Se a perpétua cheirasse Adão De Faria Se a perpétua cheirasse 1ª Edição POD Petrópolis KBR 2015 Edição de Texto Noga Sklar Capa KBR sobre fotos “Confidências de uma estreia”, versão 2005 Fotos “Perpétua” e “Confidências” Acervo do autor Copyright © 2015 Adão De Faria Todos os direitos reservados ao autor. ISBN: 978-85-8180-419-4 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br [email protected] 55|21|3942.4440 PER000000 - Artes cênicas Adão Vieira de Faria nasceu na fazenda Lagoa Seca em Itumbiara, Goiás, em 1954. Em 1975, depois de concluir o segundo grau em Goiânia, mudou-se para Ouro Preto, onde se graduou em engenharia pela UFOP, ao mesmo tempo em que iniciava seus estudos artísticos. Após uma especialização inconclusa na COPPE, UFRJ, instalou-se em Ipatinga, Minas Gerais, em 1980. Concretizando sua produção na engenharia e no teatro, fundou em 1983 a companhia de teatro Boca de Cena, onde, depois de dedicar 10 anos ao balé clássico Bolshoi, sob a orientação da bailarina e coreografa Zélia Olguin, aprofundou-se no estudo do drama, da música e da ciência. Na Cia., produziu trabalhos multidisciplinares, atuando como ator, diretor, autor, figurinista e cenógrafo em mais de 30 espetáculos. É professor universitário dos cursos de arquitetura e engenharia do Centro Universitário do Leste de Minas desde 2000. Em 2007 obteve pela UFMG o grau de mestre em engenharia. Email: [email protected] Parte I Se a perpétua cheirasse - Drama em três atos Melhor texto do III FESTI Ipatinga - 1987 - Apresentação Os livros já trazem à imaginação cenários, atores e movimentos, ora distantes, ora próximos às pessoas leitoras. Um livro cujo conteúdo é, em si, uma peça teatral, consegue facilitar ainda mais esse processo de busca das pessoas para o palco, para a vida. Cumprindo tal missão, este livro contém a peça “Se a Perpétua Cheirasse”, que retrata, por meio do cotidiano de estudantes universitários, seus anseios, frustrações, aprendizados, amores e angústias. Escrita por Adão Vieira de Faria quando ainda estudante, tem seu mérito pela inclusão não só de aspectos vinculados à formação do adulto, mas também de temas regionais e nacionais, como o movimento migratório dos nordestinos, a ditadura militar, o protecionismo, o nepotismo e o mercado de trabalho. Sem descuidar da boa imagem dos personagens, seus sentimentos são mostrados por todos os lados, alegres ou tristes, avançados ou conservadores, verdadeiros ou mentirosos. Eles são desvendados, portanto, sem linearidade, pulsando de dentro de cada um, com tamanha naturalidade e emoção que é possível, somente pela leitura, vê-los em cena, no teatro e na vida. As paixões, as declarações, as decepções, os joguinhos, as mentirinhas de amor e até os ciúmes não faltam neste drama, verbalizados pelo autor com importância, carinho e consideração nas falas vibrantes dos personagens estudantes e moças enamoradas. Nos jovens, o casamento é apresentado enquanto sonho. Nas atribulações da atividade universitária, os rapazes também encontram momentos para relembrar as namoradas deixadas em suas | 11 | Adão De Faria cidades e para alimentar interesses nas mocinhas de Ouro Preto, situações e comportamentos que não se perderam no tempo, ou seja, ainda ocorrem. Depois de adultos, já casados, a rotina do relacionamento de casal, aliada à do trabalho e das reuniões entre amigos, aparecem na história para corroborar o realismo dos acontecimentos que nela se desenrolam. Apesar de o enredo ter como ponto central vidas masculinas em uma república, não se pode deixar de lado a anotação sobre o papel feminino que o autor coloca de maneira muito fundamental, do começo ao fim da peça, embora com um viés ligado à vontade de casar e à preservação do casamento, posições compreensíveis para a época e que continuam vigendo no universo feminino atual, porém somadas a outros objetivos, intelectuais e profissionais. Inspirada no tema “Maternidade”, nome da república que é o cenário principal da peça, a figura da mulher-mãe inicia o drama com firmeza, permanece forte na vizinha que cuida dos estudantes e nas mães que cuidam para que suas filhas sejam bem-casadas, passando pela secretária com suas convicções sobre a mulher liberal e terminando no conforto maternal de uma enfermeira grávida, numa mistura entre o desenho entalhado na madeira que abria as portas da república e o da placa hoje lá existente. Os leitores e, claro, espectadores deste livro, se alegrarão com as reflexões, as conversas e as atitudes dos estudantes de Ouro Preto, moradores da República Maternidade na década de 1970. Os adultos conseguirão reviver seus tempos de juventude, enquanto os mais novos poderão conhecer e entender as diferenças. Isso, porque Adão Vieira de Faria descreveu de modo cristalino e verdadeiro os sentimentos e atitudes de rapazes que vão estudar e morar longe de casa, bem como suas angústias e objetivos na fase pós-formatura, quando encaram o mercado de trabalho, o casamento e os filhos. Não bastasse tudo que foi dito aqui, o realismo do autor, acrescido de sua sensibilidade, deixa ao final da obra um personagem se libertar de amarras, explodir publicamente suas mágoas e revelar seus pensamentos íntimos, de acordo com as “verdades encontradas com sua própria cabeça”. Delicadamente, o personagem é colocado, como um bebê, novamente na Maternidade. Heloisa Garcia Pinto | 12 | Se a perpétua cheirasse Na montagem original a peça foi encenada com 6 atores dividindo todos os personagens 1. João (pai), Waldomiro (ex-aluno veterano), Polícia, Vendedor de Loteria; 2. Ray (mãe de Ronaldo), Wanda (mãe de Lelena), Sra. Lilian (transeunte); 3. Ronaldo de Faria ou Pavão (estudante, filho de João e Ray); 4. Heloisa (namorada de Ronaldo antes da faculdade), Lelena (namorada de Ronaldo na faculdade), Secretária, Sra. Luzia (transeunte); 5. Julian Beck (estudante), Sérgio Leite (engenheiro, amigo de profissão de Ronaldo e Paulo), Engraxate; 6. Paulo ou Sabiá (estudante), Bicheiro, Luílla (enfermeira) Prólogo1 NARRADOR A República Maternidade teve início com um grupo de estudantes em uma pensão, situada na Rua dos Paulistas, 136, Antônio Dias. Os fundadores: Adão Vieira de Faria (Macarrão), Mário Ricardo Soares (Tim ou Cabrito), Paulo (Quexada), Hudson, Luís Humberto F. Matos (Tuca), Flávio Stort, Homero Stort, José Antônio Diniz Faria (Picolé), Claudio e Kiko. Com o término do contrato do locador com a dona do pensionato, os estudantes resolveram alugar a casa e transformá-la numa república particular masculina, a República Maternidade, isso ocorrendo em 4 de maio de 1975. A origem do nome “Maternidade” não é baseada em apenas uma história: conta-se que a dona do antigo pensionato, senhora distinta, que muito zelava pelos seus hóspedes, recebeu o amável título de “a grande mãe”. Com o fim do pensionato e a consequente inauguração da república, os moradores decidiram homenagear “a grande mãe” com o nome que ostenta até hoje. Uma outra versão, talvez a mais plausível, é que por serem todos os fundadores jovens calouros, uma vizinha, amiga e protetora, denominava-os carinhosamente “bebês” o que levou ao nome Maternidade. Sendo assim, a partir dessa data, todos os que viessem a se tornar republicanos passariam a ser chamados respeitosamente de “bebês”. Os estudantes fundadores cursavam Engenharia, quadro que se manteve até dezembro de 1 Este texto foi adaptado do livro Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas (Edição Especial), de Otávio Luiz Machado. | 13 | Adão De Faria 1980, quando houve a escolha do primeiro morador de outro curso. Passou, então, a haver uma miscigenação, procurando-se manter o equilíbrio, valorizando o indivíduo independentemente da área que cursava. Durante toda a sua história, os “bebês” procuraram transformar o caráter particular de seu alojamento, de república para moradia federal. A primeira tentativa foi ainda com os fundadores, que perderam para o grupo da Gaiola de Ouro; numa segunda perderam para o grupo da Bangalô. Nova tentativa veio a ocorrer em 1985, por meio de documento assinado pelo reitor da época, Fernando Antônio Borges Campos, no qual os “bebês” se propuseram empenhar-se numa campanha para angariar recursos para aquisição de uma casa. Amparados por uma lei do governo Sarney, de incentivo a doações para entidades de utilidade pública, os moradores procurariam doadores, que seriam beneficiados com abatimento no imposto de renda. Como esta tentativa, apesar de interessante para os dois lados, não surtiu o efeito esperado, em 1991 um outro grupo liderado pelo decano “Carioca” invadiu uma casa situada no Brejo, destinada aos professores da UFOP. Porém, o movimento foi reprimido a pedido da reitoria com força policial, e acabaram todos presos. Nessa época a república já estava diferente, pois em 1988 ela tinha passado a ser mista, não mais apenas de caráter masculino. Nos anos de 1992 e 1993 se manteve fechada devido a problemas enfrentados pelos antigos moradores. Foi reaberta por Ludmila Neto Carvalho, e logo após a sua formatura, em 1996, a república voltaria a ser masculina. Depois de se estabelecer em quatro diferentes endereços no centro antigo da cidade, hoje a república está na Rua Xavier da Veiga, 245. Nessas andanças, a antiga logomarca da placa dependurada na fachada da república, a silhueta em madeira de uma mulher grávida esculpida em baixo relevo pelo estudante Paulo, um dos fundadores, foi substituída pelo desenho sobre uma placa de metal de uma enfermeira sensual que leva no seu colo um bebê que esperneia. Havia também uma bandeira tipo estandarte, como é tradição em cada república, sendo o azul a cor principal, uma alusão às cores do prédio do primeiro endereço. Hoje, essa bandeira tem como cor predominante o branco. - Ato I - Cena 1 Abre-se o pano, ao mesmo tempo em que se ouve em segundo plano a narração do jogo Brasil x Itália, na Copa do Mundo de 1970, no México. À frente de uma televisão, uma família típica do sul de Minas comemora a vitória do Brasil, ao som da “música-tema” da seleção. | 14 | Se a perpétua cheirasse JOÃO Pra frente, Brasil! Pra frente, Brasil! Este país só me dá alegrias. É o que sempre digo, meu fio, a nossa revolução foi completa, perfeita e democrática. Pegamos este país pra fazer dele somente vitórias. Vamos, meu fio, mais uma pra comemorar. FILHO Bem, meu pai, só mais esta. Já estou meio zonzo. Você quer mais Coca? (Para a namorada) vamos brindar a este lindo gol do Carlos Alberto, à nossa taça, e também a este craque Pelé. HELOISA Ah, não! Pelo menos hoje tomaremos uma bebida mais forte. Não é, sogrinha? Espero que minha mãe não perceba quando eu chegar em casa. Ela vive desconfiada de que fumo, imagine se me pega justamente cheirando a bebida. Vou ouvir conselhos uma semana. RAY Você sabe que adoro os licores, mas esta minha diabete me proibiu quase tudo que é mais gostoso neste mundo. Não gosto muito de cerveja, mas vamos comemorar esta alegria em família. FILHO Vocês duas, por favor, não exagerem, pois, mulher quando bebe ou começa a rir, ou a chorar. E ainda tem algumas que soltam a língua. JOÃO Que isso, fio. (Moralista liberal) Também não é assim, né. Estamos em casa, vamos aproveitar a ocasião. (Já meio embriagado) Alegria num mata ninguém. Viva a cerveja e o Brasil! FILHO Quando o senhor bebe, até parece que é outra pessoa. Quando está são, vive o dia pregando moral e postura. | 15 | RAY Meu filho, você bem sabe que seu pai nunca foi contra um pouquinho de bebida em ocasiões como esta. E saiba você que moral não faz mal a ninguém. Todas as suas sete irmãs também reclamavam que seu pai exagerava quando as proibia de ir ao cinema sem companhia, e de nunca irem ao baile lá do clube sem minha presença ou de alguma de suas tias. Hoje estão aí, muito bem casadas, menos a coitada da Doroteia, que achou que estudar era melhor. Acabou casando com aquele jogador de basquete. Hoje está sempre pedindo dinheiro pro coitado do seu pai, até pra pagar o aluguel do apartamento lá em Belo Horizonte. JOÃO Bem, eu vou até a pensão do Mané Pião confirmar se é amanhã mesmo que vai chegar mais um caminhão de pau-de-arara. Já comecei a panha do café, vou ver se consigo pelo menos mais uns vinte pião, senão tá perigoso a gente perder uma parte da produção. HELOISA O senhor está sabendo, que o padre na última missa falou um tempão sobre a desgraça destes nordestinos? Eu sei que o senhor não faz uma coisa destas, mais ele disse que muitos donos de fazendas aqui da região, além de não pagarem um tostão pra esta gente, ainda obrigam eles a trabalhar mais de onze horas por dia, com se fossem escravos. FILHO Você conhece nossa fazenda, e sabe que todo mundo lá é tratado como gente. RAY Ele disse também que muitos morrem de cansaço, tristeza e até de fome, e que os donos de fazenda nem se dão ao trabalho de enterrá-los na cidade. Escolhem uma árvore qualquer no meio do pasto, e lá mesmo enterram esta gente sofrida. Que coisa mais triste! Será que alguém tem coragem de fazer umas coisas dessas? JOÃO (Desconfiado) Vocês bem sabem meu sistema de trabalho. Não dou folga no serviço, mas a cama é boa e a mesa é farturenta. Agora tem uma coisa, o sô Vigário é que me perdoe, em nome de Deus, mais eu nunca tolero preguiça, desaforo e malcriação. Bem, já tô indo. RAY Não demore. Vou fritar uns biscoitos na manteiga e você gosta quentinho. FILHO Manhê, não se esqueça de passar aquele cafezinho que só a senhora sabe fazer. (Para a namorada) Hoje vamos poder namorar à vontade, sem companhia pra assistir novela e sem aquelas entradas na sala, parecendo fantasma, justamente quando não devia. Vem cá. Me dê um abraço vai... (Ameaça pegar na perna dela) HELOISA Chega! Sua mãe pode ver. (Toda tímida, arrumando a saia) Você também anda muito insistente, e sabe que eu morro de vergonha de deixar você me beijar perto de seus pais. FILHO (Olhando para as pernas dela) Eu num tinha reparado. Você tornou a colocar esta minissaia ridícula. Depois, se alguém mexer com você, não venha me dizer nada. Provoca e não quer receber cantadas. HELOISA Você está pior que meu pai, implica com tudo que é moderno. FILHO Entenda como quiser. Você sabe que ciúmes é comigo. Mudando um pouco de assunto, tenho uma novidade pra te contar... HELOISA Já sei. Você decidiu de uma vez por todas tomar conta da nova fazenda de café de seu pai?