uma breve análise de duas áreas de política

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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas:
aproximando agendas e agentes
23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP)
Ciência e esporte e o mito da neutralidade: uma breve análise de duas
áreas de política pública brasileiras
Fernanda Loureiro Goulart
Departamento de Política Científica e Tecnológica
Instituto de Geociências, UNICAMP
Ciência e esporte e o mito da neutralidade: uma breve análise de duas áreas de
política pública brasileiras
Introdução
Este artigo parte do pressuposto de que há áreas atípicas de política pública
(DAGNINO, 2012), conceito desenvolvido tendo por base o estudo da política científica
e tecnológica e que compreende áreas em que o projeto político do governo não
informa a política. A partir de conceitos da análise de política e dos estudos sociais da
ciência e da tecnologia, além de análise de bibliografia específica sobre política de
ciência, tecnologia e inovação (CTI) e esporte, este artigo propõe que a política
esportiva do Brasil, tal qual a de CTI, pode ser categorizada como uma área de política
atípica.
Após apresentar os conceitos de política pública, política atípica e modelo
cognitivo, o artigo descreve brevemente as políticas nacionais de ciência e tecnologia e
de esporte. Para finalizar, argumenta que há semelhanças nas concepções de ciência,
tecnologia e esporte que informam as politicas públicas do país.
Política pública e política atípica
Não existe uma definição única do que seja política pública, com muitos autores
– em especial ligados à área de análise de política – oferecendo definições muitas
vezes complementares1, mas podemos estabelecer a visão de Dye (1976; 1992) como
base para este artigo. Para o autor, a política pública é tudo aquilo que o governo
escolhe fazer ou não fazer, e o papel da análise de política é identificar os porquês da
ação e da inação e que diferença elas fazem (DYE, 1976), ecoando a definição de
Laswell (1958) de política pública como uma análise de quem ganha o quê por meio
das decisões do governo. Vale notar, ainda, que quando se fala em política pública
subentende-se o termo em inglês policy, conectado com, mas não equiparado a, o
termo politics, ambos traduzidos para o português como “política”.
1 Ham e Hill (1993) apresentam uma boa introdução à análise de políticas públicas.
2
Dye (1992), assim como Frey (2000), apresenta um ciclo de política que se
refere a todo o processo de conformação de uma política. Os autores dividem o ciclo
em cinco etapas (identificação do problema, conformação da agenda, formulação em si
da política, implementação da política, e avaliação da política). Este artigo não analisa
em detalhes a política de CTI ou a política de esportes do Brasil, mas se foca mais no
momento específico de elaboração da política. É importante notar que as três primeiras
etapas do ciclo são aquelas em que é possível se perceber mais claramente a
característica de atipicidade, como formulada por DAGNINO (2012), em uma política
pública.
Para o autor, uma área de política atípica é aquela em que o projeto político do
governo, ou de outros atores presentes na elaboração, não se faz ver na conformação
da política pública. O que informa a política, nesse caso, seria o “modelo cognitivo” dos
atores. Por sua vez, o modelo cognitivo pode ser descrito como
um conjunto de conceitos, ideias, métodos, valores, interesses e
recomendações que condicionam escolhas de atores sociais referentes,
sobretudo,
às
políticas
públicas
(às
estratégias
nacionais
de
desenvolvimento, à orientação do desenvolvimento científico e tecnológico,
etc.). O modelo cognitivo influencia todo o processo de elaboração das
políticas públicas, envolvendo a identificação de problemas, a formação da
agenda decisória, a formulação, a implementação e a avaliação da política.
(SERAFIM, 2008, pp. 5)
A atipicidade ocorre quando o modelo cognitivo que informa a política não se
adequa ao programa do governo, mas mesmo assim se torna dominante. Uma política
pública se caracteriza como o resultado de negociações e embates entre atores
distintos, trazendo consigo modelos cognitivos também diferentes. Atores mais fortes
tornam seu modelo cognitivo dominante na política pública resultante. Por isso, faz-se
imprescindível a identificação dos atores, análise dos modelos cognitivos e da força de
cada ator para que se compreenda a conformação das políticas públicas. No caso
deste artigo, o foco se dá na concepção de ciência e tecnologia e de esporte que
legitimam as políticas públicas, argumentando que são inconsistentes com o que o
governo diz ser os objetivos de seu projeto político.
3
Políticas de CTI e esporte
A política de CTI brasileira se caracteriza por ser ofertista, vinculacionista e
preocupada em emular os arranjos institucionais e práticas dos países centrais (DIAS,
2010). Dagnino, Dias e Novaes (2008) chamam a atenção para sua característica
classista: ela se presta a atender prioritariamente às demandas do setor privado.
Serafim (2008) fez um estudo detalhado a respeito da política de CTI brasileira e da
política de inclusão social, argumentando que a PIS não prevê a utilização da ciência e
da tecnologia como instrumento de alcançar maior inclusão, enquanto a política de CTI
atual “dialoga (ou se relaciona) quase que exclusivamente com a política industrial e
com a política agrícola voltada para os grandes produtores”. A autora conclui, portanto,
pela interação inadequada entre a PCT [política científica e tecnológica] e a PIS, devido
às características dos modelos cognitivos que sustentam as políticas e a despeito da
maior preocupação do governo (no caso, o governo Lula) com a inclusão social.
No caso da pouca estudada política esportiva, cabe um breve histórico. A política
esportiva no Brasil data do início do século XX, tendo se institucionalizado durante o
Estado Novo. Bueno (2008) caracteriza o padrão de intervenção estatal no esporte
como centralizado, burocrático-autoritário, corporativo e clientelista. O foco da atenção
estatal durante o período foi o esporte de alto rendimento, buscando atender três
objetivos principais: modelamento da juventude por meio de disciplina e preparo físico,
aprimoramento eugênico, e produção de talentos esportivos (BUENO, 2008, p. 39). A
perspectiva eugênica e higiênica do período Vargas foi mantida e aprofundada durante
o período militar. Com a Constituição de 1988, o esporte entrou na lei do país como
direito de todo indivíduo, criou-se um ministério extraordinário do esporte no governo
FHC e um ministério de fato foi estabelecido no primeiro governo Lula, o que
demonstra a preocupação crescente com a área. Entretanto, o foco das políticas
4
públicas tem sido sempre o esporte de alto rendimento 2, com notável predominância do
futebol, mesmo com a criação de uma Secretaria de Esporte, Educação, Lazer e
Inclusão Social durante o governo Lula. 3
Entre as ações que demonstram a preponderância do esporte de alto
rendimento nos últimos governos estão a criação da INDESP em 1995 (Instituto
Nacional do Desenvolvimento do Desporto, envolvido em suspeitas de corrupção na
liberação de funcionamento de bingos e extinto em 2000), a aprovação da lei AgneloPiva em 2001 (que prevê o repasse da arrecadação de loterias federais para o Comitê
Olímpico Brasileiro e sua contraparte paraolímpica), a lei de incentivo ao esporte
aprovada em 2007 (que prevê descontos fiscais para as empresas que patrocinem o
esporte olímpico ou paraolímpico) e a criação da Timemania no mesmo ano (uma
loteria federal que destina sua arrecadação ao pagamento de dívidas dos clubes de
futebol junto à União). O aumento de gastos com o Panamericano de 2007, assim
como as vindouras Copa do Mundo de Futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016, também
evidenciam o apelo do esporte de alto rendimento.
Em texto publicado na Folha de S. Paulo, o historiador Raul Milliet (2004)
enfatiza a sobrevalorização do esporte de alto rendimento no Brasil, país que deveria,
segundo o autor, contemplar o esporte social como “prioridade quase absoluta”. O
esporte de alto rendimento deveria ser visto como complementar ao social, e deveria
buscar seus recursos em sua quase totalidade na iniciativa privada. “Em um país como
o Brasil, onde o alto grau de indigência social assume contornos de uma situação
emergencial” ele argumenta, “seria no mínimo um contrassenso definir como prioritário
o apoio do Estado ao esporte de alto rendimento.”
2 Bueno (2008) conclui que a política é voltada para o esporte de alto rendimento principalmente por meio da
análise de gastos governamentais com os diferentes programas do ministério do esporte. Ele classifica os
programas em três vertentes: alto rendimento, esporte de participação (programas de lazer) e esporte educacional
ou escolar. Durante o final do governo FHC, o autor conclui que os gastos estiveram mais equiparados, mas
voltaram a pender para o lado do alto rendimento durante o governo Lula (muito devido aos gastos com os Jogos
Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro).
3 São três as secretarias do ministério: Secretaria Nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social; Secretaria
Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor; e Secretaria Nacional de Esporte de Alto Rendimento.
5
Modelos cognitivos e coalizões
A pergunta imprescindível, tanto no caso da política de CTI quanto da política
esportiva, é o porquê da inadequação entre um projeto político de inclusão e
desenvolvimento social e os modelos cognitivos que baseiam as políticas. No caso do
esporte, como entender o foco no esporte de alto rendimento ao invés do esporte social
e, no caso da CTI, como entender uma política voltada para a área industrial e não
para tecnologias sociais?
A identificação dos atores envolvidos nos processos de elaboração das políticas
é essencial para a avaliação dos diferentes interesses em jogo e das assimetrias de
poder que possibilitam a dominação de modelos cognitivos sobre outros. Um conceito
bastante frutífero para tal empresa é o de advocacy coalitions (SABATIER, 1988;
SCHLAGER, 1995). Coalizões são reuniões de indivíduos com interesse em um
problema específico relacionado a alguma política pública, compartilham um sistema
de crenças e demonstram uma ação pelo menos minimamente organizada e
duradoura. Assim, as coalizões funcionam como grupos de pressão que encarnam
interesses específicos.
Slaughter e Rhoades (1996) utilizam o conceito de coalizão para analisar as
mudanças nos rumos da política científica americana desde a década de 1970.
Segundo os autores, a partir do fim dos anos 1970 e 80, uma coalizão que eles
denominam como coalizão da competitividade ganhou força nos EUA, aos poucos
sucedendo coalizões anteriores que viam na guerra fria e na luta contra doenças o foco
principal da ciência e da tecnologia. Esta nova coalizão, bipartidária, tornou-se forte nos
governos Reagan e Bush e foi fortemente defendida pelo governo Clinton. Essa
coalizão da competitividade colocou os interesses das empresas em primeiro lugar,
com universidades como coadjuvantes. Continuava, contudo, com uma narrativa
heroica como sustentação: ao invés do peso de vencer um império inimigo ou acabar
com doenças, tal narrativa focou-se na importância dos EUA conseguirem domínio de
mercados globais por meio da ciência e da tecnologia. A coalizão criou uma nova
narrativa para a política científica e tecnológica e instituiu mudanças na legislação que
alteraram as regras de pesquisa e desenvolvimento - mudança entre o que é público e
6
privado, por exemplo. É a essa coalizão que se deve o crescente foco no papel da
inovação.
O avanço neoliberal e os esforços da coalizão da competitividade foram sentidos
de forma tão marcante no Brasil quanto nos países centrais, até porque a política de
CTI se caracteriza pela alta internacionalização, prevendo similaridades entre as
diferentes políticas nacionais (VELHO, 2011). O que tem sido apontado como uma
especificidade da dinâmica de CTI no país é o papel preponderante da comunidade de
pesquisa na conformação da agenda política (DAGNINO, DIAS e NOVAES, 2007). A
crescente ênfase na inovação como forma essencial para a obtenção de
desenvolvimento econômico se insere na história da CTI brasileira como uma nova
fase da política, mas que não altera fundamentalmente a prática de pesquisa ou o
domínio da comunidade acadêmica. Segundo Dias (2010, p. 334):
Essa aparente sofisticação do discurso não deve, contudo, ser confundida
com uma mudança significativa no conteúdo da política. Ela é, de fato, parte
estratégica (em grande parte, não intencional e inconsciente) da comunidade
de pesquisa no sentido de garantir a continuidade. Assim, o discurso mudou
para que a agenda de política não tivesse que fazê-lo.
O estado atual da política de CTI pode ser visto, assim, como fruto da ação de
coalizões específicas, de âmbito local e internacional. Nossa CTI ofertista, voltada para
os interesses do setor privado e confundida com política industrial pode ser
contextualizada por meio da análise da ação de grupos de pressão.
O mesmo acontece com a política esportiva. Bueno (2010) utiliza também o
conceito de advocacy coalition, mas para analisar a política esportiva brasileira. Ele
identifica duas coalizões principais e antagônicas: a pró-esporte de alto rendimento e a
pró-esporte participativo e escolar. Ao passo em que a primeira coalizão estaria
presente desde o início da institucionalização da política esportiva (no início composta
por médicos e militares, principais envolvidos na dinâmica esportiva do país), a
segunda teria se fortalecido principalmente em fins da década de 1970, inicialmente por
meio de uma campanha (chamada Esporte Para Todos, de 1977) que buscava
contrapor-se à ideia de um esporte apenas para a elite esportista. Essa visão teria se
originado a partir do documento de 1964, publicado pela Unesco, “Manifesto Mundial
7
do Esporte”, que estabelecia a divisão do esporte em três áreas: esporte escolar (ou
educacional), esporte participativo (ou de lazer), e o esporte de alto rendimento (de
competição ou esporte-performance).
Entretanto, o autor não esclarece suficientemente quais são os atores
envolvidos em cada coalizão através do tempo, e a própria existência dessas coalizões
não é fortemente argumentada. No caso do alto rendimento, a identificação de uma
coalizão é facilitada pela presença de atores publicamente envolvidos com a
conformação da agenda política (como é o caso da chamada “bancada da bola”). A
coalizão antagônica é que permanece obscurecida, até pela falta de concordância de
supostos membros dessa coalizão. Lino Castellani Filho, por exemplo, seria um ator
dentro dessa coalizão – há muito pesquisa e escreve em defesa de um esporte de
lazer social – mas não concorda a respeito da atuação da campanha esporte para
todos como contraposição ao alto rendimento. 4 Para Castellani (1988), a campanha
Esporte Para Todos foi o “braço direito” do esporte de massa, de alto rendimento. A
motivação por trás da campanha seria a de mascarar o elitismo social, ao tentar
democratizar o esporte ao mesmo tempo tornando-o meio de desviar as atenções das
lutas políticas. A obrigatoriedade da educação física no ensino superior durante o
período militar teria uma função parecida: o esvaziamento político do movimento
estudantil, ao mesmo tempo em que buscava incutir um sentido de disciplina e
segurança, tão caros à ideologia das classes dominantes no período (CASTELLANI,
1988, p. 85).
O que parece fundamental quando se analisa a interação entre o modelo
cognitivo e o projeto político do governo – que é o foco aqui – é buscar identificar os
objetivos de ambos. Se o governo se propõe a colocar a inclusão e o desenvolvimento
social no centro de seu projeto político, a análise das políticas públicas deve levar em
consideração a distância entre esse objetivo e os que de fato se cristaliza em e com as
políticas públicas. No caso do esporte, a identificação de uma coalizão pró-esporte de
alto rendimento e uma coalizão pró-esporte educacional e participativo não é suficiente.
Embora a conclusão de Bueno (2010) de que a política esportiva do Brasil continua
4 O que Bueno nota, é importante frisar. Ele não parece dar a atenção que eu acredito deveria ser dada à crítica de
Castellani.
8
focada no esporte de alto rendimento seja suficiente para concluir também que essa
política não é adequada em relação aos objetivos do governo de promover inclusão
social, não há como garantir que um aumento dos gastos com os programas
vinculados
ao
esporte
educacional
e
ao
esporte
participativo
significariam
automaticamente uma adequação aos objetivos mais sociais do governo. Isso
acontece, essa é a hipótese deste artigo, porque a concepção dominante de esporte –
aquela que legitima as políticas governamentais – não se presta a uma concepção de
sociedade mais democrática e inclusiva. E isso acontece de forma muito semelhante
ao que ocorre em relação à ciência e à tecnologia. Em ambos os casos, temos uma
questão de “neutralidade” que precisa ser discutida e superada.
Modelos lineares e neutralidade
Velho (2011, pp. 132-3) afirma que
a evolução histórica da Política de CTI está fortemente correlacionada com a
evolução do conceito dominante de ciência. Em outras palavras, o foco, os
instrumentos e as formas de gestão que definem a Política de CTI num
determinado momento são estreitamente relacionados com o conceito
dominante de ciência.
É perfeitamente coerente alargar a afirmação para a política de esportes. Temos,
então, que as concepções dominantes tanto de ciência e tecnologia quanto de esporte
estão correlacionadas às políticas públicas de cada uma das áreas.
No caso da ciência e da tecnologia, é de se notar que, apesar de largamente
criticada entre os estudiosos da área, a relação entre ciência e sociedade é geralmente
vista (mesmo por cientistas) como linear. A origem dessa concepção linear apoiando a
formulação da política se encontra no famoso documento de Vannevar Bush, Science
the Endless Frontier (1945), produzido como organizador da ciência americana no pósguerra. Para Bush, a ciência básica automaticamente gera aplicações tecnológicas
que, por sua vez, são introduzidas na sociedade e levam a um aumento do bem-estar
da população e ao desenvolvimento social. Implicações dessa visão na prática da
9
política de CTI são o apoio incondicional à pesquisa básica e a preponderância da
matriz ofertista, que ainda é forte no Brasil.
É imprescindível notar que o crescente foco em inovação (vide a mudança de
nome do Ministério de Ciência e Tecnologia para Ciência, Tecnologia e Inovação em
2011) não significa uma quebra total com a concepção linear. Embora a inovação
pressuponha a importância da demanda para o desenvolvimento tecnológico (já que
não enxerga a pesquisa básica como automaticamente levando ao desenvolvimento
tecnológico), a economia da inovação pressupõe que a inovação é o motor do
desenvolvimento econômico e, linearmente, do desenvolvimento social. Essa
concepção está na base legitimadora dos gastos governamentais que visam apoiar a
inovação em empresas privadas. A suposição é que esses gastos se reverterão em
desenvolvimento social de forma linear.
Para Sarewitz (1996, pp.10-12), há mitos que pavimentam a crença na
linearidade da relação ciência-sociedade: o mito do benefício infinito (mais ciência leva
a mais tecnologia, que leva a mais bem-estar social), o da liberdade de pesquisa
(possibilidade de seguir qualquer linha de investigação para gerar benefícios sociais), o
da prestação de contas por parte dos cientistas (a prática de revisão por pares pode
solucionar os conflitos éticos das pesquisas individuais), o da autoridade (a ciência
pode ser utilizada como legitimação na resolução de conflitos políticos), e o das
fronteiras sem limites (o conhecimento científico é autônomo em relação às suas
consequências sociais – morais e práticas). Para ele, esses mitos são aceitos porque
são defendidos por uma comunidade de pesquisa que desfruta de legitimação política e
prestígio social, porque os interesses da comunidade de pesquisa são em parte
compartilhados por outros grupos que também têm legitimação (como o setor industrial
e as forças armadas) e porque os avanços tecnológicos nas sociedades industriais
parcialmente corroboram a visão de que o avanço tecnológico leva a melhorias sociais.
Mais além, entretanto, está algo que os estudos sociais da ciência e da
tecnologia têm se esforçado para criticar: a noção de que a ciência é essencialmente
uma atividade neutra. Dagnino (2008) apresenta uma análise abrangente da visão de
autores ligados aos estudos de ciência, tecnologia e sociedade sobre a questão da
neutralidade da ciência. Argumenta que, de forma geral, pode-se dividir as visões em
10
duas grandes abordagens: a focada em C&T (que vê a ciência como uma atividade
isolada da sociedade, que pode ou não influenciá-la) e a focada na sociedade (que vê
a ciência como uma atividade social que carrega em si as relações sociais
dominantes).
Os estudos sociais da ciência viveram, no século XX, seu início com os estudos
do sociólogo Robert Merton, que via a ciência como uma atividade neutra em um
ambiente social, que deveria ser foco de análise da sociologia, portanto. Pode-se
argumentar que o livro A Estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn (1978),
originalmente publicado em 1962, tornou-se um ponto de inflexão importante para a
área. Segundo Kuhn, fatores externos à ciência afetavam diretamente o próprio
conhecimento científico (não apenas o fazer da ciência, mas o próprio conteúdo dela).
Na década de 1970, dois grupos importantes surgiram no Reino Unido (o programa
forte de relativismo da Universidade de Edimburgo e os proponentes do programa
relativista da Universidade de Bath). Apesar de apresentarem diferenças, pode-se dizer
que a pedra angular do trabalho de ambos os grupos era identificar em que sentido e
em que medida se pode falar do conhecimento em geral, e especificamente do
conhecimento científico, como ancorado em aspectos sociais (KNORR-CETINA e
MULKAY, 1983, p. 6). Os estudos passaram a se focar em interesses sociais de
diferentes grupos e como esses interesses conformavam a pesquisa científica,
principalmente por meio da análise de controvérsias científicas e seu fechamento.
Nas décadas subsequentes, os ESCT se fortaleceram e outras abordagens se
juntaram às anteriores (como a teoria ator rede, as análises feministas da ciência e da
tecnologia, as análises do discurso científico e a teoria construtivista da tecnologia). O
ponto semelhante entre as diferentes abordagens dos ESCT é que a ciência é vista
como construída, resultado de negociações entre grupos diferentes, com objetivos e
interesses diversos, e carregando as assimetrias que a sociedade em geral (da qual a
ciência é inseparável) também traz.
Embora seja ponto pacífico entre estudiosos dos ESCT, a impossibilidade de
neutralidade da ciência se mantém forte na visão mais presente de ciência entre os
cientistas e a população em geral. E a visão de neutralidade legitima uma política de
11
CTI desconectada das preocupações com a inclusão social, já que se pauta na visão
falha de que a inovação tecnológica por si só pode levar ao desenvolvimento social.
Segundo VELHO (2011),
“conceber a ciência como sendo socialmente construída, podendo ser
direcionada pelas necessidades e preferências nacionais, realizada com a participação
de múltiplos atores, certamente informaria políticas de CTI muito diferentes das atuais.
Essa possibilidade é alentadora para os analistas de Política de CTI.”
Isso significaria reconhecer, como faz Dias (2011, p. 334), que a política não é
neutra assim como a ciência não é neutra: “assim como em qualquer outra política
elaborada na esfera do Estado capitalista, a PCT é também uma política que atende
aos interesses de determinados atores (ou classes sociais) em detrimento daqueles de
outros.” A especificidade da política de CTI estaria não no fato de ela favorecer as
classes dominantes, mas “na forma como essa sua característica é ocultada” (DIAS,
2011, p. 340), o que torna mais difícil a elaboração de outras políticas, mais
condizentes com objetivos de inclusão social de fato.
O que acontece com o esporte é muito semelhante. O esporte de auto
rendimento é dominante nas atenções do ministério do esporte certamente devido em
muito às pressões de uma coalizão forte, formada por clubes de futebol, pela bancada
da bola, por interesses de mercado, entre outros. Deve ser um foco de estudos a
análise de interesses diversos e o papel do próprio Ministério do Esporte como
mediador entre esses interesses e tomador de decisões. Porém, a dificuldade em
defender e dar visibilidades a projetos que tenham o objetivo de ir além do esporte de
alto rendimento e se comprometam com projetos de inclusão social e conquista de uma
cidadania mais plena passa pela hegemonia da ideia de esporte como algo neutro. O
compromisso com o esporte de alto rendimento é pouco criticado, pois em sua base
está a concepção de que o esporte, por si só, é positivo para a sociedade. Embora
tenhamos cada vez mais uma critica pública aos gastos com eventos desportivos como
a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos, essa crítica tende a passar ao largo
da questão do bem social do esporte de massa. Pergunta-se muito pouco de que forma
o esporte pode de fato promover inclusão social ou até mesmo saúde individual.
12
Por exemplo, nos objetivos do programa Segundo Tempo do Ministério do
Esporte (analisado por Bueno [2008] como um programa de esporte educacional),
constam “desenvolver valores sociais”, “contribuir para a melhoria da qualidade de vida
(auto-estima, convívio, integração social e saúde)” e “contribuir para a diminuição da
exposição aos riscos sociais (drogas, prostituição, gravidez precoce, criminalidade,
trabalho infantil e a conscientização da prática esportiva, assegurando o exercício da
cidadania).5 Não há quaisquer informações a respeito de como isso poderá ser feito.
Não há, pois não precisa haver. É ponto pacífico que o esporte gera linearmente saúde
e evita a criminalidade, como se automaticamente os jovens trocassem atividades
ilícitas pelo esporte, e como se todo um conhecimento mais amplo a respeito do que
leva um jovem a se envolver com drogas, prostituição, criminalidade em geral, trabalho
infantil ou arcar com uma gravidez precoce não fosse necessário. Mais do que isso,
busca-se promover valores sociais como se o esporte automaticamente carregasse
consigo “bons” valores. Se o esporte for visto como não neutro – assim como a ciência
– teremos que nos perguntar a respeito de que valores sociais ele carrega, sendo fruto
de uma sociedade largamente mercadologizada, individualista e competitiva.
Assim, alguns autores evidenciam a maior abrangência da política esportiva
atual:
Examinados em conjunto os projetos do ministério, é possível perceber a
mudança de concepção do esporte no Brasil. A criação de um órgão, ao
menos em tese de caráter permanente, possibilitou a consolidação de
políticas e projetos para esse setor. O esporte passou a ser olhado não
apenas em relação às modalidades e competições de alto rendimento, mas
também no que tange à sua prática de forma recreativa. Fica ainda evidente
a opção pela integração dessas diversas possibilidades, facilitando a
associação da prática esportiva com outras áreas-alvo de políticas públicas
federais, como, por exemplo, a educação, a saúde e o trabalho.” (ALVES e
PIERANTI, 2007)
Mas cabe não deixar de lado a crítica necessária à concepção de esporte que
sustenta essas políticas. Caso contrário, os programas que saem da tônica do alto
5 http://www.esporte.gov.br/snelis/segundotempo/objetivos.jsp. Acessado pela última vez em 17/12/2012.
13
rendimento podem continuar sendo mal preparados (como o Segundo Tempo) ou então
bem menos financiados e com visibilidade muito menor do que os programas de alto
rendimento, como é o caso do Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC). Mais bem
fundamentado6, o PELC contou com um orçamento de R$ 1.136.037.290,00 para o ano
de 2011. À primeira vista, bastante recurso, maior até que o do programa Brasil
Campeão de esporte de alto rendimento (R$ 1.116.981.078,00). Entretanto, no mesmo
ano foram pagos R$ 131.760.399,28 para o Brasil Campeão, enquanto R$
17.022.433,80 foram pagos para o PELC. Levando em consideração que o esporte de
alto rendimento tem outras fontes de subsídio público (como os incentivos fiscais), a
desproporção é grande.
Indo além, Mendes e Azevêdo (2010, p. 132) questionam a estruturação dos
programas sociais esportivos e a formação dos agentes sociais que neles atuam,
afirmando que “Esse contexto nos induz a uma ideia de massificação e detecção de
atletas e não de democratização do acesso ao esporte e ao lazer.” Citam, ainda, que
não é incomum que programas do tipo funcionem como pão e circo e controle social (p.
135). O problema é maior quando se compara a crescente complexidade dos
programas (que os autores chamam de PPEL – programas de políticas públicas de
esporte e lazer) e seus recursos com o estado da educação física escolar (EDFE),
carente de recursos no sistema público e sujeita às mudanças em geral que têm sido
efetuadas no sistema educacional, cada vez mais mercadologizado.
As PPEL têm maior incentivo estatal por despertarem interesses políticos
e econômicos que vão desde proporcionar um celeiro de atletas, e um pão e
circo, até oferecer ao mercado mais uma fonte de acúmulo de capital –
restando menor importância à EDFE por não ser interesse do Estado o
“bem-estar social” e a qualidade do ensino, o que se evidencia pelas
políticas que vêm sendo aplicadas no ensino. (MENDES e AZEVÊDO, 2010,
p.137)
6 Lino Castellani Filho foi inclusive Secretário Nacional da Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do
Lazer durante os anos de 2003 e 2006. Sua presença denota uma maior abertura para vozes diferentes dentro do
esporte. O problema é que a secretaria contou sempre com recursos muito reduzidos. Sobre isso, Bueno (2008, p.
231) cita que a secretaria funcionaria com base em capital teórico durante o tempo em que Castellani foi o
secretário.
14
Oliveira, Húngaro e Solazzi (2004) estudaram um projeto que aliou esporte e
saúde no combate ao sedentarismo na terceira idade em São Caetano do Sul. A
conclusão dos autores é que projetos como esse, que se utilizam de estratégias
exclusivamente individuais (não enxergando o coletivo, priorizando a relação atividade
física e saúde pessoal) acabam por legitimar a despolitização do cotidiano e não
apontam para possibilidades de mudança social.
Apontamentos finais
Resta a pergunta do que pode ser feito para embasar políticas públicas mais
condizentes com projetos políticos que visem à inclusão social e uma cidadania mais
ampla. Tanto no caso da CTI quanto do esporte é fundamental que a concepção de
neutralidade de que se revestem as políticas seja criticada. Estudos que analisem o
ciclo de política, que identifiquem coalizões e seus modelos cognitivos são raros, mas
necessários. Também é importante que os estudos que oferecem uma visão crítica a
respeito da CTI e do esporte tenham mais espaço junto aos fazedores de política. No
caso da CTI, os ESCT oferecem uma gama de estudos que normalmente é desprezada
pela análise de política (assim como é raro que a análise de política entre em estudos
de ESCT). No caso do esporte, há vozes dentro da educação física acadêmica que
oferecem também uma visão mais crítica do esporte 7. Maior relação entre essas vozes
e a análise de política é também desejável.
Projetos mais condizentes com a uma cidadania mais ampla e inclusão social
passam também pela configuração das políticas – tanto a de ciência e tecnologia
quanto a de esporte – como políticas meio. Para tanto, elas devem estar
comprometidas com ideais de mudança social, e não vistas como neutras. Dentro de
uma luta por inclusão em que a neutralidade não é dominante, o esporte não gera
saúde, mas “é o conhecimento e a experiência do homem com a cultura corporal que
7 Castellani (1988; 1999) coloca o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, por exemplo, que
edita a Revista Brasileira de Ciências do Esporte, como espaço de repensar o esporte e fugir
das teorias de biologização e psicopedagogização dentro da educação física, dando abertura
para teorias que vêm o corpo como um espaço histórico de consciência e expressão humanas.
15
possibilitam a ele manifestar-se, expressar-se visando a melhoria da saúde.”
(OLIVEIRA, HÚNGARO, SOLAZZI, 2004); as práticas corporais não são vistas como
produtos a serem consumidos por cidadãos-consumidores, mas sim direito social. Elas
devem fazer parte de uma cultura corporal a ser apropriada pelos cidadãos (Castellani,
1999). O esporte é tido não como neutro, automaticamente tirando jovens das drogas e
das ruas, mas há um entendimento de que
aquilo que define a Consciência Corporal do Homem é a sua
compreensão a respeito dos signos tatuados em seu corpo pelos aspectos
socioculturais de momentos históricos determinados. É fazê-lo sabedor que
seu corpo sempre estará expressando o discurso hegemônico de uma época
e que a compreensão do significado desse ‘discurso’, bem como de seus
determinantes, é condição para que ele possa vir a participar do processo de
construção do seu tempo e, por conseguinte, da elaboração dos signos a
serem gravados em seu corpo. (CASTELLANI, 1988, p.171).
Da mesma forma, uma concepção não linear e não neutra de ciência deve
informar políticas que sejam instrumento para o desenvolvimento social, priorizando
tecnologias sociais e não contemplando somente ou prioritariamente a política
industrial.
Este artigo procurou argumentar que, assim como ocorre com a ciência, existe
uma concepção de neutralidade do esporte que legitima as políticas públicas do setor.
Em ambos os casos, essas concepções contribuem para que as políticas das áreas
não sejam condizentes com projetos políticos que evidenciem a necessidade de
inclusão social.
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