculares e ósseas, problemas cutâneos, lipodistrofia, perturbações do sono, da memória, do humor, da libido, etc. (1, 2). Além dos efeitos secundários, o tratamento vem reavivar, diariamente, a presença da doença e, por vezes, ameaçar o segredo que a envolve. Com efeito, a tomada de um medicamento durante o dia pode colocar o problema da visibilidade da doença, quando o paciente se encontra no seu local de trabalho ou num espaço público. Outros problemas ligados às terapêuticas existentes prendem-se com exigências quanto aos horários da toma das drogas, presença ou não de alimentos no estômago, espaçamento das refeições, conservação dos medicamentos em local fresco ou mesmo no frigorífico, ingestão de grandes quantidades de água, proscrição de determinados alimentos, etc. (2, 3). Trabalhos socio-antropológicos (3, 4, 5, 6) mostram que existem determinantes socio-económicos, psicológicos e biográficos que pesam sobre a adesão terapêutica. Ou seja, as condições de vida, o acesso à informação e aos cuidados de saúde, o estado psicológico do paciente e a sua rede de suporte familiar e social, a sua vivência da doença e a sua relação com o(s) médico(s) determinam a sua adesão terapêutica. Em primeiro lugar, o tratamento é geralmente iniciado na fase assintomática. Ora com o início do tratamento a presença da doença torna-se tangível pela própria introdução dos medicamentos na vida do indivíduo como pelos efeitos indesejáveis destes últimos no seu corpo. O início do tratamento pode assim representar para o paciente a entrada na doença, a imposição do estatuto de doente, o início de um novo percurso biográfico, o de portador de uma patologia. Esta ruptura biográfica pode ainda resultar numa diminuição da auto-estima e perturbar o equilíbrio emocional e psicológico do indivíduo. A necessidade de lutar contra a multiplicação viral entra assim em rota de colisão com o bem-estar da pessoa. Outro elemento determinante da adesão terapêutica é a relação médico-paciente. O modelo do paciente passivo tende a desaparecer, sobretudo no contexto do VIH-SIDA, em que o empoderamento dos doentes foi, desde o início da epidemia, muito importante (6). A relação assenta portanto mais numa parceria do que num modelo assimétrico de agente activo / sujeito passivo. A confiança, o entendimento mútuo e a cooperação entre médico e paciente tornam-se cruciais para a adesão terapêutica. Ora o nível educacional do paciente pode não ser favorável à compreensão das mensagens do médico e constituir assim um entrave à adesão aos tratamentos prescritos. A relação médico-paciente Os médicos têm o monopólio da sua actividade e uma autonomia excepcional no seu exercício e controlo; são eles os autores do código de deontologia médica reconhecido pelo Estado. O controlo que se exerce sobre eles é essencialmente um autocontrolo. São, além disso, dominantes no campo da saúde (o seu estatuto é superior ao dos enfermeiros, fisioterapeutas, etc.). A principal razão de descontentamento invocada, em numerosos em inquéritos, pelos utentes dos serviços de saúde referese à "comunicação" (ou falta dela) entre estes e os médicos (4). No entanto, as relações médico-paciente alteraram-se, sobretudo desde o aparecimento do VIH-SIDA. Na doença crónica, o doente deve gerir a sua doença, ou seja, administrar-se cuidados, agir sobre o seu corpo, participar activamente no seu tratamento. Certos pacientes adquirem conhecimentos médicos, criam associações de pacientes para fazer ouvir a sua voz e tornam-se actores colectivos, parceiros na gestão do sistema de saúde. Szasz e Hollander definiram três modelos de relação terapêutica ligados ao estado do paciente: "a actividade-passividade" - o paciente é objecto passivo, enquanto que o médico é totalmente activo; a "cooperação guiada" - o paciente é capaz de seguir em parte os conselhos do médico; a "participação mútua" - o papel do médico consiste em ajudar o paciente a tomar conta de si. O primeiro caso é aquele em que o doente está em coma ou anestesiado. No segundo caso, o estado do doente é menos grave e este está em condições de exercer uma apreciação do acontecimento (biológico e biográfico) que é a doença. O terceiro caso de figura refere-se às doenças crónicas. O acompanhamento é feito a longo prazo e o paciente aprende sobre a sua doença, podendo mesmo tornar-se um “perito” na matéria (5, 7). Informar-se sobre a doença exige tempo, energia e meios. Ora nem todos os pacientes têm acesso à informação e conhecem os seus direitos, como o direito de mudar de médico, por exemplo 1. As pessoas socialmente desfavorecidas estão menos armadas nesta procura de informações. Além disso, os doentes que têm um nível de educação mais elevado são mais capazes de pronunciar-se sobre o trabalho do médico e compreender a doença que os afecta. A condição socio-económica do doente é um determinante da relação médico-paciente (8). A comunicação e a confiança, ou seja, "uma boa relação com o médico" favorece a adesão aos tratamentos e a atitude "combativa" dos indivíduos perante a doença. Esta atitude é igualmente favorecida pela procura de informação sobre a doença e a comunicação com outras pessoas afectadas pelo mesmo problema de saúde. Frente a um interlocutor que o doente não percebe como receptivo, pode produzir-se um bloqueio pouco favorável ao cumprimento rigoroso do tratamento ou simplesmente ao acompanhamento médico. Por vezes, os médicos centram toda a sua atenção nos resultados dos exames médicos e o paciente como indivíduo, como ser psico-social, é esquecido. O médico é no entanto o elemento central do acompanhamento do doente e a motivação deste para o tratamento pode depender em grande parte da relação que estabelecem. É por conseguinte fundamental que a relação entre o médico e o doente seja baseada na confiança, na comunicação e na compreensão (9). Outro problema que se coloca na relação entre médicos e doentes é a falta de tempos para as consultas. Falta de tempo para o paciente, a fim de falar dos diversos problemas que a doença e o tratamento lhe causam, e falta de tempo para as explicações do médico, para o diálogo2. A vivência da doença crónica Nas representações sociais, faz-se uma conexão entre a boa saúde e a norma, enquanto a doença é considerada um estado "anormal". A doença constitui uma espécie de "desviância social" e uma "ameaça social". A noção de saúde confunde-se com a de desempenho, nesta sociedade que preconiza a performance, a adaptação e a saúde como valores centrais. A doença torna-se desordem, falha, anormalidade, levantando problemas de identidade para aquele que é afectado por uma doença crónica mortal, como é o caso do VIH-SIDA. Pode também ter repercussões sobre a sexualidade do indivíduo que tem uma imagem de si alterada, diminuída. Com efeito, as perturbações da sexualidade têm origens ao mesmo tempo físicas e psicológicas. Sob tratamento, a qualidade de vida do paciente é afectada. Este tem então uma relação de amor-ódio com o seu tratamento, que lhe permite prolongar a sua vida mas que diminui a qualidade desta última (12). As doenças crónicas nem sempre acarretam sintomas directamente visíveis. Por vezes, só o paciente se sabe afectado e esta situação pode durar indefinidamente. Mas, apesar da falta de visibilidade directa da doença crónica, o seu diagnóstico representa geralmente uma ruptura biográfica que 1 Mesmo se na prática os utentes nem sempre podem exercer esse direito, visto as listas de pacientes dos médicos estarem frequentemente completas e estes não aceitarem novos pacientes. De notar ainda que muitos utentes não têm médico de família (por conseguinte, não podem mudar de médico). 2 A esse respeito, recorde-se a iniciativa meritória do Doutor Kazatchkine, que criou uma "consulta da noite", uma vez por semana, num hospital parisiense, para os doentes seropositivos para o VIH-SIDA que têm dificuldade em deslocar-se durante o dia para as consultas, por razões profissionais ou outras (10). implica mudanças no modo de vida do indivíduo. O paciente deve fazer da sua doença um novo modo de vida, pois é obrigado a cuidados permanentes, vive com uma incerteza perante o futuro e deve gerir aspectos tão diversos como o segredo que envolve a patologia, a questão da origem da sua contaminação, o medo de infectar os outros, a regularidade dos exames e das consultas médicas, a diminuição da sua qualidade de vida, etc. A gestão da doença depende também da importância e qualidade do apoio de que o paciente beneficia (4, 12). A estigmatização da doença é igualmente determinante para a qualidade de vida das pessoas. Certas doenças crónicas e deficiências desqualificam socialmente as pessoas afectadas. Dissimular a doença constitui a principal estratégia de gestão do estigma, o que se torna difícil quando o sujeito não tem somente traços "descreditáveis" - os que não são imediatamente visíveis e são por conseguinte apenas potencialmente estigmatisáveis - mas também traços de "descrédito" - os imediatamente visíveis, que produzem ou podem produzir uma reacção negativa por parte dos outros (13). No caso das pessoas sob tratamento, os efeitos secundários dos medicamentos podem ser responsáveis por esses traços de "descrédito", aumentando a visibilidade da doença, o sentimento de se estar doente e de se ser doente. A estigmatização dos doentes pode prejudicar a sua qualidade de vida, levar à escolha de não revelar o seu estado aos outro, ainda que isso possa constituir um obstáculo à ajuda social e provocar o isolamento, que é um factor agravante para o estado de saúde, e um obstáculo à prevenção. Enfim, pode, como vimos, ser nefasto para a adesão terapêutica (14). Nota final Torna-se hoje urgente desenvolver estruturas de apoio à adesão terapêutica e informar os indivíduos sobre os tratamentos antiretrovirais, pois a crença no VIH-SIDA como uma doença crónica, sem a consciência de que os tratamentos são pesados e diminuem a qualidade de vida e de que o VIH-SIDA permanece uma doença mortal, ganha terreno nas representações sociais. Referências bibliográficas (1) Delfraissy J.-F. et al., Prise en charge thérapeutique des personnes infectées par le VIH, Flammarion, Paris, 1999. (2) Dormont J. et al., Stratégies d’utilisation des antirétroviraux dans l’infection par le VIH, Flammarion, Paris, 1998. (3) Spire B. et a.l, « L’observance aux multithérapies des personnes infectées par le VIH : de l’approche prédictive à l’approche dynamique », in : L’observance aux traitements contre le VIH/sida. Mesures, déterminants, évolutions, ANRS, Paris, 2001. (4) Adam P. & Herzlich C., Sociologie de la maladie et de la médecine, Nathan, Paris, 1994. (5) Augé M. & Herzlich C., Le sens du mal. Anthropologie, Histoire, Sociologie De La Maladie, Archives Contemporaines, 1986. (6) Thiaudière C., Sociologie du sida, La Découverte, Paris, 2002. (7) Herzlich C. et Pierret J., Malades d’hier, malades d’aujourd’hui, De la mort collective au devoir de guérison, Paris, Payot, 1984. (8) Szasz T. & Hollander M. H., « A Contribution to the Philosophy of Medecine, The Basic Models of the Doctor-Patient Relationship », Archives of Internal Medecine, 97, 1956, pp. 585-592. (9) Corin E., « La matrice sociale et culturelle de la santé et de la maladie », in : Evans R. G., Barer M. L. & Marmor T. R. (dir.), Être ou ne pas être en bonne santé. Biologie et déterminants sociaux de la maladie, Les Presses de l’Université de Montréal / John Libbey Eurotext, 1996. (10) Kazatchkine M. & Barthelemy C., La consultation du soir : Un témoignage engagé sur cette épidémie qui bouleverse le monde, Paris, Gallimard, 2005. (11)Herzlich C., « La maladie et la santé comme objets sociologiques », in : Berthelot J.-M. (dir.), La sociologie française contemporaine, Paris, PUF, 2000. (12)Carricaburu D. & Pierret J., Vie quotidienne et recompositions identitaires autour de la séropositivité, Rapport CERMES, 1992. (13)Goffman E., Stigmate. Les usages sociaux des handicaps, Paris, Éditions de Minuit, 1975. (14)Dijker A.J., « Aspects socio-psychologiques de la stigmatisation des personnes atteintes », Le sida en Europe. Nouveaux enjeux pour les sciences sociales, ANRS, 1998, pp. 125-132.