O desafio da loucura Uma das controvérsias geradas pela política brasileira em 2015, foi a nomeação do psiquiatra Valencius Wurch, como coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, anunciada no dia 10 de Dezembro de 2015. Seu currículo carrega uma marca que manchou a história do país: seu envolvimento no que ficou conhecido como Indústria da Loucura – fruto do mercantilismo na saúde mental. Valencius foi diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, região metropolitana do Rio de Janeiro. O lugar, que ficou conhecido por ser o maior manicômio privado da América Latina e por romper todos os laços possíveis com a dignidade humana, foi fechado por ordem judicial em 2012, após anos de denúncia de violações de direitos humanos. Há um mês, grupos da luta antimanicomial de todo o país ocupam a sala da coordenaçãoque, segundo eles, é do povo e não será dada ao psiquiatra. É do povo, porque foi por ele que se alargaram as fronteiras ao louco e lhe foi devolvida a liberdade que lhe fora privada em nome da razão. É do povo, porque diz respeito a uma luta de parte da sociedade que resiste bravamente desde a ditadura militar no Brasil. E, por ser do povo, ele exige um coordenador que represente avanços à reforma psiquiátrica no Brasil, assim como afirmam os militantes. Soraya Marcos faz parte do Fórum Mineiro de Saúde Mental, e explica a motivação da ocupação: “esse lugar (coordenação) tem que ser ocupado por alguém que nos representa, que está de acordo com a nossa política. E não existe nada mais legítimo do que todos os movimentos ocuparem este lugar que é nosso. A política de saúde mental é da população. A ocupação é feita por usuários, estudantes, trabalhadores e profissionais que acreditam na luta e na reforma psiquiátrica brasileira”. Para a ativista Marta Soares, que também é integrante do Fórum, um dos objetivos da luta do Movimento Antimanicomial é defender a “loucura livre”. Coisa que o coordenador, nomeado pelo Ministro da Saúde Marcelo Castro, foi e lutou contra durante seu tempo como diretor da Casa Dr. Eiras. “Nosso papel neste momento é sustentar um projeto, sustentar uma política, sustentar um ideal de que a vida pode ser bela e a loucura pode ser livre. Uma sociedade sem manicômios promove a igualdade”, afirma a ativista. “Porque a ideia de que o louco é perigoso parece tão natural, uma vez que se alienar, dar um ataque ou mesmo cometer um crime não é algo exclusivo da loucura?” A loucura livre, segundo Marta, é a expressão máxima do ser humano. “Louco ou não, que a gente tenha condições de fazer o que gente pensa, o que a gente acha e o que a gente quer. A loucura livre é a que tem a possibilidade de dialogar com a razão. Com o pensamento cartesiano que vai dizer: ‘penso, logo existo’. Enquanto para a loucura é: sinto, e logo existo. Percebo, e logo existo. Ela livre, pode dizer. Pode dialogar!”, explica. Qual é a loucura que nos afronta? Para compreender o porquê de um assunto como este não estar sendo protagonista na grande mídia e nas nossas discussões diárias. Para se ter no mínimo uma ideia, de como uma manifestação nacional, organizada em 72h, com o êxito de reunir, no dia 14, em Brasília, caravanas de profissionais de saúde, familiares e usuários do Rio de Janeiro, São Paulo, São Bernardo do Campo e Santo André (ABC paulista), Campinas, Jundiaí, Belo Horizonte, Uberlândia, Governador Valadares, Recife, João Pessoa, Palmas e Porto Alegre, e sequer ser noticiada. É necessário entender de onde veio a lógica da segregação da loucura e porque ela ainda está tão enraizada em nossa cultura. Fernanda Otoni de Barros Brisset é Coordenadora do Programa de Atenção ao Paciente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (PAI-PJ), Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise, Mestre em Psicologia e Doutora em Ciências Humanas: sociologia e política, pela UFMG, e desenvolveu sua tese buscando responder a lógica da sociedade em enxergar o louco como um indivíduo intrinsicamente perigoso e apartá-lo do convívio social. A pergunta central da sua pesquisa foi: “porque a ideia de que o louco é perigoso parece tão natural, uma vez que se alienar, dar um ataque ou mesmo cometer um crime não é algo exclusivo da loucura?”. Fernanda recorre à História e começa a formular sua resposta passando pela Idade Média – “onde a loucura é inserida no conceito de um mal demoníaco. Não encontramos na Idade Média uma teoria da loucura como um mal em si, e sim uma teoria sobre o mal”, explica. Nessa época começa a surgir a ideia do mal como algo moral que irá influenciar toda uma estrutura. “Os medievos deixam como legado, dentre tantas outras coisas, um sistema de moralidades e mecanismos para identificar e eliminar o mal”. Seguindo pelo tempo, ela percorre os séculos XV e XVI, “onde a loucura emerge de forma destacada nas artes”, mas, ao mesmo tempo, foi também nesse período, “em linhas gerais, como destaca Foucault, que o homem tornou-se o problema da vez, o conhecimento se volta para a natureza do homem, sendo ao mesmo tempo fonte e objeto de conhecimento. A razão surge como um instrumento em destaque”, esclarece. Encarcera-se o louco em nome da razão. Mas a ideia que se concretiza nos séculos XVII e XVIII, entre os conflitos sobre a loucura advinda de demônios ou pela falta de razão e o surgimento de Pinel como diretor da primeira instituição de acolhimento dos insensatos, e seus estudos que geraram a ideia de que a “delinquência é característica da loucura e que o doente mental traz em si um déficit moral intrínseco”, se arraigou profundamente no conceito da doença, “tanto nas instituições médicas, jurídicas e sociais, de forma geral, daquela época até os dias de hoje”, explica a Doutora. “Machado de Assis diz que ‘a loucura é uma ilha perdida no oceano da razão’, me atrevo a dizer que para reinventarmos nossa história teremos que encontrá-la.” Sem sombra de dúvidas é extremamente necessário percorrer ainda mais a história para encarar como tal conceito influenciou práticas higienistas embasando as internações compulsórias, proposta pelo médico Morel, em 1857. Para entender que foi 100 anos depois de Pinel, mas influenciado por suas ideias, que Lombrosio “fez o giro da chave e acabou de apertar a rosca” determinando que não havia diferença entre demência e delinquência, firmando a ideia dos loucos como indivíduos perigosos. E, além disso, de como o direito e a psiquiatria se aliançaram e traçaram um caminho complexo e cheio de abominações que, segundo Fernanda, “criou uma tecnologia de controle desses casos: a medida de segurança – uma precaução do estado perigoso do indivíduo portador do déficit moral. Sua internação é por tempo indeterminado e é assim até os dias de hoje”. Segregamos porque a história nos ensinou que deveria ser assim. Machado de Assis diz que “a loucura é uma ilha perdida no oceano da razão”, me atrevo a dizer que para reinventarmos nossa história teremos que encontrá-la. Suricato A Associação de Trabalho e Produção Solidária Suricato é mais um símbolo de resistência do Movimento Antimanicomial, em Minas Gerais. Ela possui quatro núcleos de produção, a saber: Culinária, Marcenaria, Mosaico e Vestuário & Moda. Além disso, conta com uma equipe de vendas responsável pela comercialização dos produtos. Nela, usuários de programas de saúde mental encontram a possibilidade de se reinventarem e nadam contra a maré enfrentando a lógica estabelecida de que são incapazes de produzirem. Um exemplo disso é o Iracir, que chegou a Suricato como usuário do programa e hoje é coordenador da associação. Ele explica quais são os pilares que regem o trabalho: “são dois princípios básicos: o primeiro é a luta antimanicomial – a inserção política. E o segundo é a economia popular solidária, que é o avesso do capitalismo. O trabalho como dignidade, como direito da pessoa”. Para ele chegar à coordenação foi estruturante. “A Suricato é um processo importante que nos torna protagonistas da nossa própria história. De não viver a reboque de alguém que vai determinar o que eu posso e o que eu não posso fazer”. Economia solidária: o direito ao trabalho Silvia é militante da causa há 10 anos. Há três chegou a Suricato por meio da Associação de Usuários e Familiares de Serviços em Saúde Mental – Assusam. Ela trabalha na cozinha da associação e defende a economia solidária como um contraponto ao Capital. O objetivo, explica Silvia, “é desconstruir a lógica capitalista que exclui e que quer sempre competir pelos mais rápidos, pelos mais habilidosos. E a gente, na condição de pessoas que passaram por uma crise, e que pode se ausentar em algum outro momento também, vemos que o capitalismo não suporta esse tipo de situação. No mercado capitalista o que é reservado a nós é uma aposentadoria por invalidez ou um benefício da LOAS (Lei Orgânica da Assistência), mas não a efetivação do direito ao trabalho. Com muita garra, com muita coragem e com muita beleza, através da economia solidária, nós temos conquistado nosso direito ao trabalho”, afirma. *Para quem quiser conhecer a Suricato e o bar administrado pelos usuários, o endereço é: Rua Souza Bastos, 175, Floresta, Belo Horizonte. Livre como um pássaro Conheci Antônio Carlos Albergaria algumas horas antes dele embarcar para Brasília, com a caravana que sairia de Belo Horizonte (MG), para reivindicar a saída de Valencius. A primeira frase dele foi: “agora eu sou livre”. Entendi a euforia quando em seguida ele disse: “fiquei 33 anos internado”. Foram tantos anos preso que Albergaria tinha medo de sair, quando, em 2008, recebeu alta e lhe foi oferecido um lugar numa casa terapêutica, onde mora até hoje. Ele carrega um livro na bolsa e conta que a primeira coisa que fez quando saiu do hospital foi escrevê-lo, na verdade, explica, contou sua história para que escrevessem. Nele, ele diz que quando era jovem sonhava em ser advogado, mas que agora ele não tem mais sonhos. Cita uma frase do livro “Psicoterapia do oprimido”, de Alfredo Moffat: “pois não é dono de seu destino quem não é dono de si”. Mas sua liberdade tem mostrado outro caminho. Na casa terapêutica, pouco a pouco, o velho alcançou sua independência, e isso ele conta de forma simples e tocante: “6h30 da manhã eu vou buscar pão. Eu não como pão de manhã cedo, mas eu trago pra eles (outros moradores da casa). Eu ajudo eles a atravessar a rua. A pegar ônibus.” A liberdade para Albergaria é válida quando é vivida com o outro. Morar numa casa significa liberdade. Ajudar os amigos significa liberdade. Contar sua história significa liberdade. Me convidar para tomar um café significa liberdade. Estar fora do hospital significa liberdade. Por isso, essa foi a palavra mais citada por ele durante a nossa conversa. Albergaria termina a conversa deixando um recado: “internação não resolve nada, só piora a vida da gente”. Sorri, e completa: “agora eu sou feliz. Sou livre como um pássaro!”.