Ficha de Identificação Nome: João Garcia Miguel Companhia/Grupo/Teatro: Companhia João Garcia Miguel Questões 1. Como define ou caracteriza os objectos artísticos que realiza e que princípios e objectivos considera essenciais na sua realização? Os objectivos artísticos que perseguimos procuram intervir em três níveis: estético, social e individual. No primeiro nível de intervenção artística – estético - queremos interrogar a capacidade de existir: como o teatro pode servir de instrumento paradoxal de fazer existir para lá do real e ao fazer realidade de novo regressar ao aprender a existir. Neste particular, procuramos nos trabalhos que propomos, dedicarmo-nos ao estudo da história e evolução da arte de representar e das formas contemporâneas de escrita teatral, incluindo a utilização criativa de fontes e relações de promiscuidade com outras formas artísticas e o palco. Refiro-me como exemplo à poesia, ao cinema, à música, à pintura, à arquitectura. E a outras formas de comunicação de massas daí derivadas como a televisão, os concertos de música rock e pop, a publicidade, os mass media e a internet. Há um desejo de fusão e de ruptura, de procura de uma “essencialidade” teatral neste processo que o guia. Do ponto de vista social, no segundo nível de intervenção artística, pretende-se observar o mundo em que vivemos e reflectir existindo nele. Estes gestos incluem o espectador como participante activo e de preferência criativo e a finalidade para a qual o espectáculo é concebido é inclusiva. No terceiro nível de intervenção artística – individual e ou colectiva – desejamos como criadores envolver-nos na história do tempo e do momento em que vivemos. Entendemos a criação como um exercício de liberdade que o meio social em que vivemos se promete e se possibilita exercer. Nesse exercício acreditamos e desejamos que existam sugestões de liberdade e estratégias de sobrevivência que contribuam para o alargar dos horizontes que regem as nossas vidas. 2. Como caracteriza a linguagem e os procedimentos de encenação / criação que toma como condições de realização dos seus projectos? PALAVRAS-CHAVE – LIBERDADE; TEATRO Por motivos de necessidade de iluminar o que se vai movimentando à nossa volta e os modos como vamos sentindo e experimentando, elegemos duas palavras-chave que pensamos poderem presidir à criação/encenação dos projectos que realizamos. A linguagem é um meio de ligação entre o interior e o exterior, entre aquilo que somos e o que vamos sucessivamente construindo. Nesse sentido a linguagem é um instrumento ambíguo de extensão e de repressão. Ao compreendê-lo propomo-nos um instável processo de destruição da nossa linguagem, tomando caminhos que nos permitam desapossarmo-nos daquilo que compreendemos ser a nossa linguagem. Assim num efeito paradoxal, uma criação é um processo de florescência de linguagens: é um processo ou processos que possibilitam o estreitar das conexões entre as visões interiores e a percepção do mundo; e é em simultâneo um processo de perca ou diria mesmo de destruição metonímica de códigos e referências adquiridos procurando substituí-los por outros. Neste sentido a palavra teatro corresponde ao campo onde estes processos se desenrolam e é agiu onde o envolvimento e a participação se jogam que queremos estar: é na tecnologia do corpo e dos seus movimentos que cremos poder encontrar os territórios de poder que sustentam correntes subterrâneas que se constituam como alternativas às pressões que as artes têm vindo a sofrer. É na confluência da formação e da criação que somos obrigados em cada gesto, em cada criação que pretendemos situar o risco inerente à criação. A noção de liberdade é um vector que aliamos à criação e à encenação pois é a partir de um sentimento físico de abertura que procuramos instruir as decisões do exercício de encenação enquanto prática artística. Encenar é criar liberdades: de ser, de agir, de fazer, de estar, de ter consciência do mundo, de por fim manifestarmo-nos enquanto pensamento e forma de estar. Para cada novo objecto cénico, temos vindo a apreender um outro sentido do que somo. È nesse desafio, que inclui os diálogos interiores connosco e com os outros que nos rodeiam e acompanham, que procuramos jogar cada instante da criação. Procuramos um constante efeito de contraste que amplie a percepção do que nos rodeia, procuramos efeitos e objectos cénicos que desafiem aquilo que somos como mote do trabalho que vamos realizando. 3. Integra os seus procedimentos em princípios teórico-práticos de encenação / criação identificáveis? Se sim, descreva esses princípios e referências. À priori não consigo ter princípios teórico-práticos de criação e menos ainda consigo identificá-los. Contudo, sei que me é identificado um território que define o meu trabalho. Julgo que é mais nos seus princípios axiomáticos de procura, provocação de uma ordem anterior, de intensificação dos momentos e de inserção de balizas experienciais que se pode encontrar alguma linha de orientação. Julgo ainda, que o trabalho com os intérpretes e a relação com a audiência que passa pelo trabalho com o espaço e algumas temáticas podem ser consideradas obsessões determinantes do que faço. A passagem disso para os procedimentos técnicos e formais é que creio ser mais aberta e informe não tendo nenhum tipo de regar que a estruture. 4. Que formação privilegia no seu percurso como artista? A formação é uma área de crescente interesse e envolvimento pessoal. Privilegio uma complexidade de formações: formação avançada de tipo académica; formação ocasional com técnicos e artistas diversificados; auto formação contínua; formação ao longo de cada processo de criação com os colaboradores participantes e com as temáticas e autores propostos; formação com o objectivo de posterior trabalho de docência que inclui a reflexão sobre os processos de aprendizagem e ensino. 5. Indique até cinco trabalhos realizados que considere fundamentais e definidores dos seus princípios e percurso artísticos. Justifique cada um dos casos. El – Levando-o aos ombros em passo de marcha sincopada. O 1º espectáculo que realizei. Aí se definiram os princípios de experimentação e procura de uma linguagem diferentes: a ligação às artes plásticas e os seus princípios de composição, a mistura de influências, o trabalho físico e a instrumentalização de meios fora da esfera do teatro dito de repertório ou tradicional. ZONA – um espectáculo muito participativo tanto do ponto de vista do espectador como dos colaboradores envolvidos onde o trabalho foi até ao desenho do espaço cénico e as linguagens utilizadas demonstravam uma aproximação do teatro performativo com as tecnologias ao serviço de uma qualquer coisa indefinível: a experiência imersiva ou a festa do corpo que se descobre. Especial Nada – o primeiro espectáculo em nome próprio onde o trabalho de escrita começou a tomar nova direcção e o trabalho de construção cénica seguiu uma direcção de exploração do teatro enquanto arte viva, onde a narrativa e a fragmentação se sobrepunham ao espaço e à utilização da música e do vídeo num aglomerado babélico de linguagens. Burgher King Lear – a primeira incursão sobre o teatro de Shakespeare onde o trabalho de montagem e de direcção de actores foi o centro da criação. A exegese plástica ao serviço de uma unidade questionável e em devir instável que acabou por me fazer apreender alguns dos princípios da montagem e do contraste cénico que tenho vindo a desenvolver. O Filho da Europa – o mais recente trabalho onde as questões do objecto teatral e o papel dos públicos são centrais. A questão das linguagens e o seu poder alienante e libertador trouxeram-me uma perspectiva sobre o teatro do futuro. 6. Indique até cinco trabalhos, não realizados por si, que considere fundamentais relativamente ao seu percurso artístico. Justifique cada um dos casos. Acciones do grupo Fura Dels Baus – pelo seu impacto libertador dos canones teatrais que até então me tinham sido dado a conhecer; Oresteia, de Peter Stein no Festival de Edinburgh pelo seu carácter de impacto sobre os sentidos, dado a duração, a utilização de um sistema multilingue, pelo rigor cénico e qualidade dos intérpretes; O poder da loucura teatral de Jan Fabre pela sua dimensão performativa e pela provocação conceptual que representou; Otelo, de Eimuntas Nekrosius pelo deleite estético e pela entrega dos actores e pelos recursos cénicos simples utilizados; A Gioconda de Lucia Sigalho e Self(ish) Portrait de João Fiadeiro pela sua beleza e significado para as artes portuguesas representativos de uma geração de criadores que procuravam questionar e desenvolver uma identidade e corpo português pós dramáticos;