PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Ivany Dantas Pimentel Aspectos histórico-teológicos da pregação de Jesus sobre o Reino de Deus MESTRADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2010 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Setor de Pós-Graduação Ivany Dantas Pimentel Aspectos histórico-teológicos da pregação de Jesus sobre o Reino de Deus MESTRADO EM TEOLOGIA Dissertação apresentada à Examinadora da Universidade Pontifícia Banca Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Teologia Sistemática sob a orientação do Prof. Dr. Côn. Antonio Manzatto. SÃO PAULO 2010 Banca Examinadora _____________________ _____________________ _____________________ Agradecimentos Ao Professor Dr. Côn. Antonio Manzatto pela disponibilidade, orientação e competência. Aos Professores do programa de pós-graduação. Aos funcionários pela eficiência e dedicação ao trabalho. Aos meus familiares, colegas e amigos sempre presentes com seu estímulo e amizade. RESUMO Aspectos histórico-teológicos da pregação de Jesus sobre o Reino de Deus Este trabalho tem como objetivo mostrar a vida e a atuação de Jesus de Nazaré no contexto histórico da sociedade de seu tempo, como um personagem real que assume a condição de criatura para introduzir nela os princípios do reino que se aproxima, forjando com seu exemplo e sua palavra um novo tipo de existência que se firma na fraternidade, na solidariedade, na justiça e no amor. Segundo a tradição sinótica, Jesus veio estabelecer o reino de Deus não como o senhorio de homens sobre homens, mas senhorio de serviço, uma boa notícia para os pobres que são os destinatários do reino. A idéia do reino de Deus, que faz parte das convicções do povo de Israel desde as suas origens, torna-se o centro da atuação e dos ensinamentos de Jesus narrados nos Evangelhos. Sua abordagem permeia os diferentes períodos da história, mas o resgate de sua centralidade ocorrerá somente após o Concílio Vaticano II com o surgimento da teologia da libertação. Nesse período, destacam-se as contribuições de teólogos latino-americanos, em especial as de Jon Sobrino. A Teologia da Libertação busca na sociedade o compromisso com a transformação social da realidade mediante a crença de que é possível a existência de um mundo onde há lugar para todos e a dignidade humana seja preservada. A luta por um mundo justo sem opressão nem servidão é um sinal da vinda do reino. Neste sentido Jesus, mediador definitivo do Reino de Deus traz em sua mensagem a oferta de salvação para toda a humanidade em todas as suas dimensões, libertando-a das situações negativas de ignorância, de pecado, de sofrimento e de morte. Palavras-Chave: Jesus histórico, Reino de Deus, Teologia da Libertação, salvação. ABSTRACT Historical and theological aspects of Jesus preaching about the Kingdom of God The aim of this work is to show the life and the achievements of Jesus from Nazareth within the historical context of the society of his time, as a real person who assumes the human condition to insert the principles of the coming kingdom in the society, forging with his words and actions a new kind of existence based on brotherhood, solidarity, justice and, love. According to the synoptic tradition, Jesus has come to establish the kingdom of God not as a landlord of men over men, but as a landlord of service, a good news for the poor people who are the recipients of this kingdom. The idea of the kingdom of God, which is present in the beliefs of the people of Israel since its origins, becomes the center of Jesus activities and teachings, as described in the Gospels. Its approach permeates distinct periods of the History, nevertheless the rescue of its centrality will occur only after the Vatican Council II within the emergence of the liberation theology. In this period, the contributions of Latin American theologians stood out, mainly those of Jon Sobrino. The Liberation Theology aims the society´s commitment with a social transformation of the reality, based on the belief that it is possible to have a world where there is a place for everyone and the human dignity is preserved. The struggle for a fair world (without oppression and servitude) is a sign of the coming of the kingdom. In this sense, Jesus, the ultimate mediator of the Kingdom of God, brings within his message the offer of salvation to all humanity in all its dimensions. Jesus frees the mankind from the negative situations of ignorance, sin, suffering and death. Keywords: historical Jesus, Kingdom of God, Liberation Theology, salvation. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 08 CAPÍTULO I ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIDA DE JESUS 1.Introdução.............................................................................................................................. 12 1.1. Contexto histórico da vida de Jesus................................................................................... 13 1.2. As origens de Jesus de Nazaré........................................................................................... 17 1.3. Contexto religioso da vida de Jesus................................................................................... 21 1.4. A pregação de João Batista e o batismo de Jesus .............................................................. 31 1.5. O movimento de Jesus....................................................................................................... 33 1.6. Conclusão .......................................................................................................................... 39 CAPÍTULO II O REINO DE DEUS COMO O CENTRO DA PREGAÇÃO DE JESUS 2.1. A pregação de Jesus........................................................................................................... 42 2.2. Compreensão da ideia de reino de Deus no Antigo Testamento ....................................... 45 2.3. O conceito de reino de Deus na pregação de Jesus ........................................................... 49 2.3.1. As parábolas ................................................................................................................... 52 2.3.1.1. As parábolas do reino .................................................................................................. 54 2.3.2. Os milagres .................................................................................................................... 60 2.3.2.1. As narrações evangélicas dos milagres ....................................................................... 64 2.3.2.2. A prática de Jesus e a relação com sua morte e ressurreição ...................................... 69 2.4 Conclusão ........................................................................................................................... 71 CAPÍTULO III EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE REINO DE DEUS 3.1. A passagem da pregação do reino de Deus para a proclamação da pessoa de Jesus ........ 74 3.2. As abordagens do conceito do reino de Deus ao longo da história ................................... 75 3.3. O conceito do reino de Deus no cristianismo primitivo .................................................... 78 3.4. Concepções do reino de Deus na Idade Média.................................................................. 83 3.5. Concepções do reino de Deus na Idade Moderna ............................................................. 87 3.6. A retomada do conceito de reino de Deus na Teologia da Libertação ............................. 95 3.6.1. O reino de Deus segundo Jon Sobrino ........................................................................... 96 3.6.2. O reino de Deus e a prática cristã ................................................................................. 102 3.6.3. O aspecto totalizante do reino de Deus ........................................................................ 104 3.6.4. Praticar a teologia do reino de Deus............................................................................. 106 3.7. Conclusão ........................................................................................................................ 110 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 113 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 116 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo apresentar os aspectos históricos da vida de Jesus, sua obra, sua mensagem e sua pregação tendo como meta a instauração do reino de Deus. Para isso o ponto de partida é a existência do Jesus histórico, que marca uma presença real na história humana vista como a maneira escolhida por Deus para realizar a salvação do gênero humano, mediante a percepção de que sua humanidade é extremamente importante para compreender a sua missão messiânica e a revelação do Pai que ele nos trouxe. Jesus é um personagem inserido no contexto do judaísmo do século I, em sua história local, social, político-religiosa e sua existência tem sentido não somente para os cristãos, mas nos chama a atenção o fato de que ele realmente tem algo a dizer a todos os seres humanos.1 Ele viveu na Palestina sob o domínio do Império Romano, no qual o povo tinha como obrigações oferecer sacrifícios no Templo, pagar o imposto para a sua manutenção e, principalmente, para cobrir os custos dos sacrifícios comunitários, bem como pagar o dízimo dos produtos agrícolas para sustentar os sacerdotes. Os impostos destinados a Roma, que variavam de 25% a 40% de tudo que se ganhava, eram cuidadosamente monitorados e cobrados sob ameaças de prisão, extrema violência ou confisco das terras.2 Como judeu Jesus participava dos costumes religiosos, frequentava a sinagoga, era observante da Torá e se indignava com a situação de opressão e exploração em que vivia o seu povo. A pátria de Jesus é a desprezada Galileia, e Nazaré a cidade de seus pais. Sua 1 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008. p. 21. Cf. CROSSAN, John Dominic & REED, Jonathan L. Em busca de Jesus: debaixo das pedras, atrás dos textos. São Paulo: Paulinas, 2007. pp. 234-235. 2 8 família seguramente pertencia àquela camada da população judia que desde o tempo dos macabeus entregou-se novamente à prática do culto no templo de Jerusalém e cumpria as práticas legais do judaísmo. A sua língua materna era o aramaico da Galileia, o mesmo dialeto que permitiu aos servos do sumo sacerdote reconhecerem Pedro por ocasião da negação (Mt 26, 69-73). O hebraico não era a língua corrente, mas apenas a língua da religião e dos letrados.3 São apresentados comentários sobre o nascimento de Jesus narrado por Lucas e Mateus tendo em vista não a exatidão histórica, mas sublinhar concretamente que Jesus é o herdeiro das promessas escriturísticas e das promessas humanas de que Israel foi testemunha. Com exceção do episódio narrado em Lc 2, 41-50 “Jesus entre os doutores”, os Evangelhos não fazem nenhuma referência aos anos posteriores da vida de Jesus. Ele imerge novamente na vida cotidiana do seu povo e percorre a lenta maturação que todo destino humano exige, preparando-se para o futuro de sua missão. Em seguida há referências ao surgimento de João Batista anunciando a necessidade de conversão e a proximidade do reino de Deus. Jesus após submeter-se ao batismo de João, é declarado Messias e após a sua estada no deserto dá início a sua vida pública. Ele desencadeou um movimento de renovação intrajudaico que acolheu pessoas insatisfeitas com a situação social e política em que viviam e acreditaram na sua mensagem. Entretanto o movimento que Jesus desencadeou não era dirigido contra os poderes políticos, nem contra Roma, nem contra Herodes. Este só ouve falar de Jesus através de rumores e parece que deseja eliminá-lo por achar que é retorno de João Batista e por considerá-lo o líder de um movimento rebelde.4 3 4 Cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. São Paulo: Ed. Teológica, 2005. p. 99. Cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. p. 252. 9 Para a compreensão do contexto religioso, deve-se observar a composição do Grande Conselho ou Sinédrio, sua estrutura e funcionamento, bem como o papel desempenhado pelos grupos religiosos na realização do culto, na exigência do cumprimento dos princípios religiosos do judaísmo e suas relações com os representantes do Império Romano. Entender essas relações é fundamental para compreender a atuação de Jesus e a expansão do seu movimento. A atuação e a pregação de Jesus que se concentram no anúncio do reino a realizar-se na terra, consiste na busca incessante de um novo tipo de homem numa sociedade qualitativamente diferente. O anúncio do reino revela a aspiração a uma sociedade justa e faz descobrir caminhos inéditos a percorrer; instaura-se o reino em uma comunidade fraterna e justa, e por sua vez, essa ação desponta em promessa e esperança de plena comunhão de todos os homens com Deus. O anúncio evangélico com a pregação do amor universal do Pai tem caráter salvífico e se opõe a toda injustiça, privilégios, opressão e todas as formas de dominação exercidas sobre os homens.5 O anúncio do reino é feito por Jesus através das parábolas, da realização dos milagres, da acolhida aos pecadores, da expulsão dos demônios e ele age sempre em benefício dos outros, como manifestação da livre e amorosa dedicação de Deus ao ser humano.6 As parábolas do reino estão somente nos Evangelho sinóticos, enquanto os milagres são relatados também no Evangelho de João como manifestação da autoridade messiânica de Jesus e de sua divindade. Por motivos de ordem religiosa Jesus é acusado pelo Sinédrio e morre em mãos do poder político do Império Romano acusado da pretensão de ser o Messias e rei dos judeus. Ele integrou a sua morte na totalidade de sua missão, isto é, ele entendeu e viveu a sua morte 5 6 Cf. GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis, Vozes, 1976. p. 198. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008. p. 198. 10 como último e extremo serviço à causa de Deus como causa da humanidade.7 Mas Deus o ressuscita da morte e exaltado junto ao Pai permanece conosco sob uma forma totalmente nova de existir e perpetuar a sua mensagem e sua práxis. Com o surgimento da Teologia da Libertação após o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín, o tema do reino de Deus retorna ao pensamento teológico e eclesial recuperando a sua centralidade. No terceiro capítulo é feito um percurso histórico das abordagens ao reino de Deus nos primeiros séculos do cristianismo, na Idade Média, na Idade Moderna até a Idade Contemporânea. É apresentado o pensamento de Jon Sobrino sobre o reino de Deus partindo do seu significado, da práxis de Jesus e dos destinatários do reino, seu aspecto utópico e transcendente, seu caráter totalizante, o anúncio e a mensagem de Jesus como princípios básicos que devem orientar a vida cristã. A última parte mostra a proposta de reino de Deus como algo que traz a salvação para a humanidade a partir da história concreta de Jesus. Em Jesus, Deus concede a salvação definitiva do homem. Ele é o Mediador da Salvação. 7 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 305. 11 CAPÍTULO I ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIDA DE JESUS 1. Introdução A primeira parte deste trabalho pretende abordar o contexto histórico da vida de Jesus, isto é, o período compreendido entre a morte de Herodes e a divisão do seu reino entre os seus três filhos, enfatizando o governo de Herodes Antipas, no qual ocorre a morte de João Batista e, posteriormente, a morte de Jesus. São apresentados alguns procedimentos adotados pela política do Império Romano que, em muitos aspectos, permitia aos judeus realizar suas práticas religiosas, contanto que seus interesses fossem preservados. Há uma referência sucinta aos fatos que precederam à destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C. pelo imperador Tito e as consequências políticas e religiosas para a sociedade judaica. Em seguida, há referências às origens de Jesus de Nazaré baseadas nas narrativas da infância de Jesus contidas nos Evangelhos de Mateus e Lucas, bem como informações sobre os costumes, os modos de vida, os aspectos sociais e econômicos de Nazaré, vila onde Jesus passou a sua infância e os anos que precederam sua vida pública. O contexto religioso da Palestina do século I da nossa era mostra a composição das principais instituições judaicas: o Sinédrio ou o Grande Conselho, o Templo e a sinagoga como também os grupos religiosos da época de Jesus e outros elementos básicos do judaísmo. Surge nesse contexto, João Batista que exorta o povo ao arrependimento e à conversão como preparação para a vinda do Messias. O sentido do batismo de João, bem como o seu 12 significado teológico é o momento em que se estabelece a comunicação definitiva entre Deus e o homem. A descida do Espírito sobre Jesus significa que nele culmina a criação, que a comunicação do amor e da vida divina se expressa nas palavras que ele ouve (Mc 1,9-11). O movimento de Jesus se desenvolve no contexto social, político e econômico da Palestina do século I e acolhe pessoas da classe baixa sem recursos para sobreviver, dos segmentos sociais médios endividados e em decadência, como também membros e simpatizantes da camada alta que sonham com a renovação da sociedade. Jesus deu início ao seu movimento durante o reinado de Herodes Antipas (4 a.C-39-d. C) na Galileia, que era um dos centros de intranquilidade na Palestina e seus habitantes eram vistos como ameaça à ordem pública. A Galileia estava passando por profundas tensões estruturais entre judeus e gentios, ricos e pobres, governantes e governados. Neste ambiente Jesus proclamou uma mudança de todas as coisas e iniciou a sua pregação.8 1.1. Contexto histórico da vida de Jesus Jesus nasceu em uma pequena cidade da Palestina do século I, “talvez em Belém da Judéia ou provavelmente em Nazaré da Galileia” 9, quando reinava Herodes I, o Grande (Mt 2,1), rei vassalo do imperador romano, que em 43 a.C. foi reconhecido como rei da Judéia que abrangia a Galileia, a Pereia e a Samaria. Com a sua morte em Jericó, no ano 4 a.C. o reino foi dividido entre seus três filhos, mas nenhum deles recebeu o título de rei. Arquelau herdou a Judéia (Mt 2,22) cuja capital era Jerusalém e a Samaria; Herodes Antipas recebeu a Galileia e a Pereia. Herodes Antipas manteve-se no poder até 39 d.C. quando foi deposto pelo imperador Gaio e seu vice-reinado passou a depender da província romana da Síria. Ele se destaca nos 8 THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004. pp. 196197. 9 MEIER John P. Um judeu marginal. v. 1, 3 ed. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. p. 229. 13 Evangelhos pela execução de João Batista por censurar publicamente seu casamento com Herodíades, a mulher do seu irmão Filipe, fato que violava as leis judaicas (Mt 14, 1-11; Lc 3, 19-20). A versão de Marcos (6,17-27) nos oferece um breve olhar sobre a vida na corte de Herodes Antipas e a maneira superficial como ele observava os costumes próprios dos judeus manifestou-se na nova capital que ele construiu às margens do mar da Galileia. Embora chamada Tiberíades, em honra ao imperador Tibério que reinara de 14 d.C. a 37 d.C, o tetrarca pretendia que essa cidade fosse mais judaica do que gentia, mas os judeus resistiram a morar nela, pois durante a construção, foi descoberto um cemitério dentro dos limites da cidade, tornando-a inadequada para habitar, segundo o modo de ver dos ortodoxos. Por essa razão “Antipas teve que povoar sua capital com pagãos ou judeus liberais, ficando afastados dela todos os judeus amantes da Lei”.10 Apesar da importância da cidade, parece que também Jesus e seus discípulos a evitaram. Nos evangelhos o nome da cidade aparece somente uma vez em Jo 6,23, sem que Jesus e seus discípulos tivessem ido até lá. No entanto a resistência dos judeus aos poucos foi desaparecendo de modo que Tiberíades ganhou também uma sinagoga, foi o centro do Sinédrio no século II d.C. e, devido aos estudos sobre a Lei, tornouse uma das cidades sagradas do judaísmo. A região da Pereia recebeu como proteção contra os nabateus uma cidade fortificada de nome Lívia e Antipas deu continuidade às construções de seu pai, sem passar por dificuldades financeiras. Quando a província da Judéia estava sendo organizada, Quirino, governador da Síria conduziu um censo geral da nova província que provavelmente é aquele a que Lucas se refere na narração sobre o nascimento de Jesus (2,2). Herodes Antipas e Filipe receberam ambos o título de “tetrarca” (líder de uma quarta parte). Filipe herdou o território a leste do Jordão e do lago da Galiléia até o Norte, cuja capital era Cesaréia de Filipe (Mt 16,13) e governou até sua 10 REICKE, Bo. História do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1996. p.135 14 morte no ano 34 d.C. Sua tetrarquia abrangia muitas cidades gregas e até os judeus que moravam nelas estavam relativamente contentes com a família herodiana. No ano 6 d.C. “samaritanos e judeus se uniram em embaixada a Roma conseguindo convencer Augusto a depor Arquelau e exilá-lo para a Gália”.11 A Judeia passou a ser administrada por um governador da ordem equestre, isto é, militar, que estava subordinado ao legado da Síria somente nas matérias em que se requeria o exercício da autoridade superior. O governador ou procurador residia na cidade helenística de Cesareia e só subia à Jerusalém quando grandes multidões para lá se dirigiam por ocasião das grandes festas de peregrinação,12 pois estas concentrações imensas de fiéis poderiam facilmente dar ocasião a movimentos que podiam degenerar em motins. Morava então na fortaleza Antônia, no ângulo norte do Templo ou no antigo palácio dos Asmoneus. Ele tinha competência judicial para impor a pena de morte, para julgar os crimes políticos e intervir nos casos que punham em risco os interesses imperiais. Cabia também ao governador dirigir as tropas, exercer as funções judiciais e, sobretudo, administrar os recursos econômicos, cujo destino junto com as contribuições da Judeia era o tesouro público de Roma. A administração ordinária da justiça, tanto civil como criminal, competia aos tribunais locais judeus. Em Jerusalém o Sinédrio funcionava como senado provincial, com membros tirados das famílias de destaque segundo o modelo provincial costumeiro. No tempo de Jesus a política oficial dos romanos era escrupulosa em manter a autonomia judaica em assuntos religiosos e permitia aos judeus de todo o mundo pagar a taxa anual para a manutenção do Templo, bem como os isentava da exigência normal de participar do culto imperial. No entanto, eram oferecidos todo dia no Templo, sacrifícios (dois cordeiros 11 STAMBAUGH John E. & BALCH David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. São Paulo: Paulus 1996. p. 20. 12 As três festas de peregrinação eram: Páscoa, Pentecostes e Festa das Tendas ou dos Tabernáculos, de acordo com as prescrições do Ex 23,17; 34,23 e Dt 16,16. 15 e um touro) em favor do imperador.13 Embora em muitos aspectos o governo romano fosse suave, certos incidentes irritaram a sensibilidade dos judeus tradicionalistas que tinham visto tantas mudanças de administração. Exemplo disso está na manutenção da custódia das vestes usadas pelo sumo sacerdote para as celebrações solenes, que eram guardadas na torre Antônia sob a vigilância dos soldados romanos que só as entregavam por ocasião das festas. Os romanos mantiveram esta atitude sob o protesto dos judeus, até que o imperador Cláudio restituiu as vestes através de um decreto assinado em junho de 45 d.C. Pôncio Pilatos que governou a Judéia de 26 d.C. a 36 d.C. criou conflitos com os opositores do governo romano. Instalou uma nova unidade de guarda na fortaleza Antônia, em Jerusalém, que se identificava por estandartes que levavam medalhões do busto do imperador. Isso pareceu afronta deliberada à proibição judaica de gravar imagens. Em outra ocasião se apropriou do tesouro do Templo para financiar um novo aqueduto em Jerusalém, violando tanto a lei romana como a lei judaica, como também instalou escudos inscritos com o seu próprio nome e de Tibério sobre as paredes do palácio de Herodes, que era sua residência em Jerusalém. Mas, “Pilatos foi forçado a retroceder, em geral pela ameaça ou pela realidade da violência da parte dos judeus”.14 Ele passou a agir com cautela no trato com o sumo sacerdote e seus associados, fato que pode explicar sua conduta no julgamento de Jesus. Em 36 d.C, Vitélio, então legado da Síria destituiu Pilatos do cargo de procurador da Judéia, enviando-o a Roma para responder por sua conduta e entregou a Marcelo a administração da Judéia. Surgiram diversas tensões até que no ano 66 d.C. houve uma disputa entre gregos e judeus em Cesareia que levou a uma cruel demonstração de força por parte do procurador Géssio Floro. Os zelotes conquistaram a fortaleza de Massada massacrando a sua guarda romana. O sacerdócio de Jerusalém deixou de oferecer os sacrifícios em favor do imperador, 13 14 STAMBAUGH, John E. & BALCH David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. p. 21. STAMBAUGH, John E. & BALCH, David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. p. 21. 16 juntando-se à revolta, o que significava declaração de guerra contra o Império Romano. Em 68 d.C. Vespasiano e seu filho Tito reassumiram o controle de todo o território com exceção do leste da Judéia. Em meados do ano 70 d.C. Tito conquistou a colina do Templo, entrou no Santo dos Santos, apossou-se dos paramentos sagrados para adornar seu triunfo em Roma, mandou destruir as muralhas da cidade e o recinto do Templo, incendiando-o em seguida. A destruição do Templo, a supressão do sacerdócio e do Sinédrio significaram uma virada catastrófica na história judaica. Os sacrifícios não puderam mais ser feitos e se mantiveram apenas na memória do povo judeu. Os fariseus, devido a sua grande penetração popular, permitiram ao povo sobreviver sem Templo após a sua destruição porque surgira a sinagoga como centro agregador, onde a Lei era ensinada pelos escribas de orientação farisaica. Lutaram para manter a memória das velhas tradições e adaptá-las às novas circunstâncias, enquanto os zelotes buscaram consolo na expectativa de um Messias que haveria de restituir o poder aos judeus. Tanto uns como outros esperavam a reconstituição do sacerdócio e o culto pleno em Jerusalém. 1.2. As origens de Jesus de Nazaré Jesus nasceu dentro da religião judaica do século I e segundo as várias correntes da tradição do Novo Testamento ele foi conhecido em vida como sendo da linhagem de Davi. No Antigo Testamento o pai legal é o pai real, mesmo que não tenha gerado fisicamente o filho. Nesse caso a linhagem de José é que determina a de Jesus.15 O que sabemos do nascimento de Jesus encontra-se nas Narrativas da Infância nos capítulos 1 e 2 de Mateus e Lucas. Em Mt 1, 18-25 José coloca no menino o nome de Jesus e como José é descendente de Davi, torna-se juridicamente seu pai, inserindo-o na genealogia davídica. O objetivo de sua narração é 15 MEIER, John P. Um judeu marginal. v. I p. 217. 17 “manifestar que o Cristo é o Messias davídico que nele se cumprem as profecias e talvez mais profundamente, que ele é o “Novo Moisés” revelador de Deus e condutor do povo escatológico”.16 O anúncio e o nascimento de Jesus são relatados pelo evangelista Lucas (12), que estabelece um paralelo entre a infância de Jesus e a de João Batista, sempre procurando ressaltar a função salvífica de Cristo. As palavras da anunciação, ditas pelo anjo, a reação da Virgem e a saudação do anjo Gabriel são formuladas em estreita ligação com palavras semelhantes ou iguais, proferidas em semelhantes situações no Antigo Testamento. A concepção de Jesus por obra e força do Espírito Santo quer relacionar Jesus Salvador com outras figuras libertadoras do Antigo Testamento, que pela força do mesmo Espírito foram instituídas em sua função. Os Evangelhos depois da narração das origens silenciam a respeito da infância de Jesus. Lucas apenas observa que ele crescia em idade, sabedoria e graça (2,40). Este crescimento atinge a Jesus em todo o seu ser humano e deve-se levar em conta a lucidez manifestada por Jesus diante dos doutores e a consciência de estar ligado a seu Pai. Mateus nada diz sobre os trinta anos de sua vida em Nazaré, enquanto Lucas relata o episódio em que Jesus aos doze anos após a festa da Páscoa é encontrado discutindo com os doutores. Quando Jesus se perde no meio da multidão anuncia aos seus pais algo da grandeza do seu mistério pessoal e depois se lança na obediência cotidiana e da vida simples durante muitos anos. Só se sabe algo a respeito dele quando, já bem assimilado a seus compatriotas, suscitou a incredulidade ao iniciar o exercício do papel do profeta (Lc 4,16-30).17 Nos anos que antecederam a sua vida pública, Jesus viveu como um homem comum de Nazaré e deste modo ele participava da raça, do meio ambiente, da mentalidade de sua época e das aspirações de seus compatriotas, de suas esperanças e seus limites. Há no Antigo 16 17 DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático. v.1. O homem Jesus. São Paulo: Loyola, 1977. p. 27. Cf. DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático. v.1. O homem Jesus. p. 36 18 Testamento, em Js 19, 10-15 uma lista de todas as cidades da tribo de Zabulon, mas não há nenhuma referência a Nazaré. Constata-se também que esta localidade também não é mencionada por Flavio Josefo,18 um dos responsáveis pelas operações militares nessa área durante a Guerra dos judeus. Ele cita o nome de 45 cidades da Galiléia, mas não menciona Nazaré uma única vez. Esta cidade “nunca foi mencionada pelos rabinos judaicos na Misná19, nem no Talmude quando se refere a sessenta e três outras cidades da Galileia”.20 Esta pequena localidade judaica só era lembrada quando deixava de pagar os impostos ou quando era preciso acabar com rixas locais. Seus habitantes eram vistos com preconceito, e daí decorre a citação de Jo 1, 45-46 que termina com a pergunta de Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?”. A pequena vila de Nazaré no período romano era o lar de Jesus. As famílias dos camponeses se dedicavam ao cultivo de grãos, olivas e uvas, produtos apreciados no Mediterrâneo e que garantiam a autosuficiência dos antigos agricultores. Nos campos também se cultivavam o trigo, a cevada e o milho miúdo que após um processo de seleção era armazenado nos pátios das casas de família. Plantavam-se legumes e vegetais e praticava-se a irrigação para aumentar a colheita de grãos e o plantio de figueiras e pés de romãs. A oeste do vilarejo havia uma fonte de água corrente, o Poço de Maria que levava água até os confins da pequena cidade e permitia que os habitantes a utilizassem nas plantações caseiras. Os 18 Flávio Josefo foi um historiador judeu que nasceu em 37/38 d.C. e faleceu após o ano 100 d.C. Filho de sacerdote, era fariseu de família abastada e tornou-se comandante na Galileia durante a Guerra Judaica contra Roma, quando foi preso pelos romanos. Depois foi libertado por Vespasiano e viveu como protegido dos flavianos em Roma, onde compôs seus escritos históricos e apologéticos. Obras: Guerra Judaica, Antiguidades Judaicas e Testimonium Flavianum, obra cuja autenticidade é questionável. Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. p. 84. 19 Misná é o código oficial da lei rabínica composto na Palestina em torno do ano 200 d.C. por Judá, o Patriarca. O título vem de um verbo que significa “repetir”, isto é estudar e transmitir a tradição. Este radical também gerou a palavra “tanaim” que designa os “repetidores”, que desempenhavam a mesma atividade nos dois séculos anteriores. O código contém 63 tratados, organizados em seis ordens ou divisões, mas só é citado através dos tratados. Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês do Mediterrâneo. São Paulo: Imago, 1994. p.178. 20 Cf. CROSSAN, John Dominic & REED Jonathan L. Em busca de Jesus:debaixo das pedras,atrás dos textos. p. 64. 19 agricultores esperavam ganhar a vida, pagar os impostos, guardar alimento suficiente para viver e evitar a atenção dos oficiais do império. A baixa densidade populacional é explicada pelo caráter agrário do lugar, que exigia espaços amplos entre as casas para a criação de animais domésticos e seus abrigos, bem como para jardins e pomares e guarda de utensílios agrícolas para uso comunitário. Supõe-se que os habitantes eram na maioria de clãs ou famílias estendidas que moravam em casas simples, construídas de pedras brutas empilhadas umas sobre as outras, revestidas de argila ou lama e até mesmo de esterco misturado com palha para isolamento térmico como em outras pequenas cidades da Galileia e de Golan. Inúmeras casas de Nazaré possuíam cavernas que serviam para amenizar os efeitos da temperatura: secas e quentes nos invernos chuvosos e frescas e agradáveis nos verões quentes. Acredita-se que os moradores guardavam as tradições judaicas, celebravam a Páscoa, descansavam no sábado e valorizavam as tradições de Moisés e dos profetas. Os habitantes de Nazaré no tempo de Jesus viviam à sombra de Séforis, uma importante cidade administrativa que as autoridades asmonianas fortificaram com a finalidade de melhor vigiar os vales e controlar as rotas comerciais. Os romanos aí criaram um conselho judaico e Herodes Antipas a transformou na maior cidade da Galiléia, elevando-a à categoria de capital das terras que herdara de seu pai.21 As fontes da história de Jesus se encontram quase exclusivamente nos quatro Evangelhos. As fontes não-cristãs permitem no máximo reconhecer a existência de um personagem de nome Jesus, crucificado na Palestina sob o reinado de Tibério.22 Os detalhes da existência e da doutrina de Jesus de Nazaré encontram-se nos Evangelhos e nos demais escritos do Novo Testamento, os quais nos permitem atingir Jesus em sua plenitude, embora os Evangelhos não pretendam fornecer um relatório exaustivo da vida do Salvador. Acredita21 22 Cf. CROSSAN, John Dominic & REED, Jonathan L. Em busca de Jesus. p.77 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier s.j. Os Evangelhos e a história de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1972. p. 35. 20 se que a tradição oral ultrapassa a escritura em que foi encerrada. Os Evangelhos nada dizem sobre a família do Salvador, as diversas ocupações de Jesus entre os doze e os trinta anos, os nomes dos magos, o do bom ladrão, o do centurião que abriu o lado de Jesus. A família de Jesus está ligada aos costumes religiosos do seu povo e ele foi marcado pelo seu meio-ambiente, por seu relacionamento com o Templo e pelo respeito à Lei. Na época de Jesus a Lei é a expressão da vontade de Deus, organiza e subentende toda a vida da sociedade judaica. Ser piedoso significava cumprir exatamente a lei e não desprezar nenhum dos preceitos nela contidos, mesmo os menores.23 Jesus embora não o declare, é livre diante da Lei. Esta atitude prática que está na origem de suas controvérsias com os fariseus provoca uma crise no interior da própria religião fazendo com que elas assumam um lugar tão grande nos Evangelhos. Quando os fariseus acusam os discípulos de não respeitarem as observâncias rituais (Mc 7,2) e de não respeitarem o sábado, Jesus mostra que tais atitudes têm pouca importância (Mt 12, 1-8), uma vez que, a interpretação do mandamento de Deus não pode servir para prejudicar o próximo. Jesus ao ser censurado pelos fariseus de violar o sábado (Mt 12,9-14; Lc 13, 10-17; Jo 5,9) mostra que o “sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado ( Mc 2,27) e que o Filho do Homem é senhor do sábado” (Mc 2,27).24 1.3. Contexto religioso da época de Jesus No tempo de Jesus, Israel se constitui como uma teocracia e assim “é o clero que, em primeiro lugar, compõe a nobreza e, no período em que não há rei, o pontífice em exercício é a personagem mais importante do povo”.25 Sua função o habilitava a cumprir a expiação pela 23 Cf. DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio Dogmático I. O homem Jesus. p. 100. Cf. DUQUOC, Christian. Cristologia : ensaio Dogmático I. O homem Jesus. p.101. 25 JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1996. p. 207. 24 21 comunidade enquanto mandatário de Deus e, devido ao “caráter de natureza cultual que lhe conferia o cargo, sua morte expiava as faltas de homicídios cometidos por negligência”.26 O sumo sacerdote gozava de privilégios no campo cultual e somente ele podia penetrar no Santo dos Santos uma vez por ano. Presidia o Grande Sinédrio, a corte suprema de Israel e mesmo após a sua deposição conservava o título e o seu prestígio. Para o exercício do seu cargo o sumo sacerdote devia observar rigorosamente as prescrições de pureza que tinham por finalidade preservar a aptidão ritual para o culto e garantir para a sua descendência a pureza de origem, porque, segundo a Lei, sua função era hereditária. Além da função de sumo sacerdote, os membros do clero ocupavam cinco postos principais. O primeiro deles era o de comandante do Templo, responsável pelo culto e pela ordem externa. Esse era escolhido entre as famílias da aristocracia sacerdotal e podia substituir o sumo sacerdote caso houvesse algum empecilho no exercício de sua função. Outro posto era o dos chefes das seções hebdomadárias, em número de vinte e quatro que regulavam o revezamento. Havia também os chefes das seções cotidianas em número de cento e cinqüenta e seis que participavam das quatro a nove seções diárias da semana. Os tesoureiros em numero de três cuidavam de todas as operações financeiras, da administração do Templo e do seu tesouro. Os vigilantes em número de sete, detinham as chaves do Templo e fiscalizavam o santuário. Os chefes dos sacerdotes constituíam um colégio autônomo com atribuições para assuntos do Templo e do clero. Eram membros da aristocracia sacerdotal e criaram muitas oposições com os sacerdotes nos tempos que precederam à destruição do Templo. Muitos chefes dos sacerdotes praticavam atos de violência, apropriavam-se do couro das vítimas que eram repartidos entre os sacerdotes das seções cotidianas do serviço, 26 JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 210. 22 praticavam a força e o nepotismo e seus servidores roubavam o dízimo das eiras dos camponeses que era destinado aos sacerdotes.27 Os sacerdotes comuns, divididos em vinte e quatro classes, viviam dispersos na Judéia e na Galiléia e somente vinham a Jerusalém quando era a sua vez de fazer o serviço sacrifical. Eles recebiam o dízimo e outras taxas particulares, insuficientes para a sua manutenção, pois o povo em geral não conseguia pagar integralmente as pesadas contribuições para eles e para a manutenção do culto, além das altas taxas ao Estado ou fazia de modo insuficiente, de modo que as taxas destinadas aos sacerdotes não eram sequer entregues. Os fiéis observadores da Lei que cumpriam suas obrigações com rigor constituíam um número muito reduzido. Os sacerdotes eram obrigados a exercer uma profissão onde residiam e raramente desempenhavam uma função sacerdotal. O baixo clero era constituído pelos levitas que, considerados inferiores aos sacerdotes, não participavam do serviço sacrifical. Os levitas eram encarregados somente da música do Templo e dos serviços inferiores do santuário, sendo-lhes proibido sob pena de morte, penetrar no edifício do Templo (Nm 18,3). Tanto o cargo de sacerdote como o cargo de levita transmitiam-se por herança e, portanto, não podia ser adquirido por outra via. O Alto Conselho de Jerusalém ou Sinédrio era a mais alta instância governamental da procuradoria para a política interna, compreendido como Senado das cidades da Judéia. Historicamente “provém da Reunião dos notáveis que surgiu após o cativeiro da Babilônia”.28 No ano de 200 a.C., com a tomada dos selêucidas, o Sinédrio tornou-se uma representativa assembléia de judeus anciãos, nos mesmos moldes das assembléias das cidades gregas e do Senado romano. 27 28 Cf. JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 249 REICKE, Bo. História do tempo do Novo Testamento. p. 162. 23 O Sinédrio era composto de 71 membros: o sumo sacerdote, os sumos sacerdotes depostos, os anciãos, os sacerdotes saduceus, os escribas e fariseus. O cargo de sumo sacerdote na sua origem era vitalício, mas na época de Jesus, Herodes, para destruir a importância da função pontifical, passou a nomear sumo sacerdote qualquer membro da família sacerdotal comum e o cargo deixou de ser vitalício e hereditário. O Grande Conselho representava o poder em todos os seus aspectos: político, ideológico, econômico, espiritual e religioso. Exercia a autoridade no território da Judeia, “mas sua autoridade moral se estendia a todas as comunidades judaicas tanto na Galileia como no estrangeiro”.29 O Sinédrio tinha competência para tomar decisões judiciais e medidas administrativas de toda ordem, com exceção daquelas incluídas nas competências dos tribunais inferiores ou reservadas ao governador romano. Possuía uma “força policial independente e tinha direito a executar detenções e prisões”. No entanto, “os estudiosos não chegaram a nenhum acordo se as autoridades de Jerusalém tinham ou não o poder de executar criminosos condenados”.30 A nobreza leiga era composta pelos anciãos, isto é, os chefes das famílias leigas mais influentes, que representavam sua classe e tinham voz ativa no Sinédrio. No Novo Testamento, como representante desse grupo é citado José de Arimatéia (Mt 27,57). Uma grande parte da nobreza leiga era composta por saduceus. Após os anciãos situavam-se os escribas que dominavam a legislação religiosa e “eles são enquanto possuidores da ciência secreta de Deus, os herdeiros imediatos e sucessores dos profetas”.31 São servos de Deus ao lado do clero e congregam em torno de si muitos discípulos aos quais transmitem sua doutrina, revestindo-se de soberana autoridade. São qualificados pelo seu conhecimento da 29 MATEOS J. & CAMACHO F. Jesus e a sociedade do seu tempo. p. 19. STAMBAUGH John E. & BALCH David L. O Novo Testamento em seu ambiente social. p. 27 31 JEREMIAS J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 328. 30 24 vontade divina que anunciam ao ensinar, ao serem juízes e ao pregar. Eram chamados de “Rabi”, “Pai” e “Mestre” e nos banquetes oferecidos pelos notáveis em Jerusalém ocupavam os primeiros lugares (Mc 12,39), merecendo mais honrarias que os homens de mais idade e até mesmo dos pais. Ocupavam os lugares de honra na sinagoga e sentavam-se de costas para os armários da Torá, tornando-se visíveis a todos. Diante de tais fatos se deduz a repercussão dos ataques de Jesus contra eles. Os grupos religiosos da época de Jesus eram constituídos pelos fariseus, saduceus, essênios e zelotes. Os fariseus surgiram como grupo organizado no século II a.C., talvez provenientes dos assideus, como associação de judeus piedosos, homens extremamente devotados à Lei.32 Eram na maioria pessoas do povo, sem formação de escriba. A palavra “fariseu” significa os separados, quer dizer, os santos, a verdadeira comunidade de Israel.33 Em Jerusalém formavam comunidades fechadas, cujos membros viviam segundo os mandamentos religiosos dos escribas fariseus ou segundo as prescrições sobre o dízimo e a pureza. Em Jerusalém as comunidades farisaicas observavam regras precisas para admissão de seus membros, que passavam por um período de provação, durante o qual o postulante devia mostrar a sua aptidão no cumprimento das prescrições rituais. Após esta prova, o candidato comprometia-se a observar o regulamento da comunidade diante de um escriba e a cumprir as prescrições farisaicas sobre a pureza e o dízimo, tornando-se assim membro de uma associação com seus chefes e suas assembléias. Os fariseus supervalorizavam as boas obras, as prescrições da pureza, os jejuns, a oração e as esmolas. Jesus denuncia a hipocrisia deles por cumprirem com rigor as prescrições da pureza quando eles mesmos são interiormente impuros e por negligenciarem as exigências 32 33 Cf. JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 334. Cf. JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 333. 25 religiosas e morais da Lei (Mt 23,23; Lc 18,12). Muitas vezes os fariseus mostravam-se severos e orgulhosos perante a multidão que não observava as prescrições das leis religiosas. Segundo fonte semi-oficial havia mais de 6 mil fariseus na época de Herodes, o Grande, na assembléia do seu reino.34 Os saduceus formavam um grupo organizado e possuiam uma halaká (tradição) baseada na exegese da Escritura, cujos princípios deviam orientar a vida de seus membros. Seguiam estritamente a letra da Torá, principalmente as suas prescrições sobre o culto e o sacerdócio e tinham o seu próprio código penal com exigências muito severas. Constituíam o Sinédrio com os sacerdotes de alta classe e suas relações com as ricas famílias patrícias, representavam um fator muito influente na vida da nação. Adaptavam-se ao domínio romano contanto que pudessem manter a situação em que se encontravam e pudessem conduzir a administração religiosa e política do país. Rejeitavam a doutrina farisaica da ressurreição dos mortos, os prêmios da vida futura e negavam a existência de anjos e espíritos. Os essênios provenientes dos assideus da época macabéia (1Mac 2,42), observavam severas prescrições rituais e formavam uma comunidade fechada como demonstra o Documento de Damasco.35 Após os exames para o ingresso nesta comunidade, os candidatos tomavam conhecimento das disposições jurídicas secretas da comunidade, prestavam um juramento de entrada e eram incluídos na lista de membros. As faltas graves eram punidas por uma exclusão temporária ou definitiva Para os essênios somente a História Sagrada dos judeus tinha a força da autoridade. Eles orientavam-se de acordo com o ideal sacerdotal, deviam praticar a ascese, cumprir a Lei de modo mais rigoroso e exercer o autodomínio. Viviam em comunidades sob a direção de 34 Cf. JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. p. 340. Documento de Damasco - obra conhecida desde 1896/1897 quando dois manuscritos foram encontrados em uma antiga sinagoga do Cairo. Nove cópias deste documento foram encontradas em Qumrã em 1947, uma obra criada pela comunidade dos essênios, que se compõe de uma exortação e de uma lista de estatutos. 35 26 um sacerdote, praticavam a comunhão de bens e na maioria eram celibatários, embora alguns se casassem para manter a descendência. Trilharam caminhos semelhantes aos dos fariseus, pois viviam em comunidades e consideravam os exegetas como autoridades. Trabalhavam no campo para o sustento da comunidade, cultivando a terra e cuidando do gado. Nos dias de festa usavam vestes brancas sacerdotais, participavam dos banhos sagrados de imersão, das ceias e horas de oração. Os zelotes surgiram na Galileia no ano 6 d.C. após a deposição de Arquelau quando a Judeia e a Samaria passaram para a administração romana direta. . Eles ardiam de zelo pela lei de Moisés e mais tarde este grupo soava mais ou menos como anarquista (Mc 14,70; Mt 26,09; Lc 13, 1s; 22,59; At 5,37). Tinham um programa de reforma do culto no Templo e do sacerdócio e pretendiam fazer chegar o reino de Deus pela violência utilizando os mesmos meios dos adversários romanos. Os zelotes eram recrutados entre aquelas pessoas que foram excluídas da participação na riqueza nacional por terem sido expropriados de seus meios de produção e que, por isso, aderiam à luta armada contra a aristocracia local e o império romano. O confronto era usado como meio de estabelecer o reino de Deus e a libertação do povo de Israel. Além das classes mencionadas acima, compunham o povo de Israel os israelitas de origem pura, os israelitas ilegítimos, os escravos judeus, os escravos pagãos e os samaritanos. O judaísmo no tempo de Jesus era uma religião monoteísta, centrada no Templo de Jerusalém, onde Deus permitiu ser cultuado de forma exclusiva, sem imagem divina. Entre esse Deus e Israel há uma relação especial: uma aliança. Pela eleição, Deus fez desse povo sua propriedade – nos atos fundamentais do estabelecimento da aliança, do chamamento de Abraão, do êxodo e da entrega da lei no Sinai. A aliança é puro 27 presente. A Torá foi dada para que o povo pudesse permanecer na aliança – não para criá-la pelo cumprimento dos mandamentos. 36 A Torá legisla sobre roubo, violação, homicídio e muitas outras matérias civis ou criminais, bem como sobre questões religiosas que “abrangiam, para começar, o Templo e seus sacrifícios, o dízimo, taxas de culto e outras contribuições a sacerdotes e levitas”.37 Além do Templo de Jerusalém, onde o sumo sacerdote realizava o culto sacrifical para fazer a expiação pelo povo, os judeus desenvolveram o culto da sinagoga, na qual a Escritura era lida e interpretada. A reunião era celebrada no sábado com o objetivo de instruir o povo na Lei mediante seu ensinamento e explicação. O serviço religioso começava com a recitação do texto: “Escuta, Israel” (Dt 6,4-5), prosseguia com a oração pública dirigida por um dos membros da reunião, fazia-se a leitura da Lei e dos Profetas e terminava com a bênção, quando havia um sacerdote ou, na ausência deste o sacristão recitava a fórmula. Exceto aos sábados, a sinagoga funcionava como escola para as crianças e havia círculo de estudos para que os jovens adquirissem conhecimento das Escrituras. Além da Torá os escribas estudavam e ensinavam muitos textos, desenvolvendo atividades que exerciam influência decisiva na orientação do povo. Trata-se dos textos da Sabedoria, da Apocalíptica e dos Targuns.38 O chefe da sinagoga, eleito provavelmente entre os anciãos, supervisionava o serviço religioso e se encarregava dos serviços da sinagoga. Havia o encarregado de receber as esmolas e também o servente ou sacristão que preparava os textos sagrados para o serviço religioso e anunciava com o toque da trombeta o começo e o fim do sábado. 36 THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. p.149. VERMES, Geza. A religião de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. pp.19-20. 38 Targuns são as traduções dos textos sagrados da Lei e dos Profetas, originalmente escritos em hebraico e traduzidos para a língua do povo. 37 28 São encontradas referências à presença de Jesus especificamente na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,21; Lc 4,31) e de Nazaré (Lc 4,15), onde era conhecido como mestre e pregador de grande originalidade. Jesus frequentava a sinagoga para abrir a mentalidade do povo com seu ensinamento e afirmar a possibilidade de mudança. As atitudes de Jesus nas sinagogas provocaram conflito, chocando-se com os interesses da instituição (Mc 3,1-7; Lc 13,10-17) ou com o fanatismo do povo (Mc 1,21b-28). É nesse contexto que Jesus será ameaçado de morte (Mc 3,6; Lc 4,16-30). O modelo de conduta apresentado ao povo era o do legalismo farisaico que cerceava toda e qualquer iniciativa e anulava a liberdade humana, sobrepondo a observância da Lei acima das necessidades do homem. Jesus censura os fariseus mostrando-lhes que seu rigor contradiz os dados da Escritura (Mc 2,23-26). Ele enuncia dois princípios: o primeiro válido para a antiga aliança: o homem não é escravo do preceito, mas o preceito é que é dado para o bem do homem (Mc 2,27); o segundo válido para a sociedade nova, em que o Homem, dotado de Espírito, está como o próprio Deus, acima de todos os preceitos (Mc 2,28 par.).39 Deste modo a ação de Jesus tem como finalidade romper as barreiras religiosas e sociais e tornar os homens livres para formar uma nova sociedade. O Templo segundo a tradição bíblica é a casa do Senhor Deus, mas esta função aparentemente foi esquecida e transformou-se em um centro econômico, foco de exploração e de corrupção, depósito de riquezas e casa de agiotas. Quando Jesus expulsa os mercadores do Templo ele tem a intenção de denunciar a divergência entre a ortodoxia e ortopraxia: prega-se 39 MATEOS, J. & CAMACHO F. Jesus e a sociedade do seu tempo. p. 70. 29 a santidade, mas na prática não se respeita esta santidade. A crítica de Jesus está na mesma linha do questionamento feito pelos grandes profetas do Antigo Testamento (Am 5,21-25; Jr 7,3ss; Zc 14,21).40 A ação de Jesus é um protesto contra o abuso do dinheiro e do comércio. É uma ação simbólica de cunho profético com vista à eliminação de deturpações do culto sacrifical e dos abusos cometidos com a anuência das autoridades responsáveis. Segundo a representação geral de Jesus nos Evangelhos Sinóticos, ele era um judeu que observava as principais práticas religiosas de sua nação. Em obediência à lei bíblica, ia à Jerusalém nas principais festas religiosas e visitava o santuário, “onde a atmosfera profana que reinava na área dos mercadores o incitou a uma intervenção violenta que pode ter contribuído substancialmente para decidir o seu destino”.41 Jamais Jesus foi visto tomando a iniciativa de negar ou fazer alterações substanciais em qualquer mandamento da Torá em si. Diante de situações conflitantes, como por exemplo, quando seus discípulos colhem espigas de milho para saciar a fome (Mc 2,23-25; Mt 12,3-4; Lc 6,34) ou quando faz curas no sábado Jesus se orienta pelo princípio geral de que salvar vidas é sempre a prioridade. Jesus e seu movimento fazem parte de uma extensa corrente de renovação dentro do judaísmo. Tal movimento surgiu com a tomada do poder pelos romanos e ao contrário de outros que esperam uma vitória de Israel sobre os gentios, seguida de uma mudança profunda, na tradição de Jesus o reinado de Deus fica aberto para o afluxo dos gentios.42 Encontramos em Jesus uma interpretação radical da Torá compreendida como normas éticas e gerais em detrimento de normas rituais e regras relativas à pureza; uma atenção para os excluídos que ficavam na periferia da sociedade e a ênfase num Deus misericordioso que acolhe a todos. O 40 VOLKMAN, Martin. Jesus e o Templo. Uma leitura sociológica de Marcos (11,15-19) S. Leopoldo: Ed. Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1992. p. 32. 41 Cf. VERMES, Geza. A religião de Jesus, o judeu. p. 21. 42 Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. p. 167. 30 movimento de Jesus se caracteriza por uma forte ação integradora, evitando o protesto direto contra os governantes estrangeiros e estimulando a tradição judaica universalista da peregrinação dos povos a Sião (Mt 8,10 s). 1.4. A pregação de João Batista e o batismo de Jesus O aparecimento e a atuação de João Batista segundo os evangelhos precederam a história de Jesus.43 Situado no deserto, fora da sociedade e das instituições judaicas, João exorta as pessoas a mudar de vida (Mc 1, 4-8) e fundamenta sua exortação afirmando que o reino de Deus, a esperança do povo judeu estava às portas (Mt 3,2). Proclama a necessidade de mudança de vida para alcançar de Deus o perdão dos pecados. Enquanto na doutrina oficial as pessoas deveriam ir ao Templo para obter o perdão, João prescinde do Templo e das instituições religiosas e promete o perdão no deserto. O chamado de João é um convite a romper com a sociedade judaica tradicional, despertando o anseio de mudança, fazendo com que o povo tome consciência da injustiça existente e afaste-se dela. Esta libertação só podia realizar-se começando pela mudança pessoal.44 O clamor de João pregando a penitência renova a mensagem dos profetas apocalípticos do Antigo Testamento que o precederam dando-lhe um caráter particular que apresenta a proximidade urgente do reino de Deus e o inquietante “já” da hora presente. A conversão significa não apenas uma mudança de mentalidade ou a simples renovação individual do homem no seu interior, mas dar lugar na própria existência à transformação do mundo que há de vir.45 43 Cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. p. 86. Cf. MATEOS, J & CAMACHO, F. Jesus e a sociedade do seu tempo pp. 47-48. 45 Cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. p. 88. 44 31 O batismo de João deve ser entendido com vistas ao fim do mundo e ao juízo. Tem o sentido de um sacramento escatológico que dependendo da disposição do batizado atua como batismo de conversão e prepara para o batismo do Messias preservando o homem do futuro juízo de condenação.46 Jesus embora fosse sem pecado e não tivesse necessidade de receber um batismo de penitência se submete ao batismo de João. Nesse momento o Espírito dá testemunho de sua eleição divina (Jo 1,29-34). A significação teológica do episódio está no laço entre o ato penitencial de Jesus e a declaração de sua investidura messiânica. Jesus convida a uma nova relação Pai-filho e apresenta Deus como princípio de vida e de amor que se comunica ao homem e este deve assemelhar-se cada vez mais a Deus, seu Pai. Deus não se impõe ao homem de fora para dentro, como era o caso do Deus da Lei, mas o fortalece interiormente.47 Para Jesus, o pecado consiste em impedir a realização do desígnio divino, a plenitude humana. O desígnio de Deus se expressa na aspiração do homem pela própria plenitude que está enraizada na profundidade do seu ser. O pecado é tudo o que impede o pleno desenvolvimento do homem: o egoísmo, a opressão, a fome, a ignorância, a privação da liberdade; isto é, a repressão da vida (Jo 1,4). O pecado do mundo a que João se refere (1,29) é opção que frustra o projeto de Deus sobre os homens e concretiza-se na adesão aos falsos valores incorporados nos sistemas sociais ou religiosos, os quais privam o homem da vida. Jesus liberta a humanidade deste pecado. No batismo do Jordão, Deus se revela como Pai e declara Jesus Filho, Rei e Servo, uma clara alusão aos textos do Antigo Testamento. Como Filho de Deus (Sl 2,7), Jesus é aquele que tem o Espírito de Deus e se comportava como o próprio Deus, sendo sua presença na terra; a figura do Rei-Messias (Sl 2,2-7) encarnava a salvação para Israel; a do Servo, a 46 47 Cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré. p. 89. Cf. MATEOS, J & CAMACHO F. Jesus e a sociedade do seu tempo. p. 72 32 salvação de todas as nações (Is 42,1-4.6; cf. Mt 12,17-21) e indicava entrega e sofrimento (Is 53,3-12).48 A missão simultânea de Jesus como Rei e Servo será a de implantar a justiça e defender o pobre e o explorado (Sl 72, 1-4. 12-14; Is 42,1-4.6; 49,9-13). Após o batismo, o Espírito conduz Jesus para o deserto, para ali ser tentado pelo demônio (Mt 4,1) ou o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1,12). Para Marcos não é com a finalidade de ser tentado que Jesus vai ao deserto, mas o tentador talvez se aproveite da solidão ou do cansaço físico para tentar seduzir o Cristo. Jesus superou todas as tentações, retornou a Galileia e deu início a sua vida pública. 1.5. O movimento de Jesus A atuação pública de Jesus se inicia logo após a atuação de João Batista. Segundo Gerd Theissen, o fenômeno mais marcante do movimento de Jesus é o desenraízamento social dos carismáticos itinerantes49, que consiste no abandono do lugar tradicional de residência e uma repulsa mais ou menos forte às normas usuais.50 Este fenômeno é claramente atestado pelos evangelhos. Pedro diz em nome de todos os discípulos: “Eis que nós tudo deixamos e te seguimos”(Mc 10,28). Ao lado dos Doze apóstolos, estava o círculo dos sete em Jerusalém (At 6,5) e o grupo dos cinco em Antioquia (At 13,1). Lucas relata também o envio de setenta carismáticos que deveriam observar as mesmas normas que os Doze (Lc 10,1 ss; 9,1 ss). Os 48 Cf. MATEOS, J & CAMACHO, F. Jesus e a sociedade do seu tempo. p. 52. Carismático é alguém dependente das expectativas, esperanças e aprovação das pessoas que estão à sua volta. O carisma sempre se desenvolve em interações, sendo aplicado a certo tipo de personalidade individual, por força do qual ele é considerado extraordinário e tratado como dotado de poderes e qualidades sobrenaturais, sobre-humanas ou excepcionais. Tais poderes são considerados como de origem divina e com base neles o indivíduo que demonstra possuí-los é tratado como líder. Não há sistema de regras formais ou de princípios legais e os julgamentos concretos são feitos caso a caso e são originalmente considerados juízos divinos e revelações. Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. Jesus histórico. Um manual. p. 211.Além dos autores citados, o historiador judeu Geza Vermes também apresenta Jesus como autoridade carismática do seu tempo. In: VERMES, Geza. A religião de Jesus, o judeu. p. 70. 50 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 33. 49 33 apóstolos não são somente os Doze, mas também Paulo e Barnabé (At 14,14), Andrônico e Júnias (Rm 16,7) e cada missionário que segue o ensino do Evangelho em suas viagens.51 A partir do século II a.C. houve uma corrente de movimentos de renovação dentro do judaísmo que se desenvolveu na Palestina como reação ao helenismo. Mas essa cultura ao invés de desaparecer após um período de estagnação, sob a intervenção dos romanos passou a expandir-se sem resistência no Oriente apoiada na disciplina militar das legiões e alcançou o seu ápice no domínio de Herodes I, o Grande. A helenização forçada promovida por ele provocou o aparecimento de forças de oposição, fazendo com que o judaísmo vivenciasse uma seqüência de catástrofes que culminou na destruição do Templo no ano 70 d.C.52 O movimento de Jesus é precedido por movimentos messiânicos e revolucionários que surgiram após a morte de Herodes, o Grande e pelo movimento de Judas Galileu, com a destituição de Arquelau em 6.d.C.quando a Samaria e a Judéia ficaram sob a administração direta de Roma. Esses grupos eram motivados por sentimentos messiânicos e esperavam a intervenção divina como solução para os seus conflitos. Com a diáspora, judeus se dispersaram no estrangeiro como mercenários, escravos, fugitivos ou pessoas sem recursos à procura de sobrevivência. Pouco antes da atuação de Jesus, havia na Galileia muitas pessoas despossuídas e até mesmo apátridas. Supõe-se que a comunidade de Qumrã, junto ao Mar Morto, tenha recrutado seus membros entre elas. Praticava-se a comunhão de bens de modo que ninguém possuísse mais que os outros. Os bens necessários à vida eram produzidos numa comunidade de trabalho isolada, da qual cada membro individual era inteiramente dependente. As transgressões contra as normas eram punidas com duras sanções materiais que consistiam em exclusão temporária, no corte dos 51 52 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p. 34. Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. p. 151. 34 alimentos em 25% ou em expulsão da comunidade, o que significava uma ameaça à sobrevivência visto que era proibido aceitar alimentos de estranhos.53 Os numerosos profetas ativos do século I d.C. anunciavam uma repetição dos grandes milagres da Velha Aliança e conduziam ao deserto, pessoas reunidas entre o povo simples e sem recursos que se tornavam seus seguidores. No tempo de Jesus havia muitas pessoas desarraigadas na Palestina, prontas para deixar seu local tradicional de moradia e entre elas situavam-se os discípulos de Jesus. Em todos os movimentos de renovação intrajudaicos, recrutados dentre os socialmente deslocados existiam várias intenções de criticar a riqueza e a propriedade. Os militantes defendiam uma distribuição revolucionária dos bens na sociedade e reagiam diante do perigo de deterioração de sua situação de pobreza e miséria, aspirando a um melhor padrão de vida. Após os distúrbios das guerras civis, Herodes implantou também na Palestina a Pax Romana da era de Augusto com a intensificação do comércio e o aumento do consumo como decorrência do aumento da produtividade e dos lucros procedentes das áreas rurais. Novas terras foram ocupadas e houve uma imensa atividade construtora. Melhorou a situação da classe alta enquanto piorou a situação das pessoas humildes. Os processos de ascensão e declínio abalaram valores e normas tradicionais, suscitando anseios de renovação.54 Ao movimento de Jesus aderiram tanto membros simpatizantes da camada alta, como por exemplo, a mulher de Cuza, o administrador de Herodes, um homem de confiança de Antipas (At 13,1), Zaqueu, chefe dos publicanos (Lc 19,1ss), como também pessoas dos segmentos sociais médios que estavam ameaçadas por endividamento e decadência: 53 54 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p. 37. Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p .65. 35 camponeses, pescadores e artesãos. Os motivos para abandonar tudo eram quase sempre de ordem econômica.55 O movimento de Jesus estava baseado inicialmente no campo e por isso nos Evangelhos, ouvimos muito a respeito de agricultores, pescadores, pastores e pouco de artesãos e comerciantes. A tradição sinótica refere-se à pequenas localidades, muitas vezes anônimas e silencia a respeito dos povoados maiores como Séforis, Tiberíades, Cana ou Giscala.. São raras as pessoas instruídas. Precisam ser chamadas de Jerusalém para atuarem na Galileia (Mc 3,22; 7,1). Os militantes da resistência demonstravam um temor explícito de entrar em contato com as cidades helenísticas.56 Também no movimento de Jesus percebia-se de início uma clara distância destas cidades e advertia-se contra a ida aos pagãos ou à cidade dos samaritanos (Mt 10, 5s). Diante de Jerusalém tem-se uma posição ambígua: por um lado ela se torna o centro do movimento e por outro, conta-se dela fatos maus: desde sempre matou os profetas a ela enviados (Lc 13,33 ss) e seu Templo foi transformado em um covil de ladrões (Mc 11, 15 ss) .57 Com a expansão do movimento de Jesus formou-se em Jerusalém uma comunidade local importante e, depois em Damasco, Cesaréia, Antioquia, Tiro, Sidônia e Ptolomaida (At 9; 10, 10,1 ss; 11,20 ss; 21,3ss; 27,3 ss). Como conseqüência da abertura para com as cidades helenísticas modificou-se a posição diante de Jerusalém Esta figurava como alvo de peregrinação escatológica de todos os povos, o Templo passaria a ser casa de oração de todos 55 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p. 43 Cidades helenísticas são aquelas do Antigo Oriente que receberam influência da cultura grega depois que Alexandre Magno conquistou a Palestina em 322 a.C. Com a mudança do domínio dos ptolomeus para os selêucidas a partir de 200 a.C. estagnou-se a helenização do Oriente. A intervenção dos romanos deu início a um segundo impulso rumo à helenização com a conquista da Palestina por Pompeu no ano 63 a.C. e essa cultura espalhou-se sem resistência pelo Oriente, alcançando seu ápice no domínio de Herodes I entre os anos 40 a.4 a.C. Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. Jesus histórico. Um manual. pp.151-152. 57 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p. 44. 56 36 os pagãos (Mc 11,17) e para as comunidades helenísticas a cidade santa continuava sendo o centro (1 Cor16,3; Rm 15,25). Em Jerusalém toda a população estava vinculada ao Templo por uma diversidade de interesses materiais fazendo com que houvesse uma conformidade parcial entre as classes dominante e baixa, uma vez que ambas se beneficiavam do status quo. Excluindo-se a época de festas, a cidade era relativamente tranquila. Somente nos dias de festa a guarnição romana era reforçada por mais uma coorte. O Templo além de se tornar o maior empregador de Jerusalém, proporcionava vantagens jurídicas para toda a cidade, sendo possível pleitear a redução de impostos. Uma vez o legado sírio Vitélio suspendeu o imposto de circulação sobre os produtos vendidos no mercado de Jerusalém e de outra Agripa I renunciou a um imposto de propriedade incidente sobre as casas da cidade santa. Estes fatos demonstram um privilégio da cidade sobre o campo como um prêmio pelo bom comportamento político. O movimento de Jesus evoluiu do movimento de João Batista, porém se distinguia dele em três pontos característicos: 1) enquanto o Batista vivia no deserto e as pessoas tinham que abandonar suas ocupações para chegar a ele, o movimento de Jesus procedia de outro modo: caminhava para a terra habitada, visitando o povo nos locais onde morava; 2) o traço ascético do movimento batista. João não comia nem bebia, ao contrário de Jesus (Mt 11,18 ss) 58. O profeta do Reino, de modo diferente do profeta da ira iminente, come e bebe. E deve tê-lo feito tão ostensivamente, que seus inimigos o acusaram de “glutão e beberrão”, segundo as palavras do próprio Jesus (Mt 11,19). A história nos diz sem qualquer dúvida: “Jesus se apresentou como o profeta da alegria. De uma alegria que se baseia nesse governo de Deus 58 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. pp. .85-86. 37 que já está à porta resplandece no modo de vida e nas ações maravilhosas de seu profeta”59 e 3) a compreensão do juízo e da graça. Para o movimento de João o arrependimento e o batismo eram a única salvação da condenação, enquanto Jesus não batizava e mostrava a irrupção do reino de Deus como um banquete de bodas, um tesouro no campo e pérolas. Jesus revela a misericórdia do Pai e o próprio chamado ao arrependimento pode ser motivado com o júbilo de Deus, que se alegra mais com um pecador que se arrepende do que com 99 justos (Lc 15,7).60 O grupo que compunha o movimento de Jesus se encontrava numa situação de exceção e marginalidade, acalentava a esperança de que sua proposta se expandisse em toda a sociedade e fosse capaz de realizar uma mudança total no mundo, inclusive na esfera ética. Diante da afirmação de que “a fé que transporta montanhas” (Mc 11,23) é lícito acreditar que também é possível a transformação do coração humano. Os seguidores de Jesus foram atraídos pela sua mensagem de reconciliação e amor transmitida nos Evangelhos, pelos ensinamentos contidos nas parábolas e pelo efeito encorajador dos milagres. Mas, a renovação dentro do judaísmo não foi atingida e o movimento de Jesus fracassou, provavelmente pela sua crítica ao Templo e a Lei e pela sua atitude diante dos estrangeiros, o que contrariava a postura dos judeus. Dentro da sociedade judaico-palestinense o movimento de Jesus sofreu uma seleção negativa, enquanto que na sociedade helenística foi aceito positivamente. Na transição do movimento de Jesus na Palestina para o cristianismo primitivo helenístico houve uma profunda reestruturação de papéis. No contexto palestinense as autoridades decisivas eram os carismáticos itinerantes ao passo que no âmbito helenístico o peso se transferiu para as comunidades locais e as pessoas de condição social superior tornaram-se personagens determinantes do cristianismo primitivo. As cidades em crescimento 59 60 SEGUNDO, Juan Luís. Que mundo? Que homem? Que Deus? São Paulo: Paulinas, 1995. p 313. Cf. THEISSEN Gerd. Sociologia do movimento de Jesus p. 86. 38 com levas de migrantes recém-chegados estavam mais abertas à nova mensagem que o campo. Esses grupos que ainda não tinham raízes muito profundas nas respectivas cidades podiam encontrar apoio e aconchego nas comunidades. Na transição do contexto palestinense para o helenístico o cristianismo teve que enfrentar correntes filosóficas, concorrer com outras religiões, confrontando-se com uma série de tradições, normas e valores. Tornava-se uma religião autônoma e trouxe de sua origem uma rica herança: o monoteísmo, um ethos de alta credibilidade, a agudeza da crítica profética e uma visão universal da história, em suma o Antigo Testamento com suas figuras grandiosas. No mundo helenístico a visão de amor e reconciliação gerada numa sociedade repleta de crises tinha mais oportunidades de realização social.61 1.6. Conclusão A descrição dos aspectos históricos da vida de Jesus teve como objetivo situá-lo no tempo e no espaço como um personagem real que teve uma existência concreta e a partir daí compreender a trama da sociedade em que ele viveu e morreu marcando a sua presença na história da salvação da humanidade. O nascimento de Jesus assim como o de João Batista segundo Lc 1,5 e Mt 2 situam-se no tempo de governo do rei Herodes (4 .C.) e através dos Evangelhos conhecemos os nomes de seu pai, José e de sua mãe, Maria bem como o nome de seus irmãos (Mc 6,1-4). O seu povo estava politicamente sujeito às leis do Império Romano representado na época do seu nascimento por Herodes e com a morte deste por Herodes Antipas, um dos seus herdeiros de seu pai. Quando Jesus morreu, o procurador romano da Judéia era Pilatos, que representava o imperador Tibério. 61 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. pp. 95-96. 39 Jesus como judeu estava arraigado no mundo de Israel e só pode ser entendido a partir do Antigo Testamento e do judaísmo. Ele deu continuidade a tradição das Escrituras judaicas tornando Yahweh acessível de uma maneira nova.62 Jesus manteve-se distante dos supremos detentores do poder religioso e político que só chegaram a vê-lo no final, na qualidade de réu. Ele estabeleceu múltiplas relações com o povo simples, explorado e empobrecido, ao qual mostrou sua compaixão e solidariedade. Ao mesmo tempo recebeu a adesão de pessoas das camadas sociais mais altas que também o seguiram. Acredita-se que desde a sua juventude Jesus tenha conhecido os zelotes63 e de modo semelhante a eles, defendia os explorados e criticava os poderosos, mas divergia deles em pontos essenciais: “ao fanatismo militante e a violência dos zelotes Jesus contrapôs à avaliação sóbria da situação (Lc 14,25-33; Mc 12,13-17 par.), renúncia à violência e amor ao inimigo (Mt 5,38-45 par.)”.64 Ele não foi um revolucionário e nem pretendente a Messias zelote. O tema do movimento de Jesus está fundamentado nos estudos recentes do Jesus histórico,65 nos quais ele é colocado no centro do judaísmo e espera a restauração do povo judaico. Nesse movimento se refletem as tensões características da sociedade judaica do século I d.C. Jesus é considerado como um carismático judeu e, após a sua morte, seus seguidores deram continuidade a difusão de sua mensagem na Palestina e nas cidades helenísticas, onde 62 Cf. KESSLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org). Manual de Dogmática. v. I.Petrópolis, Vozes, 2000. p. 238. 63 Formavam um movimento religioso que se opunha ao domínio dos romanos e de seus colaboradores judeus, surgido em 6 d.C nas proximidades de Nazaré. Cf. KESSLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org). Manual de Dogmática. v. 1. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 239. 64 KESSLER, Hans. D.Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org) Manual de Dogmática. pp. 237-241. 65 Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. pp. 28-29. 40 se formaram comunidades relativamente estáveis e resistentes a partir da mistura de grupos étnicos, sociais e religiosos.66 66 Cf. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. p. 93. 41 CAPÍTULO II O REINO DE DEUS COMO O CENTRO DA PREGAÇÃO DE JESUS 2. 1 A pregação de Jesus Após o batismo e a estada no deserto, Jesus inaugura a sua pregação na Galileia. Esta é a versão dos sinóticos, no entanto segundo a versão de Jo 3, 25-26 “se deve reconhecer, no início da vida de Jesus, um período de ministério nas margens do Jordão perto do Batista”.67 Tal indicação acentua a importância das relações de Jesus com o Batista especialmente situando sua atividade, sua maneira de agir e seu ensinamento em relação a João. A pregação de Jesus é o ato pelo qual a salvação se torna presente no meio dos homens. Jesus não é apenas aquele que prega o Evangelho, mas ele mesmo é o objeto do Evangelho. O testemunho de João Batista inaugura a mensagem de salvação que tem como conteúdo o próprio Cristo Após o início do ministério na Galileia, Jesus volta a Nazaré, onde é convidado pelo presidente da sinagoga a ler na Bíblia o texto de Isaías 61, 1-2, no qual o profeta descreve os sinais dos tempos messiânicos. Os compatriotas de Jesus sentem-se chocados ao descobrir nele um profeta, pois não haviam percebido este atributo durante a convivência com ele na infância e adolescência. 67 LÉON-DUFOUR, Xavier. Os Evangelhos e a história de Jesus. pp. 378-379. 42 O povo percebe em Jesus um profeta (Mc 8,28; Mt 21,46; Mt 21,11), mas permanece uma hesitação, pois, enquanto os profetas se referiam em sua pregação à autoridade de Moisés, Jesus não a contesta, mas coloca-se acima dela (Mt 5,21-48). O povo não se engana: “Ele ensina como alguém que têm autoridade e não como os escribas” (Mc 1,22). Jesus não procura justificar demasiadamente a própria pregação, mas fala em seu próprio nome: “Eu volo digo “(Mt 5,21).68 A origem da autoridade pessoal de Jesus é expressa nas narrativas evangélicas, cujo exemplo mais notável é a forma original de invocar a Deus como seu Pai, chamando-o de “Abba”, palavra que transmite a intimidade singular do relacionamento de Jesus com Deus, seu Pai. Mesmo que o termo tomado isoladamente não seja capaz de garantir uma filiação “natural” divina, mostra que a consciência de Jesus era essencialmente filial, isto é, ele sabia que era Filho de Deus.69 Toda a vida e a missão de Jesus se centralizaram em Deus e não nele próprio. Seu modo de ser, seu pensamento e suas atitudes, dão indícios de que Jesus tinha uma nítida consciência de sua identidade, mas para que ele tornasse compreensível a sua mensagem era necessário um lento período de preparação e uma pedagogia divina.70 Jesus interpretava a Lei nas sinagogas a maneira de um rabino, de modo que nem o povo nem os fariseus se enganavam. O reconhecimento de que ele ensinava com autoridade significa concretamente que dá prova de liberdade com relação à Escritura e à Tradição. Jesus apresenta a salvação e orienta os seus ouvintes para sua própria pessoa: “Bem-aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de tropeço” (Mt 11,6). Esse possível escândalo se dá 68 Cf. DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático v. 1. O homem Jesus. p.67 Cf. DUPUIS, Jacques. Introdução à Cristologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 70. 70 Cf. DUPUIS, Jacques. Introdução à Cristologia. p. 71 69 43 em virtude da aparência comum do reino que está ligado ao destino de Jesus, como se o seu destino e sua mensagem formassem uma só e mesma coisa.71 O modo de ensinar de Jesus diferia daquele dos rabinos da época. Além das sinagogas, ele ensinava nos campos, à beira do lago, no caminho, em casa, sendo seguido por mulheres e crianças, pessoas que ignoravam a Lei e mesmo por aqueles considerados pecadores.72 Jesus parte da experiência cotidiana, especialmente nas parábolas, para tornar acessível o sentido e a novidade de sua mensagem. Nas parábolas de forma velada Jesus identifica o destino do Reino com seu destino pessoal. O que está em primeiro plano não é Jesus, mas o reino, a presença da salvação. “A mensagem de Jesus é escatológica, mas a iminência da salvação por ele anunciada, a conversão por ele exigida e o ensinamento que ele dá a respeito de Deus não se podem separar de sua própria pessoa.”73 Desse modo quando Jesus explica a misericórdia de Deus está explicitando a sua própria conduta, que está de acordo com o espírito de Deus e em oposição às idéias tradicionais. “Entrar no espírito de Deus é ser salvo, é pertencer ao Reino, à era escatológica”.74 O centro da pregação de Jesus é a proclamação do reino de Deus, que se apresenta como uma forma alternativa de organizar a vida humana concretizada em novas relações políticas e religiosas. Ao proclamar o acesso de todos a Deus como “pai”, as relações humanas se horizontalizam, dissolvem-se as assimetrias que caracterizam o poder como domínio e se resolvem como relações de equidade.75 Toda a vida de Jesus reflete a sua missão de concretizar e objetivar a vontade e os valores de Deus na história. 71 Cf. DUQUOC Christian. Cristologia: ensaio dogmático. v. 1. O homem Jesus p. 67. Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. S.j. Os Evangelhos e a história de Jesus. p. 393. 73 DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático. v. 1. O homem Jesus. pp. 68-69. 74 DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático. v..1. O homem Jesus. p. 69. 75 Cf. MIGUEZ, Nestor O. Jesus, o povo e a presença política. In: Concilium. Petrópolis, nº 322. pp. 65(529)74(538), 4/2007. p.67(531). 72 44 2.2 Compreensão da ideia de reino de Deus no Antigo Testamento A expressão “reino de Deus” não era usada era usada como tal no Antigo Testamento ou na literatura judaica antiga, mas a afirmação de Yahweh como rei aparece com frequência, sobretudo nos Salmos e na liturgia. Essa terminologia existia em todo o Antigo Oriente e Israel incorpora a noção de Deus-rei segundo sua fé fundamental de que Yahweh intervém na história.76 Entre os semitas era um procedimento comum atribuir o título de rei a suas divindades, das quais esperavam três benefícios: a solução dos problemas de sua existência nacional por meio da resposta oracular; pela mesma via a decisão das sentenças judiciárias como solução dos conflitos uma vez que não se confia totalmente na justiça humana e finalmente a ajuda na luta contra os inimigos do exterior. No período mosaico há referências a Yahweh como rei nos seguintes textos bíblicos: Ex 15,18; Nm 23,21 e Dt 33,5; na época pré-monárquica em Jz 8,23; Sm 8,7; 12,12. Outros textos insistem na posse da arca pelas tribos israelitas que conquistaram a Palestina e citam as tradições antigas que interpretavam a arca como o trono real de Yahweh.77 Entre os estudiosos que se dedicam à pesquisa sobre a origem da crença israelita na realeza de Yahweh, se destaca o exegeta norueguês S. Mowinckel, que usa como fundamento para seus estudos uma festa de ano novo na qual se realiza a entronização real anual de Yahweh. Ele se fundamenta em um grupo de poemas que faz referência explícita à realeza de Yahweh contida nos Salmos 47, 93, 95, 96, 97, 98 e 99. A descoberta dos documentos da antiga vila cananeia de Ugarit, considerada uma das mais importantes do século XX, contribuiu para identificar muitas afinidades entre as 76 Cf. SOBRINO. Jon. Jesus, o libertador. v. 1- A história de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 110. Cf. COPPENS, J. Règne (ou Royaume) de Dieu. I. Ancien Testament et Apocryphes. In. Supplément au Dictionnaire de la Bible. CAZELLES,Henri & FEUILLET.Lelouzey & Ané Editeurs. Paris,1981. p.3. 77 45 tradições literárias e religiosas das tribos israelitas e aquelas da população de Canaã, principalmente no que diz respeito à afirmação da realeza divina. Quando os textos bíblicos saúdam Yahweh como rei, eles o exaltam como o soberano dos elohim e como o Senhor do céu e da terra, atributos que também caracterizam o deus cananeu Elyon e as divindades ugaríticas El e Baal78, nos textos mitológicos que lhe conferem a realeza.79 O estudioso dos documentos ugaríticos A. R. Johnson esclarece que Israel atribuiu a seu monarca um caráter sagrado em razão da aliança feita por Yahweh com a casa de Davi, depois que esse povo afirmou a realeza do seu Deus, saudando-o como um rei que possui um trono sobre a colina de Sião. Além disso, as autoridades religiosas de Israel estabeleceram em Jerusalém um templo e um sacerdote para celebrar anualmente, no outono, a entronização real e solene de Yahweh durante a festa dos Tabernáculos. No entanto, o autor contesta que esta seja uma verdadeira entronização de Yahweh, considerando como objetivo da festa confirmar a fidelidade do Deus de Israel e a dinastia davídica com o povo. A festa do outono, em sua origem exaltava a vitória da vida sobre o deus Moth, divindade infernal da morte e, quando foi retomada por Israel e acomodada a sua fé passou a comemorar todas as vitórias de Iahweh: tanto seus triunfos cósmicos, como suas vitórias históricas em um futuro fixado pelos desígnios divinos. O Deus de Israel é chamado a exercer a supremacia sobre o conjunto das nações. Um dos traços mais notáveis da festa israelita teria sido a associação cada vez mais estreita do rei ao destino divino evocado e celebrado no culto. Esta união íntima do monarca com o seu deus ao longo do tempo tornar-se-ia o berço da esperança messiânica. 78 Correspondem a dois tipos de deuses celestes conhecidos nas mitologias de vários povos do mundo. El corresponde ao deus máximo, identificado com o céu sem nuvens e governa o mundo através de sua palavra poderosa. Ele é o pai dos deuses. Baal é um guerreiro, um rei viril que derrotou seus inimigos com a força do seu poder e também exerce autoridade sobre os deuses. É representado pelo céu tempestuoso. Cf. PIXLEY, Jorge V. O reino de Deus. São Paulo: Paulinas 1986. pp.25-26. 79 Cf. COPPENS, J. Règne (ou Royaume) de Dieu. Ancien Testament et Apocryphes. In: Supplément au Dictionnaire de la Bible. p. 4. 46 A convicção religiosa que está nas origens do povo de Israel de que Iahweh era o verdadeiro e único soberano do seu povo (Is 63,16 a-b) causou uma violenta oposição à implantação da monarquia tanto pelos círculos proféticos mais ou menos restritos (1Sm 8,7; 12,12) como pelos segmentos laicos que se consideravam qualificados para assumir a dignidade real (Jz 8,22-23). Esta oposição se explica em parte pelas tradições das tribos nômades que não os habilitava a se submeter a uma cultura de origem urbana.80 Aos poucos as tribos adquiriram a consciência de que foram beneficiadas nos combates para conquistar a terra de Canaã. É possível pensar que a promoção de Yahweh à dignidade de melek tenha sido imposta aos poucos sob o período dos juízes durante o qual combatentes de Israel obtiveram ajuda eficaz das milícias celestes (cf. Jz 5,20; Js 10, 10-14; 2 Sm 5,24; Sl 18,14-15). A primeira tentativa de estabelecer a realeza em Israel de que temos notícia foi a de Abimelek de Siquém. Mas o seu reinado durou apenas três anos e não existem indícios de que o seu governo tenha sido reconhecido amplamente pelas tribos israelitas. Depois, os líderes do povo ungiram Saul no antigo santuário israelita de Guilgal, na região mais baixa do rio Jordão (1 Sm 11), mas ele não conseguiu estabelecer uma dinastia ou corte, sendo morto em combate com os filisteus e, após uma batalha entre seus herdeiros e os homens de Davi, esse foi proclamado como rei pelos anciãos das tribos de Israel (2 Sm 5,1-3). Davi aproveitou a força e a lealdade de seu exército e a força da ideologia israelita para obter o apoio da sua realeza como uma representação terrena do governo de Iahweh. Ele se destacou pela organização política do seu reino e se mostrou um líder muito hábil, que reconhecia os limites impostos pela sociedade israelita. Foi sucedido por seu filho, Salomão, que construiu o Templo para o culto a Iahweh que podia concorrer em sua glória com os grandes impérios do Oriente Próximo. No entanto, ele não possuía a sensibilidade do pai diante dos valores israelitas, 80 Cf. COPPENS, J. Règne (ou Royaume) de Dieu. Ancien Testament et Apocryphes. In : Supplément au Dictionnaire de la Bible. p.51. 47 provocando a revolta das tribos de Israel contra a opressão imposta no seu governo mediante os trabalhos forçados e a cobrança de pesados tributos usados para a construção do templo e a manutenção do luxo de sua corte.81 Salomão a seu modo desenvolveu a doutrina da realeza de Yahweh ainda mais que seu pai. A construção do templo representou uma tentativa de transformar o Iahweh libertador em patrono da dinastia davídica. Os Salmos deram testemunho direto da maneira como Iahweh era adorado. Havia uma ideologia régia cujo fundamento era a doutrina da aliança pela qual Iahweh impôs condições a si mesmo obrigando-se a uma lealdade eterna e exclusiva a Davi e aos seus descendentes. Os porta-vozes do novo templo fizeram dessa aliança a justificativa para a monarquia, apresentando o rei como o defensor dos oprimidos de Israel, indicado por Iahweh para zelar pelos interesses dos pobres. Mas essa ideologia, ocultava uma realidade diferente e como todas as ideologias, tinha um horizonte utópico que serviu de base para a pregação de Isaías, o grande profeta de Jerusalém.82 Ele aceitava os elementos básicos da teologia de Jerusalém, cidade escolhida por Deus para sua morada e acreditava que Deus escolhera Davi e seus descendentes a fim de que reinassem para sempre. Isaías denunciou o culto rico e piedoso que era praticado com zelo à custa da exploração dos pobres (Is 1,10-17) e anunciou a destruição de Jerusalém com sua casa régia, da mesma forma como é devastada uma floresta (Is 6,10-13; 10,32,34). Dela restariam apenas troncos de árvores e Yahweh manteria sua aliança com Davi, fazendo desse tronco uma semente sagrada (Is 6,13) e dela faria brotar um ramo de Jessé (Is 11,1). Isaías construiu sobre a teologia régia a esperança da chegada de um rei verdadeiro e justo, o Messias. 81 82 PIXLEY, Jorge. O reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986. pp.51-55. PIXLEY, Jorge. O reino de Deus. p. 62. 48 2.3 O conceito de reino de Deus na pregação de Jesus O reino de Deus é a mensagem central da proclamação de Jesus que acentua a vinda e a proximidade do reino. Para Jesus significa a proximidade da incondicional vontade divina de salvar, da misericórdia que vai ao encontro do homem, que implica em resistência contra todas as formas de mal: o sofrimento e o pecado. A realeza e o reino de Deus se expressam no Novo Testamento no único conceito de “basileía toû Theou” ou “ basileía tôn ouranôn”.83 O reino de Deus é um acontecimento pelo qual Deus começa a reinar e agir como rei ou Senhor, é uma ação pela qual Deus manifesta seu ser Deus no mundo dos humanos. O reinado de Deus é o próprio poder divino agindo para o nosso bem na nossa história, mas significa também o estado final escatológico pondo fim ao mundo mau e iniciando o novo mundo onde Deus dominará plenamente: “Venha a nós o teu reino”(Mt 6,10). Soberania de Deus e reino de Deus são dois aspectos da mesma realidade. O primeiro lembra o caráter dinâmico referente ao hoje do reinar divino, enquanto o segundo indica mais o estado definitivo de felicidade, visado pela ação salvífica de Deus. Quando se diz que Deus reina significa que ele executa a sua função divina como Criador e soberano, como rei que dá salvação e felicidade aos seres que ele criou para a vida.84 O conceito de “soberania” era central na Antiguidade. O respeito aos direitos soberanos de Deus como Criador é essencial na mensagem e atuação de Jesus que interpreta essa majestade de Deus como benevolência incondicional, como supremo amor pelos seres humanos. O reinado de Deus é o divino ser de Deus e o nosso reconhecimento disso produz a humanidade e a felicidade do ser humano. O objetivo de Jesus é mostrar que Deus é o “Deus 83 A expressão “basileía toû Teou” ou reino de Deus é usada por Marcos e Lucas e “basileía tôn ouranôn” ou reino dos céus é usada somente por Mateus. 84 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus a história de um vivente. pp. 134-135. 49 dos humanos.” O reino de Deus que inspira a vida de Jesus e que ele anuncia é uma realidade da experiência que diz algo sobre Deus na sua relação com a humanidade e fala sobre a nossa relação com Deus.85 Das palavras e ações de Jesus emerge a imagem de um Deus apaixonado pelo ser humano, um Deus que ama o ser humano simplesmente porque é ser humano, sem lhes impor quaisquer condições. A vida concreta de Jesus demonstra que lei ou mandamento, sábado ou culto, prescrições ou tradições são relativizados diante do amor de Deus pelo ser humano, em especial o mais pobre e necessitado.86 A mensagem de Jesus nos comunica uma novidade alegre, mostra-nos um rosto de Deus que difere radicalmente da pregação unilateral de João sobre o juízo ameaçador de Deus. No reino, Jesus conhece apenas a abolição de todas as relações que ofendem, de toda dominação de um ser humano sobre o outro e estabelece o novo reino de serviço mútuo (Mc 10,42-45). Embora o reino de Deus seja o ponto central da mensagem de Jesus, ele nunca definiu exatamente tal conceito, não disse como o reino de Deus se manifestaria e nem de que maneira seria instaurado. Mas o seu conteúdo concreto se esclarece em toda a sua atuação, nas parábolas e demais ensinamentos, enfim, em sua práxis. As Escrituras não dão uma resposta única quanto ao momento da vinda do reino de Deus, mas em toda a Bíblia está claro que o reino já está presente em Jesus. Com a vinda de João Batista encerra-se a história antiga e Jesus vê a sua própria atuação como um tempo novo, como obra de Deus. Ele está fascinado pela causa de Deus e não toma conhecimento da problemática da comunidade sobre quem é o maior: ele ou João. Em seu anúncio sobre o reinado de Deus Jesus só pensa no bem da humanidade. Junto com a 85 86 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 135. Cf. MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça. pp.34-35. 50 pregação de João sobre o juízo, Jesus adotou também a sua expectativa sobre a vinda do Filho do Homem que vem como juiz. O julgamento sobre o qual Jesus fala é sempre visto como puramente futuro, como juízo final escatológico.87 Jesus proclamou a mensagem da proximidade imediata do reino de Deus como Evangelho, como boa notícia prévia a todo esforço humano, comparável com o mensageiro da alegria do Dêutero-Isaías (Is 52,7) que anuncia o Evangelho da libertação que está a irromper sob o senhorio régio de Yahweh. Ele vincula a sua pregação do reino de Deus com a cura dos doentes (Mt 4,23 par.), exorcismos (Mt 12,28), volta-se para pecadores públicos (Mt 21,31), critica a riqueza (Mt 19,23 par), declara bem-aventurados os pobres, os famintos e angustiados (Lc 6,20 s) e estabelece o senhorio do serviço (Lc 9,58).88 Jesus ligou a expectativa da proximidade do reino de Deus como salvação universal, incluindo vida, alegria e felicidade para a humanidade. Em seu modo de viver dá ao reino de Deus um rosto concreto dedicando-se ao bem estar, a integridade do ser humano também fisicamente através das curas e exorcismos. Ele liberta a pessoa humana e a devolve a si mesma.89 O amor incondicional de Deus pelo ser humano presente no comportamento de Jesus se explicita nas parábolas que constituem o lugar privilegiado da pregação do reino. Deste modo os operários da undécima hora (Mt 20,1-5) mostram que a bondade infinita do Pai não corresponde à lógica humana. O perdão dos pecados encontra sua justificação nas parábolas da misericórdia (Lc 18,9-14) sendo necessário apenas o homem reconhecer-se pecador.90 87 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 141. Cf. WACKER, Marie-Theres. Reino de Deus. A. Biblicamente. In: EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. p. 767. 89 Cf. SCHILLEBEECKX E. Jesus a história de um vivente. p. 147. 90 Cf. MIRANDA, Mário de França. A salvação de Jesus Cristo. São Paulo: Loyola, 2004. pp. 34-36. 88 51 2.3.1 As parábolas A história das parábolas se inicia no Antigo Testamento com o uso de comparações nas formas dialógicas de discurso das profecias e salmos. São exemplos: a parábola de Natã (2 Sm 12,1-4), dos dois irmãos (2 Sm 14,5-7), do preso foragido (1Rs 20,39-40), do cardo e do cedro (2 Rs, 14,9), do vinhateiro infiel (Is 5,1-7) e as alegorias em Ezequiel (17,3-10; 19, 2-9; 10,14; 21,1-5; 24,3-5). As parábolas do Antigo Testamento apresentam aspectos característicos das fábulas como a utilização de traços alegóricos e antropomorfismos mostrando animais e plantas como homens. Os rabinos as utilizavam para interpretar a Torá e tornar os ensinamentos acessíveis às pessoas simples e às crianças. As parábolas de Jesus como uma forma sapiencial aparecem pela primeira vez no judaísmo com um alcance mais amplo trazendo sua mensagem em si mesmas. O antropomorfismo das fábulas não está presente nelas.91 As parábolas são a expressão natural de uma mentalidade que vê a verdade em imagens concretas ao invés de concebê-la por meio de abstrações. Em sua forma mais simples a parábola é uma metáfora ou comparação tirada da natureza ou da vida cotidiana que atrai o ouvinte por sua vivacidade ou singularidade deixando uma certa dúvida sobre sua significação exata e estimulando a mente a uma reflexão.92 A parábola típica apresenta somente um ponto central de comparação e o restante serve para completar a imagem empregada, para apresentála de maneira atraente, sem acrescentar algo de novo ao sentido essencial. Por exemplo, na parábola do semeador os elementos: a beira do caminho, as aves, os espinhos, o solo rochoso têm como função demonstrar o grande esforço do agricultor e enfatizar a satisfação promovida pela colheita. Tudo o que está nos relatos pode ser observado no contexto da nossa experiência e está de acordo com a natureza e a vida. 91 92 Cf. THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus histórico. Um manual. pp. 360-361. Cf. DODD, C. H. As parábolas do reino. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. p.17. 52 As parábolas, em seu conjunto utilizam-se de fatos concretos da vida cotidiana, mas em grande número apresentam traços incomuns, cuja função é suscitar a atenção dos ouvintes e sobre os quais se põe uma ênfase especial. São exemplos: o fato de convidados recusarem o convite para o banquete e o dono da casa mandar chamar à sua mesa os primeiros que forem encontrados na rua (Mt 22,9; Lc 14,21-23); moças que esperam o esposo para as núpcias adormecem todas juntamente (Mt 25,5); um hóspede que, sem a veste nupcial vai à festa de casamento do filho do rei (Mt 22,11 ss); um grão de trigo rende cem por um (Mc 4,8; Gn 26,12). O propósito é mostrar através do elemento surpresa o caminho pelo qual deve caminhar a interpretação, como se vê na parábola do servo infiel (Mt 18,23-35).93 A dívida de dez mil talentos era uma soma gigantesca considerando-se que no ano 4 a.C. a Galileia e a Pereia recolhiam anualmente duzentos talentos de impostos. O intuito da parábola é mostrar que nenhum homem consegue pagar suas dívidas com Deus e ao mesmo tempo ressaltar a mesquinhez do servo com seu companheiro que lhe devia cem denários. As parábolas de Jesus apresentam um realismo notável e oferecem um quadro completo e convincente da vida dos camponeses, dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades. Este realismo demonstra que há uma afinidade interna entre a ordem natural e espiritual pois “o reino de Deus é estritamente semelhante aos processos da natureza e da vida cotidiana dos homens”.94 Jesus já encontrou prontos ao redor do homem e da natureza os exemplos dos quais necessitava para ilustrar as verdades que desejava ensinar. Nas parábolas cada um dos relatos se refere a algo que pode ser observado no contexto da experiência. Os processos da natureza são descritos de uma forma minuciosa e as ações dos personagens são adequadas às circunstâncias ou quando são surpreendentes estão de acordo com a intenção da parábola. 93 94 Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. 10 ed. São Paulo: Paulus, 2007. pp. 24-25. Cf. DODD, C.H. As parábolas do Reino. p. 21. 53 As parábolas referem-se às situações concretas e críticas nas quais se achavam Jesus e seus ouvintes. Elas não são obras de arte, tampouco servem para demonstrar apenas princípios gerais, mas cada uma delas foi proclamada numa situação concreta da vida de Jesus e muitas vezes em situações de conflito, de justificação, de defesa, de ataque ou de desafio, exigindo uma resposta concreta e imediata.95 Cada uma das parábolas tem um lugar histórico determinado na vida de Jesus. Por exemplo, o caso da ovelha perdida (Lc 15,3-7) tem a sua origem diante da murmuração dos escribas e fariseus: “Esse homem recebe os pecadores e com eles!” (Lc 15,1-2) e termina com as palavras de Jesus: “Eu vos digo que do mesmo modo haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento” (Lc 15, 7). A intenção de Jesus é justificar a boa nova diante dos seus críticos e mostrar que, assim como o pastor fica feliz por causa da ovelha reencontrada, também Deus se alegra com o pecador que está disposto a penitência e a conversão. Em Lucas a parábola se dirige aos inimigos de Jesus, enquanto a mesma narração em Mt 18,12 faz um apelo aos dirigentes da comunidade para manterem a fidelidade de pastores para com os apóstatas. Acredita-se que Lucas conservou a situação original, enquanto Mateus utiliza a parábola para orientar a vida da comunidade.96 2.3.1.1. As parábolas do reino As parábolas como elementos da atuação de Jesus caracterizam-se pela mensagem sobre a vinda do reino de Deus. No seu teor original elas não falam diretamente sobre Deus, nem sobre o próprio Jesus, mas no conjunto da mensagem de Jesus fica evidente que se trata da salvação que Deus oferece: do reino de Deus e da metanoia interior que ela exige. O ensino de Jesus mostrado nos Evangelhos faz referência tanto ao futuro como ao presente. 95 96 Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. p. 15. Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. p. 17 54 Torna-se difícil apresentar uma predição exata da vinda do reino, sendo que uma manifestação futura e definitiva do poder soberano de Deus ressoa nas palavras de Mc 9,1 e Mt 8,11. Outras sentenças mostram o reino de Deus como um fato da experiência atual (Mt 12,28; Lc 11,20) que os homens devem reconhecer, aceitando-o ou rejeitando-o com suas ações.97 Entre as parábolas, duas se referem explicitamente ao reino de Deus: a do tesouro oculto98 (Mt 13,44) e a da pérola preciosa99 (Mt 13, 45-46). Ambas descrevem a conduta de um homem que encontra um tesouro de grande valor e o adquire à custa de tudo o que possui.100 O homem que encontra esse tesouro incomparável é tomado de uma grande alegria e nesse estado nenhum preço parece alto demais. Isso significa que a entrega da sua propriedade deixa de ser importante diante da grandeza do seu achado que supera a sua compreensão e o atinge em seu íntimo. Do mesmo modo, quando o homem descobre e experimenta em sua vida o irromper do reino de Deus é invadido por uma grande alegria, faz a sua adesão ao seguimento de Jesus e orienta-se para a consumação da comunhão com Deus.101 Ambas as narrativas referem-se ao comportamento assumido por aquele que descobriu e experimentou a irrupção do reino de Deus. São também consideradas como parábolas do reino, aquelas que embora não se refiram diretamente ao reino, fazem alusão a esse aspecto do ministério de Jesus. Incluem-se neste caso as duas parábolas sobre os construtores da torre e do rei que vai à guerra (Lc 14,2833), cujos relatos encontram ilustração nos episódios relatados em Mt 8,19-22 e Lc 9,57-62 97 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. pp. 40-41. Tesouros escondidos são temas do folclore oriental. Muitas vezes foram encontrados vasos de barro com moedas de prata ou pedras preciosas enterrados em alguns locais da Palestina com o intuito de evitar o saque de objetos de valor. Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. p. 198. 99 Na Antiguidade as pérolas eram um artigo muito cobiçado. Eram encontradas por mergulhadores, sobretudo no Golfo Pérsico e no Oceano Índico. Delas se faziam adornos, sobretudo colares. Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. p.199. 100 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 98. 101 Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. p. 201. 98 55 nos quais se recorda em termos rigorosos o preço que os discípulos deveriam estar preparados a pagar diante de sua adesão ao seguimento de Jesus.102 A mensagem de Jesus não é somente pregação da salvação, como também uma advertência e um convite à conversão. Para combater a atitude frívola dos judeus diante da sua atuação e de João Batista, Jesus narra a parábola das crianças na praça (Mt 11,16 -17; Lc 7,31-32), na qual ele expressa a situação de um homem que ama sem ser acolhido e toma a difícil decisão de acolher o desfecho obscuro do seu itinerário. Jesus exprime tristeza e dor através da narrativa da malograda comunicação das crianças na praça do mercado e mostra que a condescendência de Deus é contrariada pelos interesses do homem. Tocar flauta para os outros e cantar para eles são sinais de atenção e, no entanto não houve nenhuma ressonância, nenhuma atitude que amenizasse a sua tristeza.103 Assim como as crianças que se negam a chegar a um acordo sobre as brincadeiras atirando ao rosto de seus companheiros que eles são desmancha-prazeres porque não querem dançar de acordo com o seu tom, os judeus só querem dominar e criticar e não aceitam os últimos mensageiros que vêm antes da catástrofe. Jesus lança a advertência de que o convite à conversão e o Evangelho são os últimos sinais de alerta de Deus.104 Nessa parábola não há alusão ao reino de Deus, mas à vinda do Filho do Homem, que é a vinda do reino de Deus.105 Quando Jesus e seus discípulos são criticados por não jejuarem como os discípulos de João e os fariseus (Mc 2,18-19) ele responde com uma breve sentença: “Podem os convidados de um casamento jejuar enquanto o noivo está com eles?”. Era um costume da época, os convidados de um casamento ficarem dispensados de certas obrigações religiosas durante os 102 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 99. Cf. BAUDLER, Georg. A figura de Jesus nas parábolas: a obra narrativa da vida de Jesus, um acesso à fé. Aparecida: Santuário, 1990. pp.206-270. 104 Cf. JEREMIAS J. As parábolas de Jesus. p. 164. 105 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 100. 103 56 sete dias de celebração nupcial para não interromper as comemorações. Acredita-se que os discípulos na companhia de Jesus se encontravam em uma situação dominada pela alegria e neste caso não havia necessidade do jejum penitencial. O noivo do relato é o próprio Jesus (Ap 19,7; 21,9; 2 Cor 11,2) e os discípulos gozam de uma felicidade plena porque estão no reino de Deus.106 O reino de Deus que chega através do ministério de Jesus revela a um interesse inédito pelo “perdido” demonstrado através das três parábolas da misericórdia: a ovelha perdida, a dracma perdida e o filho pródigo (Lc 15, 4-31). Nas duas primeiras o evangelista se refere ao “estranho” interesse que Jesus demonstrava pela classe oprimida da comunidade judaica e a terceira se refere à mesma situação do ministério de Jesus, tendo como centro o contraste entre a alegria do pai pelo retorno do filho perdido e a mesquinha atitude do irmão mais velho para o qual a misericórdia é avaliada como injustiça.107 Jesus em sua missão revela um novo princípio religioso: Deus é bom, misericordioso e todos os homens são seus filhos. Jesus é bom porque ocupa o lugar de Deus e descobre nos pecadores pessoas perdidas que Deus como pai sente sua perda e as perdoa, pois um pai, jamais deixa de ser pai, qualquer que seja a ingratidão de seus filhos.108 A aceitação da palavra de Deus pelos marginalizados e sua rejeição pelos líderes religiosos aparecem na parábola do grande banquete (Mt 22,1-13; Lc 14,16-24) e na dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16). Na primeira, em Lucas se inicia com as a exclamação de um conviva: “Feliz aquele que tomar refeição no reino de Deus!” levando-nos à espera de uma parábola do reino e em Mateus começa com: “O Reino de Deus é semelhante à...” O núcleo comum dos relatos é o fato dos convidados por sua própria vontade excluírem-se do 106 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. pp. 101-102. Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 104. 108 Cf. CERFAUX, L. O tesouro das parábolas. p. 72. 107 57 banquete e como seus lugares foram ocupados pelos primeiros que foram encontrados. Significa que Deus cumpre a sua promessa, mas se os "filhos do reino” rejeitam o chamado de Deus entrarão em seu lugar os pobres e os desprezados. O símbolo do banquete celestial era usado para designar a felicidade do mundo vindouro, quando então se revelaria o reino de Deus. As palavras do convite: “Eis que preparei meu banquete, meus touros e cevados já foram degolados e tudo está pronto. Vinde às núpcias” (Mt 22,4) equivale ao convite de Jesus: “Arrependei-vos porque o reino dos Céus está próximo” (Mt 3,2). A parábola faz alusão a recusa do convite pelos “justos” e sua aceitação pelos publicanos e pecadores.109 A parábola dos trabalhadores da vinha descreve dois episódios: 1) a contratação dos trabalhadores e a ordem generosa com relação ao pagamento do salário e 2) a indignação dos que se acham prejudicados. A parábola se endereça a homens semelhantes aos murmuradores que criticavam a boa nova e que se escandalizavam com as atitudes de Jesus Ele quer mostrar como a crítica que ele recebe é odiosa, injusta, egoísta e impiedosa. Com relação ao pagamento dos salários não se trata de uma generosidade sem limites, pois todos recebem apenas a soma que é necessária para viver. Mesmo que os contratados por último tenham ficado inativos a maior parte do dia eles causam compaixão ao proprietário porque o salário de só uma hora de serviço não é suficiente para a manutenção de sua família. A parábola não descreve um ato arbitrário, mas a ação de um homem bom de coração, generoso, que tem dó dos pobres. Jesus mostra que é assim que Deus age, é assim que Deus é. Ele faz participar do seu reino os pecadores e publicanos, que não tinham nenhum mérito diante de Deus. A isso se assemelha o reino de Deus.110 Na parábola dos talentos (Mt 25,14-30; Lc 19, 12-27), o elemento central é a prestação de contas do terceiro servo que, por excesso de precaução reteve o dinheiro parado temendo a 109 110 Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 105. Cf. DODD, C.H. As parábolas do reino. p. 106. 58 cólera do rei caso a sua operação não obtivesse êxito. É esta a conduta que os ouvintes da parábola devem julgar. A conduta excessivamente cautelosa e tímida do servo equivale a uma prevaricação e este homem torna-se um servo inútil. Para os ouvintes de Jesus e de acordo com a prática judaica a relação de Deus com Israel se apresentava com frequência como a de um “senhor” com os “seus servos” e portanto qualquer interpretação deve se fundamentar neste sentido. Outro grupo de parábolas refere-se à esperada vinda de Cristo surgindo em um contexto em que se exorta à preparação, à vigilância e à atenção contínua. Neste grupo incluem-se: a parábola dos servos fiéis e infiéis (Lc 12,42-46; Mt 24,45-51); dos servos vigilantes (Lc 12,35-38; Mc 13,33-37); do ladrão noturno (Mt 24,43-44; Lc 12,39-40) e a parábola das dez virgens (Mt 25,1-2) que tratam da necessidade de se estar preparado para a futura vinda do Filho do Homem, que corresponde à vinda do reino de Deus. É provável que essas parábolas escatológicas tenham tido aplicação dentro do contexto do ministério de Jesus reforçando o chamado para que os homens reconheçam que o reino de Deus já estava presente e ao mesmo tempo preparando os discípulos para enfrentar os tempos difíceis que haveriam de vir em decorrência das práticas e da pregação de Jesus. Considerando-se a mensagem de algumas parábolas do reino vimos que elas refletem a boa nova de Jesus, a seriedade do seu apelo à conversão, o cunho escatológico de sua pregação, bem como pontos de conflito com os líderes religiosos da época de Jesus. O material das imagens é recolhido da vida na Palestina, levando os seus ouvintes a um mundo que lhes é familiar de tal forma que os exemplos e as comparações utilizadas tornam-se incontestáveis.111 111 Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. pp. 7- 9. 59 Jesus em numerosas parábolas mostra o que ele pensa do reino de Deus e o seu modo de ser o Deus dos homens, de todos os homens, sobretudo o Deus dos pobres, dos rejeitados e marginalizados e até dos pecadores. Jesus exige dos discípulos um comportamento que haveria de distingui-los dos publicanos e pagãos (Mt 5,46-47) e dos pecadores (Lc 6,32-34). Pelas parábolas do reino e pela sua práxis Jesus rejeita a justiça como “imperativo absoluto”, pois muitas vezes a justiça rigorosa pode envolver exclusão de pessoas que já são publicamente rejeitadas. Ele toma partido por pessoas que não tem defensores, mas muitos acusadores que as reduzem à marginalidade e impedem o seu avanço.112 Jesus age da mesma forma como Deus age e reside e o próprio Deus está presente no seu agir e falar. O anúncio do reino de Deus como centro da pregação de Jesus presente nas suas palavras e nas suas ações por contrariar os interesses das autoridades religiosas judaicas no fim do seu ministério público de Jerusalém e por contrariar os interesses do Império custou a sua vida. Porém, na ressurreição Deus mostra que o seu Reino triunfará na história e a ultrapassará na plenitude da vida eterna. 113 2.3.2. Os milagres O estudo e a compreensão dos milagres exigem que eles sejam colocados no contexto religioso e cultural da Antiguidade. No mundo pagão a prática e a técnica dos milagres eram bastante conhecidas. Existiam grandes santuários dedicados aos deuses curandeiros que ocupavam grandes áreas com inúmeras construções adjacentes contendo alojamentos de pessoal, hospitais, teatros e o santuário com corredores, piscinas e galerias subterrâneas com água abundante. Esses santuários dedicados especialmente às curas deram origem a uma 112 Cf. SCHILLEBEECKX, E. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. pp. 157-158. Cf. MANZATTO, A. Notas para uma Cristologia para o terceiro milênio. In: Revista de Cultura Teológica. São Paulo v.8 pp.79-107. (abril/jun) 2000. 113 60 abundante literatura, mostrando a visão antiga do mundo pagão, do judaísmo e do cristianismo primitivo (1 Cor 12,9-10).114 Os diversos relatos de cura contam as atividades destes santuários. O escritor grego Filostrato (175-249 a.C.), apresenta os feitos de Apolônio de Tiana (morto provavelmente no ano 95 a.C.). Considerava-se que ele tinha domínio sobre as forças da natureza, sendo capaz de afastar toda espécie de perigo. Ele ainda tinha o poder de se libertar das cadeias, predizer os acontecimentos futuros, conhecer o pensamento dos outros, de curar doentes e possessos. As narrativas dos milagres de Apolônio têm como objetivo anunciar a ação dos deuses que através dele trazem socorro aos homens, enquanto Jesus é aquele mediante o qual Deus único e Salvador age de tal forma que a salvação definitiva é oferecida a todos os homens e se manifesta através de sinais.115 No Judaísmo muitos rabinos se tornaram famosos por seus milagres e exorcismos, destacando-se entre eles: Honi no século I a.C. que era conhecido por seus milagres para fazer chover; Hanina ben Dosa que atuou na Galiléia. Ele viveu numa deliberada renúncia de posses e era indiferente a questões rituais. Antes da deflagração da Guerra Judaica (66-74 d.C.) apareceram muitos profetas na Palestina, citados a seguir: um profeta samaritano que prometeu aos seus seguidores encontrar os vasos perdidos do templo de Garizim; Teúdas que anunciou a divisão do Jordão, uma repetição dos milagres de Josué e de Elias no Jordão (Js 3; 2RS 2,8) e o egípcio que levou seus seguidores ao Monte das Oliveiras e prometeu que os muros de Jerusalém cairiam sob o seu comando. Diferentemente, no caso de Jesus os milagres prometidos para o futuro encontram uma correspondência na promessa de um novo templo depois da destruição do 114 Cf. ANDERSON, Ana Flora & GORGULHO, Fr. Gilberto. Milagres: gestos de vida e liberdade. São Paulo, 1991. p. 21. 115 Cf. WEISER, Alfons. O que é milagre na Bíblia. Para você entender os relatos do evangelho. São Paulo: Paulinas, 1978. pp. 160-161. 61 antigo (Mc 14,57 s; 15,29). Os adversários de Jesus o comparam com esses profetas do século I que apenas prometiam milagres, mas não o realizavam (At 5,36). O traço distintivo dos milagres de Jesus estava no significado escatológico das curas e exorcismos que ocorriam naquele momento. Em Jesus os milagres anunciam o fim de um mundo velho e o começo de um mundo novo, no qual o presente se torna uma época de salvação.116 A palavra do grego profano para milagre não se encontra nos Evangelhos, mas estes dizem apenas que certas palavras e ações de Jesus provocaram no povo um admirar-se, um assombrar-se. Os Evangelhos se referem a essas ações como sinais e atos de poder ou obras de Cristo. Tanto a interpretação favorável como a interpretação hostil testemunham a “automanifestação assombrosa de Jesus”, que é considerada pelo povo como a ação de Deus nele. As narrativas sobre os milagres são originariamente os ambientes onde Jesus atuou em sua vida pública, em especial a região ao redor do mar da Galiléia, entre o povo simples do interior que o acolheu com entusiasmo.117 Em Nazaré Jesus não pôde realizar milagres devido à incredulidade de seus habitantes (Mc 6,5-6), a não ser algumas curas de enfermos, impondo-lhes as mãos. O povo se afasta de Jesus atribuindo o poder dele ao demônio. Em Nazaré o povo acredita que Jesus tem o poder de fazer milagres, mas pede milagres que não impliquem em metanoia e nem convoquem para a comunhão com Deus (Mt, 4,5-6; Jo 6,14-15). Nesses casos Jesus percebe que toda a sua missão é ignorada e o reino de Deus não é compreendido.118 A pregação de Jesus é compreendida e apresentada como palavras da graça (At 14,3; 20,32). Não são palavras encantadoras, mas concernentes a era da graça predita pelos profetas. Os compatriotas de Jesus não admitiam que tal linguagem pudesse ser usada por 116 Cf. THEISSEN, Gerd; & MERZ, Annette. Jesus histórico.Um manual. pp. 333-334. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. pp. 176-178. 118 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 189. 117 62 alguém que eles acreditavam conhecer a origem e diziam: “Não é este o filho de José?” Essa atitude dos ouvintes se assemelha àquela descrita em Jo 7,27: “Mas nós sabemos de onde esse é, ao passo que ninguém saberá de onde será o Cristo, quando ele vier”. Outros autores compreenderam o episódio narrado em Lc 4,22 com um sentido totalmente desfavorável a Jesus, pois seus ouvintes ficaram escandalizados e deram testemunhos contra ele. Eles ficaram indignados ao escutar que Jesus ao mencionar o texto de Is 61,1-2, fale apenas da graça e exclua a referência ao dia da vingança de Deus.119 As refeições tomadas por Jesus com os publicanos e pecadores, que se tornaram motivo de escândalo para os escribas fariseus (Mc 2,15-17) não devem ser interpretadas como simples gestos de condescendência humana. Elas significam que Deus vai novamente estabelecer relações com os homens que estavam separados dele e concedendo o perdão divino, antecipa a participação no banquete e na salvação messiânica. No pensamento bíblico a refeição é símbolo e garantia de paz, perdão, fraternidade, comunhão e unidade. Por esse motivo o crime de Judas é considerado muito odioso, pois ele traiu alguém com quem havia comido (Mc 14,18-20; Lc 22,21). A Escritura mostra inúmeras vezes a aliança divina sendo estabelecida ou comemorada em uma refeição, tanto no Antigo Testamento (Ex 24,11; Is 25,6; 65,13; Sl 23,5; Pr 9,1-5) como nos relatos da última ceia pascal no Novo Testamento. Os milagres exprimem concretamente o caráter salvífico do reino de Deus proclamado por Jesus e suas narrações ocupam uma parte considerável dos Evangelhos. Nos sinóticos os milagres são na maioria, operados sobre os homens, mas alguns sobre seres inanimados ou 119 Cf. FEUILLET, A. ‘‘Règne (ou Royaume) de Dieu’’. III. Évangiles synoptiques. In : Supplément au Dictionnaire de la Bible. p. 72. 63 inferiores: tempestades acalmadas, marcha sobre as águas, didracma na boca do peixe, multiplicação dos pães, pesca milagrosa, figueira seca.120 Jesus se recusa a fazer milagres sem utilidade e salvação para os outros somente em proveito próprio, rejeitando-os como tentações de Satanás. Sua atividade taumatúrgica não constitui um fim em si mesmo, mas é um elemento de sua pregação relativa ao reino de Deus que se evidencia com muita clareza quando ele profere invectivas contra as vilas situadas à margem do lago (Mt 11,20-24; Lc 10;13-15). Se Jesus censura duramente seus ouvintes de não fazer penitência diante de seus inúmeros milagres é porque o objetivo dele não era suscitar admiração estéril, mas provocar a conversão e prepará-los para aceitar o anúncio do reino de Deus.121 2.3.2.1. As narrações evangélicas dos milagres O Evangelho de Marcos como fonte principal da tradição sinótica sobre os milagres nos mostra que Jesus não atende a nenhuma exigência de mostrar um sinal ou de fazer milagres, mas o que ele realiza são prodígios de bondade que correspondem às necessidades do momento. Jesus não se legitima e nem se preocupa com a própria identidade, mas se mostra da melhor maneira possível como ele é. A sua tarefa foi suscitar uma fé incondicional em Deus. Jesus vê na lei um sinal da vontade benfazeja e da misericórdia de Deus para com os judeus para o bem e não para a sua perdição. A presença e o modo de Jesus lidar com os outros significava salvação e libertação. Jesus vê as obrigações legais à luz de um Deus que vê o ser humano em sua situação totalmente concreta, que o liberta e o devolve a si mesmo. 120 Cf. FEUILLET, A. ‘’Règne (ou Royaume) de Dieu’’. III.Évangiles synoptiques. In : Supplément au Dictionnaire de la Bible. p. 73. 121 Cf. FEUILLET, A. ‘’Règne (ou Royaume) de Dieu’’. III. Évangiles synoptiques. In : Supplément au Dictionnaire de la Bible. p. 75. 64 Jesus em sua vida terrena mostrou-se como ser humano livre, que no uso de sua soberana liberdade nunca agia em seu próprio proveito, mas sempre em benefício dos outros como manifestação da livre e amorosa dedicação de Deus ao ser humano.122 Os milagres ligados ao anúncio do reino são mais frequentes na primeira fase do ministério de Jesus. Nas narrativas sobre os milagres no Evangelho de Marcos, Jesus traz a mensagem do reino em palavras e ações. Ele cura todos os enfermos simplesmente por misericórdia mostrando-se sensível com qualquer pessoa que tenha confiança nele. Seus próprios atos são um “evangelho”, uma alegre notícia para os pobres que, na sua consciência de serem infelizes percebem no contato com Jesus a verdadeira salvação. Após a confissão messiânica de Pedro abre-se a perspectiva da Paixão e emudece a narrativa sobre o povo que acorre para ver Jesus. Daí para frente Jesus foi se retirando da massa do povo e dedicando-se a uma formação especial dos seus discípulos. Ele passa a ser rejeitado pelo povo e depois que cura um surdo-mudo longe da multidão para não ser visto, Jesus se afasta e vai formar um núcleo de discípulos (Mc 7,31-36). Para Marcos os atos milagrosos de Jesus têm importância especial no evento Jesus Cristo e inclui uma lembrança histórica de tudo que ele falou e, sobretudo fez. Marcos quer descrever Jesus como alguém que deixou as pessoas alegres, trazendo-lhes de fato um “evangelho”. Jesus traz felicidade porque ele é o “Filho de Deus” repleto do Espírito (Mc 1,911) Onde Jesus age aproxima-se também o reino de Deus por ele anunciado (Mc 1,14-15) e que só se tornará perfeitamente claro depois de sua morte.123 Os sinóticos frequentemente ligam os milagres à bondade de Jesus destacando a profundidade da compaixão que ele demonstra aos seres humanos. Marcos mostra estes fatos na primeira e segunda multiplicação dos pães (6,34; 8,2) e na cura de um leproso (1,41). 122 123 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 184. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. p. 187. 65 Lucas relata que Jesus ficou comovido na ressurreição do filho da viúva de Naim (7,13); Mateus associa a piedade de Jesus aos atos de cura em passagens cujos textos paralelos não o fazem.124 Quando os discípulos recebem de Jesus a missão de proclamar a irrupção do reino de Deus, eles recebem também o privilégio de realizar milagres como se tratassem de duas realidades intimamente ligadas (Mc 6,7). O mesmo poder de curar também é dado aos 70 ou 72 discípulos, o que é mencionado somente em Lc 10,9. O termo “prodígio” nos sinóticos jamais é aplicado aos milagres de Jesus, mas somente aos falsos Cristos e aos falsos profetas (Mc 13,22; Mt 24,24 ; Jo 4,48). Os discípulos estavam felizes por ver e ouvir o que tinha sido objeto das aspirações de tantos profetas e justos (Mt 13,16-17; Lc 10,23-24), mas depois da segunda multiplicação dos pães Jesus os repreende de “ter olhos e não poder ver, de ter ouvidos e não escutar” (Mc 8,1718; Mt 16,9). Era necessário compreender o sentido profundo dos milagres e não apenas assisti-los como espetáculos extraordinários. A cura de um surdo mudo (Mc 7,37) causa uma profunda admiração na multidão que exclama: “Ele faz bem todas as coisas; faz os surdos ouvir e faz os mudos falar”. Esta afirmação faz uma alusão à conclusão do primeiro relato da criação (Gn 1,31) que se harmoniza com o contexto da nova criação, no qual se introduzem os milagres evangélicos.125 O relato da cura do paralítico de Cafarnaum (Mc 2,1-12 par) une estreitamente a cura corporal ao perdão dos pecados. A mesma fórmula: “a tua fé te salvou” é usada por Jesus para a cura da hemorroíssa (Mt 9,22; Mc 5,34, Lc 8,48) e para o perdão dado a uma pecadora (Lc 7,50). Além da cura dos males físicos, Jesus se faz conhecer ao mesmo tempo como o médico 124 Mt 20,34 com Mc 10,52; Lc 18,42. Mt 9,35-36 com Mc 6,6b. Cf. FEUILLET, A.‘‘Règne (ou Royaume) de Dieu.’’ III. Évangiles synoptiques. In Supplément au Dictionnaire de la Bible. p. 76. 125 66 espiritual da era da graça predito com frequência no Antigo Testamento. Nas curas operadas (Mt 8,16-17) ele reconhece em si, a realização do que foi dito pelo profeta Isaías em 53,4: “Levou nossas enfermidades e carregou nossas doenças”. Cristo ao tomar sobre si os pecados dos homens para os expiar, ele pode também livrá-los de todos os males corporais que os afligem.126 Jesus cura para anunciar a vida plena que o reino de Deus oferece ao povo oprimido pela doença, pela morte e pelo poder desintegrador do mal (Mc 3,20 ss). No Evangelho de Mateus, os milagres mostram o anúncio da messianidade de Jesus, o que representa os direitos e a vontade de Deus perante os homens. O relato dos milagres de cura do leproso, do servo do centurião e da sogra de Pedro (Mt 8,1-14) colocados sob o tema de Is 53,4 dá a entender que a atividade milagrosa de Jesus representa o cumprimento do anúncio profético que o aponta como aquele que libertará os homens de suas enfermidades e mazelas. A demonstração de que a vontade Deus expressa na Escritura se cumpre através desses milagres é que lhes confere uma significação cristológica. O evangelista nos mostra que os milagres de um lado são compreendidos como atos de obediência de Jesus para com a vontade de Deus, e por outro lado, como parte legítima da obra de Cristo apresentada por Mateus como cumprimento da vontade de Deus e como imposição vitoriosa de seus direitos.127 Ele formula claramente a função cristológica do milagre com o qual Jesus realiza a obra do servo de Deus. Em Lucas não é a Escritura que confirma a ação de Jesus, mas a ação de Jesus que confirma a Escritura. O evangelista pretende retratar Jesus como aquele que age, enfatizando a sua “obra” e o seu “agir”. 126 Cf. FEUILLET, A. ‘‘Règne (ou Royaume) de Dieu.’’ III. Évangiles synoptiques. In : Supplément au Dictionnaire de la Bible. p.78 127 Cf. SCHÜTZ, Christian. Mistérios da vida pública e da obra de Jesus. In: Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática histórico-salvífica. v.III/5. Petrópolis: Vozes, 1974. pp. 99-100. 67 Lucas mostra-se particularmente familiarizado com as narrativas judeu-helenísticas e conta também milagres de libertação (At 5,19-23; 12,3-11; 16,23-34) e de punição (Lc 1,1920; At 5,1-11; 12,21-23), acrescentando à atividade miraculosa de Jesus milagres análogos realizados pelos doze apóstolos e por Paulo (At 3,1-10; 5,12-16; 9,32-43; 14,8-17), os quais fazem seus milagres em nome de Jesus e pelo poder de Jesus. Deste modo ele mostra a continuidade entre as atividades de Jesus, dos apóstolos e de Paulo, que em seu tempo fora questionada em determinados círculos cristãos.128 No Evangelho de João são relatadas sete histórias de milagres para representar a atividade milagrosa de Jesus em geral. Essas narrativas têm por objetivo despertar a fé em Jesus, Filho de Deus e fundamentar a fé em sua autoridade messiânica (Jo 5,36; 11,4; 10,25; 20,30-31). Pelo acréscimo de metáforas João ensina a entender as narrativas como sinais teologicamente significativos.129 Os milagres são marcas no caminho para o reino de Deus e possuem caráter simbólico. Em si mesmos, eles não são simples atos de poder que manifestam a autoridade de Jesus, mas sinais que orientam para o seu mistério, convidandonos a ultrapassar o visível para atingir o seu significado.130 Os sinais culminam no supremo sinal da Cruz e da Ressurreição, quando Jesus “passou desse mundo ao Pai "(Jo 13,1). Em suma, as narrativas evangélicas, têm um sentido simbólico e nas curas milagrosas muito mais que uma simples libertação dos defeitos físicos, Jesus liberta os homens das aflições existenciais, da perdição do pecado, da cegueira espiritual, da angústia e da perdição do caminho. E o milagre como tal dá a entender que a libertação não é obra humana, mas um ato da graça divina.131 Os líderes religiosos percebiam nos milagres uma reivindicação 128 Cf. SCHMITHALS, W. Milagre. BAUER, Johannes. In: Dicionário bíblico-teológico. São Paulo: Loyola, 2000. p.262. 129 Cf. SCHMITHALS, W. Milagre. BAUER, Johannes.. In: Dicionário bíblico-teológico. p. 263. 130 Cf. DODD, C.H. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Ed. Teológica, 2003. p. 495. 131 Cf. SCHMITHALS, W. Milagre. In: BAUER, Johannes. In: Dicionário bíblico-teológico. pp. 262-263. 68 religiosa que os inquietava tornando-se necessário que eles tomassem uma decisão. Eles se escandalizavam com as “obras” de Jesus e “isto conduzia a calúnias (Mc 3,22), inimizade, perseguição (Jo 5,16; 9,34) e finalmente a prisão de Jesus”.132 2.3.2.2 A prática de Jesus e a relação com a sua morte e ressurreição Jesus no decorrer de seu ministério público dedica-se a proclamação do anúncio da chegada do reino de Deus que se concretiza através de uma nova forma de vivência dos relacionamentos humanos baseada na justiça, na partilha dos bens, na solidariedade e na fraternidade, tudo isso possibilitando a transformação deste mundo e o acesso a Deus. Em toda a sua vida Jesus anuncia o reino de Deus nos seus ensinamentos através das parábolas, na realização dos milagres, nas expulsões dos demônios, nas refeições em comum com os pecadores e gentios, no perdão dos pecados e, sobretudo no cuidado com os pobres, os marginalizados e os doentes mostrando-lhes um novo rosto de Deus e permitindo aos homens chamá-lo de Pai. As atitudes de Jesus agradavam principalmente aos pobres que o seguiam e o aclamavam, mas provocaram o descontentamento das classes dirigentes que se sentiram ameaçadas com esse novo modo de proceder, levando-as a tomar a decisão de matar Jesus e terminar com o movimento que ele inspirava. Jesus não se preocupava em se defender, ao contrário muitas vezes tentava provocar as autoridades com suas próprias palavras e atitudes.133 Se por um lado Jesus está enraizado na mentalidade do seu povo, por outro ele assume atitudes de extrema liberdade que causam espanto e provocam uma dura oposição das classes dirigentes representadas pelos fariseus e herodianos (Mc 3,6). Os conflitos entre Jesus 132 Cf. BAUER, Johannes . Milagre. In: Dicionário de teologia bíblica. 3 ed. São Paulo: Loyola, 1983. p.701. Cf. MANZATTO, Antonio. Cristologia latino-americana. In: SOUZA Ney (org). Temas de Teologia latinoamericana. São Paulo: Paulinas, 1997. pp.54-55. 133 69 e as autoridades do povo constituem parte integrante do ministério de Jesus tendo como conseqüência a sua condenação pelas autoridades religiosas e civis. Para ser solidário com os homens ele assumirá todos os riscos decorrentes de sua missão mantendo-se coerente com a sua proposta. Os quatro Evangelhos atestam que Jesus morreu na cruz condenado por Pilatos como líder de uma revolta política. Não há uma unanimidade com relação ao processo jurídico da morte de Jesus, sendo provável que somente a autoridade romana tivesse o direito de pronunciar a sentença de condenação à morte de cruz. Enquanto o Sinédrio condenava Jesus por motivos religiosos, o procurador romano mandou executar Jesus na cruz, como rebelde político. Embora tenha percebido que lhe entregaram um homem politicamente inofensivo para ser condenado, ele é convencido de que não devia comprometer sua carreira política por causa de um simples judeu. As autoridades religiosas ameaçavam a própria estabilidade e a segurança do procurador romano.134 A multidão que havia aclamado Jesus na entrada triunfal em Jerusalém, que o procurava como médico e ouvia atentamente a sua pregação é a mesma que grita: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Jo 19,6). O amor de Jesus pela humanidade leva-o a carregar a cruz para o Gólgota, para fora da cidade, onde foi crucificado.135 Para os discípulos e para o próprio Jesus a morte foi a última grande lição do processo revelador, criando uma situação nova e a possibilidade de uma nova experiência. Contra a crença de que Deus “devia” intervir a favor de Jesus, o justo por excelência, na sua morte a cruz converteu-se na rocha firme da fé. Deus estava presente, e “agia na história, mas sem romper suas leis; 134 Cf. FERRARO, Benedito. A significação política e teológica da morte de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977. pp 139-142. 135 Cf. ZILLES, Urbano. Jesus Cristo: quem é este? Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p. 162. 70 continuava sendo o Pai do Crucificado e estava com ele, sustentando-o com seu amor, mas não o descia da cruz”.136 No entanto Jesus de Nazaré assassinado injustamente por sua fidelidade não permanece aniquilado pela morte física. Ele ressuscita pela ação de Deus e alcança sua plenitude definitiva, mas é o mesmo Jesus que os seus seguidores conheceram. Quem Ressuscita é o Crucificado, cuja ressurreição foi gestada em sua vida de amor, fidelidade e entrega. A sua vida real e autêntica não é rompida pela morte, mas glorificada por Deus que ressuscita os mortos. Como Cristo glorioso identificado com o Pai ele passa a um novo modo de existência, conservando a sua identidade pessoal de tal forma que nas aparições os discípulos o identificam com Jesus de Nazaré e o reconhecem pelas marcas dos pregos e pelo jeito de comer o pão. Os testemunhos da ressurreição são aqueles que viveram com Jesus e foram atraídos por ele, por sua mensagem e por sua causa.137 Após a ressurreição torna-se impossível aos discípulos permanecerem calados na condição de testemunhas (At 4,20) e todos os envolvidos se transformam em pessoas que se sentem no dever de anunciar a mensagem primitiva dando continuidade a obra e a missão de Jesus. 2.4. Conclusão A mensagem central da pregação de Jesus contida nos Evangelhos nos mostra um fato que é central: ele está a serviço do reino que considera como a realidade última. Quando Jesus prega o reino de Deus está anunciando uma esperança que já tinha uma longa história em Israel. Supõe-se que ele tenha aprendido de Isaías e dos Salmos em particular a verdade básica: que Deus, como Criador, reinou, reina e sempre reinará sobre a sua criação. A realeza de Deus também é exposta nos livros narrativos do Antigo Testamento, 136 137 TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a Ressurreição. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 166. Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 2000. p.100. 71 em especial no Ex 15,18 ; Dt 33,5 e Nm 23,21. Acredita-se que o Antigo Testamento tenha proporcionado a Jesus a linguagem, os símbolos, a história do domínio régio de Deus e de seus vários significados.138 Para Jesus a expressão “reino de Deus” é um acontecimento pelo qual Deus começa a reinar e a agir como rei ou Senhor e se manifesta no mundo dos humanos pondo fim ao mundo mau e iniciando o novo mundo no qual ele dominará plenamente. Significa também o estado final escatológico O núcleo da mensagem de Jesus se fundamenta na imagem de Deus como pai e rei que veio para governar no fim dos tempos, concepção essa proveniente das tradições de Israel e usada com frequência nas parábolas. Estas reproduzem a mensagem fundamental de Jesus acerca do reino embora ele não o defina e o conteúdo desses relatos é de tal natureza que a interpretação fica aberta e exige uma tomada de posição do ouvinte.139 Nas parábolas muitos dos ouvintes eram os adversários de Jesus que criticavam a sua preferência pelos pobres e pecadores, aos quais ele diz que Deus é rico em misericórdia, terno e amoroso para com os pobres e pequenos. Jesus desmascara a hipocrisia de seus adversários que estão absolutamente cegos ao reino de Deus e por isso suas parábolas são fortemente criticas. Todas as práticas e as atitudes de Jesus convergem para a instauração do reino de Deus que implica em novas formas de convivência humana na qual são abolidas todas as relações de submissão, de dominação de um ser humano sobre o outro, de todas as formas de exclusão social e se concretiza na partilha dos bens e na prática da justiça. Jesus nos mostra Deus como Pai misericordioso que está sempre disposto a acolher e perdoar o ser humano. Mas isso exige a conversão interior, a metanoia. Ele se compadece das aflições e misérias humanas realizando curas, concedendo o perdão dos pecados, expulsando demônios e deste modo manifestando a presença do Deus da Vida no meio do seu povo 138 139 Cf. MEIER, John. Um judeu marginal. v.1. pp. 20-31. Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. v. 1. A história de Jesus de Nazaré. p. 153. 72 disperso e oprimido. Nos milagres Jesus se expressa como quem se sente profundamente comovido pela dor alheia cuja realidade penetra no mais profundo do seu ser, levando-o a libertar os homens do sofrimento material, corporal e também dos males espirituais e do pecado.140 Jesus expressa a misericórdia diante das multidões pobres, desprotegidas, humilhadas como algo primordial e último. E os milagres além da ajuda benéfica, são simultaneamente obras que suscitam a esperança de que a libertação é possível. Toda a prática de Jesus expressa algo da realidade do reino e indica a direção que este tomará em sua plenitude suscitando a esperança de que o reino é realmente possível. O compromisso de Jesus com a causa do reino por contrariar os interesses das autoridades políticas e religiosas do seu tempo tem como conseqüência a sua morte. Ressuscitado por Deus, Jesus torna possível o estabelecimento do reino de Deus na história e a totalidade de sua vida traz a salvação para a humanidade. 140 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador. p. 140. 73 CAPÍTULO III EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE REINO DE DEUS 3.1. A passagem da pregação do reino de Deus para a proclamação da pessoa de Jesus Nas Comunidades pós-pascais o anúncio do reino de Deus não está mais em primeiro plano, mas o querigma é centrado em Cristo e nos eventos salvíficos de sua morte e ressurreição. As cristologias do Novo Testamento e do primeiro milênio eram soteriológicas, isto é, a soteriologia era o objetivo e uma parte integrante da cristologia, e esta procurava firmar a real condição de possibilidade da atuação redentora de Cristo no mistério de sua pessoa. No Ocidente, a partir do século XIII ocorreu uma separação cada vez mais intensa entre a cristologia e a soteriologia. A primeira concentrou-se no problema da constituição do relacionamento entre divindade e humanidade e a segunda restringiu a obra redentora de Cristo à morte expiatória na Cruz. Em épocas mais recentes a teologia voltou a perceber que é na peculiaridade da pessoa de Jesus e em sua história que se fundamenta o significado soteriológico. A cristologia é em si mesma o lugar da soteriologia. As diversas esperanças de salvação precisam ser reinterpretadas e qualificadas de maneira nova a partir de Jesus, pois só na sua pessoa e na sua história se revela o que serve realmente à salvação dos seres humanos e em que sentido ele é o portador universal da salvação.141 141 Cf. KESSLER, Hans. D. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática. v.1. pp. 350- 351. 74 3.2 As abordagens do conceito do reino de Deus ao longo da história A relação de Jesus com o reino de Deus que constituiu o centro de sua pregação, após a ressurreição deixou de ser enfatizada, destacando-se a partir desse momento, a situação de Jesus como Senhor exaltado, a boa-nova e a salvação que se operou em Jesus Cristo. Embora as primeiras fórmulas de fé sejam centradas em Jesus e tenham se mantido o interesse pela salvação, pelos temas éticos e sociais, o reino de Deus deixa de ser decisivo na autocompreensão global do cristianismo. A Igreja, ao invés de compreender-se como distinta do reino com a missão de ser o seu sacramento e sua serva e de julgar o Império partindo do critério do reino de Deus passou a identificar-se com o reino e a centralizar o seu interesse em sua relação com o Império. Os cristãos tinham como referência o exemplo e a atitude de Jesus diante do poder político. Esse, embora não fosse considerado como manifestação de Deus, tanto na narração da paixão nos evangelhos como nos Atos os representantes de César são tratados com respeito. Deseja-se uma tranqüila convivência entre a nova fé e o Estado e aos cristãos ordena-se a submissão à autoridade (Rm 13,1; 1 Pd 2,13), o pagamento dos impostos (Rm 13,6), a oração pelos reis e por todos constituídos em autoridade (1Tm 2,1s).142 Os cristãos não se distinguem dos outros homens por nenhum detalhe exterior. Após a perseguição de Nero, os cristãos deixam de ser molestados e por um período de trinta anos as várias Igrejas podem se organizar, penetrando em todos os estratos da sociedade, até que esta situação é transformada com o início das perseguições no governo de Domiciano.143 Neste período a tentação de integrar-se ao Estado como religião política é vencida pela própria situação de perseguição. Em confronto com as religiões oficiais o cristianismo como fé em Jesus, em um ressuscitado crucificado leva desvantagem, mas aos poucos se oferece como a melhor religião para o Império. Em 313, Constantino que, desde o início do seu reinado 142 143 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2000. pp. 369-371. Cf. PIERINI, Franco. Curso de história da Igreja. I. A Idade Antiga. São Paulo: Paulus, 1998. p. 58. 75 manifestou uma simpatia em relação ao cristianismo, publicou o edito de Milão concedendo aos cristãos a liberdade de culto e reparação dos prejuízos sofridos por eles. A partir desse momento os julgamentos dos tribunais episcopais têm validade oficial e as Igrejas têm a faculdade de construir um patrimônio próprio. Em 380 pelo edito de Teodósio, o cristianismo passa de religião lícita à religião oficial do Estado. O catolicismo romano ortodoxo tornava-se a religião oficial de todo o mundo romano e os cristãos foram beneficiados com múltiplos privilégios fiscais e judiciários.144 Segundo Jon Sobrino,145 nos primeiros séculos do cristianismo não se deu ênfase ao tema do reino de Deus (exceto At 8,12), mas a salvação que se operou em Cristo Jesus. Surgem nos séculos seguintes três formas de interpretação do significado da expressão “reino de Deus”, expostas a seguir: 1º - A personalização do reino. No século III, sob a influência de Orígenes houve uma mudança no conceito do reino de Deus, que ao invés de ser o tipo de realidade históricosocial-coletiva que Jesus pregou passou a centralizar-se na sua pessoa, dispensando o compromisso com a transformação social da realidade. Jesus mesmo afirma a relação entre o reino de Deus e a sua pessoa, às vezes de forma explícita (Mt 12,28 par) ou de forma implícita através de diversas ações e práxis que devem ser interpretadas como sinal da chegada do reino em favor dos pobres, da luta contra o antirreino ou como celebração da presença do reino. Jesus é o mediador da vontade de Deus, é a pessoa que anuncia o reino. Ele é o mediador definitivo do reino.146 144 Cf. PIERRARD, Pierre. História da Igreja São Paulo: Paulus, 1982. pp. 41-42. Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas. pp. 492-493. 146 Cf. SOBRINO, Jon. Cristologia sistemática. Jesucristo, el mediador absoluto del reino de Deus. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la teologia de la liberación. v. 1. Madrid: Editorial Trotta, 1990. pp. 576-577. 145 76 2º - A identificação da Igreja com o reino de Deus. De acordo com o Concílio Vaticano II, a Igreja “constitui na terra o germe e o início deste reino”.147 A Igreja não é o reino de Deus, mas sua servidora por princípio e suas realizações internas devem ser sinal do reino na história. A missão da Igreja deve ser como a de Jesus: boa notícia para os pobres, evangelização e denúncia, anúncio da Palavra e realização histórica da libertação.148 3º - O reino é deslocado para o além ou para o interior, a-histórico e o esotérico. Deste modo ele se desistoriciza e não se mantém a relação entre o reino de Deus e a libertação dos pobres. De acordo com Jon Sobrino a centralidade do reino de Deus só foi teoricamente recuperada após o Concílio Vaticano II e abertamente só em Medellin cujo “avanço fundamental consistiu em que remeteu a fé e a Igreja não mais ao mundo, mas aos pobres”.149 Esses constituem a maioria da população e são produzidos pelos sucessivos regimes mundiais, são marginalizados, desprezados, excluídos porque não preenchem os requisitos do humano ditado pelas culturas dominantes. No Novo Testamento existem conjuntos de realidades (graça, Espírito, liberdade, justificação) que recebem um status teologal, enquanto os elementos concernentes ao reino (pobres, libertação, pecado estrutural) não alcançam este nível sendo mantidos no campo ético ou espiritual. Esquece-se que os pobres em sua realidade teologal “são os privilegiados de Deus”.150 147 Cf. PAULO VI Lumen Gentium “de Ecclesia”. Constituição Dogmática sobre a Igreja. 18 ed. São Paulo: Paulinas, 2005. 148 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. p.507. 149 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 112. 150 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas . pp. 493- 494. 77 3.3. O conceito de reino de Deus no cristianismo primitivo Há referências da mensagem de Jesus sobre o reino na obra dos Padres Apostólicos (os primeiros sucessores dos autores do Novo Testamento), em Justino, Irineu, Cipriano, Orígenes, Hilário de Poitiers, Eusébio de Cesareia, Agostinho e os fundadores do Santo Império.151 Segundo Benedict Viviano152 do fechamento do cânon do Novo Testamento até o ano mil, a história do Cristianismo conheceu quatro grandes correntes de interpretação e de realização do reino que se prolongam até a época moderna, apresentadas a seguir: a) A corrente escatológica. Nos dois primeiros séculos da nossa era consideravam-se iminentes o fim do mundo e a volta de Cristo, bem como o anúncio neotestamentário da ressurreição de Cristo como realização das promessas do Antigo Testamento.153 O principal representante desta corrente é o bispo de Lião, Santo Irineu. Os Padres da Igreja mesmo quando entendiam as concepções apocalípticas, eles as achavam incríveis ou pastoralmente inoportunas. Quando o cristianismo passou da esfera do judaísmo da Palestina e da diáspora ao mundo greco-romano, a problemática se deslocou da salvação social representada pelo reino de Deus para os problemas da salvação pessoal e individual: a morte, a imortalidade da alma e a obtenção da vida eterna. São encontradas referências ao reino de Deus na carta de Clemente de Roma154, escrita provavelmente em 95 ou 96 d.C. Ele mostra que os apóstolos, tendo recebido os dons do Espírito Santo, iam por toda parte anunciar a vinda do reino dos Céus que constituía o centro 151 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. Paris, Les Éditions du Cerf, 1992. p. 53 Esta classificação está fundamentada no cap. II : Le royaume de Dieu chez les Pères de l’Eglise da obra de VIVIANO, Benedict o. p. Le royaume de Dieu dans l’histoire . pp.53-91. 153 Cf. GRESHAKE, Gisbert. Escatologia. In: LACOSTE, Jean Ives. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004. p. 620. . 154 É o terceiro sucessor de Pedro. Ele escreveu a Carta aos Coríntios em nome da comunidade cristã de Roma e a Segunda Carta de Clemente é, de fato, uma Homilia do século II sobre Cristo, juiz e redentor. Cf. HENNE, Philipe. Apostólicos (Padres). In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p.174. 152 78 da pregação de Jesus. Na Segunda Epístola de Clemente, ele afirma que a esperança do reino permanece viva como preparação para o dia da manifestação de Deus. Na Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos, o mais antigo manual de disciplina e prática eclesiástica, escrita provavelmente entre 50 e 70 d.C. o reino é mencionado pela primeira vez na tradição do Pai Nosso (8,2), na Instrução sobre a celebração eucarística (9,4) e na Ação de graças depois da ceia (10,5). Inácio de Antioquia vê na abolição da morte e na vida eterna uma alternativa ao antigo reino. Na sua Carta aos Efésios, ele cita 1 Cor 6,9: “Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus?” Eusébio de Cesareia refere-se a um tratado escrito por Pápias no qual ele menciona um período de mil anos após a ressurreição dos mortos quando o reino de Cristo será instalado sobre a terra. Esta duração é também usada por Barnabé, baseada em Ap 20, 1-10, mas não coincide com a concepção escatológica do reino encontrada nos Sinóticos, como também não é o centro da fé, nem da esperança cristã. Justino, na sua Apologia em defesa da fé cristã dirige-se ao imperador Antonino, alertando-o que o reino que os cristãos esperam não é um reino humano, mas um reino futuro vindo de Deus. Justino acredita que a ressurreição da carne acontecerá em uma Jerusalém reedificada, decorada e engrandecida como haviam afirmado os profetas Ezequiel, Isaías e outros. Ele elucida as duas vindas de Cristo (Parusias): uma no abaixamento e outra na glória. Cipriano oscila entre o ponto de vista escatológico e a perspectiva espiritual e levanta uma questão fundamental, afirmando que não pode haver um tempo durante o qual Deus não reina. Ele é Senhor soberano de sua criação e, portanto reina sempre, seu reino existe sempre. Esse é um postulado bíblico fundamental. Justino acredita que a criação de Deus decaiu, afastando-se Dele, mas a soberania sobre a sua criação é reafirmada gradualmente em Jesus Cristo. 79 b) A corrente místico-espiritual. A transição cultural do cristianismo do universo judeu palestinense ao mundo imperial circunvizinho, influenciado pelo classicismo greco-romano, contribuiu para que Cristo fosse anunciado ao mundo, acolhido como revelador e Salvador. O cristianismo passou a ser uma religião mundial, mas o reino de Deus e a esperança cristã se reduziram à ressurreição individual, perdendo-se a dimensão social e histórica. Essa perda teve como causa o contato com a filosofia helenística, cujo conhecimento científico repousava sobre a crença em essências eternas e espécies estáticas. Portanto, o mundo era eterno e a história não tinha objetivo. O único inimigo era a morte. Nesse contexto não havia lugar para uma futura intervenção de Deus na história, capaz de modificar as estruturas sociais no sentido de paz e de justiça.155 A ideologia imperial é desescatologizante, isto é, não há outro tempo possível, não há futuro e o império se define como eterno, o fim da história. O império e seus agentes temem a introdução da expectativa escatológica porque implica em uma quebra da racionalidade linear do poder, o tempo em que ressoa a voz profética que coloca em evidência o clamor da multidão e a realidade da insatisfação fundamental das maiorias.156 O interesse das pessoas por si mesmas abria espaço para a interpretação místico-espiritual do reino, com a perda do referencial hebraico do Antigo Testamento. A corrente místico-espiritual é representada por Orígenes de Alexandria157 que além de ser um autor espiritual e um exegeta é o grande teórico da “apocatástase” ou restauração de 155 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 66. Cf. MIGUEZ, Néstor O. Jesus, o povo e a presença política. Concilium. Petrópolis, nº 322, p. 73(537). 4/2007. 157 Orígenes nasceu provavelmente em Alexandria numa família cristã por volta do ano 185. Frequentou a escola catequética e após a execução de seu pai ele passa a ensinar gramática, catequese e filosofia cristã. A partir do ano 232 muda-se para Cesareia da Palestina onde é nomeado presbítero e prosseguirá o seu ministério. Além de inúmeros trabalhos exegéticos, são suas obras: Princípios e Contra Celso. Durante a perseguição de Décio por volta de 255 foi preso e torturado, morrendo pouco depois, provavelmente em Tiro em conseqüência das torturas sofridas. A vida de Orígenes é relativamente bem conhecida graças a Eusébio de Cesareia que lhe consagra a quase totalidade de sua obra: História Eclesiástica. Cf. BOEHNER, Philotheus & ETIENNE, Gilson. 4 ed. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1988. p.48. 156 80 toda a criação (At, 3,21). Ele acredita que no fim dos tempos, após a purificação necessária, todos os pecadores e mesmo Satã e outros anjos decaídos serão salvos. Concebe a escatologia como uma protologia, isto é, a restauração do estado paradisíaco. Associa o platonismo ao cristianismo colocando o Uno e o espírito entre os mais altos valores e transforma doutrina do reino dissolvendo a espera cristã da ressurreição dos mortos na imortalidade da alma, visto que na sua concepção platônica a perfeição cristã consiste em uma progressiva desmaterialização. Imbuído do pensamento de João no qual Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida, Orígenes tem a tendência de identificar o reino com Jesus. Orígenes com base em Lc 17,21 “...o Reino de Deus está dentro de vós” e em outros textos da Escritura, interpreta o reino de Deus como algo do puramente espiritual e interior relacionando-o à perfeição da alma individual que pode ser atingida aqui e agora. Nega toda idéia de desenvolvimento histórico, de movimento voltado ao objetivo social querido por Deus.158 c) A corrente política. Após dois séculos e meio de perseguição intermitente os cristãos ficaram admirados de se encontrarem vivendo sob o domínio de um imperador que além de proclamar a sua conversão quer tornar cristão todo o Império. A política de Constantino após a sua vitória sobre Maxêncio leva-o a fazer do cristianismo a principal religião dando ao Império uma unidade nova. Nesta tarefa ele conta com o apoio de Eusébio de Cesareia, um dos seus conselheiros eclesiásticos, cuja teologia de cunho helenista enxerga em Constantino, de acordo com a idéia da imagem original e a sua cópia do platonismo imagem-cópia do Logos celeste cujo senhorio o imperador tem que assumir na terra”.159 Eusébio compara o imperador ao sol que espalha os seus raios sobre os sujeitos mais 158 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 70. BUSSMANN, Magdalene . Reino de Deus. B.Historicamente. 1. O cristianismo primitivo. In: EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993. p. 770. 159 81 afastados do seu império e exalta a monarquia como a melhor forma de governo terrestre semelhante ao modelo divino que encontra a sua força na monarquia de Deus. A tarefa do imperador é realizar na terra o senhorio de Deus ou de Cristo, tornando-se ele próprio o órgão executor da vontade divina. No reino de Constantino deve se realizar o plano de Deus concernente ao mundo com o objetivo de levar a história dos homens ao verdadeiro conhecimento de Deus e à verdadeira humanidade.160 Para Constantino há somente um Deus e somente um soberano que administra o reino de seu Pai para o bem de todos aqueles que o seguem e são submissos a seu poder. O Império como associação de Igreja e Estado assumiu a função que, antes de 313 cabia à Igreja: anunciar o reino de Deus. Constantino criou uma tradição de relações entre a Igreja e o Estado que levou os imperadores do Oriente e também do Ocidente após a coroação de Carlos Magno a se considerar como os chefes da Igreja sobre a terra.161 d) A corrente eclesial. Seu principal representante é Agostinho que nasceu 14 anos antes da morte de Eusébio. Ele sofreu uma forte influência da filosofia neoplatônica através do seu contato com a obra de Plotino e Porfírio, uma filosofia altamente espiritual, desligada deste mundo, centrada sobre o Uno e o eterno. Para essa filosofia, o que é material, histórico e contingente são considerados estágios inferiores que a alma ultrapassa para atingir a Deus. Esse tipo de pensamento não era coerente com um reino futuro se estabelecendo sobre a terra e a salvação consistia em deixar a terra e encontrar-se com o Uno. Agostinho cristianizou e socializou esta concepção descrevendo a felicidade como a visão beatífica de Deus que se realiza somente no céu. 160 Cf. BUSSMANN, Magdalene. Reino de Deus. B. Historicamente. O cristianismo primitivo. In: EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. pp. 769-770. 161 Cf. VIVIANO, Benedict T, o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 80-81. 82 Atraído pela interpretação espiritual do reino desenvolvida por Orígenes, Agostinho em sua obra A cidade de Deus, provavelmente o livro mais longo consagrado ao reino inclui também uma teologia da história. Ele utiliza os velhos esquemas apocalípticos das idades do mundo contando-se em geral seis, outras vezes quatro ou ainda sete. Para Agostinho o reino de Deus consiste na vida eterna com Deus, no céu. É a cidade de Deus por oposição a cidade terrestre. Nega um fundamento religioso ao império cristão uma vez que este é desprovido de justiça e seu amor não se destina ao verdadeiro Deus.162 Agostinho não acredita que a integração da Igreja no Império cristão possa levar à consumação do reino de Deus Rejeita as pretensões cesaropapistas e acentua o valor relativo da cidade terrena cuja função é servir à cidade de Deus. Sua interpretação político-eclesiástica sofreu reduções em sua época ao identificar a cidade terrena com o reino terreno e a cidade de Deus com a Igreja. Para Agostinho o império cristão não é o reino de Deus, pois é desprovido de justiça e seu amor não se dirige ao verdadeiro Deus.163 3.4. Concepções do reino de Deus na Idade Média A Idade Média em seu conjunto não apreendeu a dimensão futura do reino de Deus neste mundo. Este período foi influenciado pela filosofia platônica, que difundia uma viva nostalgia do eterno e um lugar fora da história e do tempo.164 O Império do Ocidente é compreendido como a primeira materialização do reino de Deus, cuja propagação, organização interna e defesa cabiam ao imperador. Esta concepção é substituída pela ideia de 162 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le Royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 54-91. Cf. VIVIANO, Benedict T. o. p. Le Royaume de Dieu dans l’histoire. p. 87. 164 Cf. VIVIANO, Benedict T. o. p. Le Royaume de Dieu dans l’histoire. P.93. 163 83 que o papa detém a plenitude do poder e o poderio imperial ou real tem apenas um papel secundário.165 Os representantes mais notáveis da alta escolástica: Boaventura, Tomás de Aquino e Alberto Magno, em suas obras não apresentam com clareza o reino divino futuro. Os dois primeiros recebem a influência de Joaquim de Fiore166 que não trata diretamente do reino de Deus tal como é mostrado nos evangelhos, mas apresenta um terceiro estágio do mundo, um novo período da história da salvação, no qual a atividade do Espírito atingirá sua perfeição e todos viverão em contemplação. A continuidade entre a Igreja do segundo estado e esta do terceiro é assegurada por uma função papal petrina, sendo que a função do clero se torna dispensável. Este tríplice esquema da história dá origem à esperança em um mundo melhor, mas torna-se revolucionário e subversivo, fazendo com que em 1255 o papa Alexandre IV condene a doutrina dos três estágios de Joaquim de Fiore e em 1263, no concílio provincial de Arles toda a sua obra seja condenada.167 Nem Boaventura (franciscano), nem Tomás de Aquino (dominicano) perceberam o lugar central do tema evangélico do reino de Deus. Boaventura compartilha do gosto pela escatologia do fundador de sua ordem (Francisco) e escreve uma obra sobre a teologia da história, buscando sintetizar o pensamento histórico-simbólico que caracterizava a 165 Cf. HÜNERMANN, Peter. Reino de Deus. B.Teologia histórica. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 1505. 166 Joaquim de Fiore – abade calabrês nascido em 1135 e falecido em 1201. Em sua obra o reino único de Deus é marcado ora pelo Pai, ora pelo Filho e ora pelo Espírito Santo. A primeira forma do reino é o reino do Pai. Nesse reino, Deus governa pelo seu poder e sua providência sobre todas as coisas e seu domínio se exerce pela sua lei e pelo temor. A segunda forma é o reino do Filho. Nele Deus impera pelo anúncio do Evangelho e pela distribuição dos sacramentos da Igreja. Os homens passam de escravos da lei a filhos de Deus e seu temor a Deus se converte em confiança. A terceira forma é a do reino do Espírito, no qual Deus impera pela revelação e pelo conhecimento imediatos e os homens passam de filhos para amigos de Deus. Esta relação constituía o mais elevado grau de liberdade. O reino do Espírito é determinado pelas forças e pelas energias da nova criação. Por elas os homens passam a ser a habitação e o lar de Deus. O pensamento de Joaquim de Fiore sobre os três períodos ou os três reinos da história do mundo influenciou frequentemente os messianismos religiosos, culturais e políticos da Europa. Cf. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000. pp. 210216. 167 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 96. 84 interpretação da profecia bíblica por Joaquim de Fiore associando-o ao pensamento conceitual e abstrato da escolástica. Ele estabelece uma distinção entre Francisco e o franciscanismo e tenta ligar os acontecimentos do seu tempo a um futuro escatológico iminente preservando a continuidade com a Igreja atual. Boaventura herdou de Joaquim de Fiore uma esperança para este mundo, ligando-a ao retorno do Filho e a validade imutável do Novo Testamento.168 Tomás de Aquino não dedica uma parte notável de sua principal tarefa teológica ao tema central da pregação de Jesus, isto é, ao reino de Deus. Tanto no índice clássico da Suma Teológica, como da Suma contra os gentios quase não aparece a palavra “reino” ou “reinado”. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino elaborou uma vasta construção moral em torno do tema da justiça e no seu comentário sobre Mateus 3,2, por um lado ele dá ao reino uma definição intimista e individualista fundamentada em Lc 17,21 “O reino de Deus está dentro de vós” e por outro, ele adota a mesma concepção aceita por Agostinho: o reino é a Igreja sobre a terra e após a morte, o céu. A teologia da história de Joaquim de Fiore foi tratada com reserva por Tomás que rejeita as suas idéias, em especial à promessa de uma idade do Espírito Santo, pois a Lei antiga não era somente do Pai, como também a Lei do Filho; a Lei nova não era somente do Cristo como também a Lei do Espírito Santo. Não é necessário esperar outra Lei que será a do Espírito Santo, visto que a Trindade toda inteira esteve sempre presente na sua criação que é a obra na história. Tomás de Aquino, assim como outros teólogos da sua época que marca o apogeu da Idade Média, não retoma o tema do reino de Deus. Ele desenvolve uma visão global da realidade fundamentada no esquema da emanação e do retorno em Deus. Sua concepção de 168 Cf. VIVIANO, Benedict T. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 98. 85 mundo se caracteriza por uma perfeita comunicação com Deus na qual o mundo se vê ao mesmo tempo julgado.169 Alberto Magno adota a expressão do reino que se encontra em Rm 14,17; “... porquanto o reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.” Ele compreende o reino como grandezas puramente interiores e como tal ele o despoja do poder de transformação social que lhe é inerente. Esta crença decorre provavelmente das suas experiências como bispo no seu contato com as atividades da Igreja e do Império. Alberto Magno acredita que Deus reina nos corações, mas não diretamente no mundo. Ele recebe influência da teoria política de Platão e do neoplatonismo cristão do Pseudo-Dionísio para as quais o governo ideal é o governo do filósofo que utiliza a educação e a retórica para persuadir os cidadãos conquistando-lhes o coração e o espírito. O espírito divino opera pela persuasão, pela ordem e pela atividade. Alberto Magno vê no reino um governo divino e não uma realidade territorial específica. A sua concepção de reino demonstra uma forte tendência à espiritualização impedindo que a sua doutrina servisse de fundamento teológico às doutrinas sociais radicais. Alberto não considerou a concepção escatológica judaica que forma o conteúdo específico da pregação de Jesus, isto é, uma intervenção divina neste mundo, no interior da história.170 Em síntese, a teologia medieval não apreendeu a dimensão futura do reino de Deus. À teologia dos três estados de Joaquim de Fiore, na qual a Lei de Cristo não era definitiva, pois antes do fim do mundo se implantaria o reino do Espírito Santo, se opõem Boaventura e Tomás de Aquino. Já Alberto Magno, não menciona em nenhuma parte de sua obra o 169 Cf. HÜNERMANN, Peter. Reino de Deus. B- Teologia Histórica. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 1506. 170 Cf. VIVIANO, Benedict T, o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 120-121. 86 conhecimento da teologia da história de Joaquim de Fiori. Suas idéias sobre o reino de Deus estão apresentadas em seus Comentários sobre o Evangelho de Mateus, nos Comentários sobre os nomes divinos e na Teologia mística de Pseudo-Dionísio. 3.5. Concepções do reino de Deus na Idade Moderna No fim da Idade Média, surgiu um fluxo de personagens e de movimentos de modo que a visão medieval do mundo se esfacelou tanto no aspecto político e geográfico como no aspecto religioso, eclesiástico e social. Isso fez com que as concepções do reino de Deus não tivessem representações concretas que pudessem se realizar pelo poder estatal ou eclesiástico. As concepções de reino de Deus tornaram-se tarefa da filosofia e da teologia especulativas tornando-se relevantes a partir de pontos de vista condicionados por interesses.171 O reino apocalíptico que Jesus pregou não avançou quase nada até o surgimento da figura de Kant, antes do fim do século XVIII que coloca o tema do reino de Deus no centro do pensamento e da vida eclesiástica possibilitando que esse tema seja amplamente abordado nos domínios intelectuais. Com o Renascimento surgiu o interesse pela Antiguidade clássica e graças à imprensa os textos pagãos e cristãos foram reunidos e estudados, havendo um deslocamento dos estudos da filosofia em direção à retórica, à estética e à filologia, o que favoreceu a compreensão histórica dos textos antigos. No interior da Renascença tais estudos bem como as edições do Novo Testamento em grego feitas por Ximenes (1514) e Erasmo (1515), o guia da Bíblia hebraica e a primeira publicação de Irineu feita opor Erasmo, levaram à redescoberta progressiva do tema judeu-cristão, de um reino de Deus apocalíptico. 171 Cf. BUSSMANN, Magdalene. Reino de Deus. B. Historicamente. I. O cristianismo primitivo. In: EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. p. 773. 87 Na época barroca e moderna aconteceu uma grande redescoberta com a publicação dos pseudepígrafos da apocalíptica judaica e começou gosto pelas obras místicas da Cabala com Pico de la Mirandola. Mas o interesse pelo neoplatonismo e o neopaganismo hostis à fé bíblica tornaram-se um obstáculo à compreensão do reino. Após 1450 surgiu a grande figura religiosa do renascimento italiano, Jerônimo Savanarola (1452-1498) cuja inspiração reformadora se apóia não somente na Bíblia, como também no Tratado da Profecia, obra de Tomás de Aquino que integra a Suma Teológica.172 Savanarola planejou derrubar a família reinante dos Médicis e proclamar em sua cidade-estado uma república cujo rei era Cristo. Em sua pregação ele faz críticas aos vícios do clero e do papado mantendo viva a crítica profética da sociedade e espera a intervenção divina na história com a restauração da cristandade através da instalação de uma democracia teocrática. Embora ele não aborde diretamente o reino de Deus deseja implantar uma república de Cristo.173 Surgem no início dos tempos modernos modelos utópicos de compreensão secularizada do reino de Deus, em obras escritas por homens de reflexão que elaboram o esquema das sociedades ideais. A primeira obra desse gênero é a Utopia, na qual Tomas Morus descreve uma comunidade ideal que vive segundo a lei natural e lança críticas sobre os abusos das autoridades do seu tempo. Em 1623, Tomas Campanella escreve na prisão a Cidade do Sol, apresentando um modelo de sociedade estruturada em círculos concêntricos com um sistema de classes estático que deveria ser colocado sob o controle dos padresfilósofos encarregados de submeter o governo do Estado à autoridade suprema do papa. Nesta obra a dimensão religiosa fica reduzida à Lei natural e aos sacramentos e a 172 173 Cf. VIVIANO, Benedict T. o..p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 131. Cf. VIVIANO, Benedict T. o..p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 132. 88 centralização burocrática domina do ponto de vista político. Campanella edificou uma catedral da ordem social, porém se recusou a imaginar um futuro melhor para a sociedade.174 As aspirações dos joaquinitas deram origem às especulações utópicas e aos projetos missionários que se instalaram após a descoberta do Novo Mundo nas Reduções dos jesuítas no Paraguai, um tipo de comunidade utópica paternalista para os índios batizados. No Brasil, destacou-se a atuação de Antônio Vieira (1608-1697) que, em sua pregação cheia de inspiração profética trabalhou intensamente para melhorar as condições de vida dos índios. Ele deixou uma obra inacabada, Chave dos Profetas consagrada à consumação do reino de Cristo sobre a terra. A inspiração missionária joaquinita influenciou também a obra do franciscano Junípero Serra que, após a extinção dos jesuítas175 em 1773, construiu vinte missões ao longo da costa californiana, cada uma dotada de um plano utópico com o objetivo de melhorar a vida dos índios.176 Na época da Reforma com o retorno às Escrituras, a redescoberta da mensagem bíblica sobre o reino de Deus não ocorreu com os luteranos, calvinistas e anglicanos, mas entre os grupos marginais: os anabatistas177 e, mais tarde os pietistas.178 As grandes correntes da Reforma protestante estavam preocupadas essencialmente em radicalizar a mensagem de 174 Cf. VIVIANO, Benedict T. .o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 134 . A Companhia de Jesus foi extinta no dia 12 de agosto de 1773, pelo papa Clemente XIV através da bula Dominus ac Redemptor, com antedata de 21 de julho. Ele justificou a supressão alegando à necessidade de uma paz duradoura enquanto a ordem existisse e que seus membros poderiam se ocupar com maior proveito nos vários ministérios. A Companhia foi restabelecida por Pio VII com a bula Sollicitudo omnium Ecclesiarum, em 17 de agosto de 1814. Cf. MARTINA, Giaccomo. 2 ed. v.2. História da Igreja - de Lutero a nossos dias. A era do absolutismo. São Paulo: Loyola, 2003. p. 296. 176 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 133. 177 O anabatismo nasceu em meio a abundância de idéias e de movimentos que marcaram o início da Reforma do século XVI. Aqueles que queriam reformar a Igreja e não estavam mais de acordo com Lutero, Zwinglio e Calvino tornaram-se dissidentes. Por razões polêmicas esses dissidentes protestantes foram qualificados em sua totalidade como “anabatistas” ou “rebatizadores”. Cf. BLOUGH, Neals. Anabatistas. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 118. 178 Faziam parte do movimento de renovação religiosa protestante depois da Reforma chamada “pietismo”, cujo objetivo era retornar o ímpeto do cristianismo primitivo e os impulsos iniciais da Reforma. Ele se apresenta como um retorno decisivo à Bíblia. Quer promover a individualidade e a fé pessoal ou a de pequenos grupos de crentes frente à hierarquia das Igrejas. Difundiu-se, sobretudo na Prússia e em Wurtemberg. Cf. BOUREL, Dominique. Pietismo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 1399. 175 89 Paulo e Agostinho sobre a salvação, mediante a graça e a fé. Os calvinistas demonstravam o gosto pelas Escrituras hebraicas e os anglicanos davam preferência ao Quarto Evangelho. O interesse de ambos pelos Evangelhos sinóticos concentrava-se apenas nas parábolas de Lucas sobre o perdão dos pecados. Lutero (1483-1546) apresenta sua posição ao imperador Carlos V em 1530, na obra Confissão de Augsburgo escrita por seu colega humanista Melanchthon. Ele também escreve a Apologia, na qual Lutero desenvolveu uma doutrina dos dois reinos e explica a distinção entre o reino de Cristo e o reino político. O primeiro é espiritual, é o conhecimento íntimo de Deus, o temor de Deus e a fé, o começo da justiça e da vida eterna. Já o reino político, Deus o assume através da autoridade civil. Para Lutero os homens estão separados em duas categorias: a primeira pertence ao reino de Deus e a segunda ao reino do mundo. Todos os verdadeiros crentes em Cristo pertencem ao reino de Deus no qual Cristo é o Rei e o Senhor; enquanto que, ao reino do mundo pertencem àqueles que não são cristãos e estão sujeitos à Lei.179 Sua concepção de reino é semelhante à interpretação místico-espiritual de Orígenes e seu pensamento social é de tendência conservadora sem nenhuma intenção de promover uma revolução econômica ou social. Lutero pensava na iminência do fim dos tempos, mas não acreditava que uma intervenção divina pudesse alterar a ordem dos acontecimentos sobre a terra.180 Outras figuras da Reforma clássica foram Martin Bucer (1491-1551) e Calvino (15091564). Martin Bucer (1491-1551) foi dominicano e após deixar sua ordem, foi perseguido e excomungado refugiando-se em Estrasburgo, onde exerceu a função de pastor e reformador. Em 1549, foi expulso de lá e recebido na Inglaterra, tornando-se professor de teologia do rei Eduardo V, em Cambridge. Ele redigiu sua última obra, O Reino de Cristo, em 1550 para o 179 180 Cf. VIVIANO, Benedict T, o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 141. Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 146. 90 rei com a esperança de que durante o seu reino a Reforma se instalasse na Inglaterra e houvesse uma mudança profunda na vida da nação. Tal obra contém um projeto que se baseia em uma teologia bíblica e se destina à implantação de uma sociedade cristã incluindo a Igreja e o Estado.181 Martin Bucer faz comentários dos evangelhos sinóticos e ensina que a vida do homem deve ser comandada pela vontade de Deus revelada na Bíblia. Embora sua ética social seja considerada ingênua, sua política e suas proposições têm influência na Igreja anglicana e demonstra uma certa experiência prática de administração. João Calvino foi o principal organizador e líder da Igreja reformada em Genebra. Em sua “A instituição da religião cristã” ele faz referências ao reino de Deus que significa a remissão dos pecados, a salvação, a vida e todos os bens que recebemos do Cristo. Deus é aceito como rei pelos homens, quando estes renunciam a si mesmos e desprezando a vida terrestre fazem adesão à justiça de Deus para aspirar à vida celeste. O reino pode ser de bens espirituais, o céu, às vezes a Igreja, mas jamais a Igreja do papa ou o Estado. A maior preocupação de Calvino era opor-se à Igreja romana e aos anabatistas, por não concordar com a sua crença na escatologia apocalíptica. A doutrina religiosa de Calvino influenciou a classe média citadina e industrial, contribuindo para a formação de um governo democrático conservador característico dos países anglo-saxões e da Suíça.182 Na ala radical da Reforma estavam os anabatistas que tinham uma ligação mais estreita com o tema do reino de Deus. Eles foram o único grupo capaz de associar a mensagem evangélica sobre o reino aos objetivos sócio-políticos, tornando-se os precursores de uma ordem social mais justa. Defendiam uma democracia igualitária, a liberdade e a 181 182 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 153-154. Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 154-155. 91 tolerância religiosa. Outrora perseguidos e desprezados, eles ocupam posição de destaque na história do reino e até hoje sua influência é muito intensa, sobretudo nos Estados Unidos.183 A insistência de Calvino sobre uma vida cristã disciplinada influencia a prática espiritual luterana dando origem ao pietismo que atinge Frankfurt, a Saxônia e depois Wurtemberg e a Morávia. Entre os pietistas fervorosos encontram-se os pais de Kant que liam a Bíblia regularmente e seguiam um modelo de santidade baseado nos Evangelhos sinóticos. Kant (1724-1804) conhecido mais como filósofo do que como teólogo, coloca o reino de Deus no centro do seu pensamento religioso e esse tema continua a ocupar o centro da reflexão teológica com exceção de curtos períodos da história.184 Ele define o reino de Deus como o mais elevado bem moral que uma comunidade humana pode alcançar, tornando-se uma grandeza intramundana apreensível pela razão humana, que mediante a educação e os esforços morais pode ser alcançado dentro da história humana como um fim mais elevado. A própria história torna-se o lugar no qual se desvela um plano divino inserido no homem, que o executa, tendo em vista a consumação de sua harmonia preestabelecida. A história, a evolução, a natureza, a educação e a moralidade tornam-se as pedras de construção para o reino de Deus, que é o bem mais elevado.185 Entretanto, Kant é acusado de reduzir o cristianismo à moralidade e à consciência, de sua posição deísta 186 e de tratar com hostilidade as instituições da Igreja. 183 Cf. VIVIANO, Benedict T. o. p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 152. Cf. VIVIANO, Benedict T. o. p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 161. 185 Cf. BUSSMANN, Magdalene. Reino de Deus. B.Historicamente. 1. O cristianismo primitivo. In: EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. p. 774. 186 O termo “deísta” serve para designar os que creem em Deus criador, na providência divina e na imortalidade da alma, mas rejeitam a revelação e, sobretudo o dogma trinitário. Cf. LAGRÉE, Jacqueline. Deismo/Teismo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 513. 184 92 Após a predominância do idealismo alemão, o pensamento do século XIX passa a ser dominado pela filosofia romântica de Schelling (1775-1854) e seu companheiro de estudos, Hegel (1770-1831), que tenta sintetizar o pensamento do romantismo e do iluminismo. Ambos estão interessados nos problemas religiosos, com ênfase na categoria do Espírito, na significação da Trindade e, imersos no pensamento do seu tempo se sentem como agentes que participam do nascimento do reino de Deus. Schelling compara o cristianismo e o classicismo pagão, mostrando que, enquanto o politeísmo pagão vê Deus na natureza e no espaço, o cristianismo encontra Deus no tempo e na história como um reino moral. O que é simultaneidade para a religião grega para o cristianismo é sucessão no tempo, no qual se descobre o mistério do reino divino. Hegel e Schelling se esforçaram para introduzir o tempo e a história nas estruturas estáticas e eternas da metafísica grega contribuindo para a concepção de uma evolução na natureza e na doutrina da Igreja.187 Segundo Benedict T. Viviano, Hegel e Schelling contribuíram para romper com a convicção de que a sociedade seria irreformável, e de que tudo deve continuar submerso no pecado original até que cheguemos ao céu. Fundamentados tanto na Bíblia como na metafísica eles acreditavam na intervenção de Deus na marcha da história.188 A interpretação filosófica do cristianismo feita por Hegel é organizada em três seções: a) o reino do Pai, que trata da doutrina do Deus trino; b) o reino do Filho, que trata da queda, da encarnação, dos ensinamentos, da morte e da ressurreição e, c) o reino do Espírito que trata da doutrina da Igreja, dos sacramentos e da vida cristã. Esse último é descrito como um ser vivo, uma comunidade divina, uma vida espiritual, é a presença de Deus em nós. Para Hegel o reino é o centro da pregação do Cristo e ele apresenta a visão de uma comunhão entre Deus e a humanidade. Para ele a Igreja é o reino de Deus, a vida, a preservação e a fruição do 187 188 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire pp. 165-167. Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire p. 168. 93 Espírito, a unidade implícita da natureza divina e da natureza humana. Entretanto, quando Hegel identifica a Igreja com o reino de Deus ele faz do Estado o reino, pois a Igreja não é senão um organismo subordinado ao Estado.189 No século XIX, os teólogos da Escola de Tubinga acentuavam o conteúdo teológico do reino de Deus. Para J. S. von Drey (1777-1853) o reino de Deus deveria ser o princípio unificador de todo o pensamento cristão. Ele procurou através da idéia do reino de Deus fazer uma ligação entre as verdades universais e eternas da filosofia e as verdades contingentes, particulares e ligadas ao tempo da revelação bíblica e da doutrina da Igreja. J.S. von Drey recebeu de Kant a idéia de que o reino de Deus é a necessidade da própria razão e, baseando-se em Hegel e Schelling ele ligou o ser e o tempo, a revelação e a razão. Também de Tubinga, J. B. Hirscher (1788-1865), autor de A Moral cristã, doutrina da realização do reino divino na humanidade, constrói uma moral da Igreja, do Estado e da família baseando-se em conceitos dos Evangelhos sinóticos. Ele construiu uma moral da Igreja, do Estado e da família e sua obra exerceu influências na organização social e política dos trabalhadores, espalhando-se em toda a Alemanha.190 Em suma, a contribuição de teólogos para a redescoberta da mensagem escatológica de Jesus, para a volta da exegese e a problemática do reino de Deus criou condições para que o concílio Vaticano II pudesse definir a Igreja como o reino de Deus já presente em mistério (LG 3) e ao mesmo tempo como comunidade que deve, com todos os seus membros servir o reino de Deus pela proclamação da Palavra (LG 35), pela assistência múltipla e pela prática diária (LG 36).191 189 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 171. Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. p. 177. 191 Cf. HÜNERMANN, Peter. Reino de Deus. Teologia Histórica. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. p. 1507. 190 94 3.6. A retomada do conceito de Reino de Deus na Teologia da Libertação Segundo Jon Sobrino, a centralidade do reino de Deus foi teoricamente recuperada após o Concílio Vaticano II e, de forma concreta, na II Conferência do Episcopado latinoamericano realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia com o tema: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio.”192 Essa conferência foi realizada após a decisão dos bispos de adaptar o concílio à realidade latino-americana marcada pelo clamor dos pobres por justiça e refletiu um novo modo de viver a fé, criando a necessidade de uma nova consciência teológica preocupada com uma evangelização que produzisse a libertação integral do ser humano. A Igreja dos pobres tornou-se central e operou-se uma ruptura: a fé e a Igreja voltaram-se não mais para o mundo, mas para eles. Fazia-se referência à organização dos pobres no processo de emancipação da situação de dependência em relação aos países desenvolvidos, emergindo a consciência de solidariedade na luta pela justiça e na construção da paz social num continente marcado pela violência e pela injustiça. Uma nova visão soteriológica passou a conceituar a unidade da história profana e história sagrada e a dimensão política da fé.193 Surge assim a Teologia da Libertação que insiste na vida como conteúdo histórico do reino porque “pobreza” no Terceiro Mundo significa proximidade da morte. Para Gustavo Gutierrez194 “a morte antes do tempo” que acompanhou a dominação colonial do século XVI trunca o direito à vida e está presente desde o início como componente essencial da ordem social, mantém-se até hoje, revestindo-se de novas formas e perseguindo os que se levantam contra ela. Para ele, caracterizar a situação dos países pobres como dominados e oprimidos leva a falar de uma libertação econômica, social e política, isto é, “libertação de tudo o que 192 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. pp. 492-493. Cf. GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Teologia da libertação: um estudo histórico-teológico. In: SOUZA, Ney (org). Temas de teologia latino-americana. pp. 172-175. 194 Cf. GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. p. 110 193 95 limita ou impede ao homem a realização de si mesmo, de tudo que trava o acesso à sua liberdade ou o exercício dela”.195 Segundo Jon Sobrino, embora se reconheça que a democracia tenha nos trazido liberdades cidadãs e políticas, estado de direito, bens culturais, impulsos para uma sociedade participativa e desenvolvimento, ela não foi capaz de configurar um mundo no qual todos os homens possam viver com justiça, verdade, dignidade, liberdade e fraternidade. Aos poucos, “a democracia que começou como modo mais humano de exercer a soberania, foi se convertendo em componente de uma sociedade egoísta e sem idealismo: um instrumento para produzir e apropriar-se do produzido segundo interesses.”196 Há uma tendência a utilizar os direitos humanos de modo ideológico, colocando-os a serviço dos interesses de indivíduos e grupos, em detrimento do ser humano e de seus direitos. Os privilégios das minorias e dos poderosos muitas vezes são colocados inclusive acima dos direitos das maiorias. A democracia é atraída pelo poder da riqueza e não há nada nela que a defenda dessa perigosa sedução, introjetando-se na consciência coletiva que desfrutar de boas condições de vida é algo considerado como direito adquirido e intocável, mesmo que o direito de viver com dignidade seja negado a uma grande parte da população. 3.6.1. O reino de Deus segundo Jon Sobrino Para se compreender o tema do reino de Deus biblicamente, as cristologias sistemáticas utilizam três vias que não se excluem, mas são complementares, destacando-se ora uma, ora outra. São elas: 195 GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. p. 85. SOBRINO, Jon. Crítica às democracias atuais e caminhos de humanização a partir da tradição bíblicojesuânica. In: Concilium. Petrópolis: Vozes nº 322, pp. 75(539)-90 (554). 4/2007. p.77. 196 96 1) A via nocional parte da noção do reino de Deus no Antigo Testamento e nos contemporâneos de Jesus (João Batista, zelotes, fariseus, grupos apocalípticos entre outros). Através da análise do tema, deduz-se o que ele pensou sobre o reino, concluindo que ele anunciou uma utopia, algo bom e salvífico que se aproxima. Jesus usa, muitas vezes, a expressão “reino de Deus”, mas nunca diz com exatidão o que é esse reino. É provável que as pessoas soubessem exatamente a que Jesus estava se referindo, pois parecia que “reino de Deus” era um termo de alto contexto197 mencionado no Novo Testamento, não havendo necessidade de esclarecer os detalhes, pois todos conhecem essa referência. . Segundo Leonardo Boff,198 o reino de Deus para os ouvintes de Jesus significava a realização de uma esperança no final do mundo de superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo mal físico, moral, do pecado, do ódio, da divisão e da morte. Eles acreditavam que Deus interviria em breve neste mundo para sanar em seus fundamentos toda a criação e instaurar o novo céu e a nova terra. Essa utopia é o centro da pregação de Jesus que ele promete não mais ser utopia, mas realidade a ser introduzida por Deus. O reino de Deus não será outro mundo, mas o velho mundo transformado em novo. Significa a libertação do pecado e do seu significado para o homem, a sociedade e o cosmos. Jon Sobrino apresenta a concepção do reino de Deus aceita por Walter Kasper que o adota como a mensagem central de Jesus, seu caráter escatológico e teológico, e conclui que o reino é salvação que se efetua através do amor de Deus que se autocomunica. No amor, o homem e o mundo encontram sua plenitude. Ele acredita que na obra de Kasper o reino de 197 Sociedades de alto contexto são aquelas que produzem documentos resumidos e genéricos, pois considera-se que as pessoas que vivem nestas sociedades participam das experiências, das formas de observar e agir, não havendo necessidade de explicar claramente todas as obrigações. A Bíblia, juntamente com outros escritos de antigos povos do Mediterrâneo encaixa-se neste perfil de alto contexto. Ao contrário, as sociedades de baixo contexto produzem documentos verbais detalhados que explicam claramente os fatos, deixando pouco espaço para a imaginação. Cf. MALINA, Bruce. O Evangelho social de Jesus. O reino de Deus em perspectiva mediterrânea. São Paulo: Paulus, 2004. pp. 11-13. 198 Cf. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 40 97 Deus deixa de ser concreto e perde a sua centralidade. Toma outro exemplo do reino de Deus como salvação na obra de Pannemberg, na qual, diante do anúncio da aproximação do reino, o homem se vê obrigado a sair de sua segurança cotidiana e abrir a sua existência para Deus de forma incondicional. O reino de Deus é salvação porque, ao estar chegando, embora não atinja a sua plenitude na história, permite aos homens atingir a sua própria essência e viver como verdadeiros seres humanos. Jon Sobrino acredita que estes exemplos mostram que a concretização do reino de Deus pode estar guiada pelo próprio interesse, adequando-se ao que se decidiu ser o reino de Deus.199 2) A via da práxis refere-se às atividades de Jesus que ele mesmo relacionou com o reino, indicando a direção que este tomará em sua plenitude (vida, paz, liberdade, dignidade), gerando esperança de que esse reino é possível. O fato de Jesus aparecer relacionado com o reino não implica em uma identificação total. É sinal de que o reino de Deus chegou, não de que chegou Jesus.200 Os milagres201 como sinais do reino, são antes de tudo salvação, realidades benéficas e libertadoras que geram alegria pelo benefício diante da opressão e esperança no libertador. Ajudam a compreender o reino de Deus porque o afirmam como salvação concreta e por isso plural. Deus salva das necessidades imediatas sem explicar de quais necessidades o reino pode salvar. Após a ressurreição, os milagres não são postos em evidência nos escritos do Novo Testamento, uma vez que são considerados pequenos em comparação à grandiosidade 199 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la Teologia de la liberación. v.1. pp. 478-480. 200 Cf. SOBRINO, Jon. O reino de Deus e Jesus. Compaixão, justiça e mesa compartilhada. In: Concilium. Petrópolis: Vozes n.. 326. 2008/3. 201 Este tema já foi desenvolvido no capítulo II deste trabalho, ao qual são acrescentadas as considerações específicas de Jon Sobrino. 98 que se esperava proveniente do reino e por isso não foram compreendidos por todos, mas somente por aqueles que necessitavam “salvação” em sua vida cotidiana. No entanto, os milagres, além de salvação são, também, estrita libertação, visto que as necessidades concretas são conseqüências de algum tipo de opressão. No tempo de Jesus as enfermidades eram compreendidas como produto do poder opressor do maligno que permeava a mentalidade da época. Quando Jesus acolhia os pecadores não somente os aceitava com bondade em sua companhia, mas acolhia os excluídos pela sociedade vigente e os oprimidos pelo sistema religioso. Os milagres e os sinais de Jesus acontecem não somente como satisfação de necessidades, mas também como sinais de salvação e libertação.202 Os milagres têm como razão fundamental a compaixão e a misericórdia que Jesus sente pela dor alheia. Eles não se manifestam como pura atividade de cumprimento de algo prescrito, mas como reação a uma situação que impede a pessoa de viver em paz. Quando Jesus quer apresentar o homem justo ele o define como o samaritano da parábola, movido pela misericórdia (Lc 10,33). Do mesmo modo, quando quer definir a Deus na parábola do filho pródigo (Lc 15,20) volta a repetir “movido pela misericórdia”. Reagir desse modo “significa trabalhar pela justiça e pôr ao seu serviço todas as capacidades humanas, intelectuais, religiosas, científicas, tecnológicas”. 203 3) A via dos destinatários do reino leva à concretização do que é a utopia e a salvação do reino. A prática do anúncio do reino de Deus mostra que são de preferência os pobres que podem recebê-lo com arrependimento e com alegria. É comum que a alegria da notícia de uma sociedade a ser permeada pela justiça irrompa entre os pobres e não seja percebida pelos ricos. 202 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidade del reino de Dios en la teologia de la liberacíón. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. p. 483. 203 SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 26. 99 A condição social assumida pelo Verbo de Deus foi a de um pobre. A pobreza concreta não é em Cristo uma determinação acidental. Ao contrário a condição de pobreza do Cristo faz parte do mistério de sua humilhação e do seu esvaziamento. A manifestação de Deus na forma de um pobre constitui um traço original da revelação cristã. Por essa razão o Deus cristão não se entende sem o pobre, o indefeso, o desprezado, isto é, o necessitado. Portanto a pregação evangélica jamais poderá dissociar o anúncio de Jesus Cristo da proclamação aos pobres de sua libertação.204 De acordo com Jon Sobrino, os pobres são: uma realidade econômica e social que torna a vida para eles uma dura carga pela dificuldade de viver e pela marginalização; uma realidade coletiva, pois existem povos pobres ou pobres enquanto povo; uma realidade histórica, uma vez que a sua existência ocorre quase sempre por razões históricas em decorrência da injustiça; uma realidade política com um potencial conflitivo e transformador para a sociedade e uma realidade dialética: “Há ricos porque há pobres e há pobres porque há ricos”, 205 verdade bíblica e histórica fundamental que foi proclamada em Medellin e Puebla. Os pobres são os carentes e os oprimidos, no tocante ao básico da vida material; são aqueles que não têm palavra, isto é, liberdade; são aqueles que não tem nome, isto é, existência. No regime feudal, havia escravos e na Revolução industrial, proletários. Suas vidas eram consideradas cruéis, porém visíveis. Atualmente passou-se para a invisibilidade do pobre. A globalização que teoricamente quer mostrar que vivemos num mundo inclusivo, de todos e para todos, num mundo substancialmente homogêneo e harmônico que só produz bens, na realidade não se diferencia de outros processos de economia.206 Como o Estado 204 Cf. PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1986. pp. 132-134. Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios em la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. p. 489. 206 Cf. SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008. pp. 76-82. 205 100 contemporâneo não se sente mais responsável pelo pleno emprego, delega a cada um que encontre a sua oportunidade, corra o seu risco e aqueles que estão na periferia do capitalismo que encontrem seu lugar no mercado informal, que invente seu emprego. Os países da periferia do capitalismo sentem-se acuados com o atual nível de violência de suas sociedades, cuja principal causa parece estar nas tensões geradas pela crescente concentração de renda e a exclusão social de uma grande parcela da população urbana, tudo isso convivendo com uma mídia global que valoriza o individualismo e estimula padrões de consumo que poucos podem ter.207 Os pobres são os destinatários do reino não por alguma qualidade moral ou religiosa, nem porque a pobreza possibilite uma abertura maior para Deus, mas simplesmente porque Deus é assim. A conferência de Puebla diz que “os pobres merecem atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou pessoal em que se encontram” 208. Segundo Gustavo Gutierrez209 essa afirmação se choca com a nossa rígida maneira de entender a justiça e essa preferência nos recorda mais precisamente “que os caminhos de Deus não são os nossos caminhos”(Is 55,8). Outro aspecto importante do reino é a sua dimensão transcendente. Do ponto de vista histórico o “ser” de Deus transcende as expectativas da razão natural, de modo que diante do anúncio de Jesus de que o reino de Deus pertence aos pobres sua atitude causa escândalo e conflito. Esta parcialidade é a novidade, é imprevista e se converte em mediação histórica da novidade e imprevisibilidade de Deus, do seu mistério, de sua transcendência com respeito às imagens humanas de Deus. Aceitar a parcialidade do reino é uma forma de deixar que Deus se 207 Cf. DUPAS, Gilberto. A lógica da globalização e as tensões da sociedade contemporânea. In: Hypnos. A Filosofia, seu tempo, seus lugares. São Paulo: EDUC: Palas Athena, 1999. 5/1999. 208 CELAM . Conclusões das Conferências do Rio de Janeiro, Medellín, Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2005. Puebla 1142. 209 GUTIÉRREZ, G. Pobres y opción fundamental . In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis . v. 1. p. 310. 101 mostre como Ele é, como Ele queira mostrar-se. Através dos pobres, Deus se mostra como Deus, como mistério imanipulável.210 A via do destinatário ajuda a concretizar o conteúdo do mistério de Deus. O Novo Testamento diz com radicalidade que Deus é amor e os pobres, como destinatários do reino, têm a capacidade de concretizar o conteúdo histórico do reino e também de fazer conhecer melhor o Deus do reino. Deixá-Lo ser Deus, que Ele manifeste seu amor como Ele decide: aproximando-se salvificamente dos que não são amados, senão oprimidos e depreciados deste mundo. Considerar os pobres como destinatários do reino, exige uma compreensão prévia que implica em conversão, para estarmos abertos e chegar a captar esse Deus que assim se manifesta. Assim, o serviço de Jesus nos mostra o que foi o reino de Deus para Jesus. Segue sendo utopia e, portanto indefinível, mas é a utopia dos pobres que significa o fim de suas desventuras, a libertação de suas escravidões, a possibilidade de viver e viver com dignidade. O Deus do reino é um Deus que deseja a vida dos pobres e os liberta do antirreino. 211 3.6.2. O reino de Deus e a prática cristã O reino de Deus é uma realidade histórica, é um reino de vida, no qual os pobres são os primeiros destinatários. Propiciar vida é o que segue hoje causando escândalo, conflitos, perseguições e morte e tudo isso faz com que a boa notícia do reino tenha sentido sendo formulada como a vida dos pobres. A vida é uma realidade cujo conceito dinâmico e direcional aponta a um desdobramento de si mesma para realizar-se em diversos níveis com 210 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. pp. 490-491. 211 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. p.492. . 102 novas possibilidades e exigências. No reino de Deus tem que haver pão, símbolo da boa notícia, cuja realidade leva a pergunta de como consegui-lo, exigindo algum tipo de atividade e de trabalho. Vencida esta fase surge a exigência de que seja compartilhado, o que implica no ético e no comunitário. A negação da partilha constitui o pecado. O pão conseguido por uns leva ao questionamento pelo pão de outros grupos e comunidades, pelo pão de todo um povo e daí surge à pergunta pela libertação. Em cada estágio da realidade do pão surge a necessidade do espírito de comunidade para compartilhar e celebrar, de valentia para lutar por ele, de fortaleza para manter-se nessa luta e de amor para aceitar que trabalhar pelo pão dos outros é a maior grandeza do ser humano. Entre outros questionamentos a boa notícia do pão pode levar-nos a perguntar quem é aquele que fez a multiplicação dos pães para saciar a fome da multidão e o mataram por isso, se a Igreja leva a sério o pão como boa notícia e como o relaciona com sua missão.212 A teologia da libertação ressalta o aspecto histórico e utópico do reino. O aspecto histórico mostra que o cristão está mergulhado na história real da humanidade, com o permanente e escandaloso problema da injustiça; que o lugar de captar a verdade da história e de Deus é a partir do fundo da história, onde é gerada a utopia do reino de Deus. Tanto a vida como a morte dos homens tem a ver com Deus, a religião, a fé e a Igreja. Na atualidade o anúncio do reino de Deus conseguiu reconciliar o cristão com a história dos homens fazendoo sentir que ele pertence à humanidade, que pode e deve trazer a sua contribuição para ela a partir de dentro dela mesma e não a partir de fora.213 O caráter utópico do reino de Deus é entendido não somente como o que acontecerá no final, como também o que se faz presente como força atraente na história. Há formulações 212 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. pp. 502-504. 213 Cf. SOBRINO, Jon. Espiritualidade da libertação. Estrutura e conteúdos. São Paulo, Ed. Loyola,1992. p. 146. 103 de utopia que atraem e fazem com que a história dê mais de si: justiça, fraternidade e libertação. A utopia é aquilo que atrai com força e, muitas vezes mobiliza os seres humanos a se empenharem em realizar o reino.214 Para compreender a utopia do reino de Deus pregada por Jesus e sua significação atual é essencial para o homem: a abertura confiante para o futuro que se apresenta como o que ainda não é, mas que será como salvação e plenificação; a esperança que relaciona o cristão com o futuro; uma afirmação de fé de que no fundo da realidade existe o positivo, e por isso a história pode ser salvação e uma mudança fundamental nos homens que se constitui na prática da caridade. Em suma, o reino de Deus é um símbolo utópico que exige a esperança, um símbolo ético que exige mudança de atitudes e de conduta e por último a vida no amor que consiste na prática da caridade e na transformação da injustiça histórica em relações justas entre os homens.215 3.6.3. O caráter totalizante do reino de Deus O reino de Deus é central na teologia da libertação. De acordo com Jon Sobrino, partindo do reino de Deus como objeto teológico central é possível organizar todos os conteúdos da teologia. Seu conceito por definição inclui Deus, seu desígnio, sua transcendência e sua bondade que se manifesta no amor e na ternura. O poder transcendente de Deus que Jesus revela não consiste em realizar o que está além da capacidade natural da 214 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. p. 505. 215 Cf. SOBRINO, Jon. Espiritualidade da libertação. Estrutura e conteúdos pp. 148-149. 104 pessoa, mas em realizar o impossível de uma maneira nova e inesperada, como graça que renova o ser humano.216 A bondade de Deus se concretiza em estar a favor da vida dos pobres, em amar com ternura os privados de vida, identificar-se com as vítimas deste mundo. O amor de Deus pode denominar-se como justiça, como amor contra a morte que propiciam outros deuses. Deus se faz o Deus das vítimas deste mundo. Esta solidariedade chega até os extremos da cruz, de modo que tem sentido a menção a um Deus crucificado que de forma gratuita e definitiva será capaz de extrair vida onde não há, de fazer um reino definitivo no meio do antirreino da história.217 Há uma relação entre o Deus do reino e outro grande símbolo que expressa a realidade de Deus: Abba, Pai. Jesus nos mostra a bondade Deus e nos possibilita chamá-lo de Pai a quem Jesus descreve em suas palavras quando fala do amor de Deus, não em geral, senão aos pobres que são os destinatários do reino. O amor gratuito de Deus também nos é revelado nas bem-aventuranças evangélicas. Elas nos dizem com clareza que a predileção pelos pobres, famintos e sofredores tem seu fundamento na bondade gratuita de Deus que se apresenta “como misericórdia e ternura por se dirigir aos pequenos e como justiça por se dirigir aos que são pequenos por serem oprimidos”.218Afirmar que Jesus é o anunciador e o mediador escatológico do reino de Deus é uma afirmação de fé cristológica em sentido estrito. Mesmo que a fé na divindade de Jesus só 216 Cf. BOMBONATO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus. In: Revista de Cultura Teológica. São Paulo: Paulinas, n.35. p.118. 217 Cf. SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia. p. 23. 218 SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo .Ensaio a partir das vítimas. p.199. 105 tenha sido reconhecida após a ressurreição, a sua relação com o reino pode esclarecer a lógica que leva a confissão de sua divindade.219 Sua ressurreição pode ser interpretada como a confirmação da parte de Deus da verdade de Jesus enquanto mediador escatológico. A argumentação em favor da divindade de Cristo mostra que se ele não fosse Deus não haveria salvação definitiva. Mas o humano é condição de possibilidade da salvação e daí ele tinha que ser verdadeiro homem. Em Cristo é real tudo o que for humano e este humano sem acréscimo é o que revelará a Deus e possibilitará a salvação.220 Em Jesus o humano continua sendo humano com suas limitações e suas possibilidades através das quais humaniza e salva. Nele Deus aproximou-se do humano assumindo-o por mais fraco e pequeno que seja tendo como conseqüência que desde então não haverá outro caminho senão o humano para ir a Deus.221 3.6.4. Praticar a teologia do reino de Deus O anúncio da Boa-Nova feito por Jesus na Palestina do século I, quando ele inaugurou a sua pregação na Galileia (Mc 1,14) continua sendo dirigido a todos os homens para que façam a adesão à sua mensagem e aceitem a sua proposta da implantação do reino de Deus. Ele deu início a sua realização não por meio de palavras abstratas e vazias de sentido, mas através de um compromisso que se concretizou em suas ações durante toda a sua vida e o conduziram à morte. O amor de Deus vivido por Jesus se reflete no amor ao pobre, ao rejeitado, ao abandonado, aquele que é desvalorizado ou simplesmente ignorado pela sociedade. Em um contexto social e histórico diferente estas situações estão presentes em nossa sociedade e 219 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teologia de la liberación. In: ELLACURIA, Ignácio & SOBRINO, Jon. Mysterium liberationis. v.1. p. 507. 220 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. p. 411. 221 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. p. 443. 106 todos nós somos convocados a uma tomada de posição nos empenhando para que os pobres saiam da sua situação de privações e sofrimentos e possam viver com dignidade. Aproximar-se dessas pessoas não traz o reconhecimento dos outros, não nos dá prestígio ou traz benefícios. O sofrimento pode aproximar as pessoas de Deus ou muitas vezes afastá-las tornando-as aparentemente frias, insensíveis ou revoltadas. Diante dessa situação corre-se o risco de julgá-las como totalmente responsáveis pela sua situação de miséria e pobreza ou o que é pior, considerar que esta é a vontade de Deus. Usa-se dessa crença errônea para justificar a perpetuação da pobreza e eximir o indivíduo e a sociedade do compromisso com a transformação da realidade. Abrir aos pobres o coração ajudando-os a superar as suas dificuldades é um ato de amor que não se resume somente na ajuda material, mas se traduz em atitudes de acolhimento, de aceitação de sua condição de vida sem preconceitos e sem julgamento, pois o ato de julgar cabe somente a Deus. Para encontrar o próprio Cristo o encontro com o pobre por meio de obras concretas se constitui um passo obrigatório. Este encontro pleno e verdadeiro com o irmão exige a gratuidade do amor de Deus e se realiza através do desprendimento de nós mesmos para chegarmos ao outro respeitando a sua própria vontade, sua personalidade, suas necessidades e aspirações.222 Estas considerações exigem de nós a empatia, isto é, a capacidade que temos de nos colocar no lugar do outro, para percebermos e aceitarmos a sua posição, uma vez que temos a tendência de interpretar o ponto de vista do outro a partir de nós mesmos. Muitas iniciativas de ajuda são frustradas e muitos recursos são desperdiçados quando as pessoas partem das suas próprias convicções sem considerar as reais necessidades do outro e o exercício da sua liberdade. 222 Cf. GUTIÉRREZ, G. Beber em seu próprio poço. São Paulo: Loyola, 2000. p. 138. 107 Segundo Gustavo Gutierrez “o homem é destinado a total comunhão com Deus e à mais completa fraternidade com os outros homens”.223 O próximo como caminho para chegar a Deus supõe a relação com Deus como condição para o encontro e para a verdadeira comunhão com o outro. Ser seguidor de Jesus implica em adotar um novo estilo de vida baseado nos valores do reino: o amor que se expressa nas obras, a justiça, a fraternidade e a solidariedade. É no nosso comportamento para com o próximo que se expressa o nosso relacionamento com Jesus Cristo. Se incorporarmos à nossa vida os seus ensinamentos e nos comprometermos em cumprir a sua vontade a maneira como agimos com os outros vai tornar visível a nossa opção. Como seguidores de Jesus o mesmo espírito de amor e de misericórdia que esteve presente em sua vida deve também se manifestar em nossas ações cotidianas, indo ao encontro dos pobres, marginalizados e excluídos. O seguidor de Jesus deve assemelhar-se a Jesus de Nazaré refazendo a sua vida e a sua práxis, exercer a missão como ele exerceu, assumindo a sua causa e participando do seu destino. Encontrar-se com Jesus significa entrar em intimidade com ele, converter-se e assumir o projeto de vida do Pai que abrange todas as dimensões: pessoal, comunitária, social, política e ecológica. Seguir Jesus tem duas dimensões que estão intrinsecamente relacionadas: a dimensão cristológica que consiste em assemelhar-se a Jesus e a dimensão pneumatológica, isto é, viver com o espírito de Jesus. No seguimento de Jesus estão presentes três momentos distintos: a memória, que atualiza a prática de Jesus e suas atitudes em relação ao Pai e aos irmãos; a vivência, forma concreta de ser fiel a Jesus na solidariedade para com os 223 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 166. 108 pobres, reinventada constantemente em nossas vidas, pela força do Espírito que age em nós; a esperança sempre reavivada de que podemos viver gestos de ressurreição até que ela se realize plenamente, pois Jesus venceu a morte e está vivo no meio de nós.224 Segundo Raniero Cantalamessa225 é o Espírito Santo que nos liberta do egoísmo, fazendo-nos passar do amor próprio para o amor a Deus e ao próximo. Ele realiza a transformação ou a retificação essencial no homem remido. O Espírito Santo infunde no coração o amor, libertando-o do egoísmo e incutindo no homem o prazer de cumprir a vontade de Deus. Deste modo o homem começa a fazer de bom grado aquilo que Deus manda, enquanto sente que ele mesmo é amado por Deus. Há nesse momento uma decisiva passagem da escravidão do pecado para a liberdade da graça. Para isso é necessário mudar a própria vontade e inverter inteiramente a orientação de fundo do coração humano, o que só é possível através da ação do Espírito Santo. Na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe realizado em Aparecida, a Igreja nos recorda a tarefa para a qual todos são chamados: “a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo”. Atender a esse chamado leva-nos a assumir evangelicamente a partir da perspectiva do Reino as tarefas prioritárias que contribuem para a dignificação do ser humano e trabalhar junto com os demais cidadãos e instituições para o bem do ser humano .[...] É urgente criar 224 BOMBONATO, Vera Ivanise. Nos caminhos de Jesus de Nazaré. In: Revista de espiritualidade inaciana. São Paulo: Ed. Loyola n. 69. set/2007. ano 17. p. 26. 225 CANTALAMESSA, Raniero. O canto do Espírito: meditações sobre o Veni Creator. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1998. p. 270. 109 estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política na qual não haja iniquidade e onde haja possibilidade para todos. (Ap. 384).226 A radicalidade do chamado concretiza-se na exigência da entrega incondicional e da obediência absoluta que implica em uma série de renúncias radicais a tudo o que possa impedir o seguimento de Jesus e a dedicação ao serviço do reino.227 Praticar a teologia do reino de Deus não se restringe à aquisição de conhecimentos sobre os Evangelhos e os ensinamentos de Jesus, mas exige total disponibilidade para a realização da vontade do Pai através da renúncia ao amor próprio para amar a Deus e ao próximo. 3.7. Conclusão Após a ressurreição, a preocupação com a pessoa de Jesus e a salvação que ele nos trouxe passou a ocupar lugar de destaque, fazendo com que o tema do reino de Deus recebesse outras interpretações e perdesse a sua centralidade. Foi enfatizado o sentido místico-espiritual do reino ou este foi identificado com a Igreja e o poder temporal. Deste modo a interpretação dada ao reino perdeu a sua dimensão social e religiosa afastando-se do sentido original da pregação de Jesus. Na Idade Média a abordagem do reino de Deus se reduziu ao aspecto espiritual, impedindo que os homens se sentissem comprometidos com a criação de uma sociedade onde todos os seres humanos pudessem viver com dignidade. Na Idade Moderna surgiram as utopias, como modelo das sociedades ideais, mas na realidade não se investiu na sua 226 CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas, Paulus, 2007. 227 BOMBONATO, Vera Ivanise. Nos caminhos de Jesus de Nazaré. In: Revista de espiritualidade inaciana. n. 69 set/2007. pp 21-31. ano 17. p. 28 110 concretização. Os reformadores protestantes – Lutero, Calvino e Martin Bucer - fizeram alusão ao reino de Deus relacionando-o à salvação e na ala radical da Reforma destacaram-se os anabatistas que foram capazes de perceber a possibilidade de aplicar a mensagem evangélica à organização da sociedade. Destacam-se no século XVIII e XIX a contribuição das idéias do filósofo alemão Kant que introduziu o reino de Deus no centro do pensamento religioso. Schelling e Hegel contribuíram com um novo conceito de tempo e história onde acontecem a intervenção de Deus e a evolução da natureza. O conteúdo teológico do reino foi abordado pelos teólogos da Escola de Tubinga e surgiram outros teólogos que fizeram referência ao reino de Deus, mas sem grande repercussão no contexto histórico do século XIX, marcado pelas idéias do socialismo nascente, do positivismo, da revolução de 1848 e da conquista dos impérios coloniais. 228 Após o Concílio Vaticano II, que trouxe para a teologia e o pensar sobre Deus uma visão antropocêntrica, realizou-se em 1968 a Conferência de Medellín na qual os bispos latino-americanos comprometeram-se com a denúncia das injustiças sociais e com uma evangelização conscientizadora capaz de libertar, humanizar e promover o homem.229 Surgiu a Teologia da Libertação constituída de uma identidade própria que apresentou a relação da fé com a práxis dos oprimidos, a inserção do teólogo no mundo dos pobres e sua incidência no processo de transformação social. Essa teologia assumiu a revelação como processo histórico e nessa visão, Deus se encontra de forma verdadeira com os seres humanos no tempo, no espaço e na cultura.230 228 Cf. VIVIANO, Benedict T. o.p. Le royaume de Dieu dans l’histoire. pp. 190-193. GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. p. 110 230 GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. A teologia do Concílio Vaticano II e suas conseqüências na emergência da Teologia da libertação. In: GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes; BOMBONATO, Vera Ivanise. (orgs) Concílio Vaticano II: análise e perspectivas. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 90. 229 111 De acordo com Jon Sobrino, após o Concílio Vaticano II a centralidade do reino de Deus, tema da pregação e atuação de Jesus retornou ao seu lugar. A partir dessa afirmação são apresentadas as três vias que levam à compreensão do reino de Deus: a via nocional, a práxis de Jesus e os destinatários do reino; o caráter totalizante do reino de Deus e a relação da prática cristã com a mensagem de Jesus. Esta perspectiva insere a Igreja na sociedade atual adotando o ponto de vista antropocêntrico que coloca a opção pelos pobres, a defesa da vida e da dignidade humana acima de quaisquer interesses políticos e econômicos. O retorno ao reino de Deus em teologia produziu frutos importantes: uma fé e uma espiritualidade mais jesuânicas, uma Igreja mais parecida com Jesus e entre nós, no Terceiro Mundo um conjunto de profetas da verdade, desmascaradores de ídolos e de mártires da compaixão e da justiça. No entanto uma concentração no reino de Deus que ignorasse outras realidades jesuânicas corre o risco de levar ao esquecimento de Deus ou reduzir o cristianismo somente ao aspecto político e social.231 231 Cf. SOBRINO, Jon. O reino de Deus e Jesus. Compaixão, justiça, mesa compartilhada. In: Concilium. Petrópolis: Vozes. n.326. p. 67.(379)-78(390) p.67. 112 CONCLUSÃO A atuação de Jesus durante a sua vida pública em fidelidade ao Pai e a serviço da humanidade não foi somente promessa, mas oferta concreta e atual de salvação. Por onde ele anda, além de falar sobre Deus e seu reino, ele traz salvação e o reino de Deus se realiza. Jesus convoca os homens a metanoia, a uma reorientação da própria vida que significa assumir as próprias opções em sintonia com as prioridades do coração de Deus. Mostrou quais eram estas prioridades e sua lógica humanizadora, acentuando que essa sintonia era mais valiosa do que qualquer atitude religiosa e mostrando como o homem encontra a transcendência que o julga e encontra Deus no irmão necessitado em plena história. Entretanto a comunidade cristã à luz da ressurreição deu mais ênfase ao caráter sagrado da pessoa de Jesus e aos elementos religiosos que unem os homens a Jesus conduzindo-os à salvação sem exigir determinadas opções históricas. O termo “salvação” pela primeira vez é unido a Jesus no discurso de Pedro diante do Sinédrio “não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). No final, quando os ouvintes perguntam-lhe o que devem fazer, ele responde: “Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados” (At 2, 37-40). Portanto entrar ou sair da comunidade de salvação não exigia qualquer opção histórica.232 232 Cf. SEGUNDO, Juan Luís. A vida perdida e recuperada de Jesus de Nazaré: dos sinóticos a Paulo. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1997. p. 337. 113 A revelação da salvação divina, que se realizou enquanto Jesus vivia em nossa história contingente e inacabada, está ainda incompleta e em andamento. Somente com a sua morte a história de Jesus pôde começar e reconhecendo-o como Cristo será ao mesmo tempo informação sobre Jesus de Nazaré. A mensagem de Jesus sua atuação do ponto de vista histórico foram rejeitados e nesse sentido o seu projeto de vida fracassou. Jesus é rejeitado pelos seres humanos, mas o Evangelho nos mostra que Jesus pertence a Deus que o reconhece como Filho e o ressuscita. Crer no Jesus terreno significa reconhecê-lo como profeta de Israel e para Israel, como profeta escatológico, cheio do Espírito de Deus que anuncia o reino trazendo-o em palavras e obras. Crer em Jesus ressuscitado é reconhecê-lo como salvador universal de todos os seres humanos. A ressurreição como ação de Deus em Jesus confirma a sua mensagem, a sua práxis de vida e revela sua pessoa unida indissoluvelmente com Deus e com a mensagem de Deus.233 A salvação definitiva nos vem de Deus em Jesus de Nazaré, o Crucificado ressuscitado. “É Deus quem nos salva em Jesus Cristo” (2 Cor 5,19). Deus salva no homem e pelo homem Jesus, por sua mensagem, vida e morte. A realidade da maneira humana e pessoal de ser, é necessária para tornar compreensível a profundeza da auto-entrega salvadora de Deus, mas deixando o sofrimento, a morte e a alienação na realidade terrena da existência humana.234 Jesus é o Salvador da humanidade e traz a salvação para dentro da história, não de um modo mítico ou mágico, mas a partir da Encarnação. A Teologia da Libertação lembra que para os que creem o Cristo é Jesus. Através dele Deus se revela à humanidade trazendo a 233 234 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus: a história de um vivente. p. 647. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jesus: a história de um vivente. p. 671. 114 salvação.235 Deus se aproxima porque é bom para os seres humanos, não é para julgar melhor, e sim para salvar e por isso sua aproximação é em si mesmo salvífica. Jesus “apresenta a aproximação de Deus como o sumamente bom para o homem: a aproximação em um reino e como pai, ambas expressões de um Deus bom que perdoa o pecado, cura o coração, humaniza e plenifica.236 Deus é parcial em favor do fraco deste mundo, os pobres, os marginalizados de diversas formas, aqueles que são vistos como pecadores, e para os quais viver é uma pesada carga. No entanto esta parcialidade não exclui o universalismo salvífico de Deus que se aproxima do homem nessa vida e nessa história e lhe concede a salvação curando-o, humanizando-o, revigorando-o e comunicando-se a si mesmo nelas. A aproximação salvadora de Deus se opõe ao mundo de pecado e este se rebela de forma ativa contra essa aproximação rejeitando-a ou não a agradecendo. O próprio Deus assumiu em sua aproximação aquilo que o mundo de pecado fizer contra ele, culminando com a cruz de Jesus. A aproximação de Deus é incondicional. Ele além de oferecer salvação quer oferecer-se a si mesmo por causa dessa salvação que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios (1 Cor 1,23).237 Jesus como Mediador é a expressão do acesso de Deus aos seres humanos e caminho dos seres humanos para aproximar-se de Deus. Jesus é a expressão de como a criatura pode aceder a Deus em confiança e fidelidade, em misericórdia e entrega, em oração e amor. Aquele que se abre para Jesus e aceita a metanoia que ele prega encontra a presença imediata e gratuita de Deus como salvação. O homem deve corresponder à realidade de Deus que se aproxima tornando-se ele mesmo, boa notícia e salvação para os outros. 235 Cf. MANZATTO, Antonio. Cristologia latino-americana. In: SOUZA, Ney (org). Temas de teologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007. 236 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. p. 198. 237 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo. pp.199-200. 115 BIBLIOGRAFIA BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1985 CONCÍLIO VATICANO II. 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