PERSPECTIVAS DO TRABALHO EM SAÚDE NO BRASIL Marcelen Palu Longhi1 1. Introdução Há muitas maneiras de conceber saúde. Optou-se, nesse estudo, por compreendê-la como trabalho, como o fez grandes teóricos da saúde pública como Maria Cecília Donnnângelo, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, Maria Cecília Puntel de Almeida e muitos outros. Esses autores foram pioneiros ao trabalharem com uma abordagem marxista da saúde, pois, sempre houve predomínio de uma visão positivista da saúde e, no momento, também capitalista. A saúde pode ser entendida como um trabalho, pois, possui uma teleologia, ou seja, é realizada para atender um fim, que nesse caso é atender uma necessidade humana. As necessidades humanas variam de acordo com o período histórico, assim, pode se afirmar que a saúde tem caráter histórico. Além de seu caráter histórico, também é social, pois seu “objeto” de intervenção é o homem em sociedade. Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (1992) sistematizou o trabalho em saúde, como algo a ser transformado (que constitui o objeto de trabalho) e que será transformado em algo pensado, o produto, por meio da utilização de instrumentos e força de trabalho. O produto por sua vez, vai ser distribuído na sociedade e essa distribuição se dará de forma desigual, já que estamos em uma sociedade capitalista. Dessa forma, em cada período histórico, o “objeto de trabalho”, no caso a necessidade humana, se configura de uma maneira diferente. Assim, também, os produtos e os instrumentos de trabalho são específicos para cada época. O trabalho em saúde guarda suas especificidades, afinal, sendo o homem “objeto” do trabalho em saúde, e mesmo estando em um momento histórico, que determina suas necessidades, cada homem possui sua individualidade e subjetividade (emoções, desejos, 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. EERP/USP. E-mail: [email protected]. aspirações, sentimentos), assim, o trabalho em saúde deve atender as generalidades e individualidades do ser humano. No entanto, o trabalho em saúde, atualmente vem atendendo, principalmente, as “necessidades” do Mercado que, em nosso país, tem regulado a economia, minimizando a atuação do Estado. Porém, contrária a essa corrente, há o Movimento da Reforma Sanitária e de efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS), que luta por uma mudança de paradigma na saúde. Como foi exposto acima, que o trabalho em saúde se configura de acordo com seu período histórico, nesse estudo, pretende-se abordar alguns dos principais períodos históricos e o trabalho em saúde correspondente e esse período e, por fim, discutir as perspectivas atuais do trabalho em saúde em nossa época. 2. O trabalho em saúde ao longo do tempo2 2.1. O trabalho em saúde nas sociedades comunais ou “primitivas”. Nas sociedades comunais quem realizava o trabalho em saúde era o xamã ou pajé, que tinha a função de realizar a mediação entre o homem e universo. Eles acreditavam que o homem, as coisas, os animais e os fenômenos naturais eram entidades que certas vezes eram acometidas por um “mal”, ao qual se associou a noção de doença. Cabia ao xamã exorcizar esse mal. De acordo, com essa compreensão mítica não havia separação entre o homem e o universo e a “cura” do “mal” se dava por meio de rituais conduzidos pelo xamã. Assim, o objeto de trabalho nessa sociedade era o “mal” manifestado no ente e seu instrumento era o ritual mítico-mágico-religioso. A finalidade deste trabalho era reintegrar o homem na vida em sociedade, para a reprodução social. Poderíamos até imaginar que um médico do futuro chegaria nesse tempo, em uma nave espacial, trazendo as mais modernas tecnologias de diagnósticos, tratamentos e 2 O desenvolvimento dessa parte foi baseado na obra de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves – Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades (1992). medicamentos, no entanto, não iria conseguir resolver os problemas de “saúde” de ninguém dessa época, pois a necessidade deles eram outras, da qual o xamã conduzia muito bem. 2.2. O trabalho em saúde na Grécia Clássica Um caso atípico que não segue as rumo da história tradicional, ocorreu na Grécia Clássica. Na sociedade grega a medicina se desenvolveu diferente das outras sociedades da época e muito tem influenciado na medicina dos dias atuais. A Grécia era uma sociedade baseada no trabalho escravo e no comércio e nela se desenvolve uma racionalidade que rompe com a concepção mágico-religiosa em direção a um conhecimento cientifico e filosófico. Neste contexto se desenvolve a medicina hipocrática. Os gregos concebiam a natureza como um estado de equilíbrio, no qual o homem se inclui e a “doença” seria a reação espontânea ao desequilíbrio. O médico grego, em seu trabalho desenvolveu a classificação das alterações naturais denominando esse processo de “clínica”. Assim, seu trabalho consistia em favorecer a natureza de encontrar o caminho do mais fácil para restabelecer o equilíbrio do corpo. E ao trabalho de reconhecer o tipo de desequilíbrio da natureza deu-se o nome de “diagnóstico” e o processo de restabelecer o equilíbrio denominou-se “prognóstico”. Denominações empregadas até os dias atuais. No entanto, a medicina hipocrática era oferecida apenas para os cidadãos livres, não que está deveria ser oferecida para o outro grupo social, já que apresentam necessidades diferentes. Para os escravos, a medicina tinha o objetivo de restabelecer a funcionalidade do corpo, num sentido “ortopédico”, que visava reduzir as lesões externas ao corpo, como cortes, lacerações e abscessos. Portanto, na Grécia Clássica se instituiu dois tipos de medicina, uma direcionada aos cidadãos livres e outra direcionada aos escravos, porém, cada uma atendendo as necessidades especifica de cada grupo, contribuindo para a reprodução desse determinado modo de vida. 2.3. O trabalho em saúde na Idade Média Na era medieval, marcada pelo cristianismo e pelo sistema feudal, a saúde e doença assumem nova configuração. Aqui a doença passou a ser relacionada com o “pecado”, assim, a doença era o preço a ser pago pelo paraíso e as praticas de saúde, nesse contexto, passa a ser a observação e a expectância, da passagem da morte para a vida eterna. Nesse período, predominava a prática do trabalho religioso de “assistência” aos enfermos, afinal atendiam as necessidades de saúde geradas naquela época. 2.4. O trabalho em saúde na sociedade capitalista O trabalho em saúde na sociedade capitalista se configurou de diferentes formas, nesse item vamos tratar apenas do trabalho nas primeiras fases do capitalismo, pois pretendo discutir o trabalho em saúde na atualidade no tópico posterior. Com a transição para o capitalismo, no século XVI, começa a se instaurar a mova racionalidade moderna, pelos avanços do conhecimento de Galileu, Copérnico, Newton; pela expansão comercial, pela Revolução Francesa e posteriormente a industrial. Na sociedade capitalista, o corpo humano é a sede da força de trabalho, por esse motivo, se desenvolve duas formas de trabalho em saúde: um para controlar ocorrência das doenças e outro para recuperar a força de trabalho. A primeira foi chamada por MendesGonçalves (1988) de Modelo Clínico e a outra de Modelo Epidemiológico. Foram denominados “modelos”, não por serem padrões a serem seguidos, mas por apresentarem características que permitiram sua alocação em um grupo. No modelo epidemiológico, devido à experiência acumulada com as epidemias e o emprego da probabilidade, foi possível prever quantos casos ocorreriam de uma próxima doença num certo período de tempo e de espaço e verificou-se a associação entre a doença e fatores do ambiente e do homem. Assim, os instrumentos de trabalho desenvolvidos foram o saneamento ambiental, ou seja, o controle dos fatores associados à doença e a educação em saúde, onde as pessoas recebiam informações sobre como evitar o contato entre os fatores causadores das doenças. Esse modelo se aplicava ao âmbito coletivo, sendo esse coletivo compreendido como um espaço construído por indivíduos homogêneos. Ao mesmo tempo, também se desenvolve o modelo clínico, no âmbito da saúde individual. Nesse modelo, a doença é vista como uma alteração morfológica e/ou funcional do corpo humano, apresentando como principais características seu caráter biológico e individualizante. O desenvolvimento dessa prática teve como instrumento as ciências como a fisiologia e patologia, e um arsenal terapêutico e farmacológico. Segundo esse modelo, admiti apenas a vertente biológica da doença, eximindo o social do processo, dessa forma, a mentalidade da clínica anátomo-patológica se identifica com o individualismo político-ideológico, predominante, na sociedade capitalista. Infelizmente, este o “modelo” de saúde é o que predomina na atualidade, onde o sujeito é visto, principalmente, em sua dimensão biológica, sendo lhe prestado um cuidado “curativista”, sem vista a prevenção e promoção da saúde,e também fragmentado e de alto custo. No entanto, tivemos e ainda temos na área da saúde um movimento que buscou romper com esse paradigma, a fim de construir práticas de saúde mais ampliadas e justas. Esse movimento que originou o Sistema Único de Saúde (SUS) e atualmente, tem como uma de suas políticas prioritárias a Estratégia Saúde da Família (ESF). 3. A construção do SUS e da ESF e a nova configuração do trabalho em saúde Em nosso país, o setor saúde foi um dos pioneiros na luta para conquistar e garantir o direito da população à saúde e o Estado como provedor, principalmente, pelo Movimento da Reforma Sanitária, deflagrado no país, na década de setenta do século anterior. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira defendia uma proposta abrangente de mudança social, inclusive da saúde. Expressava indignação contra as precárias condições de saúde, com a medicalização e especialização de cuidado, com a mercantilização da saúde, a iniqüidade na distribuição dos serviços de saúde, e propunha uma nova forma de organizar a saúde. Dessa forma, o Movimento da Reforma Sanitária visava à construção de um novo modelo assistencial, diferente daquele que tinha predominado até então, de caráter curativista, biologicista, individualista e hospitalocêntrico. Compunha esse movimento: intelectuais ligados a saúde pública como o Centro de Estudos Brasileiro em Saúde (CEBES) e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), trabalhadores de saúde e a sociedade civil em geral. Com a conquista da democracia no sistema eleitoral, em 1985, os movimentos sociais também defendiam a democratização da saúde. Neste clima ocorre, em 1986, a 8° Conferência Nacional de Saúde (CNS), onde foram identificados os problemas do sistema de saúde, estratégias para sua solução e os princípios e diretrizes da reforma sanitária, com destaque para o conceito ampliado de saúde; o reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado; a criação do Sistema Único de Saúde (SUS); a constituição e ampliação do orçamento social (PAIM, 2003). Assim, com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS, 1986), em 1986, a concepção sobre saúde foi ampliada e, a partir daí, compreendida como determinada pelo ambiente de vida e trabalho das pessoas, ou seja, pelo modo como os indivíduos se inserem na sociedade. E ainda, a saúde passa a ser considerada como direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida pela criação de políticas sociais e econômicas, que visem à diminuição do risco de adoecer e de outros agravos, art. I, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Após a criação, do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição Brasileira em 1988 (Brasil, 1988), era necessário garantir os seus princípios, que são a universalidade, integralidade, equidade, hierarquização, regionalização e participação e controle social. Estes princípios foram assegurados através de legislação infraconstitucional, Leis Orgânicas da Saúde, números 8.080 e 8.142 de 1990. Com o SUS, aumentou tanto a quantidade de unidades de saúde como a qualidade do atendimento, porém, necessitava de buscar um novo modelo de atenção a saúde para concretizar seus princípios. Portanto, em 1994 foi implantado o Programa Saúde da Família (PSF), coma proposta de contribuir para a reorientação do modelo de atenção à saúde. Segundo Mendes (2002) as origens do PSF estão no Programa Agente de Saúde, instituído em 1987, no Ceará, que foi adotado como política nacional, em 1991, com denominação de Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O PSF até, aproximadamente, 1998, possuía uma política de atenção básica voltada para populações excluídas do consumo de serviços, e a partir deste período, passou a ser considerada uma estratégia de mudança do modelo de atenção à saúde no SUS e passou a ser denominado como Estratégia Saúde da Família (ESF). A ESF está estruturada, em confluência com os princípios do SUS, a partir das noções de integralidade, universalidade da assistência, equidade resolubilidade, humanização do atendimento e participação social (CORBO e MOROSINI, 2005). O principio da integralidade, como abordado anteriormente, baseia-se na organização dos serviços, ações e praticas de saúde, a fim de atender as necessidades de saúde da sociedade, de modo articulado, continuo e integrado aos outros níveis de cuidados. O principio da universalidade, está representado na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), onde saúde é considerada um direito de todos os cidadãos e dever do Estado e implica na existência de acessibilidade, constituindo-se assim como porta de entrada. A equidade orienta-se pelo princípio da igualdade, porém, considerando as diferenças históricas socialmente instituídas que geram necessidades diferenciadas de saúde, exigem ações em localidades mais necessitadas, a fim de diminuir as iniqüidades. A humanização está inclusa no âmbito das relações humanas, do acolhimento do outro, da demonstração de alteridade e do estabelecimento de vínculos da equipe com a população. E a participação social, como expressa na lei 8142/90, que trata da participação da sociedade na gestão do SUS e a Saúde da Família buscam atingir este principio, uma vez que procuram atender as necessidades de saúde da população e possuem “a compreensão de que a população pode qualificar e modificar a definição e a execução das políticas públicas, no sentido de sua maior democratização” (CORBO e MOROSINI, 2005 p. 171 ). Essa nova configuração do trabalho em saúde, onde o adoecimento está ligado à inserção social dos indivíduos, exige a utilização de novos “instrumentos” para operar o trabalho em saúde. No entanto, esses instrumentos estão sendo construídos no cotidiano da relação entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde, já que não existe uma fórmula pronta. Isso exige do trabalhador de saúde uma visão ampliada sobre o contexto de vida dos usuários, articulação com outros setores sociais (como educação, transporte, habitação, saneamento), e co-responsabilização com os problemas dos usuários. Dessa forma, uma das “ferrramentas” utilizadas pelos trabalhadores de saúde tem sido o levantamento sócio-demográfico e econômico das comunidades, a fim de construir estratégias para enfrentamento de problemas. E uma das formas de planejamento que vem sendo utilizadas é o planejamento estratégico ou participativo, onde todos os atores envolvidos com os problemas planejam suas ações. Essa concepção de saúde vem exigindo que trabalhadores e usuários dos serviços de saúde sejam construtores ativos de uma sociedade mais saudável e mais justa, no entanto, o movimento hegemônico das políticas neoliberais e as ideologias burguesas, buscam uma saúde baseada no curativismo, na concepção biológica e que promova a acumulação de capital dos grandes monopólios. 4. Considerações Finais Atualmente quando nos remetemos à idéia de saúde logo imaginamos o desenvolvimento de altas tecnologias, medicamentos milagrosos, hospitais sofisticados, profissionais especializados... No entanto, esta é uma imagem pautada na propaganda capitalista de saúde, que visa apenas à acumulação de capital das grandes empresas que atuam nesse ramo. Considero que a saúde também necessite de tecnologias, remédios, hospitais e profissionais especializados, porém apenas como medida assessória. As diferentes concepções de saúde ao longo dos tempos mostram que a finalidade do trabalho em saúde é atender as necessidades humanas de cada período e manter um determinado padrão social. No entanto, em nosso período atual, procura-se romper com a concepção de saúde predominante, baseada no consumo de alta tecnologia, pois está permite a reprodução de uma sociedade capitalista marcada por desigualdades e injustiças. A compreensão de saúde como determinada pelo processo de produção e reprodução das pessoas em sociedade, ou seja, a saúde determinada pelas condições de vida e trabalho das pessoas suscita uma nova forma de operar o trabalho em saúde. Esse novo modo de trabalhar ainda está em processo de construção e requer tanto de trabalhadores como de usuários dos serviços de saúde uma visão ampliada do contexto social e mobilização para agir intersetorialmente e em conjunto, visando proporcionar uma qualidade digna de vida para todos. Portanto, a necessidades de saúde atual se aproxima da idéia que os indivíduos devem ser reconhecidos como cidadãos atuantes que buscam seus direitos e podem gerir as políticas segundo os interesses da maioria da sociedade, privilegiando as políticas sociais. Com a implementação do SUS e da ESF, que estão calcados nos princípios de universalidade da atenção em saúde, equidade, participação social no processo de formulação e avaliação das políticas de saúde e integralidade da assistência abre-se caminho para novas práticas de saúde. Porém, o SUS não ainda conseguiu colocar todos esses princípios em pratica, mas muitos tem se esforçado para que eles se realizem. No entanto, o movimento de saúde predominante, é o especializado que trata o individuo de maneira fragmentada e que apresenta um alto custo financeiro. Acredito que todos devam lutar por justiça social, pois só assim nosso país será mais saudável. Referências BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. CORBO, A. D’A.; MOROSINI, M. V. G. C. Saúde da família: história recente da reorganização da atenção à saúde. In: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Org.). Textos de apoio em políticas de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 157-181. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8., 1986, Brasília. Anais... Brasília: Ministério da Saúde, 1986. MENDES, E. V. Atenção Primária à Saúde no SUS. Fortaleza: ESPCE, 2002. MENDES-GONÇALVES, R. B., 1992. Práticas de Saúde: Processos de Trabalho e Necessidades. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo (mimeo). PAIM, J. S. Modelos de atençãoe vigilância da saúde. In: ROUQUAYROL, M. Z; ALMEIDA FILHO, N. (Orgs). Epidemiologia & saúde. 6. ed. Rio de Janeiro: MEDSI, 2003. p. 587-604.