A FORMAÇAO DOS PROFESSORES E SUA CONTRIBUIÇÃO AOS ESTUDOS DA RESILIÊNCIA Ana Lúcia Leal Ferdinand Röhr Nadja Acioly Regnier Resumo Este artigo representa uma proposta de estudar questões que envolvem o processo de ensino-aprendizagem e a resiliência. A novidade que os estudos sobre resiliência propõem-se a trazer é a ênfase na promoção de processos educativos que tornem as pessoas mais resistentes e maduras para enfrentar as dificuldades que ocorrem na vida de qualquer ser humano. O pedagogo deveria procurar fazer progredir, levar ao máximo cada indivíduo que lhe é confiado, entendendo que o seu futuro não é estritamente previsível através da categoria social de onde ele saiu, através da sua estrutura familiar ou de seu nível cognitivo. Nesta concepção, existem sempre desafios a enfrentar e não casos perdidos. O presente trabalho resulta de estudos que atualmente vêm sendo desenvolvidos no curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e no laboratório de Psicologia Santé Individu et Société de l’Université Lyon 2. Palavras-chave: formação profissional – formação humana – resiliência Résumé Cet article a comme objectif une étude des questions relatives au processus d’enseignement-apprentissage et celui de la résilience. La nouveauté que la littérature récente sur la résilience apporte dans ce domaine est un accent sur la proposition de processus éducatifs qui puissent rendre les personnes plus résistantes et mûres pour se confronter aux difficultés qui ont lieu dans la vie de tout être humain. Dans ce cadre, l’éducateur devrait faire progresser au maximum chaque éduquant, dans une perspective qui postule que l’avenir de chacun n’est pas prévisible et déterminé ni par sa catégorie sociale, ni par sa structure familiale ou niveau cognitif. Ce travail est une partie de la thèse de la première auteure, dans le cadre d’une co-direction entre le Programme de Pós-Graduação en Education de l'Université Fédérale de Pernambuco et le laboratoire Santé Individu et Société de l’Université Lyon 2. Mots-clés: formation professionnelle - formation humaine – résilience 2 A FORMAÇAO DOS PROFESSORES E SUA CONTRIBUIÇÃO AOS ESTUDOS DA RESILIÊNCIA 1 INTRODUÇÃO No cotidiano escolar, a complexidade da sala de aula, caracterizada por sua multidimensionalidade, simultaneidade de eventos, imprevisibilidade, imediaticidade e unicidade de respostas às inúmeras situações práticas, constitui-se em sério desafio, que exige certa capacidade de enfrentamento por parte do professor. Como afirma Weisser (1998), todo professor digno deste nome tem como única aspiração, a de se tornar finalmente útil a seus alunos. A formação de professores e os saberes profissionais produzidos ali carregam a marca desta originalidade. As práticas em sala de aula levam a crer que além do conhecimento dos temas a que se destinam ensinar, a sensibilidade e a persistência parecem ser fundamentais para que os professores possam ser encarados como bons profissionais. Acioly-Régnier et Monin (2009, p.6) observaram na França algumas reações que parecem reveladoras das dificuldades encontradas nas práticas pedagógicas dos professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental. De uma maneira simplificada, essas autoras caracterizaram dois tipos de condutas prototípicas não exclusivas. A primeira que parece consistir em uma postura defensiva de atribuição da causa das dificuldades pedagógicas a características particulares dos alunos. A segunda caracterizando-se por uma internalização do fracasso que se manifesta freqüentemente em uma “tomada de consciência” de que eles não são capazes de exercer essa profissão. Esses dois mecanismos podem coexistir e se alternar em função de contextos específicos. Nos dois casos, dados empíricos construídos por observação e por questionários conduzem-nos a reconhecer que o professor em formação se encontra em uma situação de sofrimento Ao observar os comentários que circulam no imaginário acadêmico é possível perceber que os alunos deslocam muitas vezes a dificuldade de aprendizagem no conteúdo das disciplinas para a figura do professor, que passa a ser visto como alguém também “difícil”. Determinadas disciplinas já são, de antemão, consideradas como desinteressantes e difíceis e esta impressão pode atrapalhar o processo de aprendizagem 3 dos conteúdos transmitidos, como se já fosse criada uma indisposição “gratuita”. Apesar da dificuldade/resistência inicial, quando o professor estabelece uma postura de humanidade, disponibilidade e simpatia, a aprendizagem se dá normalmente de modo mais natural, prazeroso e efetivo. Weisser (1998) considera que os saberes da prática educacional não são fruto de uma transmissão, mas de uma apropriação e de uma produção. Eles estão ligados ao ator profissional, mas também à sua pessoa. A formação destinada à profissão de professor tomará não o aspecto de uma transferência de conhecimentos descontextualizados, mas sim, de uma re-interpretação de um discurso pedagógico próprio a cada um. O que faz com que alguns profissionais, sobretudo do ensino público, tenham escolhido lecionar, enfrentar muitas vezes condições desfavoráveis de ensino, como por exemplo: número excessivo de alunos em sala de aula, condições físicas de trabalho inadequadas, elevada jornada de trabalho, má remuneração, e ainda conseguir conquistar a admiração, carinho e respeito dos alunos, despertando o interesse pela aprendizagem dos conteúdos? O que faz com que esses mesmos professores consigam ajudar seus alunos a superar possíveis dificuldades de aprendizagem mesmo quando estes estão inseridos em situações precárias, adversas, tais como: doença, pobreza e desarmonia familiar, favorecendo o aparecimento de uma postura de disponibilidade ao aprendizado satisfatório e prazeroso dos assuntos? A resposta pode estar em estudos desenvolvidos pela Psicologia. Há anos esta ciência tem se interrogado sobre o fato de que certas pessoas têm a capacidade de superar as piores situações, enquanto outras ficam aprisionadas na infelicidade e angústia que se abatem sobre elas. A capacidade das pessoas manterem-se íntegras, apesar das adversidades do caminho, chama-se resiliência. Um professor resiliente não se abate facilmente, não culpa os outros pelos seus fracassos. A resiliência sintetiza intervenções de apoio, de otimismo, de dedicação e de amor que perpassam as relações intra e inter-humanas. Mas a resiliência não surge magicamente. Ela advém de uma multiplicidade de fatores que decorrem da formação humana de cada ser, acrescidas de, no caso do professor, de sua vivência profissional Na perspectiva da resiliência, o objetivo da experiência formativa reside em despertar as potências do humano que habitam em cada um de nós, mediado por uma visão integral ou multidimensional. 4 A proposta do presente trabalho é refletir sobre a interferência da formação profissional e humana do professor e suas contribuições aos estudos da resiliência. Sendo compreendida enquanto atitude pró-ativa, pergunta-se se a resiliência não contribuiria para que esses profissionais fossem não apenas eficientes, mas, sobretudo, humanos, em sua inteireza. 2 REVISÃO DA LITERATURA 2.1 Características gerais da resiliência A palavra resiliência apresenta várias definições de acordo com a área em que se emprega o termo. Tem origem no latim resílio que significa retornar a um estado anterior (MONTEIRO, et al., 2001). A resiliência é um termo oriundo da física. Trata-se da capacidade dos materiais de resistirem aos choques, sendo a propriedade que possuem de voltar ao normal depois de submetidos à máxima tensão. O conceito de resiliência vem evoluindo ao longo das décadas. Já foi entendido como sinônimo de invulnerabilidade e como qualidades elásticas e flexíveis do ser humano. O foco no indivíduo caracterizava as pesquisas pioneiras, que questionavam se a resiliência seria possível por uma constituição singular do indivíduo ou pela interação entre aquilo que é subjetivo e aquilo que o meio externo oferece como suporte ao sujeito (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006). As relações familiares, sobretudo na infância, devem ser ressaltadas enquanto vetores fundamentais na formação dos indivíduos, gerando a capacidade deles suportarem crises, bem como superá-las. Nesse contexto, a resiliência representa a capacidade concreta das pessoas de não só retornarem ao estado natural de excelência, superando situações críticas, mas também de utilizá-las em seus processos de desenvolvimento pessoal, sem se deixarem afetar negativamente, capitalizando as forças negativas de forma construtiva. Para Vicente (1996), as características centrais encontradas nas pessoas resilientes são: o reconhecimento da verdadeira dimensão do problema; o reconhecimento das possibilidades de enfrentamento, e o estabelecimento de metas para sua resolução. Os resilientes buscam no auto-conhecimento o equilíbrio necessário para aprender a transformar emoções negativas em positivas. Mas não são todos os seres humanos que conseguem ultrapassar os momentos de crise. O próprio sofrimento físico 5 e psicológico pode inibir e, de certa forma, alterar a resposta resiliente do sujeito. O ser resiliente não significa alguém que consegue resistir a todas as pressões do meio1, isto é, o indivíduo, por muito resiliente que seja, pode chegar a um ponto em que não tolere mais a pressão externa. A resiliência é considerada uma energia inerente aos seres humanos, que pode ser nutrida ao longo de toda a existência. Um dos fatores mais necessários para o fortalecimento da resiliência é o apoio e o acolhimento pelos membros de sua rede pessoal e social. Essas pessoas atuam como “tutores de resiliencia” (CYRULNIK, 2004) ou “figuras de apego” (BOLWBY, 2002). A escola é um dos tutores de resiliência mais potentes que a sociedade pode implementar. Ela possui funções que vão além da produção e reprodução do conhecimento. Os exemplos e os incentivos são importantes para a formação do indivíduo e, portanto, investir na escola como espaço que contribua também para a promoção da saúde, a qualidade de vida e o bem-estar dos indivíduos que dela fazem parte pode ser um caminho para a prevenção de agravos à saúde (ASSIS, PESCE e AVANCI, 2006, p.117). A capacidade de superação de adversidades, portanto, é uma qualidade que existe e que pode ser incentivada em qualquer instituição ou grupo social. Assim, em um mundo em que se influencia a formação dos outros e por eles se é cotidianamente tocado, a satisfação de uma pessoa ou mesmo de um grupo não pode ser concebida sob a égide da competitividade e do isolamento social. Recentemente, o conceito de resiliência foi assimilado pelo campo da Saúde Pública, ganhando uma conotação voltada para a promoção da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida. A noção de resiliência vem complexificando-se sendo abordada como um processo dinâmico que envolve a interação entre processos sociais e intrapsíquicos de risco e proteção. O desenvolvimento do constructo enfatiza a interação entre eventos adversos da vida e fatores de proteção internos e externos ao indivíduo (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006, p.19). À medida que se potencializa a resiliência, reduz-se a vulnerabilidade e viceversa. Alguns fatores agem como facilitadores da vulnerabilidade, enquanto outros agem proativamente, funcionando como mecanismos de proteção. Eles podem ser definidos como a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade. Essa rede corresponde ao nicho interpessoal da pessoa e contribui substancialmente para seu próprio reconhecimento como indivíduo e para sua auto-imagem (SLUZKI, 1997, p. 41-42). 1 A própria física explica que a resistência de um dado material tem limites. 6 O estudo sistemático da resiliência nas pessoas e nas organizações revelou que ela não é uma qualidade única, característica intransferível de um grupo especial de pessoas. Resulta, antes de tudo, de qualidades comuns que a maioria das pessoas já possui, mas que precisam estar corretamente articuladas e suficientemente desenvolvidas (COSTA, 1995). A resiliência, portanto, é um fenômeno que pode ser fortalecido. Para tanto, é importante conhecer a história do indivíduo, procurar analisá-lo em seu contexto, para então intervir de maneira apropriada, buscando as razões capazes de motivá-lo e fortificá-lo. A resiliência funda-se numa interação entre a pessoa, enquanto ser humano e o seu eu, enquanto produto de desenvolvimento, situada num contexto ambiental que ela influencia e que por ela é também influenciada. Para compreender a resiliência como uma capacidade universal, para que ela se desenvolva é necessário utilizar os próprios recursos e trabalhá-los em estreita ligação com o seu meio social e cultural. A busca pelo autoconhecimento e fortalecimento dos valores do ser humano, como base para o desenvolvimento de sua força interior, é capaz de habilitar o homem a superar as dificuldades que a vida apresenta. Essa força, resiliência, não tem uma fórmula definida, uma receita, mas traz, em sua essência, a introspecção, a harmonia entre razão e emoção, a harmonia entre corpo e imaginação. 2.2 A experiência formativa (profissional e humana) e sua interferência nos estudos sobre resiliência O conceito geral de educação, em nossa cultura, permanece associado a um privilégio da cognição e a uma ilusão de que a racionalidade esgota por si mesma todas as facetas do fenômeno humano. Essa forma de pensar e organizar os processos educacionais tem levado os professores e alunos a lidarem com a realidade também de forma descontextualizada, com repercussões diretas na maneira como compreendem e lidam com as experiências de suas próprias vidas. O professor, muitas vezes, necessita de uma habilidade em aprender a lidar com determinadas situações problemáticas, ou se desvencilhar das tensões nelas produzidas, em controlar possíveis sinais de angústia ou frustração nela geradas e, para isto, é preciso ativar certas estruturas psicológicas que têm sido denominadas como formas de resiliência (CASTRO, 2001). 7 Na perspectiva da resiliência a experiência formativa tem como objetivo despertar as potências do humano que habitam no ser, através de uma visão integral ou multidimensional. Através desta visão formativa, se é instigado a experienciar condições insuspeitadas de crescimento e realização. Infelizmente o sistema educacional ainda não dispõe de uma capacidade de reação para atender a tantas demandas, especialmente as sociais. É bem possível que quanto maior e mais rica for a história pessoal e profissional do professor, maiores serão as possibilidades de ele desempenhar uma prática educacional consistente, voltada não apenas ao desenvolvimento cognitivo do aluno, mas favorecendo o desabrochar de todas as potencialidades do humano. Neste sentido, concorda-se com Cavallet (2006), quando considera que os recursos que ambas as pontas da inter-relação professor-aluno sofrem interferências das histórias de vida, das crenças sustentadas, da percepção de si e da situação. Röhr (2004) aponta que alguém que não conquistou para si essa sensibilidade não poderá prestar ajuda educacional.[..] Somente uma pessoa que conhece na sua própria trajetória os agentes que desviam do auto-conhecimento e, portanto, impedem uma apropriação legítima daquilo que nos é estranho, é capacitada a reconhecer quando os mesmos agentes apontam no educando, alertando-o e o ajudando a criar seus próprios antídotos (p. 9) A educação, ao mesmo tempo em que influencia, é influenciada pelas motivações de seus agentes. Na interação há uma seqüência de ações, em que uma ação está relacionada com outras ações (ou ação) que a precederam. Há uma teia de ações que, mutáveis, solicitam uma adaptação e readaptação freqüentes às novas demandas que se apresentam. Nesta perspectiva, tem-se o produtor e o receptor do ato de linguagem envolvidos em uma atividade complexa composta por fenômenos lingüísticos, antropológicos e sociais, relevantes para a articulação com a realidade. Para Cavallet (2006), o dia-a-dia das escolas, que deveria propiciar o tempo necessário para as elaborações, está repleto de sinais que dizem da sociedade dos resultados rápidos, do espetáculo e da imagem, da falta de tempo para as conversas e para leituras mais profundas e significativas. Nas lacunas da alienação, onde não se reconhece o próprio desejo, colocam-se objetos, consomem-se mais e mais objetos e informações. Vela-se a angústia, cultiva-se a reprodução e o silêncio (p.136). Röhr (2004) considera que o ato de educar caracteriza-se como uma atitude de respeito diante da liberdade do educando no momento da apropriação do saber. Mas lamentavelmente o saber, na maioria das vezes, conduz a evitação da exposição e da 8 partilha. Há esquiva do caminho que liberta, porém responsabiliza. Este caminho implica em poder escutar a si próprio e ao outro, a desatar os nós das estereotipias que já não servem mais, mas sustentam. Uma postura assim implica em poder estar próximo, olhar de frente e se entregar àquilo que é realmente importante. Poder pensar no improvável, antes de se opor ou concordar sem se implicar. Poder colocar a incerteza em perspectiva. Como diria Cavallet (2006), aprender com o processo. Os defensores da chamada educação holística ou integral têm como objetivo comum à re-configuração do ser, ou seja, a formação do humano em sua inteireza. Para que isto seja possível, o ato de ensinar deve ser concebido como uma atividade intelectual que depende da interpretação, resolução de problemas e reflexão. Mais do que de um repertório de capacidades de ensino, a formação de professores necessita ser permeada por uma dimensão de pessoalidade que, embora assente na identificação das circunstâncias práticas cotidianas, transcende esta restrição contextual e assume modos de compreensão metacognitiva ao nível das diversas esferas da competência (SIMÕES, 1996). Lamentavelmente, na modernidade, o campo do ensino tem se apresentado, comumente, de forma fragmentada, muitas vezes restrito a um mero treinamento, associando certos comportamentos a resultados desejáveis. Acredita-se que uma mudança de um paradigma reducionista, centrado sobre aspectos unidimensionais, para um paradigma global, ecológico e organizacional é necessária. Apenas uma abordagem pluridisciplinar poderá dar conta da complexidade da problemática inter e intrapessoal, nomeadamente no que concerne ao estudo do humano. Neste sentido, a noção de integralidade se apresenta como um novo referencial a partir do qual pode emergir um caminho de superação dos problemas da educação na contemporaneidade. Partindo-se do pressuposto de que o humano se expressa na íntegra de suas possibilidades, a educação teria como meta a busca da integralidade desses aspectos, no que tem de mais humano. Neste sentido, as reflexões de Röhr (1999, 2004, 2006a, 2006b) apresentam contribuições fundamentais para pensar a formação do educador. Para ele, perpassa as reflexões pedagógicas a idéia da integralidade da pessoa humana enquanto fim último da educação. Para Röhr (2004, p. 13), “quanto mais conhecimentos seguros o educador adquire na sua conceituação da integralidade do ser humano, mais orientações ele dispõe para nortear a sua prática pedagógica”. O autor (2006a) acrescenta que tratar pessoas em situação desigual de forma igual é tão injusto como tratar pessoas em 9 situação igual de forma desigual. Mas não se pode esperar nada de um educador, em termos de formação humana integral, que permaneça preso ainda nos próprios conflitos emocionais ou interesses egocêntricos na Educação. A idéia de integralidade do processo educativo exigiria, portanto, orientar a ação pedagógica no desenvolvimento proporcional e articulado de todos esses aspectos, sem que haja supremacia ou subestimação de um dos mesmos. Abrir mão da integralidade significa fragmentar o pedagógico, criando uma ilusão de possível sucesso e qualidade. A multidimensionalidade do pedagógico é o ponto de partida para qualquer reflexão sobre a formação do educador, também na sua multidimensionalidade (RÖHR, 1999). Acredita-se que o educar, portanto, é um agir. Educando, visa-se também proporcionar um agir ético no próprio educando. Se faltar, por parte do educador, o respeito diante da possibilidade do educando de se comprometer com sua aproximação ao ético, ele nesse ato abandona o propriamente pedagógico, negando a liberdade de seu educando. O respeito diante da liberdade do educando revela-se como cerne da dimensão ética do pedagógico (RÖHR, 2006a). Para Durand, Saury e Veyrunes (2005), a ação humana é concebida como a expressão de uma autonomia. Lucidez e autonomia têm uma contrapartida: a responsabilidade. Afirmar-se como senhor de suas atividades e justificá-las, no sentido de que os atores podem, ao mesmo tempo, dizer o que fazem e assumir o custo (social, pessoal) de seus atos. O conhecimento técnico e prático vai se construindo a partir das várias experiências que tais profissionais vivenciam e acumulam ao longo de suas vidas, na instituição de ensino e fora dela. São esses conhecimentos, portanto, relevantes e úteis em suas atividades de ensino, por colaborarem na construção de saberes específicos, pois os próprios professores, no exercício de suas funções e na prática de sua profissão, desenvolvem saberes específicos, baseados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio. Esses saberes brotam da experiência e são por ela validados (TARDIF, 2002, p.38-39). Chartier (2007) considera que “a eficácia de uma formação estaria relacionada não aos saberes nela difundidos, mas ao lugar assumido pela reflexão sobre as práticas” (p.189). Cada um reformula fragmentos de discursos pedagógicos que experimenta e dos procedimentos de trabalho que põe em uso. Ela também destaca a importância do conhecimento prático na construção do saber docente, afirmando que o modelo que trata da pesquisa-ação (o segundo modelo) “toma emprestado muitos de seus conceitos do mundo do trabalho, da formação dos 10 adultos nas empresas. Ele legitima o ponto de vista dos atores em campo, idealizadores, inventores e não somente executores” (p.188). Albuquerque (2007) comenta que na perspectiva dos “saberes em ação”, o pensamento, ao mesmo tempo em que antecede a ação, a acompanha. Se, nessa perspectiva, os práticos refletem durante a ação, principalmente quando vivenciam situações de incerteza, instabilidade, singularidade e conflito, eles refletem também sobre seus saberes profissionais, o que os constitui como pesquisadores reflexivos (p.4) Através da experiência cotidiana, da reflexão dos erros, das mudanças de novas formas de ação e intervenção na realidade, provendo-se cada vez mais de competências ligadas ao processo de desenvolvimento pessoal, amplia-se a possibilidade de tornar o professor um profissional mais resiliente às adversidades presentes nos domínios da prática formativa. Para Weisser (1998) na sala as escolhas são feitas em tempo real. É impossível esperar, construir com experiência para testar uma outra solução; nossos atos são irreversíveis. Por conseguinte, não é surpreendente perceber que cada professor se dá o direito de modificar, de arrumar, até mesmo de contornar o que foi estabelecido cientificamente, para formar, progressivamente, um repertório de gestos profissionais oriundos de múltiplas influências, nenhuma tratando sozinha a complexidade do individuo – aluno (sem falar da complexidade do grupo – sala de aula em seu conjunto). Durand, Saury e Veyrunes (2005) consideram que o ensino não se reduz a uma prescrição, a formação não é somente a transmissão de soluções de ensino. O professor não é um científico, mas sim aquele aposta no mais provável. Instaura-se, então, na sala de aula, um jogo pedagógico, sinal da liberdade dos atores do processo de aprendizagem. E os alunos não são inocentes. Eles são também cúmplices das tentativas do professor para pesar sobre a situação, para pressionar a decisão. É necessário que o professor tenha uma grande flexibilidade, pois a aprendizagem passa pela discussão, pela confrontação, por trocas de mensagens significantes que dão sentido aos conhecimentos produzidos. Essa negociação visa conciliar, por um lado, o que é socialmente reconhecido e, por outro lado, o que é psicologicamente possível aqui e agora. Ele precisa ter em mente que o que funciona em uma dada situação, pode ser questionado em outra. Sem dúvida é preferível a variedade das respostas, mesmo com tons de hesitações, do que os automatismos de qualquer forma (WEISSER, 1998). 11 Cada um de lê uma realidade (aqui uma prática pedagógica) à sua maneira e, sobre um mesmo suporte observado, as opiniões divergem freqüentemente. Mas o caminho de formação está na confrontação das práticas. Chartier (2007) considera que muitas inovações pedagógicas são difundidas graças aos contatos entre colegas, muito mais do que por alguma imposição institucional. Muito se perde quando o professor deixa suas funções sem ter podido compartilhar não só suas descobertas, mas também suas dúvidas. Nas divergências não se enxerga um problema, e sim a riqueza de uma profissão que não rejeita o dialogo em prol de “receitas que funcionam”. Durand, Saury e Veyrunes (2005) consideram que “o ato de compreender é algo intersubjetivo que supõe um acordo e um compartilhamento do sentido” (p.58). A situação resulta, pois, de um conjunto de interações sociais e contextualizadas. Quando não há esse intercâmbio percebe-se a dificuldade em estabelecer uma ciência da educação, daí também o reconhecimento da responsabilidade de cada professor. Na perspectiva de Weisser (1998), os saberes da prática não são nem objetivos, nem universais, nem mesmo unívocos. É no olhar do outro tido não como juiz, mas como seu igual, que traz sua própria leitura e que lá ”coloca em jogo”, que faz pensar. É no olhar do outro que eles têm acesso a certo grau de intersubjetividade. Assim, cabe a cada professor refletir para adaptar seu Fazer à pessoa que ele tem em sua frente. Caso contrário, a separação entre teoria e prática só poderá perdurar. O fortalecimento da capacidade de resiliência, não deve estar ausente dos processos de formação docente, trazendo um fortalecimento indiscutível à sua prática. Para Castro (2001), é possível e razoável estimular nas pessoas e nas organizações, especialmente as educativas, posturas mais resilientes para que possam responder mais eficazmente aos desafios da sociedade em que vivem. Para tanto é necessário interiorizar concepções e atitudes diferentes que conduzam as formas de agir audaciosas, desafiadoras e adequadas às diferentes situações presentes na realidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acredita-se ser possível pensar em uma nova sociedade, melhor, mais humana, se os parâmetros forem as relações vividas em um âmbito educativo pautado no respeito mútuo. Não se trata exatamente de propor uma nova tendência educativa. A problemática central consiste na discussão de modelos que tentam compreender a experiência humana de ser-no-mundo, questionando o reducionismo do método 12 positivista de conhecimento, a crença no progresso material ilimitado fornecido pelo desenvolvimento indefinido da ciência e da tecnologia e o predomínio dos valores utilitaristas. Se a resiliência é um fenômeno de fortalecimento psicossocial, o seu manejo pedagógico transforma-se em uma ferramenta capaz de subsidiar a sociedade como um todo. A formação de professores mais aptos a apoiar os estudantes que passam por fortes adversidades deve ser incentivada e aperfeiçoada. Para tanto, sugere-se o estímulo de valores que os apóiem nas tomadas de decisões; o desenvolvimento continuado de formas de capacitação, mesmo fora do sistema educacional; estímulo à capacidade de liderança e monitoramento, além da habilidade de assumir responsabilidades e resolver problemas. Inserido numa visão mais ampla e otimista da formação profissional e humana do professor, este artigo buscou transcender os limites do tecnicismo, apostando na inteireza do homem, que talvez possa dar vida a uma prática educacional voltada não apenas ao aprendizado dos conteúdos, mas também à humanização de seus alunos, interlocutores, ouvintes/falantes e, sobretudo, pensantes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACIOLY-RÉGNIER, N.M. e MONIN, N. Da teoria dos campos conceituais à didática profissional para a formação de professores: contribuição da psicologia e da sociologia para a análise de práticas pedagógicas. Educação Unisinos13(1):5-16, janeiro/abril 2009. ALBUQUERQUE, E. Mudanças didáticas e pedagógicas no ensino de língua portuguesa: o trabalho com diferentes textos na sala de aula. 2007. No prelo. ASSIS, S. G.; PESCE, R. P.; AVANCI, J. Q. Resiliência: enfatizando a proteção dos adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2006. BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. 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