JUSTIÇA E PODER SOCIAL: MEMORIAS SOCIAIS Josélia Barroso Queiroz Lima, UFVJM 1 Grupo de Trabalho - Cultura, Currículo e Saberes. Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este artigo coloca em discussão a relação entre justiça e poder social, de modo a refletir sobre a construção do projeto civilizatório chamado democracia e as implicações dele decorrentes. Discute sobre a necessidade de mudança que a construção da cidadania democrática impõe à sociedade, ao Estado e às instituições sociais, em específico, à justiça e ao exercício do poder. Reflete sobre a constituição social brasileira e os desafios sociais, institucionais que o projeto democrático nos impõe. Por via da análise de documentos públicos do século XIX, discutimos os sentidos que atribuímos a Rua (DAMATTA, 2010). A produção desse artigo/ensaio decorre da tese de doutoramento- Sons do Silêncio: a relação entre educação escolar e religião católica – um estudo de caso (LIMA, 2013), na qual analiso uma escola publica de Sabinópolis, MG, que fundada nos anos 50, do século XX, retrata o processo de aliança entre a Igreja Católica, as famílias proprietárias e o Estado Brasileiro. Discussão teórica com autores brasileiros e outros sobre os conceitos de: democracia, cidadania, participação política e justiça social. Gonçalves (2010), DaMatta(2010), Carvalho(2011), Arendt (2010), Freire(1996) e Lane (1994). Via análise histórica e documental, refletimos sobre o cenário político e social brasileiro, colocando em questão os desafios da construção democrática, numa cultura que internalizou a hierarquização como forma de ordenamento do outro, das instituições e do espaço público. A democracia implica a instituição de outros modos de pensar e de agir sem os quais, continuaremos a reproduzir as injustiças de nosso passado social hierarquizador. Implica a reestruturação do Estado, suas instituições e as relações com a/e da sociedade. Palavras-chave: Justiça. Poder social. Democracia- Brasil Introdução Este artigo coloca em discussão a relação entre justiça e poder social, de modo a refletir sobre a construção do projeto civilizatório chamado democracia e as implicações dele decorrentes. Discute sobre a necessidade de mudança que a construção da cidadania democrática impõe à sociedade, ao Estado e às instituições sociais, em específico, à justiça e 1 Doutora em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá. Paraná. Professora Adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. ISSN 2176-1396 25369 ao exercício do poder. Reflete sobre a constituição social brasileira e os desafios sociais, institucionais que o projeto democrático nos impõe. A produção desse artigo/ensaio 2 decorre da tese de doutoramento- Sons do Silencio: a relação entre educação escolar e religião católica – um estudo de caso (LIMA,2013)3, na qual analiso uma escola publica de Sabinópolis, MG, que fundada nos anos 50, do século XX, retrata o processo de aliança entre a Igreja Católica, as famílias proprietárias e o Estado Brasileiro. No processo investigativo sobre as representações sociais que circulam no cenário, na cultura escolar, múltiplos recursos metodológicos foram utilizados, entre eles, a análise documental. O acesso a documentos cartoriais e paroquiais do século XIX e início do século XX, possibilitaram a visibilidade das alianças feitas entre famílias e estado, estado e igreja, e ainda entender como o espaço publico deveria ser controlado, pelos coronéis, de modo a impedir a aglomeração de pessoas, “suspeitos”, negros, e outros. Ao refletirmos, pudemos compreender como as categorias sociológicas propostas por DaMatta (2010): Casa, Rua e Outro Mundo foram se constituindo e constituindo os sentidos, os significados e os modos de funcionamento que, ainda hoje, fazem pressão invisível, na sociedade brasileira mantendo as nossas memórias sociais, como argumenta Jovchelovitch (2008), de um passado que não passa. Ao reportarmos a analise documental, encontramos os elementos que permitem entender como a justiça, exercida via os juízes de paz podia aliar os senhores em torno do controle das ruas, das aglomerações; no exercício do poder, o controle e o domínio sobre o outro acontecia. A justiça instituída de modo coercitivo objetivava o controle sobre a ordem publica. Uma justiça de coronéis, de privilégios, e coercitiva faz parte da memória social que necessitamos refletir para mudar. 2 Grande parte das discussões, aqui, tecidas foram feitas ao longo do concurso publico para professor efetivo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, disciplina Psicologia Social/ Educação, pelo qual tornei-me professora adjunta da referida instituição. 3 A produção da tese de doutoramento contou com o apoio CAPES e foi desenvolvida junto ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Partes dos dados da pesquisa foram publicados em CALSA & LIMA (2013), disponível em: http://educere.bruc.com.br/ANAIS2013/mesas.html 25370 Proibição de Aglomeração Pública, 1831 Fonte: Cartório de Registro, Sabinópolis, 1831 A discussão teórica com autores brasileiros e outros sobre os conceitos de: democracia, cidadania, participação política e justiça social. Entre os autores que, chamo para o diálogo, temos: Gonçalves (2010), DaMatta (2010), Carvalho(2011), Arendt (2010), Freire(1996) e Lane (1994). Via análise histórica e documental, refletimos sobre o cenário político e social brasileiro, colocando em questão os desafios da construção democrática, numa cultura que internalizou a hierarquização como forma de ordenamento do outro, das instituições e do espaço público. E que tem o espaço público representado como espaço de perigo, de marginalidade, de perda de referência. Portanto, o representando assim, não o toma como espaço coletivo, que sendo de todos, deveria ser apropriado como espaço de 25371 conversação, de troca e de expressão da coletividade. A resignificação do espaço público é parte necessária à construção do ethos democrático. A construção do projeto democrático, a necessidade da revisão e da reflexão sobre nosso passado... Assim, teço a discussão trazendo o argumento de Jose Moura Gonçalves (2009), sobre a questão do poder, sua diferenciação entre poder coercitivo e poder consensual, discute sobre as instituições políticas, sobre o exercício do poder e as questões sociais brasileiras, analisando a conjuntura social_ coloca em estudo a democracia e o poder de argumentação de um povo. O autor faz um recorte do conceito de cidadania e menciona Hannah Arendt, para quem o poder somente se constitui na relação dialógica; quando os homens rompendo suas individualidades (seu narcisismo) pelo e no dialogo e se unindo em torno de um ideal comum, podem mobilizar um outro modelo social, por construírem um outro fazer. Em tal situação tem-se o poder político, o poder de transformação, pois ele projeta o homem, os homens acima de si próprios. Gonçalves (2010), tomando o modelo de cidadania da Ágora grega e da lógica republicana, argumenta que temos que entender o poder em suas diferentes perspectivas: a dominação, a subordinação, a repressão e a perspectiva do dominante, ele se articula e se relaciona com seus iguais para dominar e manter a subordinação do outro. Este poder retrata o narcisismo humano e fixa a lógica da propriedade – ele fundamenta a lógica capitalista. No entanto, a idéia democrática exige ruptura de tal lógica. No dizer do autor: O poder em Hannah Arendt distingue-se do que ela vai, inicialmente, chamar de dominação. O poder resultado do consenso possível obtido a partir de um acordo entre agentes, entre iniciadores. E um acordo que para respeitar condição de todos e cada um de agentes não pode ser obtido por meio coercitivos. Só pode ser obtido por meio da palavra, da argumentação, da persuasão, da conversa. Quando um iniciador impinge sua iniciativa aos demais mediante violência física, moral ou de qualquer outro tipo, sua própria ação se degrada em coação. Quem rouba de seu interlocutor a condição de agente e interlocutor, logo perde sua própria condição de agente e falante. A ação se degrada em coação, a voz se degrada em comando e o que, mediante o acordo possível, poderia culminar na formação de um poder se forma como dominação. (GONCALVES, 2010, p.162) Argumenta, pois o autor que para termos a perspectiva de poder que transforma, é necessário entender o poder hieraquizador e silenciador que, no caso brasileiro, está enraizado nos ritos sociais, na cultura e na estereotipia com que ainda tratamos os pobres, as populações marginalizadas socialmente. Motivo pelo qual é preciso entender e colocar em análise a 25372 invisibilidade, o racismo e os modos dirigidos aos empobrecidos. Invisibilidade que não apenas humilha e subordina, mas que destitui o sujeito social de sua condição de ser social e cidadão. Diferente do poder que subordina, do poder narcísico, interessa-nos o poder que por reconhecer o outro e por visualizar um ideal acima de si próprio, leva à coletividade, à organização social, à modificação e a possível transformação social. A perspectiva democrática, ou ideal democrático exige a ruptura com os processos de silenciamentos, ao admitirmos e compreendermos que a igualdade implica o reconhecimento do outro em suas historias e em sua trajetória- inclusive de subordinação. O reconhecimento requer, ainda, o resgate da historia social das sociedades e de seus problemas sociais. Resgate fundamental a construção de outras narrativas que possam narrar o vivido e assim, o transformá-lo. Portanto, é em tal contexto que desenvolvo meu argumento- o cenário de democratização do Brasil, que busca consolidar instituições políticas necessárias à construção democrática. A justiça, enquanto instituição política, é fundamental a tal processo. Por outro lado, o poder social se articula ao exercício do direito à palavra, ao ato e a expressão, como tal a cidadania implica o reconhecimento das vozes e dos saberes que foram silenciados pela cultura hierarquizante que nos procedeu e que, ainda, permeia as relações sociais. A instituição da Justiça como expressão da busca pela igualdade e pelo exercício do poder do Estado em ordenar as relações sociais, de modo a media-las, resguardando os direitos sociais dos diversos sujeitos, requer a revisão dos tratamentos desiguais- dados aos que detém os meios de produção e as riquezas e aos que se encontram excluídos dos processos produtivos. A construção de uma sociedade democrática requer a revisão das violências que compõem nossa historia. O que justifica as políticas de inclusão social que estão sendo instituídas no Brasil e no mundo ocidental democratizado. No entanto, é preciso mencionar que a construção da Justiça Social está também articulada ao fortalecimento da sociedade civil organizada. Se, é preciso compreender (para mudar) que o Estado Brasileiro em sua história- se organizou de forma clientelista, patriarcal, colonial, produzindo uma Justiça de COMPADRES e CORONEIS4, que, ainda, se mantém na atualidade5 e que a instituição precisa ser reestruturada, de modo a cumprir sua função na sociedade democrática; por outro lado, é necessário ressaltar que a reestruturação se dá pela exigência social de transformação. A sociedade, apoiando-se no fundamento democrático de 4 A instituição da guarda nacional, no Brasil Imperial, se configura como um modo de funcionamento pelo qual a Coroa articulando-se com os donos de terra, constituiu um dos mecanismos de controle social sobre a colônia. 5 Na finalização deste artigo, recebo a edição n° 220, ano XIX, 2015, da Revista Caros Amigos com a reportagem de capa- Judiciário: o poder do privilegio. 25373 estar o Estado a serviço das melhorias sociais, pode exigir, lutar e cobrar do Estado e de suas instituições que exerçam seu papel. Constituição da Guarda Nacional, 1831 Fonte: Registro de Cartório de Sabinópolis,1831. 6. Pelo documento cartorial podemos compreender como a Justiça Brasileira nasce como forma de manutenção de uma ordem social e mantendo a hierarquização, reconhece, reafirma e alimenta o poder do Senhor/ do Patriarca / do Coronel/ do Branco. Destacando as palavras com letra maiúscula, ressalto que no contexto colonial e imperial o manto religioso católico afirmava o poder da Coroa, do Patriarcado, do Senhor, da Hierarquia como modo de funcionamento social, que reproduzindo na terra a hierarquia celeste, justificava e significava o ethos social. Sob o manto do sagrado, o poder (Coroa/Estado) e a relação com a religião (Igreja) silenciavam a alteridade, justificando a opressão, a subordinação do negro, do índio, da mulher ao poder patriarcal. Em tal contexto, temos o domínio da Casa e do Outro Mundo sobre a Rua7. Não obstante, internalizado no tabu8, temos a relação de proibição e 6 O Presidente da Província, havendo recebido a Lei de 18 de Agosto do corrente anno, que manda organizar as Guardas Nacionais, e desejando fazer da sua parte o possível esforço, a fim de que com brevidade se ponha no devido andamento uma tão útil instituição, envia ao Sr. Juiz de Paz do Distrito dos Correntes um exemplar da mesma lei, para que comece a ter execução no seu Distrito logo que possível seja. O Presidente espera, que, pela parte que lhe toca, empregue na execução desta Lei o seu costumado zelo, e patriotismo, prestando assim relevante Serviço à Cauza Publica. A. C. de Ouro Preto, 30 de Setembro de 1831. Manoel Ignacio de Mello Souza. 7 Apropriamo-nos do conceito de sociedade relacional, cunhado por Roberto DaMatta (2010), discutindo os processos conciliatórios que fazem parte dos desafios sociais brasileiros. O conceito de sociedade relacional permitiu o entendimento dos códigos com os quais nomeamos e ordenamos o mundo social e material, constituindo as categorias sociológicas: Casa, Outro Mundo e Rua. Em cada categoria sociológica, comportamentos são prescritos e explicam como lidamos com os diferentes espaços sociais. 8 Sobre este assunto ver CALSA & LIMA (2011): Política e Religião não se discute. Discute-se! X Congresso Nacional de Educação. ISSN:2176-1396. Editora Champagnat.Curitiba, 2011. 25374 sociologicamente, como afirma DaMatta( 2010) mantemos, com tudo que é sagrado, um comportamento de cuidado, no qual evitamos dizer sobre, de modo a proteger-nos. A continuidade do tabu se revela na categoria Outro Mundo, que explica o funcionamento cultural da sociedade brasileira. O tabu impossibilita a discussão sobre a função social da religião e sua relação com a cultura brasileira. Conforme Calsa & Lima (2011), a relação tabuizada com a religião se reproduz na cultura escolar, dificultando a construção de um pensamento reflexivo e laico, capaz de mudar o olhar e os discursos sobre a religião e sua função social. No cenário atual, podemos visualizar e perceber como o fundamentalismo religioso vem crescendo 9. Não obstante, retorno a idéia de Gonçalves (2010) e Arendt (2010), no contexto de um projeto democrático, a sociedade pode ocupar seu lugar na Ágora, pode exercer seu papel ao mobilizar ações, ao discutir idéias, ao propor idéias e assim, ocupar seu lugar de sujeito social- de cidadão. Para tanto, tem que romper com a lógica da subordinação, do silenciamento, tem que produzir encontros, diálogos, conversações; pois os homens podem projetar um outro ideal e pela organização coletiva, podem mobilizar a mudança que os possa reconhecer. A cidadania é, portanto, processo em construção. José Murilo de Carvalho, no livro: Cidadania no Brasil- o longo caminho (2011), analisa como chegamos a democracia sem que o povo brasileiro tivesse um papel ativo, discute os múltiplos fatores que envolvem a nossa dificuldade de nos vermos como sujeitos históricos e sociais, entre eles aponta para a questão do analfabetismo. Paulo Freire (1996) ao analisar a educação brasileira escolar mostrou-nos como, pela educação bancaria, internalizamos o poder do opressor. Poder que nos leva a negar nossas origens sociais, nossos saberes, nossa diversidade. Reproduzindo relações hierarquizantes no espaço escolar, mantemos o ambiente social não dialógico, nele as representações sociais aprendidas e naturalizadas veiculam nossas memórias sociais. Mesmo num cenário de inclusão social, iniciado pela Constituição de 1988, onde a educação torna-se um direito social, permitindo e possibilitando o acesso das populações marginalizadas à escola pública, no coletivo educacional público, precarizado por políticas neoliberais, encontramos dizeres, saberes e fazeres que mantém uma cultura escolar que remete a violência da educação bancária. Lima (2013, p. 220) assim, analisa: 9 Em publicação especial, a revista Caros Amigos, ano XVIII, n° 71, em reportagem de Laís Modelli, analisou o poder das Religiões e o crescimento do poder político dos evangélicos, refletindo também como no espaço escolar se mantém e reproduz o preconceito contra as religiões afro. 25375 De acordo com Saviani (2008b), a permanência das populações marginalizadas na escola pública requer novos discursos e novas práticas educacionais, nelas, a multiplicidade cultural deve ser garantida por práticas pedagógicas que promovam a reflexão crítica e a argumentação discursiva. As políticas de reconhecimento situamse neste contexto, o multiculturalismo é uma objetivação das representações sociais que questionam a violência de nosso passado e da própria cultura reproduzida pela escola e suas práticas disciplinares. Questionam a violência da exclusão, da segregação, do silenciamento, da humilhação que as hierarquias de uma sociedade desigual impuseram àqueles mantidos à margem dos bens culturais. Mas, para entender que a marginalidade e toda violência são consequências de um processo social hierarquizado, é preciso conscientizar-se de que temos uma história social, que somos produto e produtores desta história e isso implica um olhar crítico sobre o real e, consequentemente, implica um olhar crítico sobre a história da escola e das práticas educativas. A ruptura dos modelos aprendidos requer a ação coletiva dos que fazem o dia a dia escolar, porém, a cada dia de observação, afirmava-se a fragmentação do fazer pedagógico, a solidão dos profissionais e a naturalização do cotidiano escolar, que reeditava um passado,congelando-o. Silvia Lane (1994) ao discutir as relações sociais e seu papel na constituição das identidades (subjetividade), revela-nos como a naturalização do fazer e dos discursos psicológicos também contribuíram para negarmos a historia da sociedade brasileira. Via naturalização, mantemos a ideologia de dominação, É na naturalidade das relações que podemos constatar a força da ideologia, que se concretiza nos comportamentos e ações dos indivíduos, e, como já mencionamos anteriormente, a dominação so se exerce se houver dominados que a entendam como necessária- o líder é sempre produto dos liderados.(LANE,1994, p.54) Roberto DaMatta (2010) ao refletir sobre os processos conciliatórios que nos constituíram como sociedade: o poder religioso, o patriarcado, a colonização- defende que para construirmos a democracia brasileira é necessário colocar em discussão o “ jeitinho brasileiro”. Reafirma a necessidade de revermos os significados dirigidos ao espaço publico, de modo a torná-lo democrático, igualitário. Ao colocar em analise o transito 10, adverte: Nosso estudo indica que, em todos os níveis e com todos os atores, há uma atitude comum que fala de modo muito preocupante do universo da rua como terra de ninguém, lugar perigoso onde seres humanos (as pessoas, como se diz) são desumanizadas e se transformam em pedestres ou vitimas potenciais dos outros atores presentes neste espaço, no qual as regras foram feitas para serem desobedecidas. ( DAMATTA, 2010,p.126) 10 Fe em Deus e Pé na Tabua (2010), resultado de uma pesquisa desenvolvida para o governo do Espírito Santo, sobre o transito, objetivando melhorar o trânsito na grande Vitoria, traz dados e reflexões sobre os diferentes significados dados por pedestres, motoristas e usuários dos transportes públicos ao transito, ao transporte publico. 25376 DaMatta salienta que operamos na sociedade moderna (democrática) com os mesmos modos de pensar e de agir que foram constituídos na sociedade colonial: a hierarquização, ela é nosso dilema social. O fato concreto, reiteramos, é o que o transito põe a nu nossas receitas hierárquicas e sua inaplicabilidade no mundo moderno, o qual, obviamente, começa e tem uma presença marcante e irrecorrível nas vias publicas. Nestas, a modernidade exerce pressão cada vez maior em direção à igualdade e a um reconhecimento mutuo universal, sobretudo depois do automóvel e do transporte publico de massa.Tal constatação nos leva a uma reiterada e inevitável discussão daquilo que, para nós, é certamente a maior contradição da vida moderna brasileira. O encontro complicado, que já chamei de dilema, de um espaço publico construído como igualitário, mas sobre o qual condutores de veículos e pedestres atuam com expectativas hierárquicas. Um palco desenhado para cidadãos que, entretanto, nele atuam como aristocratas. (DAMATTA, 2010, p.97,98) Ao reportar-me aos diferentes autores e estudos aqui mencionados, o faço para defender o argumento de que estamos em processo de construção da cidadania. Estamos em processo de revisão de nossa historia social, onde a mobilização de vozes e ações se expressa nas lutas sociais, nas reivindicações que levaram e que levam as populações e as gerações diferentes a ocupar as ruas e a exigir que sejam modificadas as relações instituídas- educação, política, justiça e inclusive, o esporte11. Estamos imersos em um contexto em que o sentimento por mudança e transformação social mobiliza o desejo de justiça e tudo isto, requer necessariamente a diminuição das desigualdades sociais. A historicidade da democracia e do projeto civilizatório que ela vislumbra envolve mudanças na educação formal e informal- pois temos uma educação fundamentalmente marcada por rituais de subordinação e por produção da obediência. A luta social não se faz sem confrontamento, sem embates- reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais, dos atos de reinvidicação, sobretudo dos coletivos feitos desiguais12- onde eles acontecem, é reconhecer que as desigualdades são produções sociais, históricas e temporais. 11 Como mencionado, este artigo foi parte do processo do concurso publico que me levou a UFVJM, em Junho de 2014, as mobilizações sociais ocultavam as ruas do Brasil, numa manifestação coletiva inédita na vida política e social brasileira. 12 Expressão usada por Arroyo (2010), a desigualdade social é historicamente construída por relações políticas, econômicas e sociais que a geraram e geram. Os coletivos feitos desiguais possuem cor, gênero e etnia são, portanto, sujeitos sociais que foram mantidos excluídos e marginalizados por outros grupos sociais considerados superiores. A democracia e a cidadania exigem o reconhecimento dos processos de exclusão e marginalização de modo a revertê-los. 25377 Considerações Finais Portanto, o poder social/político se encontra na mobilização dos homens por outros projetos de sociedade, a Justiça social não perpassa apenas a reestruturação da instituição justiça, mas a transformação das relações sociais em seus micros e diversos contextos. A Justiça exige a ruptura de relações de subordinação, pois em tal relação o que se veicula e se ensina é a destituição do outro e sua coisificação. A construção democrática implica a instituição de outros modos de pensar e de agir sem os quais, continuaremos a reproduzir as injustiças de nosso passado social hierarquizador. A justiça implica, pois a reestruturação do Estado, suas instituições e relações com a sociedade e a mudança da sociedade em relacionar com o outro, com suas instituições e com o Estado. A construção democrática exige um educar no qual a dialogicidade, as relações entre os sujeitos sociais, seja pautada na igualdade, no reconhecimento ao direito de dizer e de narrar as historias, sejam as silenciadas, sejam aquelas que possam fazer nascer outro porvir. No entanto, ao reproduzirmos, nos diferentes espaços sociais, as hierarquias naturalizadas, impedimos que o ethos democrático se consolide. Aceitando e conciliando a desigualdade social com a idéia democrática, socialmente, tornamos invisível e naturalizada a violência dirigida ao outro, nomeado e tratado como marginal porque desigual. Não obstante, a igualdade implica melhores condições de vida, sem as quais a democracia não pode efetivamente acontecer. Como argumenta Arroyo (2010, p.1404) “todo projeto de cidadania nacional terá de passar por um projeto de igualdade, de um justo e digno viver”. Portanto, o justo e o digno viver são condições para que a Justiça Social aconteça. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. 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