SIMPÓSIO O MÉTODO PSICANALÍTICO: O BEM-DIZER COMO PRESSUPOSTO DO BEM-FAZER O TRAÇO DO CASO NA CLÍNICA PSICANALITICA: O ANALISTA EM QUESTÃO Rosane de Abreu e Silva A clínica é também aquela que deve permitir ao analista de se interrogar, e de instiga-lo a declarar suas razões. Esta é a observação que nos faz Lacan (1977) sobre a clínica psicanalítica. Diria que a apresentação ou a discussão de um caso clínico é rica em ensinamentos por colocarnos justamente neste lugar da interrogação. Mas o que nos leva a determinada interrogação ou a um impasse em um caso clínico? Qual a razão da escolha de determinado caso ou fragmento de uma análise? Observemos que, na construção de um caso, o que parece ser relevante a ser relatado, não são exatamente as narrativas do desenrolar de um tratamento, ou os efeitos das interpretações mas sobretudo, o processo pelo qual as interpretações vem ao analista como efeito da transferência. Porém, as interpretações não são ao acaso e nem são totalmente oriundas de uma teoria analítica. A interpretação analítica é sempre um processo vivo e criativo a ser renovado na sua singularidade. Freud (1918) ressalta esta questão, no início de seu relato do caso do Homem dos Lobos: Não pude escrever a história de meu paciente nem do puro ponto de vista histórico, nem do puro ponto de vista pragmático. Não pude fazer uma narrativa nem da história do tratamento, nem da doença, mas fui compelido a combinar os dois métodos de apresentação. É sabido que não existe nenhuma maneira de passar para a exposição de uma análise, a força convincente que resulta da análise propriamente. Exaustivos relatórios das sessões de análise não teriam qualquer valia. A própria técnica do tratamento torna impossível sua elaboração. (p.27) Poderíamos aqui inferir que, aquilo que se passa na transferência de uma análise, não consegue ser transmitido em narrativas de tratamento. Mas vejamos os efeitos ou o que pode se produzir na apresentação de um caso clínico ou ainda, em dado momento de um tratamento: Quando o analista apresenta um caso, esta experiência de “falar sobre alguém” é o momento em que sua própria palavra efetua um trajeto. Este trajeto comporta três tempos. Começamos falando sobre alguém. Depois, nos damos conta de que a partir de alguém falamos. Enfim, a partir de si mesmo, falou- se do paciente. O segundo tempo, aquele em que nos damos conta de que, a partir de alguém falamos, podemos dizer que isto produz, como efeito, a queda do traço do caso. 1 A queda do traço do caso não estaria nas narrativas exaustivas de um tratamento, nem se sustenta em suas histórias. Ela acontece em uma virada, numa palavra do analisante ou do analista, em um momento de suspense na repetição, que abre brecha na resistência do paciente, a qual sustenta o sintoma, e na resistência correlativa do analista. Esta queda do traço pode produzir-se em várias situações, mas de maneira eletiva, na própria análise se falamos do paciente, ou na análise de controle. O momento em que o traço do caso cai é o momento em que o analista se separa daquilo que o unia ao seu paciente, sem o seu conhecimento. Podemos dizer então que, o caso relatado, não é mais o analisante, não é o tratamento, não é a observação, nem o analista. Mas é um pouco disto tudo ao mesmo tempo. Neste sentido, o traço do caso não é somente o traço do paciente, mas é também o traço do analista. É do laço que se dá temporariamente operatório, emtre o desejo do paciente e o desejo do analista, que resulta no traço do caso ou ao menos, sua ficção. Certamente, ele se dá na transferência tal como a descreve Lacan a partir de Freud: esta transferência da qual Freud diz, em algum lugar, que seu trabalho se processa invisivelmente, por traz do progresso do tratamento, e do qual então, os efeitos escapam a demonstração. (Lacan, 1951) A partir daí poderíamos dizer que há um inconsciente do caso, no sentido em que a história é trabalhada por um discurso e um desejo inconsciente, tal como o concebe Fédida (1999). Poderíamos ainda dizer que o traço do caso, algumas vezes, trata-se do ponto cego descrito por Fédida (1965). Cada analista, segundo ele, mantém um ponto cego na sua prática, o qual é o ponto de seu interesse terapêutico. Este ponto cego, tocado pelo paciente e que atormenta o analista, seria a parte patológica não analisada do analista? Sim, sem dúvida reportando-nos ao autor referido, se admitirmos que o inanalisável não significa o resíduo de uma análise insuficiente e inacabada. O ponto cego é o abrigo e também o inevitável limite de uma prática e de uma teoria. Frequentemente o traço do caso terá uma parte ligada ao ponto cego, mas não sempre. Segundo Fédida (1965), não se parte em busca do ponto cego, pois isto seria uma forçagem. O ponto cego tem por características a permanência e a irredutibilidade. O traço do caso é singular, concerne o analista com tal paciente em um dado momento do tratamento. A enunciação do traço do caso cria, no mesmo movimento, as condições necessárias para uma construção teórica. A ficção torna-se o que possibilita esta construção teórica. Parece-nos que não é possível teorizar unicamente a partir das palavras do paciente ou daquelas do analista, mas sim, essencialmente, a partir deste traço, desta injunção que se dá na transferência. Vejamos a questão a partir deste recorte clínico: L está adolescendo quando inicia seu tratamento. Diz saber que seu problema é um "processo inconsciente". Seu pai é juiz e sua mãe psicóloga. Ambos se mostraram sempre, um tanto quanto 2 exigentes consigo mesmos e, consequentemente com L, tecendo comparações com o que eles conseguem ou conseguiam fazer quando tinham a idade dela. Na infância, L passava grande parte do tempo com sua mãe, quando residiram em uma cidade no interior do Estado onde o pai ficava ausente por longo tempo, devido às exigências de sua função como juiz. Ao retornarem para a capital, a mãe começou a trabalhar e logo depois L ganhou um irmão. L passa boa parte das sessões desenhando e é uma atividade que desempenha muito bem, diria até surpreendente para sua idade. Dedica-se, sobretudo, a desenhar olhos e exige-se perfeição nos detalhes. Aliás, ela se exige perfeição em todas as atividades. Traz toda a sorte de queixas sobre os empecilhos e bloqueios que a impedem de conseguir dar conta de fazer tudo o que supõe precisar desempenhar em sua rotina. Isto a faz muitas vezes perder os primeiros períodos de aula, queixa que foi feita aos pais pela escola, devido ao seu excesso de faltas, embora ela apresentasse um excelente desempenho escolar. Se alguma falha acontece no início do dia, como, por exemplo, acordar atrasada, perder o transporte escolar ou o primeiro período de aula, o dia para ela, torna-se inoperante. L mostra-se muito curiosa e entusiasmada. Tem uma vivacidade e empolga-se ao falar sobre seus interesses e projetos. Mas por vezes, sua fala parece ser atropelada por suas próprias palavras como se quisesse mostrar o quanto está sendo, da mesma forma, atropelada por seus afazeres ou pelas exigências que a vida lhe impõe. Por vezes, emite sons que também parecem querer demosntrar isto. Balbucia sílabas como um bebê. Neste balbuciar, como observa Chemama (2012) não existe nem a palavra, nem o sentido e nem, a gramática. Mas exite neste caso, certamente, a possibilidade, para a criança, de um contentamento e, podemos inferir aí a possibilidade de um gozo. L também diz que, em alguns momentos, gostaria de ficar quietinha e se encolhe como um bebê para assim demonstrá-lo. Sinto-me tomada pela fala de L quase sem pausa. Por um tempo, sua forma entusiasmada de falar e seus diversos assuntos tomavam conta da sessão. Na verdade, me distraíam. Era como se não houvesse nem espaço e nem tempo para outra coisa senão a sua fala incessante. Esta fala preenchia a sessão. Raramente me era possivel fazer alguma pontuação. Começo a ser tomada de uma grande fadiga durante as sessões de L. Os relatos de sua rotina os quais ela tenta fazer em ordem cronológica, parecendo não poder deixar escapar nenhum detalhe, tornam-se, para mim, excessivamente enfadonhos e algo me impede de ouvir para além deles. Minha inquietação com o tratamento de L levou-me a tratar a questão em análise. Eis que então L traz uma cena de sua infância, ocorrida por volta dos seus cinco anos de idade. Saia de uma festa de aniversário infantil com sua mãe e o irmão mais novo. Segurava um balão o qual escapa de sua mão ao entrar no carro. Diz lembrar-se de ter dito: "mãe, o balão". Como ele havia trancado na 3 porta, ela teve a esperança de que a mãe pudesse recuperá-lo. Mas esta estava ocupada acomodando o seu irmão no banco do carro. Vendo o balão voar e, se dando conta de que não seria mais possivel pegá-lo, L entra em desespero ao vê-lo desaparacer. Esta cena também é lembrada por sua mãe, segundo L, porque ela se assustou com o seu estado de desespero. Ela fala então sobre seu afeto naquele momento, seu estado de angústia ao ver o balão escapar de seu alcance. Com esta passagem, L me fez relembrar de uma cena de minha infância. Havia chegado em casa com um balão. Já há algum tempo eu o pedia a minha mãe. Naquele dia, ela havia atendido ao meu pedido. Fiz o trajeto para casa feliz e orgulhosa de ter aquele balão tão solicitado, em forma de um urso azul. Minha irmã mais velha, ao vê-lo, pediu-o emprestado e soltou-o no teto da sala, depois na soleira da porta, o que começou a me deixar apreensiva. Em seguida, dirigiu-se para o pátio da casa onde ela o soltou. Então, vi meu balão voando pelos ares. Também tive a esperança de poder alcançá-lo, pois ele parou no telhado da casa ao lado, mas logo se foi, sumindo de meu campo de visão. L me levou a retomar esta cena em análise. Foi depois deste momento que algo se solta na fala de L. O seu discurso passa a versar sobre seus medos e dúvidas, sobre os objetos que não usa mais e dos quais não consegue se desfazer, e sobre as inúmeras fotos que tira o tempo todo, sobretudo nas férias, como uma forma de segurar ou reter aquele momento. Fala também sobre a inconformidade em não conseguir controlar o tempo, seu medo de crescer e ter de se deparar com as exigências da vida adulta, logo de seu ingresso na faculdade. Certamente L se confronta com a questão do falo e da castração em seu tratamento, o qual se inicia na sua adolescência portanto, momento de operação da castração simbólica, necessária para conduzir às vias de acesso ao desejo e do falo como significante. Operação esta que não acontece sem resistências, pois é preciso lidar com o fato de que o paraíso prometido ou postergado, na infância, para mais tarde, não existe. Assim como não existe nenhum objeto de completude, e o “tudo será possível quando eu crescer” não passou de um engodo ou de uma ilusão. É preciso lembrar que a castração do Outro está em primeiro plano nesta operação. Mas, na questão da neurose obsessiva, a castração do Outro engendra o temor da destruição do próprio sujeito. Lacan (1957-1958), quanto a este dilema, postula que a solução da análise do obsessivo está em que ele venha a descobrir a castração pelo que ela é, ou seja, pela lei do Outro. É o Outro que é castrado em primeiro plano. Mas, por razões que se prendem a sua falsa implicação no problema, o próprio sujeito sente-se ameaçado por esta castração, num plano tão agudo, que não consegue aproximar-se do seu desejo sem sentir seus efeitos. A solução do problema da castração, e isto tanto no homem quanto na mulher, não gira em torno do dilema de ter ou não ter o falo. É a partir do reconhecimento, na análise, de que o sujeito não é o 4 falo, que ele pode normalizar sua posição natural, e que ou bem ele o tem ou bem não o tem. (Lacan, 1957-1958). Porém, no obsessivo, o desejo de destruição volta-se contra ele mesmo. Ele é aquilo que quer destruir no outro, uma vez considerando que este outro é o falo e não que tem o falo. A força da proeza no obsessivo é justamente para salvar o Outro, enquanto potência fálica, de seu próprio ataque. Primeiro o ataca, depois o salva protegendo-o de seu desejo destrutivo. Quanto à L, ao mesmo tempo em que começa a se dar conta de algumas fragilidades dos pais, e que, por outro lado se vê às voltas com sua empolgação nos trabalhos da faculdade, no curso em que tanto desejou obter uma vaga, também traz sucessivas queixas de sintomas tais como uma enxaqueca que a impede de produzir, semelhante à da mãe, taquicardia que ela supõe ser alguma doença cardíaca fatal, alergias respiratórias e, por vezes, uma tosse que atrapalha sua fala em sessão. Da mesma forma, refere-se a uma insuportabilidade ao que ela chama de “assimetria”. Seus dentes não são simétricos, sua franj,a que ela mesma cortou no cabelo, não é simétrica e percebe-se ouvindo mais em um ouvido do que no outro, o que ela diz ser causa de extrema angústia. A relação com os outros, por vezes, lhe parece um tanto quanto difícil, pelo temor que alguma falha sua possa ficar evidente. Falhas que ela mesma aponta. L está tentando manter ou estabelecer a paridade no que ela chama de “simetria” e anular a diferença, sobretudo, a diferença sexual. O sexo e a morte são aí suas questões preponderantes. As cobranças insessantes de seus pais se mantêm presentes, sempre acompanhadas de comparativos com suas habilidades e experiências pessoais, as quais a fazem duvidar de suas capacidades. Mas, assim como o balão que escapou de nossas mãos, a fala de L também começa a se descolar. Agora posso ouví-la. Mesmo não sendo possível relatar a dimensão e a intensidade do que se passa na transferência analítica, esta resenha de um caso clínico apresentada, foi uma tentativa de observar ou ainda, de tentar tansmitir, o que pode acontecer do encontro singular, entre analista e analisante, no que concerne a dimensão ética da práxis, na clínica psicanalítica. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHEMAMA, R. (2012) La psychanalyse comme éthique. Paris : Éditions Érès. DUMÉZIL, C., BRÉMOND, B. (2010)L’invention du psychanalyste : Le trait du cas. Paris : Éditions Érès. FREUD, S. História de uma neurose infantil (1918 [1914]). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol. XVII(19171919). FÉDIDA, P. (1999) Le cas en controverse. Paris : PUF. FÉDIDA, P. (1965) Préfácio de L’effort pour rendre l’autre fou, H. Searles. Paris: Gallimard. LACAN, J. Intervention sur le transfer (1951). Écrits. Paris : Gallimard, 1966. LACAN, J. Ornicar, nº 9. Paris: Editeur Lyse, 1977. LACAN, J. O seminário. Livro V: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 6