Guia www.expressao.com.br | 2014 Brasil de cara suja • Os quatro rios mais poluídos do Sul • 2 mil lixões fora da lei empesteiam as cidades 4 190 anos de imigração alemã A herança germânica Ela foi maior no Sul, com grande peso na indústria, dando sabor ao turismo e valorizando o meio ambiente Marcas com sotaque alemão Blumenau: 2a maior Oktoberfest do mundo Parque Malwee: santuários patrocinados XXI Prêmio Expressão de Ecologia Fotógrafo Marcelo Martins A grande aventura deu certo Há 190 anos os alemães trocavam os conflitos do velho continente pelas selvas de um novo mundo. No Sul do país eles deixaram suas marcas mais profundas, e conheceram os mais afortunados sucessos E m julho de 1824, há exatos 190 anos, um grupo de 39 imigrantes alemães instalou-se nas margens do Rio dos Sinos, nas proximidades de Porto Alegre. Começava uma das maiores aventuras globais desse século XIX, conhecido como o século das migrações. Eram os pioneiros de um povo que trocava um velho continente conturbado por guerras, crescimento populacional e escassez de alimentos, por uma região quase despovoada, distante da corte de D. Pedro I, fronteira que precisava ser protegida contra as ameaças espanholas e portuguesas, após a independência do Brasil, ocorrida dois anos antes. Aportaram em uma mata inóspita, com insaciáveis insetos alienígenas, malária, animais selvagens, víboras e índios pouco amistosos, que lhes fora vendida, em panfletos de companhias de colonização, como Herança germânica Vale dos Sinos: grande polo de calçados nacional Vale do Itajaí: grande polo têxtil continental Santa Catarina: três maiores polos industriais do estado Blumenau: maior Oktoberfest mundial, fora da Alemanha Joinville: segundo maior polo metalúrgico do país o paraíso terrestre. O oceano era vasto, viajava-se 12 mil quilômetros, desde Hamburgo, em veleiros superlotados de pessoas que sonhavam com a Terra Prometida. Faltava comida e água, morria-se de doenças como sarampo e tifo durante a navegação. Na segunda metade do século XIX, após a derrota de Napoleão, vários estados alemães se uniram e organizaram a Confederação Alemã, com sede em Frankfurt. Em 1870 surgiu o Império Alemão. Profundas transformações causadas pela intensa industrialização, urbanização acelerada e atritos no campo provocavam graves conflitos, saques. O modelo econômico e social era autoritário, com muita concen- Os naturalistas e botânicos começaram a chegar ao Sul do país junto com os primeiros imigrantes alemães. Vinham atraídos pela exuberância da selva. O cientista e médico Fritz Müller, que estudara com Hermann Blumenau em um ginásio prussiano, chegou em 1852, navegando em um veleiro assombrado por mortal epidemia de sarampo. Fritz Müller conviveu com onças, índios bravios e pernilongos gigantescos. Filho, neto e bisneto de pastores luteranos, o rebelde Fritz Müller era ateu. Preferia buscar as explicações 2 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E Arquivo Expressão A grande maioria das personalidades ambientais selecionadas pelo Prêmio Expressão de Ecologia nestas duas décadas têm sobrenome alemão. É caso de José Lutzenberger, considerado o príncipe dos ambientalistas brasileiros, que combateu o uso abusivo de agrotóxicos no Brasil na década de 70, foi incansável ativista e ajudou a forjar uma atuante consciência ambiental. caram cerca de 50 cartas e Darwin mandou-lhe um microscópio, quando o seu perdeu-se em uma das várias enchentes do Rio Itajaí. Fritz Müller: Karl Marx, índios e Darwin Cientista, professor e único médico da colônia, construiu sua choupana com as próprias mãos, trabalhava com enxada e machado. A religiosidade da colônia conflitava com a descrença e sabedoria científica desse leitor de Karl Marx. Considerado o patrono dos ecologistas catarinenses, defendeu fauna, flora e os índios. Suas aventuras e pesquisas brasileiras estão em um museu em Blumenau. na ciência. Com esse espírito observador desenvolveu vasto material sobre plantas, insetos, moluscos e crustáceos que ajudaram o britânico Charles Darwin a embasar a Teoria da Evolução das Espécies. Embrenhava-se em expedições nas selvas do Vale do Itajaí e mandava suas observações para Darwin, ilustradas com desenhos detalhistas. Era grande anatomista. Eles tro- Outro museu, em Seara, no Oeste catarinense, ostenta o nome de outro mitológico naturalista alemão. O Museu Entomológico Fritz Plaumann é considerado o maior do continente americano, com cerca de 80 mil exemplares de 17 mil espécies diferentes de insetos, todos recolhidos por ele. Até sua chegada, os insetos eram uma praga ali. Jamais seus habitantes imaginariam que eles trariam fama para a cidade. Ele transformou Seara na Terra das Borboletas. Milhares de alunos, professores europeus, cientistas japoneses e curiosos vão anualmente até o museu e deparam-se com uma comunidade onde tudo lembra borboletas. Esculturas de borboletas de madeira, outras de concreto, que enfeitam pontos de ônibus, adesivos, mosaicos, e uma de granito, simbolicamente pousada no túmulo de Fritz Plaumann há exatos 20 anos, desde sua morte em 1994. Ele chegou em 1924, em um sertão onde a rede elétrica só surgiu na década de 1970 e o asfalto bem no final do século. Era um personagem singular em uma região de mata virgem que precisava ser desbravada. Tocava Mozart no pequeno órgão de sua casa. Tinha que dividir o tempo entre o trabalho duro de agricultor, as tarefas de professor, responsável pela alfabetização de várias gerações de habitantes da região, e a entomologia. Foi também fotógrafo ambulante. Nos finais de Arquivo Expressão Os Fritz investigam as selvas Borboletas de Plaumann deram fama ao sertão semana viajava para fazer fotos das famílias da região, para conseguir dinheiro para a compra de equipamentos de pesquisa. Esse um dos motivos que levou sua esposa a voltar para a Alemanha. do Mérito Científico. Mantinha contatos com instituições brasileiras como o Butantan, que enviava soro contra veneno de cobras. Várias vezes Fritz salvou cachorros e vacas dos vizinhos mordidos por cobras. Sua carência de livros para consulta foi solucionada por meio de um intenso intercâmbio, que resultou em grandes amizades e no seu reconhecimento pela comunidade científica internacional. Ele enviava insetos e, em troca, recebia livros. Abasteceu museus de 12 países, como os de Londres e Estocolmo. Descobriu naqueles sertões 1.500 insetos desconhecidos da ciência e recebeu a mais alta condecoração científica da Alemanha, a Grã-Cruz Nas anotações de seu diário, que escreveu durante 50 anos, combatia os agrotóxicos, a poluição dos rios e a devastação da fauna e da flora. Não pôde ver um de seus grandes sonhos, a preservação da Floresta do Rio Uruguai, ser realizado. Patrocinado pela Tractebel Energia, o Parque Estadual Fritz Plaumann, em Concórdia, além de proteger a floresta e várias espécies da flora, abriga veados-mateiros, macacos, cutias, pacas e tamanduás. G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 3 XXI Prêmio Expressão de Ecologia tração de dinheiro em pequena elite e condições de vida miseráveis entre a maioria. Os impostos eram altos para manter as guerras, os camponeses perderam terras. Havia gente demais e exploração extrema de mão de obra pela recém-surgida Revolução Industrial. Esse conjunto de problemas gerou na Europa, nas primeiras décadas de 1800, uma série de confrontos entre proletariado unido à classe média, contra uma aristocracia que sufocava brutalmente essas revoltas. Nesse contexto, a emigração era uma saída. Empobrecidos e sedentos por terras, os alemães embarcaram na grande aventura migratória que marcou o século XIX. Esses migrantes e as levas que se seguiram enfrentaram no Brasil a selva perigosa, lavraram o solo, fizeram negócios, ergueram indústrias e revolucionaram o Sul. Criaram uma nova classe social de artesãos, técnicos, pequenos proprietários rurais. Com os imigrantes de várias nacionalidades, a população do Sul praticamente dobrou de tamanho em pouco tempo. Entre outras façanhas, os alemães e seus descendentes transformaram o gaúcho Vale dos Sinos num dos maiores polos de calçados do Brasil e o Vale do Itajaí num dos grandes polos têxteis continentais, no final do final do século XX. Esses vales que geram muitas riquezas, eram selvas antes de eles chegarem. Cerca de 225 mil alemães aportaram no Brasil desde 1824, num período de 150 anos, até 1970, mas foi no Sul que fincaram suas raízes, valores culturais e sociais mais profundos. Santa Catarina é o estado mais germânico do Brasil. Aproximadamente 25% de sua população – 6 milhões e 320 mil habitantes – é de ascendência alemã. Não há setor de atividade onde não se faça visível a herança germânica. Duas das maiores cidades, Joinville e Blumenau, têm seu DNA e arquitetura. Grandes empresas catarinenses têm sotaque dos pioneiros alemães. Eles mudaram a organização agrária do estado, disseminando a atual cultura minifundiária, uma das mais bem-sucedidas do país. Criaram uma classe média rural e urbana até então inexistente. Fundaram vilas rurais fortemente comunitárias, mais de 300 escolas, disseminaram associações culturais e esportivas, festivais de flores, dança, tiro, ginástica, bolão e corais. E a maior festa da cerveja, fora da Alemanha, a Oktoberfest de Blumenau. Esse peso crescerá um pouco mais este ano com a chegada de uma fábrica da BMW no norte do estado. É justamente nessa região, que engloba o norte e o nordeste catarinense, onde se localiza o próspero Vale do Itajaí, que se concentram os três maiores polos industriais estaduais, todos produto da colonização A enchente de 83 durou tenebrosos 32 dias e o rio bateu seu recorde, subindo brutais 15,32 metros, pegando a cidade desprevenida e causando pânico na população. A água subiu rapidamente, chegando ao teto das casas, separando pais de filhos, levando famílias ao desespero. Os mais humildes profetizavam o 4 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E Oktoberfest: média anual de 750 mil pessoas, uma das maiores festas do turismo brasileiro dilúvio bíblico. A residência do presidente da Artex, um poderoso império têxtil, Carlos Curt Zadrozny, foi violentamente tomada pelas águas. Ele, como vários outros, teve que ser resgatado pelo telhado. As decolagens de helicópteros da Marinha na névoa eram constantes, transportando mortos em afogamentos, alimentos, remédios. Era preciso buscar comida de canoa para os acampamentos de desabrigados. A água baixou, os blumenauenses tiraram o barro das ruas, pintaram as casas, oficinas e lojas, levantaram os móveis e com apoio de toda a comunidade, empresários, comerciantes, associações e prefeitura começaram a preparar sua primeira Oktoberfest, em 1984. Em agosto, dois meses antes da festança, o Rio Itajaí-Açu decidiu mostrar sua cara feia de novo, batendo o recorde do ano anterior em mais de 10 mortais centímetros. A Defesa Civil, após a tragédia de 83, estava mais organizada. Porém a violência da natureza atingiu mais de 70% da população, algo como 70 mil pessoas. A contabilidade, além de uma cidade arrasada, registrou 68 mortos, com as igrejas protestantes recheadas de desalojados. O desânimo abateu até os mais corajosos. Indústria e comércio contabilizavam infernais prejuízos. Porém, o espírito comunitário alemão prevaleceu. Enterraram os mortos, tiraram o barro das ruas, pintaram as casas e lojas, reconstruíram os muros. Pouco menos de dois meses depois recebiam 102 mil turistas, que beberam 103 mil litros de chope, consumiram 12 toneladas de comida, inclusive o afamado marreco com repolho roxo, em meio a trajes e músicas típicos e danças folcóricas de cidadãos recém-saídos de um flagelo. 30 anos neste 2014, um registro de uma comunidade que enfrenta com especial tenacidade suas adversidades e que encheria de orgulho os ousados pioneiros. A Oktoberfest não parou de crescer. Quatro anos depois, em 1988, ela recebia 1 milhão de pessoas, seu maior público até hoje. Sua média anual é de 750 mil pessoas, algumas vindas de outros países, que se divertem na Vila Germânia e consomem quase 700 mil litros de chope e cerveja, um recorde nacional. É uma das maiores festas do calendário turístico brasileiro e traz muita riqueza e fama para Blumenau, ocupando quase tanto espaço nas tevês quanto as Enchente de 84, a mais violenta de Blumenau: dois meses tenebrosas enchentes. depois cidade recebia 100 mil turistas na 1ª Oktoberfest Coisa de alemão mesmo: transformar uma pavorosa enchente na maior Oktoberfest do mundo, fora a de Munique. Tanto a enchente quanto a Oktoberfest completam Arquivo Defesa Civil de Blumenau As histórias das enchentes do Rio Itajaí-Açu, em Blumenau, e da cerveja caminham lado a lado com a colonização e o espírito comunitário germânico. Os pioneiros enfrentaram solitariamente as selvas, sem nenhum amparo. Conviviam com onças, epidemias e índios e fincaram e mantiveram os alicerces da cidade. De 1850 a 2002 foram registradas 68 enchentes na região. Cerca de 40 nos últimos 50 anos. Porém, nenhuma delas foi tão trágica e violenta como as dos anos de 1983 e 84. Foi justamente na década de 80 que a cidade começou a planejar sua Oktoberfest, orgulhosa de suas tradições alemãs, com apoio de empresários, comerciantes, prefeitura e toda a comunidade. Divulgação Santur Uma história de enchentes e cerveja As enchentes não soterraram o espírito de luta alemão, mas poucos imaginariam essa festa em 1984, com a cidade sob as águas, morros desabando sobre estradas, a única comunicação sendo feita por radioamadores, um único telefone público funcionando. As pessoas colocavam o que podiam no segundo andar das casas, tudo empilhado em cima de armários e mesas, desligavam a eletricidade e muitos foram para o morro onde ficava o Clube de Caça e Tiro Blumenauense. Levaram mantimentos para alguns dias e os escoteiros montaram um acampamento tão organizado, que três dias depois, quando os oficiais da Marinha chegaram em helicópteros, pensaram que era um acampamento militar. Os radioamadores eram o único meio de comunicação. Comandavam ações de socorro, davam notícias de famílias separadas e de feridos e coordenavam a distribuição de alimentos que escasseavam. Em outubro, o dilúvio da cidade era outro: de chope e cerveja. G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 5 XXI Prêmio Expressão de Ecologia alemã. Essa região de ascendência alemã faz com que Santa Catarina seja o estado cuja indústria tem maior peso no PIB, entre todos os outros do Brasil. De cada quatro reais gerados por toda a economia catarinense, um real vem do parque industrial. São bilhões e bilhões de reais industriais. Várias de suas indústrias são líderes nacionais e destacam-se nos rankings mun- diais, muitas delas erguidas com os genes alemães, como Tupy, Embraco, Tigre, Ciser, Hering e dezenas de outras. O maior polo, Joinville, e maior cidade, com 546 mil habitantes, concentra uma abastada classe industrial e o segundo polo metalúrgico de todo o país. Mas também mostra a outra face da colonização alemã, com animada Festa das Flores, enfeitando a cidade desde 1939; um Festival de Dança, que agita os palcos joinvilenses há 32 anos, reconhecido pelo Guiness como o maior do mundo em seu gênero, e abriga a única filial do Balé Bolshoi fora da Rússia. Os outros maiores polos são a surpreendente Jaraguá do Sul e Blumenau, terra das têxteis Hering, Karsten e Altenburg. Mas também terra da atriz Vera Fischer, do poeta Lindolf Bell, da modelo Mariana Weickert, da campeã de vôlei Ana Moser, ou do engenheiro Emil Odebrecht, cuja família começou ali seu case empresarial de sucesso nacional. Todos com sotaque germânico. Essas três cidades tinham algo incomum em cidades pequenas e médias brasileiras. O Parque Malwee foi criado em 1978 pelo empresário Wolfgang Weege, fundador da Malwee, escolhido, in memoriam, como personalidade ambiental do XXI Prêmio Expressão de Ecologia. Quando visitou pela primeira vez a Europa, em 1975, Wolfgang encantou-se com parques, castelos e museus. Em cidades como Milão, Paris, Viena, Roma e Berlim, o industrial identificou tradição e cultura, conectadas especialmente com o ser humano. Inspirado, decidiu que em sua volta ao Brasil iria iniciar o projeto de uma área verde de preservação e lazer em Jaraguá do Sul. Nascia assim o Parque Malwee. “Do ponto de vista do meu pai, era algo a ser feito para enobrecer a região. 6 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E Wolfgang: os Weege chegaram em 1868 e construíram gigantes industriais e santuários ecológicos Ele também queria dar de si para o próximo”, recorda Wandér Weege, filho de Wolfgang. Adquiriu quatro terrenos amplos, próximos da Malwee, pastos e plantações onde Wolfgang brincava com crianças da vizinhança, e sonhava em fazer dali um enorme jardim. Em viagem ao Japão, a ideia se consolidou quando o empresário conheceu os Jardins de Kyoto. “A partir de então passou a liberar mais recursos para esse projeto e a dedicar-se ainda mais para realizar esta grande obra que é o Parque Malwee”, lembra Wandér. Wolfgang decidiu arborizar a área também com árvores de várias partes do mundo. Trouxe sementes e centenas de outras plantas de diversos países. O Parque Malwee foi inaugurado em 1978. “Os funcionários participaram da inauguração na parte de cima da barragem, degustando um espumante. Inesperadamente, do horizonte do grande lago, surgiu um barco onde estava a família Weege, sendo Wolfgang o timoneiro-mor. A família vestia-se a caráter, ao estilo da época de 1910, década na qual iniciou a história empreendedora da família Weege em Jaraguá do Sul. À medida que o barco avançava, lentamente, o público conseguia olhar e ouvir o barco, que tinha um gaiteiro a bordo”, recorda Wandér. Essa entrada simbolizou a chegada da família Weege ao Brasil no veleiro Lord Brougham, em 1868, vinda de Regenwalde, na Pomerânia, atual Resko, na Polônia. Em 1982 o fundador doou o parque aos funcionários da Malwee, que decidiram abrir as portas do santuário para toda a comunidade. Uma visita ao parque é também uma singular excursão cultural, que faz parte do calendário escolar e de várias instituições. Wolfgang era um admirador da cultura greco-romana. Várias esculturas e estátuas desse período estão espalhadas pelo parque, como o Pantheon, onde as cinzas do fundador estão preservadas. Mas o ponto forte é o cenário ambiental. Com 16 lagoas – a maior com 100 mil metros quadrados, o parque tem mais de 40 mil árvores nativas e exóticas, que Wolfgang trouxe de várias partes do mundo, e uma numerosa fauna silvestre, com animais de médio e de pequeno porte e centenas de espécies de aves. A lagoa principal é circundada por uma pista de caminhadas e está preparada para a prática de esportes náuticos, como canoagem ou jet ski. O parque também possui campos de futebol, ginásio de esportes e uma pista de bicicross já utilizada em diversas competições nacionais e internacionais. Há choupanas com muitas mesas e churrasqueiras. Existem ainda dois restaurantes, um de comida típica alemã. Wolfgang tinha sua atenção também voltada para a área social e apoiou iniciativas que favorecem a comunidade até os dias atuais, como hospitais, corpo de bombeiros, igrejas e outras atividades sociais. O Grupo Malwee já está na terceira geração, nos últimos anos sob a presidência do neto do fundador, Guilherme Weege. O interesse socioambiental sempre marcou a gestão de seu filho Wandér Weege, que durante quase três décadas comandou a companhia, com projetos de educação e investimentos em hospitais e outras instituições. Ele foi também um dos pioneiros em vários aspectos das relações entre os negócios e o meio ambiente. Arquivo Expressão Ao contrário do cenário normalmente desolador de outras cidades operárias brasileiras, brilha em Jaraguá do Sul um dos principais pontos turísticos de todo o norte catarinense. O Parque Malwee, um verdadeiro santuário ecológico aberto à visitação pública, com mais de 1,5 milhão de metros quadrados, é um privilegiado centro de lazer. Seu exuberante cenário sedia diversos eventos esportivos, estudantis, gastronômicos, ambientais, culturais e animadas excursões turísticas. Recebe mais de 70 mil visitantes anuais. Divulgação Malwee Um poderoso sonhador Parque Malwee recebe 70 mil visitantes anuais Construiu um dos primeiros aterros industriais do estado, aperfeiçoou o tratamento de efluentes e a água que devolve ao Rio Jaraguá é 97% pura. Seu projeto de reutilização de água faz com que a Malwee deixe de captar até 200 milhões de litros de água anuais. Passou a usar gás natural e foi a primeira companhia do setor têxtil a desenvolver um programa de neutralização de carbono, em 2007. E se o Parque Malwee, criado por seu pai, protege as nascentes do Jaraguá, rio vital para toda a região, Wandér adquiriu novas áreas de mata atlântica e numa delas, o Pico Malwee, de 2,5 milhões de metros quadrados, recuperou espécies nativas. Em outra, a Reserva de Fontes e Verde, um santuário ecológico, preserva mais de 30 nascentes de água. Seu filho, Guilherme Weege, segue a pegada ecológica da família e lançou artigos com fio poliéster PET, produzido a partir de material 100% reciclado de garrafas plásticas. Com isso já resgatou mais de 10 milhões dessas garrafas que infestam rios e lixões e reduz o consumo de material virgem retirado do meio ambiente. “Todo o projeto de sustentabilidade concebido pela Malwee está à disposição de outras empresas. Queremos motivar novas ações sustentáveis”, afirma Wandér. G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 7 XXI Prêmio Expressão de Ecologia Fundação Cultural de Blumenau Seus habitantes organizavam orquestras sinfônicas e não causava espanto que donos de oficinas tocassem violino, barbeiros e industriais soassem clarinetas e cantassem nos corais de igrejas ou atuassem como bombeiros voluntários, como se verá nas histórias a seguir. Trabalhavam duro. Liam Goethe, tocavam Mozart, dançavam. Competiam pelo jardim mais bonito. Colocaram o sabor alemão no caldeirão cultural do Sul brasileiro. Família musical: em 1882 Blumenau tinha 16 mil habitantes e muitas sociedades culturais Entre os corajosos aventureiros vinham naturalistas, botânicos, cientistas atraídos pela desconhecida exuberância da floresta e da fauna. Alguns conquistaram fama mundial por suas experiências aqui, como Fritz Müller, cujas pesquisas ajudaram Charles Darwin na elaboração da Teoria da Evolução das Espécies, ou Fritz Plaumann, que recebeu a mais alta condecoração do campo da ciência da Alemanha, a Grã-Cruz do Mérito Científico (veja matéria com os naturalistas na página 6). Eles também deixaram uma herança ambientalista. Das 11 personalidades ambientais que o Prêmio Expressão de Ecologia selecionou em seus 21 anos, oito tinham sobrenome alemão. O mesmo aconteceu com várias empresas que conquistaram o Prêmio Expressão nessas duas últimas décadas, muitas delas porque seus comandantes visitaram a Alemanha nos anos 70 e 80, auge do Partido Verde naquele pa- 8 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E ís, e trouxeram na bagagem soluções para os graves problemas ambientais gerados pela industrialização de suas empresas. Esse é o principal elo entre o XXI Prêmio Expressão de Ecologia e a comemoração dos 190 anos da chegada dos alemães. Aqueles 39 pioneiros que chegaram no Vale dos Sinos em 1824, cujos sonhos se defrontavam com selvas, onças e índios, representavam uma nova classe social de pequenos proprietários, em um Brasil que até então só conhecia senhores e escravos. Eles recebiam lotes de terra, bois, cavalos e auxílio financeiro por dois anos. Isenção de impostos por 10 anos, liberdade religiosa e dispensa do serviço militar. Entre 1824 e 1830, chegaram 5 mil imigrantes a São Leopoldo. Mas a partir dos anos 1830, a imigração cessou por problemas políticos como a abdicação de D. Pedro I e a separatista Revolução Farroupilha, que começou em 1835 e durou uma década. A imigração só retornou em 1844 e até 1850, em apenas seis anos, o Rio Grande do Sul recebeu mais 10 mil habitantes. Outros 10 mil chegariam nas próximas duas décadas. Lembrando que o Rio Grande do Sul contava com pouco mais de 100 mil habitantes quando os alemães começaram a chegar e dessa diminuta população, 10 mil concentravam-se em Porto Alegre. Novas colônias pipocaram na região. Esses imigrantes trouxeram a Revolução Industrial ao despovoado Rio Grande do Sul. Eles fundaram o primeiro curtume da região de Porto Alegre, depois moinhos, ferraria, oficina de lapidação, fábrica de sabão, queijarias e introduziam os calçados no Vale do Rio dos Sinos, setor que em algumas décadas iria gerar dezenas de milhares de empregos no vale, e também muita poluição nos rios. Inauguraram vilas que viraram cidades, como Novo Hamburgo ou São Leopoldo; XXI Prêmio Expressão de Ecologia Os alemães traziam da Europa a ideia de que o Estado e não a Igreja era a referência da organização da sociedade, e a escola um dos pontos centrais da comunidade. Como não havia escolas públicas no Brasil da época, suas rigorosas Deutsche Schule eram competentes instâncias de educação em várias cidades gaúchas. Os imigrantes alemães conseguiram nas décadas de 1920 e 30 a quase erradicação do analfabetismo em mais de mil comunidades rurais gaúchas, quando a média nacional estava perto de 80%. O censo de 1940 apontava que 400 mil brasileiros natos falavam alemão no Rio Grande do Sul. O mesmo acontecendo com outros 180 mil em Santa Catarina, bem menos populosa. Os alemães aportaram em Santa Catarina quatro anos após chegarem ao Vale do Sinos. Seus carroções agruparam-se em São Pedro de Alcântara, na atual Grande Florianópolis. Mas suas tentativas não deram certo por 20 anos. As colônias só tiveram sucesso quando eles subiram mais ao norte do estado, numa região que ia do litoral, próxima ao porto de São Francisco, penetrando no interior através dos vales formados pelo Rio Itajaí. A primeira comunidade catarinense bem-sucedida foi Blumenau, fundada em 1850, e um ano depois surgia sua eterna rival Joinville, próxima ao litoral. Os blumenauenses, com perfil mais liberal de Munique, alardeiam que seus vizinhos Arquivo Histórico José Ferreira da Silva surgiram artesanatos que se transformaram em indústrias. Salas de aula geraram escolas. Sucessivas levas de imigrantes alemães levaram um total de cerca de 75 mil pessoas para o Rio Grande do Sul. Abriram novas fronteiras agrícolas e iniciaram uma industrialização que rompeu a monotonia agropecuária dos estados do Sul. Sua influência está na culinária, na dança típica, nas festas e tendência a criar associações esportivas, recreativas, culturais. Dois dos maiores tenistas brasileiros, o gaúcho Thomas Koch e o catarinense Gustavo Kuerten, também saíram dessa fôrma. Bebendo cerveja em Blumenau: primeira fábrica em 1860 e maior Oktoberfest do mundo fora da Alemanha construíram a cidade em cima de um brejo, onde chove um dia sim e outro também, e os joinvilenses, mais prussianos e austeros, retrucam sobre a sede insaciável de cerveja dos conterrâneos. O fundador Hermann Blumenau nasceu em 1819, em um ducado da Prússia, no coração da recém-formada Confederação Germânica. Botânico, farmocologista, filósofo, convivia com naturalistas famosos e sentia forte atração pelos trópicos. Trouxe poucos agricultores para a colônia, mas vieram agrimensores, carpinteiros, marceneiros, funileiros e o naturalista e médico Fritz Müller, com que estudou em um ginásio na Prússia. Encontrou índios caingangues e botocutos, além de onças-pintadas. Se a noiva de Blumenau abandonou-o pelo temor da floresta, a colônia tinha pouquíssimas mulheres e diz a lenda que navios traziam senhoritas casamenteiras, que eram sorteadas entre os colonos alemães. A colônia crescia e em 1882 contava com 16 mil habitantes, sociedades de canto, clubes de tiro, jogos de bolão e grupos de teatro. Indústrias domésticas de banha, queijo e manteiga prosperavam, assim como serrarias movidas por energia vinda de moinhos movimentados por quedas d’água dos rios. Em 1860, surgiu a primeira fábrica de cerveja, que ninguém é de ferro. Mulheres que construíram impérios lançamentos de roupas de cama e travesseiros PET. Usando o material reciclado, a empresa já retirou 7 milhões de garrafas plásticas que costumam infestar rios e lixões. A família Hess trocou a fronteira da Alemanha com Luxemburgo em 1875 por Curitiba. Em seguida, a segunda geração, capitaneada por Valentim Hess, era pioneira na cata- Divulgação Dudalina As mulheres também foram pioneiras em alguns impérios têxteis. Em 1922, para garantir o sustento da família em Blumenau, Johanna Altenburg começou a produzir acolchoados manualmente. Atualmente são três fábricas de roupas de cama, mesa e banho, e a incrível produção de 1 milhão de travesseiros por mês, sob o comando do neto Rui Altenburg. A companhia foi pioneira em Adelina e a filha Sônia Hess: uma compra exagerada de tecido do marido e a intuição e garra femininas a caminho da meta de R$ 1 bilhão 10 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E rinense e vizinha de Blumenau, Luis Alves, com uma casa de comércio e serraria. Compravam a produção dos colonos, vendiam secos e molhados e financiavam engenhos, telhas, juntas de bois e ferramentas para os colonos, numa região sem crédito ou bancos. Adquiriram caminhões para transportar mercadorias e ônibus para passageiros. Seus filhos mantiveram o negócio e abri- ram também uma casa de comércio. Mas foi a filha, Adelina Hess, forjada na rigidez da educação alemã, um dos cases femininos de maior sucesso empresarial no país. Ela criou a Dudalina, a maior indústria de camisas brasileira. Adelina trabalhava no comércio dos pais e aos 14 anos conheceu em um comício do general Eurico Dutra, depois da queda de Getúlio Vargas em 1945, em Luis Alves, um moço elegante de terno azul com quem iria se casar, Rodolfo Francisco de Souza, o Duda. Eles tiveram 16 filhos, mas se Duda era poeta, com mais de mil versos escritos e parceiro dedicado, era Adelina a cabeça dos negócios, entre uma gravidez e outra. Em 1954 Duda foi sozinho fazer as compras no Bom Retiro, em São Paulo, e um comer- ciante turco o convenceu a comprar 600 metros de tecido. Foi um encalhe enorme no armazém de secos e molhados da família. Adelina decidiu transformar o tecido em camisas para esvaziar o depósito. Trouxe duas costureiras, com suas máquinas de trabalho, para o quarto de empregadas da casa da família, e tiravam as camas durante o expediente. Deu certo: as camisas vendiam rapidamente. Surgia a Dudalina, junção dos apelidos de seu Duda e dona Lina. Em 2008, quando Adelina morreu, a Dudalina já tinha fabricado a espantosa quantia de 50 milhões de camisas. E ela já tinha entrado no ramo de hotéis e hotéis-fazenda. O DNA empreendedor de Adelina seguiu adiante. No ano passado, a Associação de Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil (ADVB) teve de mudar a nomenclatura do principal e mais disputado título que concede anualmente, o de Homem de Vendas do Ano. É que pela primeira vez em meio século uma mulher ganhou o prêmio: Sônia Hess, filha de Adelina e presidente da Dudalina desde 2003. Sônia lançou a Dudalina com sucesso no varejo – atualmente são mais de 10 lojas próprias –, passou a produzir também camisas femininas em 2010, abriu showroom em Milão e dobrou o faturamento em três anos. E planeja atingir o faturamento de R$ 1 bilhão em vendas nos próximos anos, com uma empresa que tem o número recorde de 75% de funcionários do sexo feminino. Suas camisas desfilam pela novela da Globo Em Família, com o apropriado slogan: Para mulheres que decidem. G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 11 XXI Prêmio Expressão de Ecologia Blumenau: no começo de 1900 cidade impulsionada por dinheiro das têxteis recebia óperas e sinfônicas Curiosamente, uma tradição que vingou, pois no começo deste século XXI um mercado novo e em rápida expansão, de cervejas artesanais, como a Eisenbahn e a Bierland, surgiu na região e prospera atualmente. Comerciantes, com meios de transporte, enriqueciam circulando mercadorias entre colônias próximas, de carroças ou barcos. Estima-se que em duas décadas, entre 1850 e 72, 13 mil alemães aportaram em Joinville e Blumenau. Um deles tornou o sobrenome de sua família o mais famoso de Santa Catarina. Hermann Hering pertencia a uma tradicional família de artesãos têxteis, que atuavam no ramo desde 1675, na Saxônia. Mas os impostos altos criados pelo primeiro-ministro Otto Bismarck para a unificação da Alemanha e guerras contra a França e as perturbações no mercado de matérias-primas fizeram com que desembarcasse em Blumenau em 1878. A colônia já contava com quase duas centenas de empreendimentos, entre olarias, engenhos de arroz, farinha de mandioca e açúcar, alambiques e, evidentemente, quatro cervejarias. Em cerca de 25 anos, o empreendedorismo desses pioneiros fez a selva avançar mais de um século em tecnologia. Essas duas centenas de novos negócios eram unidades familiares, com moinhos gerando energia, um pedaço da Revolução Industrial europeia que aterrissava na selva brasileira, para espanto dos índios, que por vezes atacavam a flechadas as casas dos colonos. Hermann Hering percebeu que a agricultura não traria riqueza. Trouxe a família da Alemanha, comprou um tear usado e criou uma inovação inédita 12 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E Johann Karsten: bisneto Odebrecht recuperou Rio do Testo, onde a fábrica começou com moinho pioneiro A roda d’água foi substituída pela usina a vapor. Foi o empreendimento mais afortunado do império colonial sulista, a primeira empresa têxtil do Brasil e uma das locomotivas que ajudaram o Vale do Itajaí a ser um grande polo têxtil. O final do século chegou com a família em franco progresso. Seu filho Carl foi prefeito de Blumenau em 1919, e já no século XX a Hering chegou a ter 30 mil funcionários, o dobro da população da colônia na época da chegada de Hermann. Hermann, descendente de um clã que há dois séculos atuava no ramo, um apaixonado por máquinas, sutilezas tecnológicas e gerenciais, encontrou em seu irmão e sócio Bruno um parceiro ideal. Bruno lia Goethe, promovia saraus literários, estimulava leitura entre os operários, instalou uma biblioteca na fábrica. Empolgava-se com as conquistas socialistas. Divulgava conhecimentos agronômicos entre os colonos, patrocinou uma cooperativa. Tinha grande interesse pela natureza, pela conservação de espécies nativas, ganhou um prêmio nacional de Pioneiro da Preservação no Brasil e in memoriam foi escolhido como uma das personalidades ambientais do Prêmio Expressão de Ecologia. O Parque Ambiental da Hering e os jardins suspensos de Burle Marx que emolduram os atuais prédios tombados da fábrica são herança dessa filosofia de Bruno. Os Hering sempre tiveram grande influência na cultura da cidade, na construção do famoso Teatro Carlos Gomes, o único fora do eixo Rio-São Paulo que recebia turnês de óperas italianas, sinfônicas e cantores de música clássica europeus no começo dos anos 1900. Várias gerações deles tocaram na sinfônica da cidade e atualmente a empresa patrocina a orquestra de câmara blumenauense. Os comerciantes eram estratégicos para injetar dinheiro na colônia. Com barcos e carroções, constituíam verdadeiras companhias logísticas e se transformavam em banqueiros locais, financiando equipamentos para os agricultores. Johann Karsten começou assim, até fundar, dois anos após a Hering, a Karsten, outro império têxtil, de roupas de cama, mesa e banho. Ele emigrou em 1860 para gerenciar os cafezais da Fazenda Imperial de Petrópolis. Logo em seguida rumou para a Blumenau e no Rio do Testo usou uma queda d’água Divulgação Hering Fundação Cultural de Blumenau em todo o país: confecção de camisetas e meias. Em 1880, surgia a primeira malharia made in Brasil, no fundo do quintal dos Hering, tendo como mão de obra a própria família. Na época, todas as peças de vestuário do Brasil eram importadas. Marcas com sotaque alemão Jardins de Burle Marx da Hering: herança ambiental do pioneiro Bruno capaz de mover roda de moinho e gerar energia para seu sítio. Plantava e, com o primeiro moinho da região, moía milho. Depois construiu uma serraria. Capitalizou-se. Trocava tábuas e o serviço do moinho, de moer cereais de outros colonos, por produtos que levava de barco e carroça para trocar por outras mercadorias. Comprou teares e fiação na Alemanha e tornou-se industrial de peso. Longe dos mercados do país, sem acesso a financiamentos, Santa Catarina contou muito com o empreendedorismo e engenhosidade desses imigrantes para produzir riquezas. Um bisneto de Johann Karsten, Carlos Odebrecht, brincava em criança, nos anos 1950, no Rio do Testo que o progresso da empresa de sua família contribuiu para degradar. As águas mudavam constantemente de cor pelo despejo de corantes das têxteis. Nos anos 70, Odebrecht voltou de uma Alemanha empolgada pelo Partido Verde, assumiu o comando dos negócios, entre 1988 e 2006, e começou de forma pioneira a adotar ações em favor do meio ambiente. Na empresa, praticamente zerou a poluição. Depois patrocinou grupos de resgate do Rio do Testo, onde as crianças voltaram a nadar e remar ao lado da fábrica fundada por seu bisavô. E ajudou a criar o primeiro departamento ambiental da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina, a Câmara de Meio Ambiente, da qual foi o primeiro presidente. Ele é outra das personalidades ambientais do Prêmio Expressão. Joinville também crescia acolhendo esses personagens que vinham de um mundo bem mais ilustrado, a 12 mil quilômetros de distância. Carl Döhler, um oficial de tecelagem com uma oficina na Saxônia, embarcou no começo de 1880 também para fugir dos sufocantes impostos de Bismarck. Descobriu que os G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 13 Arquivo Municipal de Joinville XXI Prêmio Expressão de Ecologia Joinville no começo do século XX: famoso entreposto comercial impulsionado por porto e nova estrada mangues da cidade só produziam caranguejos e malária, nenhum grão. Como sua mulher Ernestine trouxera seis quilos de fios em sua bagagem, ele construiu um tear de troncos de árvores com as próprias mãos, e passou a produzir peças de fios, ajudado pela família e vizinhos. Era a Revolução Industrial inovando no meio do mato. Deu certo. Se Joinville era imprópria para a agricultura, com a proximidade do porto e a abertura da estrada para São Bento, pouco antes, somados aos prósperos ciclos da erva-mate e da madeira, transformou-se em entreposto comercial nacionalmente conhecido. O comércio se dinamizou e em 1885 Carl Döhler era o único fornecedor de um mercado que já contava com 34 mil consumidores ávidos por tecidos para suas calças, camisas, lençóis, toalhas. A Döhler, outro império têxtil, começou suas atividades um ano após a Hering. Carl cantava no coro da igreja luterana e agora brigava contra o fisco brasileiro, uma briga herdada por seu filho Arno. Aliás é uma tradição dos Döhler, o luteranismo, a austeridade, o empenho pela comunidade, cuidar da brigada de bombeiros voluntários da cidade, modernizar a empresa e combater o pesado ônus tributário brasileiro. Ônus capaz de causar inveja ao próprio Bismarck. Seu bisneto, Udo Döhler, mantém a tradição. Por 35 anos, em vários mandatos intercalados, presidiu a 14 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E poderosa Associação Empresarial de Joinville, a entidade mais atuante da cidade. Preocupado com a negligência dos empresários de não se preocuparem com o que acontece fora dos muros de sua indústria, com a visão de que o poder público apodreceu no Brasil e a corrupção ocupou espaço, tornou-se o empresário de maior peso a envolver-se na política catarinense. Há dois anos elegeu-se prefeito de Joinville, única cidade do estado com mais de 500 mil habitantes. “No poder público não falta dinheiro, falta gestão”, defende. Conseguiu alguns sucessos. A tela do computador de seu gabinete registra 32 mil pontos municipais, desde a escola a ser construída até a boca de lobo entupida. Planeja não usar mais papel e criar uma prefeitura 100% digitalizada. Encurtou a burocracia do licenciamento para construções de 170 para 15 dias. Seu planejamento para a cidade vai até 2030, quando Joinville deverá ter 1,2 milhão de habitantes, um planejamento estratégico incomum na gestão pública brasileira. Em pleno século XXI, Udo agora enfrenta uma encrenca bem mais tenebrosa do que a selva, onças, cobras e índios que assombravam seu antepassado ilustre. Ele enfrenta o vampiresco cenário político tupiniquim. Udo Döhler foi uma das lideranças mais ativas da conscientização ambiental dos empresários, inclusive com palestras. A gestão ambiental da Döhler conquistou o prêmio ecológico máximo da CNI. Nos anos 1980 acompanhou in loco os debates ambientais na Alemanha e trouxe um pacote de ideias para Joinville. Construiu o primeiro aterro ambiental privado catarinense. Substituiu óleo por gás natural, investiu na reutilização da água, mantém reserva ambiental de cerca de 30 hectares. Criou o primeiro Comitê de Proteção de Bacias Hidrográficas de Santa Catarina. Pelo conjunto da obra, também já foi eleito uma das personalidades ambientais do Prêmio Expressão de Ecologia. Karl trouxe dezenas de inovações a Joinville, como a bicicleta. O neto Carlos Schneider criou a Ciser e protege rio Karl Friedrich Schneider deixou Erfurt em 1881, onde seus pais eram prósperos comerciantes de ferragens, e veio ao Brasil no conforto de uma cabine de navio de luxo, com a fortuna de 20 mil marcos, para comprar uma fazenda. E mais uma vez Joinville ficou devendo parte importante de seu progresso à terra ruim da região. Em vez de uma fazenda, Karl inaugurou a Casa do Aço, um comércio que trouxe dezenas de inovações para o desenvolvimento da comunidade. Bem informado sobre os últimos avanços tecnológicos europeus, ele trouxe máquinas sofisticadas que aceleraram o desenvolvimento da cidade. Trouxe também a primeira bicicleta, que em poucos anos se transformou no principal meio de transporte e fez Joinville ser conhecida nacionalmente como a Cidade das Bicicletas. Percebeu que os colonos usavam cana-de-açúcar apenas como ração animal. Soube que os norte-americanos tinham moendas de alta tecnologia, de ferro, para produzir açúcar mascavo. Teve de importar as moendas dos Estados Unidos para Hamburgo, e de lá para Joinville. Elas cruzaram o Atlântico duas vezes. Valeu a pena. O açúcar produzido a partir dessa sua inovação abasteceu a colônia, entrou nas rotas comerciais, seguido da cachaça de alambiques. Centenas de pipas com 500 litros passaram a cruzar a estrada puxadas pelos carroções e fizeram muitas fortunas na cidade. Durante a Primeira Guerra, com os curtumes joinvilenses quase falindo pela falta de tanino, que não chegava mais da Europa conturbada, ele pesquisou e conseguiu retirar das plantas do mangue uma subs- tância parecida e manteve os curtumes em operação. Ele forjou a economia da cidade financiando ferramentas, máquinas agrícolas, permitindo a abertura de lojas e pequenas indústrias. Ainda encontrava tempo para ser primeiro-violino da orquestra sinfônica e bombeiro voluntário. Seu filho Hans falava seis idiomas e ia de carroça estado adentro, com uma modernidade a bordo: levava catálogos, outra inovação paterna, ao invés de pesadas mercadorias. Era um vendedor moderno e corajoso. Às vezes chegava em clientes com as casas arrasadas pelos índios. A Casa do Aço durou até a década de 1970, na mesma Rua do Príncipe. Aliás, o próprio Príncipe de Joinville, casado com a filha de D. Pedro II, jamais pisou naquela vila cercada pelo mangue que recebeu como dote de casamento. “Nenhum outro povo teria ficado aqui, só mesmo o alemão, que é mão fechada, não queria perder o dinheiro investido na terra”, diverte-se o neto de Karl Friederich, Carlos Schneider. Com o mesmo tino do avô, Carlos viu o parque industrial joinvilense explodir na década de 50, quando a cidade já contava com 42 mil habitantes. Pipocavam novas indústrias, com Tupy, Hansen (atual Tigre) e Consul. Elas compravam centenas de quilos de porcas e parafusos na Casa do Aço. Ele percebeu a chance e, em 1959, fundou a Ciser, maior indústria latino-americana de porcas, parafusos e roscas. Foi seu presidente até o final do século passado. Carlos Schneider desde criança acompanhou a degradação acentuada dos rios de Joinville e pensava na exuberância daquelas terras no tempo da chegada de seu avô à região. Adquiriu então várias porções de terra no entorno da cidade, a partir de 1983, e montou um santuário de 9 mil alquei- G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E 15 XXI Prêmio Expressão de Ecologia res. Além de proteger as nascentes do Rio Quiriri, um importante manancial de abastecimento de Joinville, protege mais de 20 mil espécies de plantas e centenas de animais. Sua filha comanda uma atuante ONG ambiental. Por sua atuação como guardião das águas, Carlos Schneider também foi eleito uma das personalidades ambientais do Prêmio Expressão nesta última década. “A Ciser e a Döhler são os dois maiores herdeiros da austeridade alemã em Joinville. São os mais ortodoxos e não por coincidência estão entre os grupos mais antigos e sólidos da região”, ensina o historiador Apolinário Termes, o maior especialista dos arquivos da cidade. Outra família marcou profundamente a vida de Joinville, que em 1930 contava com 25 mil habitantes, quase duas centenas de fábricas, muitos automóveis e um batalhão de bicicletas introduzidas quase 50 anos antes por Karl Schneider. Eugen Schmidt chegou em 1869 e vinha de Gorki, na Rússia, para onde sua família alemã havia se transferido no final do século XVIII, quando a czarina Catarina, a Grande planejava modernizar o país. Os Schmidt tinham formação clássica, eram poliglotas, estudiosos de ciência e apreciavam a música. Ficaram quase um século em postos de destaque na Rússia e embarcaram para cá fugindo dos conflitos políticos russos. Seu filho morreu cedo e deixou a família em dificuldades. O neto Albano, nascido em 1900, puxou o perfil clássico da família e sempre foi dos melhores alunos da rigorosa Deustche Realschule de Joinville. Gerenciou várias empresas e quando o proprietário morreu em uma explosão em uma fundição, ele assumiu. Aos 30 anos, com uma brilhante equipe de mecânicos, ele sonhava em descobrir a fórmula do ferro maleável, desconhecida em todo o país, em sua modesta fundi- 16 G U I A D E S U S T E N TA B I L I D A D E Carl Döhler construiu primeiro tear de Joinville, maior cidade alemã do Sul, cujo prefeito é o bisneto Udo catarinense ção. Com grossos manuais escritos em alemão, sem aparelhos para ensaios químicos ou mecânicos, seus métodos eram empíricos. Sem luvas nem óculos de proteção, eles sofriam queimaduras e ferimentos provocados por estilhaços de ferro sob temperaturas altíssimas na boca do forno, durante mais de cinco anos. Numa manhã de agosto de 1935, eureca! Finalmente encontraram a fórmula inédita no país. Todo o ferro maleável para produzir conexões hidráulicas para encanamentos de casas e ruas vinha da Inglaterra – e em 1939 a II Guerra Mundial estourou e interrompeu o fornecimento de conexões para o Brasil. Surgia o embrião da poderosa Fundição Tupy, criada em 1938 e uma das mais notáveis histórias empresariais do país. Em pouco tempo a Tupy transformava-se no maior empregador de Santa Catarina, algo como 10 mil empregos. Em 1958 já era um dos principais fornecedores da emergente indústria automobilística brasileira e atualmente fornece para indústrias automobilísticas de várias partes do mundo, do Japão à Inglaterra. Criou a Escola Técnica Tupy, que qualificou centenas de milhares de técnicos em Santa Catarina. Atualmente é uma das dez maiores fundições particulares do planeta e a maior da América Latina. Centenas de outros imigrantes se aventuraram, inovaram, abriram negócios, trouxeram conhecimento e cultura da Europa, geraram empregos, impostos e um tipo de mentalidade que favorece a qualidade de vida de Santa Catarina, considerada uma das melhores do Brasil.