Etnomatemática e virada linguística: práticas educacionais

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Boletim do LABEM, v. 7, n. 12, jan. /jul. de 2016
Etnomatemática e virada linguística: práticas educacionais 1
Denise Silva Vilela2
Universidade Federal de São Carlos
Resumo: O propósito deste texto é articular a Etnomatemática e a “virada linguística”, entendida
como um movimento filosófico que se manifestou diversamente em diferentes domínios de
conhecimento: filosofia, linguística, antropologia, matemática, etc., sobretudo em seus
desdobramentos no âmbito da Educação, vista como campo de pesquisa, formação profissional e
ação pedagógica. Nessa abordagem, destaques serão dados a aspectos da filosofia de Ludwig
Wittgenstein, considerados como uma base filosófica possível para a Etnomatemática, por meio da
centralidade da linguagem e das práticas, na medida em que permite compreender tanto a existência
de matemáticas simultânea como também diferentes bases de racionalidades. Os efeitos de abordar
a prática da linguagem serão constatados por meio da problematização dos pressupostos que o
diálogo carrega no cenário pedagógico. Será também enfatizado o caráter não prescritivo dessa
filosofia que decorre da virada linguística, em referência à ideia de programa Etnomatemática,
cunhada por D’Ambrosio.
Palavras-chave: Diálogo; virada linguística; Programa Etnomatemática; prática da linguagem.
Introdução
Nesta mesa-redonda, que visa discutir “aspectos filosóficos da Etnomatemática”, me insiro
com o propósito de discutir possibilidades de articular o programa Etnomatemática com um
referencial teórico associado à virada linguística. E, assim, a presente abordagem pode ser inserida
entre as contribuições que a virada linguística está trazendo para os estudos da educação (VEIGA
NETO, 2007). A virada linguística está, neste estudo, associada à filosofia de Wittgenstein (18891951), particularmente no que diz respeito à compreensão não referencial de linguagem, que pode
ter como desdobramento a abordagem simbólica da linguagem.
Em 2008, no terceiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática, que aconteceu também na
UFF, em Niterói, tive a oportunidade de compor uma mesa-redonda que se denominou
“Etnomatemática e seus fundamentos: contribuições teóricas”. Naquela ocasião apresentei uma
“Reflexão filosófica sobre uma teoria da Etnomatemática”, na qual me aprofundei na sugestão de
Barton (1998, p. 3) de associar a filosofia de Wittgenstein à Etnomatemática.
1
2
Trabalho apresentado no Encontro de Etnomatemática do Rio de Janeiro realizado em Niterói em 2014.
Doutora em Educação, E-mail: [email protected]
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A pesquisa bibliográfica realizada, tendo Investigações Filosóficas (IF), de Wittgenstein,
como referência e, como apoio, textos de comentadores tais como Condé (1998), Gerrard (1991),
Gottschalk (2004), Lurie (1989) e Moreno (1993), permitiu-me afirmar que esta abordagem é
fecunda para abarcar “matemáticas culturalmente diferentes”, da forma como estas se apresentavam
em pesquisas de campo realizadas por pesquisadores nacionais 3. A filosofia de Wittgenstein,
conforme foi interpretada (VILELA, 2008), se mostrou fértil para atender uma condição colocada
por Barton (1998, p 3.) para uma base filosófica da Etnomatemática, para pensar as “diversas
práticas matemáticas como esquemas teórico-práticos particulares e específicos”.
Barton (1998) menciona o foco humanístico a partir de D’Ambrosio, que será abordado
adiante, alinhando-se a esta referência e indo além dela. Neste texto coloco o humanismo,
relativamente à teoria do conhecimento dos filósofos modernos4 como uma doutrina que tem o
sujeito como instância da certeza, da vontade, do conhecimento e da razão. Sobre isso, serão
propostas para debate determinadas contraposições a esta abordagem, provenientes da filosofia pósvirada linguística, que problematizam esta doutrina ou filosofia do sujeito.
No presente texto, vou resgatar aspectos da filosofia de Wittgenstein, procurando dar ênfase
a aspectos que favoreçam esclarecer potencialidades educacionais propiciadas pela Etnomatemática
– entendida como manifestação da “virada linguística” da matemática – ou discutir os efeitos de
abordar a Etnomatemática como uma perspectiva não metafísica da matemática (VILELA, 2013).
A proposta em discussão enfatiza a centralidade da linguagem e sua dimensão simbólica e,
nesse sentido, se coloca em sintonia com perspectivas da pós-modernidade (MONTEIRO;
MENDES; MASCIA, 2010) e de teorias pós-estruturalistas (MIGUEL; VILELA; LANNER DE
MOURA, 2012; WANDERER; KINIJNIK, 2008), estudos que apresentam abordagens diversas,
mas têm em comum a centralidade da linguagem. A dimensão simbólica e da prática da linguagem
evidencia o caráter não neutro do conhecimento, o que vai ao encontro da Etnomatemática,
conforme D’Ambrosio (2002), Knijnik (1996) e Monteiro (2004).
Devo esclarecer ainda, por um lado, a importância da discussão a respeito de dimensões
teóricas da Etnomatemática (FANTINATO, 2013) e, por outro, que a filosofia de Wittgenstein não
3
COSTA, W. N. G. Os ceramistas do Vale do Jequitinhonha. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. DAMAZIO, A. Especificidades conceituais de matemática da
atividade extrativa de carvão. Natal: UFRN, 2004. (Coleção Introdução à Etnomatemática). DOMITE, M. C. et al.
(Org.). Etnomatemática: papel, valor e significado. São Paulo: Zouk, 2004. FREITAS, F. A formação de professoras
da Ilha de Maré – Bahia. 122p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 1997. GIONGO, I. Educação e produção do calçado em tempos de globalização: um estudo
etnomatemática. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Vale dos Sinos-Unisinos, São Leopoldo, 2001; KNIJNIK,
G. Exclusão e resistência, Educação Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
LUCENA, I. C.; BANDEIRA, F. A. Etnomatemática e práticas profissionais. Natal: UFRN, 2004. (Coleção
Introdução à Etnomatemática).
4
Ver Chaui, 1999, p. 113-120.
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é entendida como a filosofia da Etnomatemática, isto é “a única possível”. Antes de qualquer coisa,
há outras filosofias sendo consideradas (BELLO, 2006; BELLO, 2010; CLARETO, 2013;
MIARKA, 2013; MONTEIRO, 2011; SANTOS, 2013; SOUZA, 2014), e uma perspectiva não
necessariamente exclui a outra. Não porque se possa ao mesmo tempo pressupor um e outro
autor/teoria, ou que elas sejam conciliáveis, pois a coerência deve ser garantida. Destaca-se,
entretanto, a Etnomatemática em diálogo com filosofias que comungam pressupostos da virada
linguística. Justamente devido à ideia de programa (D’AMBROSIO, 2002, p. 17), não haveria uma
única resposta possível e uma única filosofia adequada à Etnomatemática.
Pretendo mostrar desdobramentos desta filosofia em práticas educacionais, assim como
esclarecer e aprimorar articulações entre essa visão da Etnomatemática e a ideia de programa.
Nesse sentido, destaco que a opção por uma filosofia pode ser determinada pela potencialidade de
esclarecer as questões específicas, ou seja, se a teoria é capaz de ser um modelo fecundo, em
detrimento da ideia de estabelecer a natureza precisa de objetos.
Desse modo, organizo o texto, a partir do caráter não referencial da linguagem,
considerando como referência a obra Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, o que possibilita
elaborar a noção de prática, alcançar a dimensão simbólica da linguagem e entendê-la como
constitutiva, e não apenas como comunicativa. Entre os desdobramentos da virada linguística para a
Etnomatemática5, serão problematizados pressupostos de neutralidade do diálogo, que circulam nas
práticas escolares.
A prática da linguagem: contribuições da filosofia de Wittgenstein
A filosofia de Wittgenstein pode contribuir para a reflexão da Etnomatemática, na medida
em que, entre outros aspectos, a linguagem é uma marca notória da cultura (ARAÚJO, 2004). Desse
modo, a abordagem antropológica da Etnomatemática, em que se privilegiam estudos específicos de
grupos culturais em práticas específicas, assim como o pressuposto da não neutralidade do
conhecimento, vai ao encontro da presente discussão filosófica.
A filosofia de Wittgenstein é frequentemente aceita como marco da virada linguística, que é
como se denomina o movimento, na filosofia, que mudou a forma de abordar os problemas
filosóficos, mudou a pergunta que orienta a investigação filosófica. A pergunta deixa de ser sobre o
que existe, deixa de ser “o que é”– que conduz a respostas que apontam para referências, para as
5
Outros desdobramentos vêm sendo pesquisados por membros do Grupo Phala (Grupo Interinstitucional de Pesquisas
em Educação, Linguagem e Práticas Culturais – PHALA – institucionalmente alocado na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Destaco a noção de aprendizagem situada de Lave em Scatolin Costa
(2014).
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coisas –, e passa a ser sobre o modo como se pode falar, interpretar e entender as coisas, passa a ser
“como é”: como são usadas as palavras no seu contexto, nas práticas linguísticas, e não de modo
isolado das situações. No primeiro caso, pode-se entender a linguagem como um veículo que
transmite o que estaria representado na mente, entendida como um espelho que reflete a realidade
ou a natureza externa. Assim, a linguagem é colocada como descritiva do mundo, dos conceitos e
dos objetos. É um instrumento de comunicação e de troca de informações que carrega e representa
nossas ideias sobre o mundo, num lugar secundário na relação que o mundo estabelece com o
sujeito que usa a linguagem. Falar da linguagem nesse sentido apenas comunicativo teria como
pressuposto uma concepção que faz dela algo transparente e harmonioso, com significados dados a
priori – isto é, passíveis de obter antes da experiência – aos participantes dessa comunicação. E as
informações a serem trocadas entre eles estão livres de qualquer produção de sentido atrelada ao
papel dos participantes. Trata-se de uma simplificação, em que aspectos importantes que
caracterizam o ser humano e suas relações sociais, tais como as emoções e as relações de poder, são
desconsiderados, varridos para baixo do tapete. O diálogo, conforme abordagens no campo da
educação, será considerado adiante, neste texto, e contribui para este esclarecimento.
Entretanto, do ponto de vista da filosofia que tomamos como referência, esse lugar da
linguagem foi deslocado no movimento que, tanto na filosofia como na linguística, é conhecido
como “giro discursivo”, em analogia com o termo “virada linguística”. Nesta concepção filosófica,
os significados não são indiferentes às práticas linguísticas ou às práticas em geral. Ao contrário, a
linguagem está inserida no contexto em que se desenrola, e seu significado é determinado na
situação e não antecedendo a ela. A linguagem passa a ser investigada na prática linguística, como
constituída dos elementos pelos quais se expressam nossos conhecimentos.
Na obra Investigações filosóficas, seu autor, Wittgenstein, busca romper com a ideia de que
a linguagem é composta de um conjunto de frases, e estas, de palavras que designam coisas. Para
ele, o significado das palavras e das frases vai muito além de uma possível correspondência com
objetos ou com coisas: no parágrafo 1 das Investigações filosóficas, há uma crítica à visão
referencial de linguagem, que ele atribui a Santo Agostinho. Para Wittgenstein (1979, § 1), não “é o
objeto que a palavra substitui”. Palavras como “água”, “fogo”, “jogo” ou “bola” – qualquer uma,
que possa estar associada a um objeto determinado – adquirem sentidos diferentes em contextos
diferentes. Por exemplo, “nas expressões ‘ele está com a bola toda’ ou ‘a questão levantou a bola
para a discussão’, ‘bola’ aparece com sentido metafórico ou simbólico, e não como um rótulo”
(VILELA; MENDES, 2011, p. 22)6. Wittgenstein se opõe a concepções referenciais da linguagem,
6
Termos não necessariamente associados a um objeto podem também serem confundidos com coisas. Sobre isso, ver
reificação ou personificação de coletivos em VILELA, D. Desdobramentos pedagógicos de concepções referenciais de
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em que cada palavra estaria associada a uma coisa, em que os significados seriam indiferentes às
regras e aos usos humanos. Em oposição a uma referência fixa, anterior e externa ao uso, o
significado da linguagem é investigado na prática linguística: “Pode-se, para uma grande classe de
casos de utilização da palavra ‘significação’ – senão para todos os casos de sua utilização –,
explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 1979,
§43).
A questão da prática é aqui relacionada à filosofia de Wittgenstein pela ênfase dada por ele
aos usos. Os significados estariam, nesta perspectiva wittgensteiniana, num jogo de linguagem: “o
significado duma expressão é dado pelo que dela fazemos, não pela hipotética correlação entre a
expressão e alguma coisa do mundo” (PINTO, 1998, p. 15).
A prática envolve o contexto de uso e, quando isolada deste contexto (“linguagem de
férias”), pode criar confusões: ao buscar um sentido fora do contexto de uso ou de um jogo de
linguagem, a tendência é buscar um sentido absoluto, uma essência. Neste caso, diz Wittgenstein, a
confusão pode ser evitada reconduzindo a palavra do seu emprego metafísico para seu emprego
cotidiano (WITTGENSTEIN, 1979, §116).
Para relacionar a presente abordagem com a perspectiva não metafísica da matemática,
enfocada no diálogo com Barton (VILELA, 2008), esclareço que a perspectiva das práticas, por ser
contrária à transcendência, é consoante a impossibilidade de acesso e estudo da coisa em si,
independente daqueles que pensam sobre a coisa e o fato.
Ao focar o modo de expressão do conhecimento, isto é, a prática da linguagem, a busca não
é mais pela realidade em si ou pela forma da estrutura mental que identificaria uma essência
verdadeira, mas pelo modo como a linguagem, entendida como um sistema de símbolos, que
depende de regras de uso, expõe o mundo. Os significados encontram-se na prática da linguagem,
nos usos, mas, ao mesmo tempo, não são arbitrários, isto é, não podem ser quaisquer, pois, para
fazerem sentido, eles estarão modulados pelas formas regulares da gramática – complexos de regras
da linguagem – e condicionados por formas de vida, que direcionam para o que pode ou não ser
empregado ou entendido; determinam as condições de sentido, mas não preestabelecidas definitiva
e universalmente: há uma regularidade, mas não um regulamento rígido. A gramática, nesse
contexto, não tem seu significado usual. Ela comporta a estrutura da linguagem e indica como
podem ser usadas as expressões nos diferentes contextos em que aparecem. A gramática indica as
regras de uso das palavras, aponta o que faz sentido e o que é certo ou errado.
matemática: diálogos entre a filosofia e a sociologia. In: CLARETO, S.; DETONI, A.; PAULO, R. (Org.). Filosofia,
Matemática e Educação Matemática. 1. ed. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2010. p. 169-180.
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Etnomatemática: um programa de pesquisa
Nesta sessão, prossigo na abordagem de aspectos da filosofia de Wittgenstein e coloco em
discussão possibilidades de relacioná-los com a ideia de programa Etnomatemática.
D’Ambrosio (2002, p. 17) afirma ser a Etnomatemática um “programa de pesquisa”, isto é,
um campo que vai se constituindo conforme as apropriações e as direções dos pesquisadores e
professores envolvidos, diferentemente de uma “disciplina”, que se configuraria por definições e
regras prévias: “Pareceu-me adequado evitar que a Etnomatemática surgisse como uma outra
disciplina. Mais apropriadamente, é tratá-la como programa de pesquisa” (D’AMBROSIO, 2004, p.
136).
A qualidade do programa, em contraposição à disciplina, é não estar submetido às gaiolas
epistemológicas que subordinaram o conhecimento moderno (D’AMBROSIO, 2004, p. 136), que
retomamos adiante.
Para este propósito, D’Ambrosio se inspira em filósofos como Lakatos e Feyerabend e
enfatiza o caráter dinâmico deste programa, aberto para novos enfoques, mediante o qual enfatizo
este aspecto consoante a filosofia não prescritiva de Wittgenstein. Justifico também a presente
abordagem pela limitação do programa lakatosiano, apontada por D’Ambrosio (2004, p. 140), da
criação de novas gaiolas, ao substituir uma epistemologia por “outras melhores”. Nesse sentido, a
proposta wittgensteiniana de “ver o que há” e de não propor teses evitaria cair nesse círculo vicioso
e viciado de verdade.
Considerar a prática da linguagem como foco é uma possibilidade que se colocou a partir da
pergunta: “Como é usada esta palavra na linguagem?”. A mudança de foco de uma essência para a
prática da linguagem apresenta desdobramentos diversos. Implica, em termos epistemológicos,
digamos assim, deslocar-se de uma filosofia da ciência que julga o verdadeiro e o falso para uma
que não opera no âmbito da verdade dos modelos, isto é, que busca entender a linguagem como
possibilidade de compreensão e interpretação da realidade, sem pretensão de verdade. Nesse
sentido, não se pretende descrever a realidade ou estabelecer modelos fixos a respeito do
funcionamento social, e, sim, elaborar teorias e conceitos com propósito de ampliar os modos de
interpretá-la.
A filosofia de Wittgenstein não seria uma “filosofia científica”, entendida como uma
filosofia que avança rumo a soluções definitivas de problemas (SPANIOL, 1989, p. 115). Não se
trata, portanto, de uma filosofia que faz a crítica das ciências e dos seus métodos, ou seja, de um
tribunal da razão que teria o poder de julgar o que é ciência, como tradicionalmente foi o papel da
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epistemologia. Por exemplo, diante da Etnomatemática, não seria o caso de emitir julgamentos tais
como “isto é matemática” ou “matemática errada”, e, sim, de observar que matemática é praticada.
A obra Investigações filosóficas, de Wittgenstein (1979, p. 7), está organizada, segundo diz
ele no prefácio, numa forma de álbum, por “anotações, em breves parágrafos” que “são, por assim
dizer, uma porção de esboços de paisagens”, sugerindo novas imagens (mesmo que, segundo ele
mesmo, incompletas e frequentemente interrompidas); ele percorre usos (para relativizar visões
absolutas ou privilegiadas) e não afirma a posse de uma tese, não busca respostas definitivas e
tampouco indica um caminho ou aponta verdades. Ao contrário, a intenção que perpassa esse estilo
visa relativizar verdades, modificar nosso ponto de vista a respeito de concepções referenciais de
linguagem, de significados únicos ou privilegiados.
Esta proposta estilística de Wittgenstein se,
por um lado, pode ser vista como o fim da filosofia (enquanto crítica da razão), por outro, pode ser
considerada como inaugural de um novo estilo de pensar, por esse modo de escrita filosófica
(GEBAUER, 2013).
O aspecto não prescritivo, oposto a uma epistemologia que possui uma verdade e que julga a
partir de regras predefinidas, que caracteriza a filosofia das IF, vai ao encontro da proposta de
D’Ambrosio e além dela, da Etnomatemática como um programa de pesquisa. Este educador
matemático propõe olhar as práticas dos pesquisadores/educadores para, assim, ir constituindo o
programa Etnomatemática, permitindo uma constante ampliação dos significados deste campo:
A principal razão [de falar em etnomatemática como um programa de pesquisa] resulta de
uma preocupação que tenho com as tentativas de se propor uma epistemologia, e, como
tal, uma explicação final da Etnomatemática. Ao insistir na denominação Programa
Etnomatemática, procuro evidenciar que não se trata de propor outra epistemologia, mas
sim entender a aventura da espécie humana na busca de conhecimento e na adoção de
comportamentos (D’AMBROSIO, 2002, p. 17).
A Etnomatemática é um campo que vai se constituindo não a partir de prescrições
epistemológicas prévias, mas conforme as apropriações e as direções que decorrem da prática dos
pesquisadores e dos professores envolvidos.
Filosofar, nesta perspectiva, quer dizer questionar as certezas, problematizar coisas
naturalizadas. Para quê? Para não se deixar levar cegamente, para ver mais profundamente.
Essa abordagem representa uma mudança na ética moderna do “dever”, muito frequente e
presente nos discursos da educação que dizem não só o que é conhecimento certo, mas como o
professor deve se comportar, qual deve ser, por exemplo, “a metodologia de ensino para uma
aprendizagem efetiva”. Esses discursos, na perspectiva da prática, parecem ser pronunciados de
fora, isolados da situação que se critica, numa atitude comprometida com o logos moderno e com a
cisão cartesiana entre o ator e o espectador ou entre teoria e prática (LEODORO, 2012). Além
disso, parecem vazios, são universais, como se houvesse receitas que valessem e funcionassem em
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qualquer situação. Com inspiração em Wittgenstein podemos ver aí um dos limites da linguagem: o
que pode dá certo na sala de aula estaria fora dos limites do que pode ser dito.
A partir da virada linguística, a linguagem passa a ser considerada na prática, em jogos de
linguagem, numa prática social e não isolada da situação. Assim, concluímos, reafirmando que
abordagem pelas práticas favorece a compreensão de programa Etnomatemática: ele não é
predefinido por regras e, sim, constituído a partir da prática dos pesquisadores/educadores.
Menciono também que isso, por seu caráter não universal, não anterior e independente das práticas,
se aproxima de uma perspectiva sociológica da ciência, de modo que as explicações científicas
seriam mais esclarecedoras olhando para os cientistas e suas práticas, e não para a ciência desligada
do seu uso (PASSOS, 2014).
Modos de endereçamento
O termo modos de endereçamento tem suas raízes nos estudos do cinema, foi trazido para o
campo da educação (ELLSWORTH, 2001) e pode nos auxiliar a compreender o diálogo, entendido
como um enunciado bastante prestigiado no campo educacional, como comprometido com o ideal
pedagógico moderno. Assumido sempre com valor positivo, o diálogo pode ser visto gerando
efeitos de sentido, controlando práticas escolares e tendo, como pressuposto, a ideia do significado
da linguagem independente da prática e do uso, contrariamente à perspectiva pós-virada linguística.
Falar da linguagem nesse sentido independente da prática pressupõe uma concepção que faz
da linguagem algo transparente e harmonioso, em que os participantes dessa comunicação são
vistos fora da prática, isto é, são dados a priori; e as informações trocadas entre eles estão livres de
qualquer produção de sentido:
Trata-se de uma simplificação em que aspectos importantes que caracterizam o ser
humano e suas relações sociais, tais como as relações de poder, são
desconsiderados, varridos para baixo do tapete. Particularmente, as relações que
envolvem a sala de aula podem, neste caso, ser abordadas do ponto de vista
individual e psicológico, em que não cabem os aspectos culturais e das relações de
poder que, interferem no desempenho dos estudantes. A pergunta que se coloca
nesse caso é: em nome de que ou de quem é feita esta simplificação? (VILELA;
MENDES, 2011, p. 22).
O termo “modos de endereçamento”, de Ellsworth (2001), diz respeito ao delineamento do
perfil do público, o que pode ser resumido assim: “quem este filme pensa que você é?”. A autora
explica que, ao fazer um filme, os pressupostos sobre “quem são seu público” (ELLSWORTH,
2001, p. 14 e p. 21) definirão diversos aspectos importantes do filme, como narrativas, acabamento,
efeitos finais, etc. Ocorre que o modo de recepção de um filme depende também, e
fundamentalmente, do indivíduo que está assistindo; depende de sua dimensão interior. Assim, o
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modo de endereçamento não se localiza preferencialmente no filme, e, sim, na relação entre o filme
e o público, numa “negociação”, na situação singular do filme sendo assistido por alguém.
O que nos interessa neste texto é que, da mesma forma que o espectador nunca é exatamente
o que o filme pensa que ele é, assim também o filme não é, nunca, exatamente o que o espectador
pensa que é. “Não existe, nunca, um único e unificado modo de endereçamento em um filme”
(ELLSWORTH, 2001, p. 21). A citação nos remete à não transparência da comunicação ou à ilusão
em relação ao alcance e à potencialidade do diálogo no campo educacional.
O diálogo, quase um discurso hegemônico no campo educacional, pode ser visto como
expressivo de uma visão de linguagem como comunicativa, direta e mesmo ingênua, no que diz
respeito à ênfase fraca ou nula nos componentes sociais e emocionais presentes na prática, na
situação:
Supõe-se que o diálogo é capaz de tudo: desde construir conhecimento, resolver
problemas, assegurar a democracia, implantar processos cooperativos, assegurar a
compreensão, construir virtudes morais e diminuir o racismo ou o sexismo até
satisfazer desejos por comunicação e conexão (ELLSWORTH, 2001, p. 66).
Ellsworth (2001, p. 66) explica que o diálogo, com um “status de transcendental”, como um
condutor supostamente neutro de significado e intenção, aparece frequentemente em práticas
educacionais, e este seria um modo de endereçamento historicamente estruturado, condicionado por
interesses particulares.
A não coincidência entre as intenções (do diretor do filme ou do professor) e a recepção (do
espectador ou do estudante), ou, dito por outra ótica, o pressuposto a respeito da não transparência
do diálogo, foi denominado por Ellsworth (2001) de “diálogo ou comunicação obstruída”. A autora
esclarece que a comunicação obstruída envolve a relação entre o social e o individual, entre o lado
de fora e o lado de dentro, entre o mundo social e o mundo psíquico, entre o texto do filme e a
experiência do espectador. Ou seja, não apenas leva em conta o mundo social e o mundo psíquico –
o que coloca em suspeita o ideal da modernidade de pessoa com “vontade livre” e sujeito de si
(CHAUI, 1999, p. 118) –, como também o espaço entre eles, numa prática social.
A dimensão não neutra e obstruída do diálogo, consoante com a nossa concepção de
linguagem, possibilita ver a centralidade da prática. Nesse sentido, a noção do modo de
endereçamento, de Ellsworth (2001), permite ver as limitações da crença na razão e também ver as
dimensões da prática que passaram a ser consideradas: a importância da situação para a
significação. Isso favorece a compreensão da dimensão simbólica da linguagem, que leva em conta
os papéis que são ocupados por cada um nas diferentes situações que vivemos.
Assim como “o
filme não é, nunca, exatamente o que ele pensa que é”; e a espectadora nunca é exatamente o que o
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filme pensa que ela é, também no âmbito da educação escolar, “as coisas não são o que parecem
ser” e, na prática, há interferências entre o que é dito por um e o que é entendido pelo outro:
O que impede o professor de obter objetivos pedagogicamente prescritos, como, por
exemplo, educar um indivíduo virtuoso em uma boa sociedade é o espaço entre a
percepção e a consciência – e esse espaço constitui “um obstáculo a transparência”
(Bahovec, 1967, p. 163). Trata-se de um obstáculo que também impede a
possibilidade de vigilância total (ELLSWORTH, 2001, p. 68).
Donald (apud ELLSWORTH, 2001, p. 69) argumenta que, na prática, há interferências entre
o que é dito por um e o que é entendido pelo outro: “Ninguém [descobriu] exatamente como as
normas sociais afetam a textura de nossa experiência ou como elas são transformadas nesse
processo” (ELLSWORTH, 2001, p. 92). Não se trata apenas de que aquilo que ocorre nos espaços
entre o social e o individual, entre a percepção e a consciência, escapa ao controle direto por parte
do professor (a partir do lado de fora), mas é também impossível de ser conhecido pelo indivíduo
em questão (a partir do lado de dentro).
Essa afirmação é fecunda e se esclarece quando trazida para a prática da sala de aula. O
papel que o professor ocupa, determinado por dimensões sociais e coletivas, carregado de símbolos
e representações, assim como pela dimensão psíquica do estudante, com suas marcas e fragilidades,
nos ajuda a entender a centralidade da ação, da prática, no momento em que ocorre a relação “entre
o currículo do professor e a compreensão do estudante”, pois não se trata de uma relação
“unilateral” (ELLSWORTH, 2001, p. 65). No âmbito da ação, da prática, podem ser
compreendidas, numa dimensão não neutra da linguagem, as obstruções de um diálogo, em
particular na sala de aula:
O diálogo no ensino não é um veículo neutro que carrega as ideias e as
compreensões de quem fala para lá e para cá, através de um espaço livre e aberto
entre dois pontos. Ele é um veículo desenhado com uma tarefa particular em mente e
o acidentado terreno entre os falantes que ele atravessa faz com que haja uma
passagem constantemente interrompida e nunca completada (ELLSWORTH, 2001,
p. 66).
A autora conclui que o diálogo não é uma realização suprema da civilização ocidental, e,
sim, mais um modo constituído, politicamente interessado, que apresenta as relações, escolares
inclusive, de modo simplista.
Ficam sob suspeita, neste âmbito, abordagens que operam a partir da concepção de sujeito
autônomo e senhor de si, assim como no espaço individual interno (LEODORO, 2012), em que a
linguagem é entendida como meio de transmissão, transparente e harmoniosa. A abordagem social
não se limita a ver o estudante como “aprendiz” (POPKWITZ, 2011, p. 177 e p. 178), sujeito ao
“escrutínio por parte do professor” e visto “em relação a elementos universais, independentemente
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do seu lugar geográfico”, do tempo, do espaço e de sua comunidade; neste caso, a doutrina
humanista subjacente à filosofia moderna entende a capacidade do conhecimento como universal 7:
O sujeito do conhecimento não é uma vivência individual, mas aspira à
universalidade, ou seja, à capacidade de conhecimento que seja idêntica em todos
os seres humanos, e com validade para todos os seres humanos, em todos os
tempos e lugares. Assim, por exemplo, João pode gostar de geometria e Paula pode
detestar essa matéria, mas o que ambos sentem não afetam os conceitos
geométricos, nem os procedimentos matemáticos cujo sentido e valor independem
das vivências de ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do
conhecimento (CHAUI, 1999, p. 118).
Ao considerar os condicionamentos sociais e culturais, e pôr em questão o otimismo
racionalista e científico, entram em cena as noções de prática que contemplam o “mundo social e o
mundo psíquico” (ELLSWORTH, 2001, p. 63), os quais nos possibilitam suspeitar da transparência
da linguagem e do controle de si, das coisas e das relações. A partir daí pode ser considerada a
dimensão simbólica da linguagem, do conhecimento e dos papéis que são ocupados por cada um de
nós nas diferentes situações que vivemos. A partir da virada linguística, a linguagem passou a ser
considerada na prática, em jogos de linguagem, numa prática social e não isolada da situação.
Esta perspectiva critica também a ideia de escrita que este modo promove e constitui este
sujeito cognitivo, que aprende os saberes científicos e as condutas relacionadas, numa direção
suprema. Tais práticas parecem pressupor um caminho, dito o melhor, e soluções definitivas, ao
orientar o futuro professor sobre o que deve ser e como fazer. De fato, todo discurso produz efeitos
e condiciona condutas (VEIGA NETO, 2007). Portanto, promove desdobramentos pedagógicos,
para além de uma solução definitiva e ingênua. Os discursos estabelecem algumas “formas de
conduta que tanto firmam determinados tipos de saberes pedagógico como também capturam esses
professores produtivamente para o estado” (VEIGA NETO, 2007, p. 52). Sinalizando que há riscos
de, por meio de discursos que enfatizam o dom e a vocação, constituir um tipo de professor e
estabelecer algumas condutas que capturam esses “professores produtivamente para o estado”.
Esta noção de linguagem como própria e capaz de uma comunicação livre e transparente se
contrapõe à visão que permeia este artigo, desenvolvida a partir do referencial wittgensteiniano da
linguagem constitutiva e simbólica (VILELA; MENDES, 2011).
Considerações Finais
7
O otimismo filosófico do iluminismo foi abalado com as noções de inconsciente e ideologia, respectivamente, de
Freud e Marx (CHAUI, 1999). Se estes são vistos como revolucionários no que diz respeito ao modo de ver o homem,
Dewey e Freire o são no campo educacional, por vincular aspectos sociais e políticos, respectivamente, aos problemas
da educação escolar.
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A presente discussão se insere no que denomino filosofia da educação matemática
(VILELA, 2013) e no que Veiga Neto (2007) aponta como um cruzamento de estudos pedagógicos
com estudos culturais, a partir de aportes decorrentes da virada linguística. Apesar de não ser
objetivo deste artigo discutir diretamente o movimento que ficou conhecido como “virada
linguística” e a filosofia de Wittgenstein, destaquei os aspectos destas filosofias que permeiam a
presente abordagem: a prática e dimensão simbólica da linguagem. A partir disso, problematizei
aspectos de uma pedagogia humanista da primazia da abordagem psicológica, individual e cognitiva
na educação e desdobramentos pedagógicos de uma visão de linguagem transparente e
comunicativa. O termo “modo de endereçamento” mostrou-se como “uma coisa de cinema; uma
coisa de educação também” (ELLSWORTH, 2001), favorecendo a abordagem das práticas, em
detrimento de um domínio de conhecimento, e possibilitando entender a ideia de performatividade
como linguagem em ação.
Em sintonia com o estilo de pensamento presente na IF de Wittgenstein, em
detrimento da busca de obter respostas definitivas, indicar caminhos e apontar verdades, busquei
discutir limites e possibilidades destas articulações provenientes do cruzamento desta filosofia com
a Etnomatemática. Coloquei em discussão a pertinência do diálogo entre a abordagem não
prescritiva de filosofias que aderem à virada linguística e a noção de programa de D’Ambrosio
(2002), que não se antecipa numa definição ou numa epistemologia da Etnomatemática, mas a
constitui a partir dos discursos produzidos neste eixo de não neutralidade do conhecimento e
potencialidade cultural da compreensão da linguagem simbólica.
Para finalizar, destaco que a Etnomatemática, como compreensão social da ciência,
questionando pressupostos de neutralidade, permite evidenciar a autonomia das questões da
Educação Matemática em relação à Matemática. Por outro lado, “ao agir no interior da lógica que
resiste”, permanece disciplinar, consagrando o campo da matemática.
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