O Complexo de Castração como uma Ética do

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Leonardo Adalberto Francischelli
Leonardo Adalberto
Francischelli
“Geralmente se expõe a
questão como se a exigência
ética fosse o primário e a renúncia do pulsional sua conseqüência. Mas deste modo, permanece sem explicação origem
da eticidade. Na realidade, parece suceder o contrário: a primeira renúncia do pulsional é
imposta por poderes exteriores
e é ela que cria a eticidade, que
se manifesta na consciência
moral e exige novas renuncias
do pulsional”1.
1. FREUD, S. (1924). El problema económico
del masoquismo, A.E. XIX – p.176.
Tradução do autor.
Se dissermos que a nossa cultura, ou melhor, “os meios” deste início
de século procuram, a todo custo, tapar a falta, muitos estarão de acordo.
É claro que falamos da “falta” no sentido psicanalítico: a falta que
mortaliza o sujeito, ou também “o buraco” promovido pelos “poderes exteriores”, que determina uma limitação pulsional, visto que, sem um exterior
impositor, seguramente o homem tornar-se-ia o lobo de si mesmo: “Homo
homini lupus”2.
Ao mesmo tempo, esse limite à pulsão humaniza o homem, fazendo-o
mortal e sexuado, portanto finito e desejante.
Há um esforço coletivo no sentido de ignorar essa imperfeição. Toda a
sociedade prefere pavonear-se, ou melhor, o narcisismo, esse perfume sedutor. Dentro desse contexto, somos “assaltados” por novas nosografias,
como os distúrbios narcisistas vinculados por amplos setores da Psicanálise e patologias como a “doença do pânico”, oferecidas pela Psiquiatria.
Também, como querem alguns, Rudinesco, por exemplo, referencia a
melancolia e o desenvolvimento de um individualismo sem sujeito, fundado num dobrar-se sobre si mesmo narcísico; seria a patologia que nos preocupa nesse início de século.
Diante dessa realidade clínica, queremos colocar uma problemática
do nosso próprio artesanato diário, para discutir como trabalhamos com a
teoria contida no complexo de castração.
Nosso entender, desse “complexo”, nasceria uma determinada ética
que apoiaria nossa práxis. A ética do inconsciente, ou como prefere Nasio
(1999): “Se, por fim, definimos o inconsciente do ponto de vista ético,
iremos chamá-lo desejo” onde, continua ele, “o desejo é o inconsciente em
busca do incesto”3, que, em nossa perspectiva, nasce, como já o dissemos,
2. FREUD, S. (1930). El malestar en la Cultura, A.E., XXI – p.108.
3. NASIO, Juan David. (1999). O Prazer de ler Freud, Jorge Zahar Editor, p.39-40.
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dos “poderes exteriores”, que operam como diques frente à interioridade
pulsional.
Ética que sustenta e dá consistência ao nosso trabalho clínico.
Com essa condição ética, estaríamos colocando uma possibilidade,
talvez a melhor, para darmos conta das dificuldades da época, que não são
poucas, já que ainda contamos com uma certa tendência da imagem a subjugar a palavra e a “realidade virtual” à psíquica.
Vamos, portanto, colocar uma problemática interna da Psicanálise
como possível causa do comprometimento externo da nossa terapêutica. E,
para tanto, recorremos a um exemplo simples, do cotidiano de nossa clínica: um analizando que rompe com uma das normas do contrato, promovendo uma alteração.
Nesta perspectiva, o paciente alterou/rompeu um “artigo” contratual,
e é necessário restituí-lo; do contrário, a palavra do analista ficará comprometida em sua possibilidade de lapidar a possível verdade inconsciente.
Se a palavra perde a força como Sansão perdeu as suas, o analizando
gozará de um “plus” de prazer pela transgressão contratual. E, à medida
que isso acontece, o capital do terapeuta, localizado na palavra, diminui.
Então, será preciso restituir, às suas origens, esse acordo. Para tanto, o analista empregará sua principal arma: a interpretação.
Agora bem, admitamos que esse recurso se esgote por si mesmo, já
que o o analisando, pelas razões as mais variadas, entre elas não perder
esse “plus” – o gozo –, resistirá.
Isso determinará ao analista jogar todas as suas cartas na mesa, levando o analisando a pensar na possibilidade de que a análise se encontra
ameaçada, na medida em que o contrato vem sendo violado.
Resistência que obrigará ao analista colocar em cena a ameaça de castração, isto é, levando o analisando a conjeturar a possibilidade de que sua
análise seja suspensa, caso aquele aspecto do contrato adulterado não seja
respeitado pelo paciente.
Caminho inescusável para retomar o valor da palavra no tratamento
analítico, atravessado pela transferência, além do que será nessa medida
que o analista trabalhará na restituição dos termos do contrato; ele mesmo
apresentará em si as marcas de castração, ou seja, o analista também estará
subordinado a combinações, tanto quanto o paciente.
Nesse caminho, depois de iniciado, não há retorno. É preciso sustentar
essa colocação até o fim: a interrupção ou a volta aos termos contratuais.
A isso, também chamaríamos interpretação em ato, levando a uma
radicalidade profunda, onde ambas as partes são jogados numa incerteza
instantânea e momentânea e o complexo de castrado é levado até às últimas conseqüências como limitador desse “plus” de prazer, desse gozo ilegal.
Essa “interpretação em ato” poderá ser examinada em distintas perspectivas; uma delas seria ligá-la a esses “poderes exteriores” que vão limitar o gozo ilegal pulsional. “Poderes exteriores” que nascem no analista
como aquele que exercita a limitação da força pulsional, portanto, agindo
como o interdito do incesto e do parricídio. Ou, ainda, essa operação,
mediatizada pela “interpretação em ato”, vai provocar a passagem do euideal para o ideal do eu, onde o narcisismo arcaico é transformado em
narcisismo de vida.
Narcisismo que implica a renúncia objetal pela opção de uma escolha
narcisista, ou seja, “prefiro preservar minha integridade corporal e, para
tanto, renúncio à minha escolha objetal incestuosa”, diria o paciente; isto
se materializaria no tratamento, na medida em que o cliente optasse pela
preservação da análise em lugar de rompê-la. Aí, situaremos, também, a
teoria do Complexo de Castração, trabalhando na técnica da clínica psicanalítica.
Em situações assim, de deslizes de enquadre, caso não sofra a ação
dessa radicalidade, e sendo substituída por outra solução “mais humana”,
esse tratamento poderá continuar, inclusive por muitos anos, porém sem
análise. Pois o novo contrato, novo no sentido de que foi modificado pelo
paciente, compromete a palavra do analista – seu valor maior, e daí o casa-
Caso se tergiverse com esse dispositivo do Complexo de Castração,
promotor da entrada da menina no Édipo e saída do mesmo pelo menino,
no horizonte freudiano, que é trabalhar analiticamente no sentido do prazer
possível, não haverá ética, estritamente falando, e, conseqüentemente, análise, ainda que ambos permaneçam juntos por muitos anos.
Talvez pudéssemos expressá-lo de outra forma: toda vez que abrimos
mão de algum termo no contrato analítico, estamos nos colocando fora do
amparo do Complexo de Castração e colocando em jogo todo nosso edifício teórico-técnico, comprometendo nossa comprovada eficácia terapêutica no processo de libertar o sujeito do seu próprio desejo, libertando-o do
sofrimento aprisionante.
4. HOLANDA, Chico Buarque de. Letra e Música, p.158.
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mento poderá seguir “até que a morte os una”4 como diz o Chico, contudo
sem matrimônio em vida.
Nessa radicalidade, imposta pelo complexo de castração, assim compreendida, é que se joga a ética de uma análise e o prestígio da nossa clínica
na comunidade.
Essa radicalidade não implica dizer que o analista não disponha de
nenhuma liberdade na sua condução da análise. A radicalidade significa
que, em algum momento, no horizonte de um tratamento, se defrontará
com ela – a radicalidade.
Esclarecemos, ou pretendemos fazê-lo, que esse sentido da
radicalidade não pressupõe, ou contempla, autoritarismo ou que o terapeuta
se encontre acima do complexo de castração, bem ao contrário.
Então, radicalidade e ética se encontram dentro de um percurso analítico: representam aquele preciso momento em que o Complexo de Castração opera com toda sua força, naquele instante em que cabe ao analista
“cortar” a onipotência do paciente, marcando-o, com os limites da finitude,
mas, ao mesmo tempo, liberando-o em seus desejos.
Daí nasce nossa proposta de que o Complexo de Castração promove
uma ética: a ética do inconsciente, ou seja, o Complexo de Castração operando como aquele “poder exterior” que se impõe à desordem pulsional,
organizando-a em seus limites. Agora, então, fica o lugar para o desejo
que, desde Freud, é a força de trabalho para o aparelho psíquico.
A ética do inconsciente está vinculada ao Complexo de Édipo, na medida em que este é determinado pelo complexo de castração. Portanto, essa
ética é sempre triangularizada, ou melhor, o terceiro nunca estará ausente.
À medida que nós mesmos – e por que não? – burlamos os contratos
clínicos com nossos pacientes, perdemos de vista o terceiro, e nos comprometemos perante a sociedade a qual servimos: em lugar do progresso simbólico, estaremos oferecendo a peste como na velha Teba, ou ainda, como
se diz hoje, em linguagem do nosso tempo, a diminuição da função paterna.
Ética do inconsciente; Contrato analítico; Complexo de castração.
Unconscious ethic; Analytic contraet; Complex of castration.
Ética del inconsciente; Contrato analítico; Complejo de castración.
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