FERRARI-NETO, J., CORRÊA, L.M.S. & AUGUSTO, M.R.A. O Processamento da Informação de Interface na Aquisição do Sistema de Número Gramatical no DP em Português Brasileiro In Anais do IV Congresso Internacional da ABRALIN, p.1075-1082, 2005, disponível on-line: http://www.abralin.org/publicacao/abralin2005.pdf O Processamento da Informação de Interface na Aquisição do Sistema de Número Gramatical no DP em Português BrasileiroÅ José Ferrari Neto Letícia M. Sicuro Corrêa Marina R.A. Augusto PUC-Rio/LAPALÛ Abstract: This paper presents results of an experiment which aims at verifying the extent to which 2-year old children perceive number morphophonological markings and are able to process number agreement within DP in Brazilian Portuguese. The results suggest that children at this age are sensitive to the expression of grammatical number in the language. No significant difference was obtained with regard to the type of grammatical DP (standard or non-standard), suggesting that number information is extracted from the determiner and that the agreement within DP is processed by the age of two. Key-words: Language acquisition; Minimalism; Number Resumo: Este artigo apresenta os resultados de um experimento que visou a verificar em que medida crianças, por volta dos dois anos de idade, percebem informação morfofonológica relativa a número e processam concordância de número no âmbito do DP no Português Brasileiro. Os resultados sugerem que a criança nessa faixa etária está sensível à expressão gramatical de número na língua. Não são obtidas diferenças significativas em relação ao comportamento das crianças frente a estímulos que tomam por base o dialeto padrão ou o nãopadrão. Esses resultados indicam que a informação de número é extraída do determinante, o que implica o processamento da concordância no DP. Palavras-chave: Aquisição da Linguagem; Minimalismo; Número 1. Introdução Este artigo apresenta os resultados de um experimento que teve como objetivo verificar em que medida crianças por volta dos dois anos de idade, percebem informação Å Este artigo tem por base a comunicação de mesmo título, apresentada por José Ferrari Neto no IV Congresso Internacional da ABRALIN e corresponde a um estudo inicial que dá seguimento à sua dissertação de Mestrado (Ferrari-Neto, 2003), no desenvolvimento de sua tese de doutorado em andamento. O estudo da aquisição do número gramatical e processamento da concordância de número ao qual este artigo se integra faz parte dos Projeto Integrado (CNPq 551491/2002-7), do segundo autor, do projeto recém-doutor CNPq (303611/03-0) do terceiro autor, e se desenvolve com suporte obtido no Auxílio CNPq 403885/2003-5 ao Grupo de Pesquisa Processamento e Aquisição da Linguagem (GPAL-CNPq). Û LAPAL (Laboratório de Psicolingüística e Aquisição da Linguagem, PUC-Rio) morfológica relativa a número e processam concordância de número no âmbito do DP, ampliando os dados reportados em Corrêa, Augusto & Ferrari (2004). A perspectiva teórica que o orienta integra uma concepção minimalista de língua (Chomsky, 1995; 1999) com uma abordagem psicolingüística para a aquisição da linguagem (Corrêa, no prelo (a)). Parte-se do pressuposto de que número é um traço lexical do nome ou uma projeção funcional específica (Bernstein, 1991; Picallo, 1991; Ritter, 1993; Carstens, 2000), que participa de relações sintáticas relativas à concordância numa derivação lingüística. Esse traço se realiza morfologicamente de forma diferenciada nas línguas e o modo como a concordância sintática se expressa na morfologia também é variável. A criança ao adquirir uma língua terá de identificar informação relativa a número gramatical no modo como os enunciados lingüísticos se apresentam, ou seja, com base em informação morfofonológica e na ordenação de elementos no fluxo da fala, para os quais uma interpretação semântica pode ser atribuída. No contexto do Programa Minimalista (Chomsky, 1995, 1999), relações sintáticas entre elementos selecionados do léxico se realizam por meio do pareamento de traços formais mais e menos interpretáveis. É esse pareamento que permite ao sistema computacional universal operar sobre traços do léxico de origem semântica. A existência de traços não interpretáveis correlatos a traços semanticamente interpretáveis (como número, por exemplo) permite que número conceitual encontre uma expressão gramatical, ou seja, participe de operações sintáticas (Merge ou Agree) (cf. Corrêa, no prelo (b)). Nesse contexto, entende-se por concordância o pareamento de traços interpretáveis com traços não interpretáveis em uma configuração de c-comando. Nesse pareamento os traços não interpretáveis são valorados ou eliminados, e o resultado dessa valoração pode ter expressão morfológica, naquilo que tradicionalmente se reconhece como concordância de número, gênero e pessoa em línguas morfologicamente ricas, como as românicas. No caso da concordância de número, o traço interpretável encontra-se no nome (Chomsky, 1995) ou em uma projeção funcional independente (Ritter, 1991). Em ambos os casos, o número interpretável tende a se expressar numa desinência flexional do nome, tendo dessa forma visibilidade na interface fonética. Os demais elementos que compõem o DP (determinantes, possessivos, adjetivos, etc) apresentariam traços não interpretáveis de número, estabelecendo, portanto, uma relação de concordância com o nome ou com a projeção funcional Num.1 Em decorrência dessa relação, o DP assumiria o traço de número definido no nome (ou em NumP), e em algumas línguas, os elementos portadores dos traços não interpretáveis adquirem um afixo flexional correspondente ao valor do traço de número, quando de sua codificação morfológica, o que torna a informação relativa a número nesses elementos visível na interface fonética. No caso do PB, dois sistemas co-existem. No sistema padrão, tanto a expressão morfológica do traço interpretável de número na desinência do nome quanto a expressão morfológica do traço valorado de número no determinante e demais elementos que entram em concordância com o nome se fazem visíveis na interface fonética. Tem-se assim A-s menina-s bonita-s. No sistema não padrão, a informação de número tende a ser visível na interface fonética apenas no Determinante (ou no elemento mais à esquerda no DP). Tem-se assim A-s menina bonita. Assim sendo, quando a expressão do número é feita apenas no Determinante, a identificação dessa informação, por parte do ouvinte, ou da criança, diante de enunciados da língua em aquisição, envolve o processamento da concordância no DP. O experimento que se segue explora essa variação no PB de modo a identificar em que medida o processamento da concordância de número no âmbito do DP pode ser atribuído a crianças de cerca de dois anos de idade – fase em que não necessariamente a morfologia de número se encontra estabelecida na fala (Simões, 2004; Ferrari-Neto, 2003). Estudo anterior (Name, 2002; Corrêa & Name, 2003) demonstra que crianças de cerca de dois anos (22 1 Magalhães (2004) apresenta uma proposta alternativa, na qual o traço interpretável de número estaria em D. meses) são sensíveis à incongruência de gênero no âmbito do DP, o que sugere que o processamento da concordância está em operação. Esses dados sugerem ainda que é a informação de gênero expressa no Determinante e o processamento da concordância de gênero no DP que possibilitam à criança identificar o gênero de palavras novas (nomes com traço semântico inanimados, nos quais o gênero é intrínseco, sem motivação semântica, de um ponto de vista sincrônico). Ainda, outro estudo anterior com metodologia semelhante à daquele (identificação de imagens a partir de fala sintetizada de um fantoche) sugere, entretanto, que crianças de mesma faixa etária têm dificuldade com o número, o que foi atribuído à maior complexidade semântica dessa categoria gramatical (Ferrari-Neto, 2003; Corrêa, Name & Ferrari-Neto, 2004). Solicitar à criança os gatos entre figuras que apresentam um gato e vários gatos pode não ser suficientemente excludente, visto que o sintagma os gatos pode expressar referência genérica, o que tornaria a identificação da figura com um único elemento uma possível opção. Além disso, o uso de palavras do conhecimento da criança naquele estudo pode ter facilitado uma estratégia baseada na compreensão da raiz dos nomes, gerando respostas aleatórias para as figuras singular e plural. O uso de estratégias desse tipo poderia estar obscurecendo o conhecimento da criança relativo a número gramatical, o qual já se manifesta na produção espontânea, ainda que de forma não estável. Com vistas a eliminar esses problemas e avaliar em que medida a criança é capaz de interpretar semanticamente informação relativa a número no DP, o experimento que se segue foi concebido fazendo uso de pseudo-nomes que nomeiam figuras inventadas. A criança teria de identificar a figura a que o DP se refere dentre diferentes figuras (inventadas e não inventadas, sendo apenas uma inventada correspondente a um DP plural), com base na informação de número do DP. Neste experimento, duas variantes do PB foram utilizadas de modo a ser possível verificar em que medida a marcação de número exclusiva no Determinante possibilita a interpretação do DP como plural, necessária ao estabelecimento da referência a uma figura com elementos múltiplos. Evidência desse tipo pode ser tomada como indicativa do processamento da concordância de número interna ao DP. 2 Experimento O presente experimento parte da hipótese de que o processamento da concordância é instrumental para a identificação de propriedades específicas dos traços formais da língua em aquisição (Corrêa, 2001; no prelo (a), no prelo (b)). A interpretação semântica do número no DP pode, em princípio, ser feita exclusivamente com base no afixo flexional do nome ou com base no processamento da concordância. Considerando-se que a criança utiliza o processamento da concordância como meio de aquisição do que há de específico na gramática da língua, não haveria necessidade de lidar com uma estratégia de base lexical numa língua como o português, em que informação relativa a número está necessariamente presente no Determinante. Além disso, esse tipo de estratégia não se aplicaria à variante não padrão do PB. Assim sendo, o presente experimento lida com duas variantes do português como realizações gramaticais – a Padrão, em que D e N são flexionados em número e a Não-Padrão, em que apenas D apresenta essa flexão. A expressão morfológica de número é altamente variável entre as línguas, podendo também contemplar marcação exclusiva no nome, como no caso do inglês (em que apenas alguns membros da categoria D apresentam a distinção de número, como this/these, that/those). A marcação de número pode variar quanto à realização morfológica, havendo a possibilidade de morfemas presos -- sufixos (como em inglês), prefixos (como em Suáili, língua Bantu) e mesmo infixos (como em Sudanês)2 -- ou morfemas livres (como em Tagalog) (Robins, 1970; Corbett, 2000). Assim sendo, no presente experimento explora-se essa variedade, incluindo-se dois tipos de expressão morfológica de número possíveis nas línguas humanas embora não gramaticais no PB – o sufixo exclusivo no nome, como no inglês e o infixo, ambas as possibilidades dando origens a possíveis palavras singulares do português, como lápis e mosca. Uma variável independente é inicialmente considerada: Expressão morfológica do número, com dois níveis – gramatical (forma Padrão e Não Padrão do DP Plural em PB) e não gramatical (número como sufixo e como infixo). Em seguida, Tipo de DP será considerado como variável independente, contrastando cada uma das formas acima identificadas. A forma gramatical do singular no PB foi usada como controle. Apresenta-se abaixo um exemplo de cada condição, com um dos pseudo-nomes utilizados. • Gramatical Padrão – G PAD - Determinante plural e Nome plural Exemplo: Ache o-s dabo-s pro Dedé • Gramatical Não Padrão – G NPAD - Determinante plural e Nome singular Exemplo: Mostre o-s dabo pro Dedé • Não Gramatical Sufixo – NG SUF - Determinante singular e Nome plural Exemplo: Ache o dabo-s pro Dedé • Não Gramatical Infixo – NG INF – Marca de Plural inserida no meio do Nome Exemplo: Ache o da-s-bo pro Dedé • Controle – CONT – Determinante e Nome no singular Exemplo: Ache o dabo pro Dedé A variável dependente foi o número de respostas correspondes à figura plural. Método Participantes Participaram do experimento 18 crianças, com idades entre 18 e 30 meses (10 meninas e 8 meninos), com idade média de 25;4 meses. Material Foram criados 12 estímulos-teste com pseudo-nomes, 3 por condição, definida em função do tipo de expressão morfológica do número; 6 estímulos-controle, com pseudo-nomes no singular e 6 estímulos-distratores, com nomes do vocabulário da criança, no singular. Esses estímulos compuseram 4 listas experimentais, nas quais a ordem de apresentação foi aleatorizada, evitando-se, contudo, a apresentação consecutiva de estímulos da mesma condição. Dois estímulos adicionais, com um nome conhecido e outro inventado foram utilizados em um pré-teste. Os estímulos foram previamente gravados e contém o pedido, por 2 A forma plural quaisquer em português, de um ponto de vista sincrônico, pode ser considerada como contendo um infixo. parte de um fantoche chamado Dedé, para que a criança lhe mostre uma figura correspondente ao que lhe é solicitado (Ex. Mostre os dabos pro Dedé). Para cada estímulo foi criada uma prancha com 4 figuras -- uma 1 figura-alvo e 3 figuras distratoras. Nas pranchas-teste, as figuras-alvo valeram-se sempre de desenhos que representavam objetos e seres inventados em número maior do que um. As figuras distratoras correspondiam a um desenho não-inventado singular e a dois desenhos inventados diferentes do alvo. A posição da figura-alvo foi variada. Nas pranchas-controle, a figura-alvo correspondia a uma das figuras inventadas e nas distratoras, apenas desenhos de objetos e seres conhecidos foram utilizados. O conjunto de pranchas constituiu um álbum. Procedimento: Familiarização: a experimentadora interage com a criança e apresenta a ela uma marionete, caracterizada como um boneco falante (mas que na realidade apenas gesticula durante a execução do CD com os estímulos gravados). Esta etapa tem por objetivo acostumar a criança à voz do boneco, bem como criar uma atmosfera lúdica para a execução do experimento. Pré-Teste: O experimentador mostra à criança o álbum com as pranchas. É proposta então a “brincadeira” ou o “jogo”: o boneco pede e a criança aponta para uma determinada imagem. As duas primeiras pranchas constituem o pré-teste. Somente as crianças que superam essa etapa passam ao teste propriamente dito. Teste: O jogo ou brincadeira do Dedé prossegue, sempre com a solicitação por parte do fantoche (mediante acionamento do CD player) para que a criança mostre a ele o que este requer. A resposta da criança é acolhida com um comentário de incentivo à sua participação, independentemente de esta corresponder à figura-alvo. Todo o procedimento leva cerca de 10 minutos e é filmado para o registro das respostas. As crianças foram testadas em ambiente de creche ou familiar, sempre numa sala isolada com a experimentadora e o responsável pela filmagem. Resultados: Os resultados foram inicialmente analisados em função da variável Expressão morfológica do número, gramatical e não gramatical. Em seguida, foram avaliados em função de Tipo de DP: gramatical padrão, gramatical não padrão, não gramatical sufixo e não gramatical infixo. Os resultados apresentam um efeito significativo de Expressão morfológica do número, com um número maior de respostas plural para a condição gramatical (t(17) = 5,65 p <.0001). Não há diferença significativa entre as condições gramatical padrão e não padrão (t(17) = 1, 16 p=.26), assim como entre as condições sufixo e infixo (t(17) = 0,97 p=.34), sugerindo que as crianças tratam as duas condições do conjunto de estímulos gramaticais assim como as duas condições do conjunto de estímulos não gramaticais de forma indiferenciada. As respostas plural para a condição singular foram, no entanto, em menor número do que as respostas para a condição não gramatical (t(17) = 3, 02 p <.01), o que sugere uma interferência do fonema /s/ na condição não-gramatical. Gráfico Experimento Número (por Tipo de Plural) 80,0% 61,1% 60,0% 40,0% 31,4% 12,5% 20,0% 0,0% 1 Plural Gramatical Plural Agramatical Singular Controle Media de Acertos (%) Gráfico Experimento Número (por Tipo de DP) 100,0% 80,0% 60,0% 57,4% 64,8% 40,0% 33,3% 29,6% 12,5% 20,0% 0,0% 1 Condição GPAD Condição GNPAD Condição NGSUF Condição NGINF Condição CONT 3. Discussão e Conclusão Os resultados sugerem que a criança por volta dos dois anos de idade está sensível à expressão gramatical do número no PB, visto que processam diferentemente as condições gramatical e não gramatical. A não diferença entre as condições gramatical padrão e não padrão é, ainda, indicativa de que a informação de número é extraída do determinante, o que implica o processamento da concordância no DP, de acordo com o modelo de língua assumido. Esses resultados são, portanto, compatíveis com a hipótese de que a computação da concordância, atribuída a um sistema computacional universal e disponível quando dos primeiros contactos da criança com a língua, é instrumental para a identificação do que é específico da língua de sua comunidade. Assim sendo, por volta dos dois anos de idade, tanto gênero quanto número podem ser processados no âmbito do DP. O fato de a condição singular apresentar menor número de respostas no plural sugere, contudo, que houve interferência da presença do fonema /s/ nos estímulos testados. Não é claro o quanto este efeito pode ser tomado como indicativo de uma fase de desenvolvimento lingüístico na qual a criança sofre interferência desse tipo de travamento silábico no processamento de nomes singulares. Um experimento follow-up deverá verificar o quanto essa interferência é pertinente ao processo de aquisição da língua. Referências BERNSTEIN, J. 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