Aula 1 - Uma genealogia das psicoses

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Uma genealogia das psicoses
Aula 1
Este curso tem um objetivo central. Trata-se de procurar a estratégia mais
adequada para discutir que tipo de entidade são as categorias clínicas utilizadas
para descrever e classificar modalidades de sofrimento psíquico. São elas a
expressão de espécies naturais descobertas pelo desenvolvimento técnico do
saber médico? Entendamos, neste contexto, por “espécie natural” uma espécie
correspondente ao agrupamento de fatos e elementos que refletiria a estrutura
do mundo natural, ao invés de refletir os sistema de interesses e ações do seres
humanos. Neste sentido, uma espécie natural seria um agrupamento dotado de
duas características fundamentais: acessibilidade epistêmica (eles podem ser
conhecidos) e autonomia metafísica (eles não se reduzem a construções
convencionais produzidas pelas minhas estruturas de saber). Devemos começar
por perguntar: são a esquizofrenia ou o transtorno de personalidade boderline
espécies naturais, são elas categorias dotadas de estruturas naturais, de leis
naturais regulares que podem ser identificadas e verificadas através de pesquisa
empírica? Quais seriam então as propriedade essenciais da esquizofrenia, seus
marcadores biológicos?
Partamos da hipótese contrária, ou seja, de que categorias clínicas não são
espécies naturais, de que não há nada no mundo natural parecido à
esquizofrenia, ao transtorno obsessivo-compulsivo, ao transtorno de
personalidade histriônica, já que os mesmos marcadores biológicos podem
descrever estados mentais distintos. Poderíamos então afirmar que categorias
clínicas são, de certa forma, agenciamentos produzidos pelo próprio impacto dos
saberes médicos nos objetos que eles descrevem? Pode a configuração do saber
médico, com suas estruturas de classificação, produzir efeitos na experiência
subjetiva do sofrimento psíquico?
Posto desta forma, fica evidente como tal problema diz respeito,
inicialmente, a questões epistemológicas ligadas ao campo do saber psiquiátricopsicológico e suas categorias. São essas questões que, de certa forma, orientarão
nosso curso. Neste sentido, gostaria de iniciar nossa discussão lembrando como
há uma vasta literatura que procura evidenciar aquilo que poderíamos chamar
de “a natureza não-realista” de conceitos em operação no saber próprio às
clínicas do sofrimento psíquico1. Normalmente, tais pesquisas visam mostrar
como estamos diante de problemas que vão além de questões de cunho
estritamente epistemológico, pois se referem também à análise do sistema de
valores que estariam presentes em modalidades de intervenção clínica, assim
como do seu impacto na produção dos objetos que deveriam descrever. Pois
devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas
1
Esta literatura é extensa e tem seu momento fundador, entre outros em FOUCAULT, Michel; Histoire
de la folie .Gallimard, 1962. Para desdobramentos contemporâneos ver, principalmente, KINCALD,
Harold e SULLIVAN, Jacqueline: Classifying psychopathology: mental kinds and natural kinds, MIT
Press, 2014, assim como ZACHAR, Peter; A metaphysics of psychopathology, MIT Press, 2014,
COOPER, Rachel; Classifying madness: a philosophical examination of the Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Springer, 2005 e MURPHY, Dominic; Psychiatry in the scientific image,
MIT Press, 2012
de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras,
então é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso
horizonte de cura não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual
modalidades de orientação clínica são compreendidas no interior de sistemas de
influências compostos por discursos de forte teor normativo advindos de
campos exteriores à práticas terapêuticas como, por exemplo, a cultura, a moral,
a estética, a política e a racionalidade econômica. Trata-se, nestes casos, de não
fornecer às questões clínicas o estatuto de problemas autônomos, mas de
reinscreve-las no interior do sistema de circulação de valores que compõem as
várias esferas da vida social como um sistema de implicação constante.
Neste sentido, gostaria de utilizar a discussão a respeito dos destinos e
mutações de uma categoria clínica central, a saber, a esquizofrenia para avaliar a
possibilidade de recusar tentativas de pautar problemas epistemológicos do
saber psiquiatrico-psicológico a partir de descrições realistas que tendem a
compreender categorias clínicas em chave naturalista. Tal recusa será feita, neste
caso, em nome da tentativa de explorar a produtividade de perspectivas capazes
de compreender como categorias clínicas são influenciadas pela circulação de
sistemas de valores produzidos fora do campo da clínica. Uma destas
perspectivas, que gostaria de apresentar para vocês já em nossa próxima aula é
conhecida por “nominalismo dinâmico”. Ela deriva da compreensão de que o
campo de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico seria animado pela
instauração de categorias classificatórias com força performativa, ou seja,
categorias que não apenas descrevem entidades presentes no mundo natural,
mas que, de certa forma, criam performativamente entidades (daí vem seu
nominalismo). Mas o campo de intervenção clínica as cria de forma tal que tais
entidades adquirem a capacidade de organizar retroativamente fenômenos no
interior de quadros descritivos que servem não apenas como quadros de
produção de sentido para as experiências singulares de sofrimento, mas também
como quadro indutor de efeitos posteriores (por isto, a ideia de um nominalismo
“dinâmico”).
Neste sentido, vale as considerações de um importante filósofo da ciência,
Ian Hacking, para quem uma patologia mental não descreve uma espécie natural
como talvez seja o caso de uma doença orgânica como câncer ou mal de
Parkinson. Ela cria performativamente uma nova situação na qual sujeitos se
veem inseridos2. Fato compreensivo se aceitarmos que categorias clínicas ligadas
à descrição do sofrimento psíquico são objeto de elaboração reflexiva por parte
dos próprios sujeitos que elas visam descrever.
Esta é uma característica diferencial importante própria à clínica do
sofrimento psíquico, a saber, suas categorias são reflexivas. Os objetos que elas
descrevem (no caso, o sujeitos que portam sintomas, transtornos, angústias,
inibições) apreendem tais categorias, identificam-se a elas e se modificam a
Este é um importante ponto defendido por HACKING, Ian; Historical ontology, , p. 106, para
quem, no que se refere a classificações de doenças mentais, “um tipo (kind) de pessoa vem à
existência ao mesmo tempo que a própria categoria clínica (kind) foi inventada. Em alguns casos,
nossas classes e classificações conspiram para aparecer uma suportada pela outra”. A respeito
deste nominalismo dinâmico, ver também DAVIDSON, Arnold, The Emergence of Sexuality:
Historical Epistemology and the Formation of Concepts. Cambridge: Harvard University Press,
2004.
2
partir delas. Contrariamente a fenômenos físicos, que são determinados a partir
de categorias não-reflexivas (uma pedra não muda seu comportamento quando
sua queda é descrita a partir da lei da gravidade), fenômenos mentais são
determinados por sujeitos que produzem um nível significativo de reorientação
de ações e condutas, sejam elas conscientes ou involuntárias, quando se
identificam com certas categorias. Pois estar doente é, a princípio, assumir uma
identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”,
“depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito
nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente
efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. O ato de nomeação da
doença produz efeitos por si, reorienta a compreensão de fenômenos anteriores,
instaura uma nova realidade.
A gênese da esquizofrenia
Tendo a defesa de tal perspectiva em mente, este curso se estruturará a partir da
análise do desenvolvimento de uma categoria clínica que aparece, atualmente,
como um dos eixos fundamentais do saber clínico ligado ao sofrimento psíquico,
a saber, a categoria de esquizofrenia. Essa escolha em centralizar o debate
epistemológico a respeito do estatuto das categorias clínicas na análise de uma
categoria privilegiada parte do pressuposto de que as discussões
epistemológicas no campo do saber clínico devem partir da análise localizada do
desenvolvimento histórico e das mutações próprias à categorias específicas. Se
escolhemos a esquizofrenia foi por ela ter conseguido se impor como a categoria
central para a qual converge grande parte dos fenômenos comumente
compreendidos como ligados à experiência fenomenológica da loucura.
A esquizofrenia tem uma história de um século no interior do qual ela
inicialmente compete com categorias como a demência precoce, para
posteriormente dividir o campo das psicoses com a paranoia e a psicose
maniaco-depressiva (melancolia), ser radicalmente criticada pela antipsiquiatria nos anos sessenta, até conseguir afirmar sua hegemonia quase
exclusiva no estudo das psicoses a partir principalmente da grande guinada na
psiquiatria a partir do DSM III, no final dos anos setenta. No interior desta
história, a esquizofrenia irá modificar a estrutura de sua descrição, mas
conservando alguns de seus traços fundamentais.
Partamos da definição contemporânea do espectro esquizofrênico e de
outros transtornos psicóticos, tal como encontramos em manuais como o recente
DSM V: “anormalidades em um ou mais dos seguintes cinco domínios: delírios,
alucinações, pensamento desorganizado (fala), comportamento psicomotor
grosseiramente desorganizado ou anormal (catatonia) e sintomas negativos”3.
Estes cinco domínios descrevem anormalidades nas faculdades do julgamento
(delírio), percepção (alucinação), no uso da linguagem (pensamento
desorganizado), na motricidade (catatonia) e na emotividade (sintomas
negativos como a expressão emocional diminuída, a avolição, a alogia, a anedonia
e a associalidade). Tais anormalidades precisam principalmente obedecer a um
período de ocorrência (por exemplo, um mês para produções delirantes, caso
contrário, teremos um “transtorno psicótico breve”).
3
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87
No entanto, podemos nos perguntar sobre o que tais anormalidades
teriam em comum para serem organizadas no interior de uma mesma categoria.
Por que não estaríamos, na definição da esquizofrenia, diante de uma descrição
como aquela que encontramos no relato de uma famosa enciclopédia chinesa
descrita por Jorge Luiz Borges: "os animais dividem-se em : a) pertencentes ao
Imperador, b) embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g)
cães em liberdade, j) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como
loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de
camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar o bebedouro, n) que, de longe,
parecem moscas".
Pois por que estas cinco dimensões e não outras? Lembremos como a
psiquiatria contemporânea não define a esquizofrenia a partir de uma etiologia
que lhe seria própria, ou seja, não há uma reflexão sobre a estrutura de suas
causas, tal como, por exemplo, do que dizíamos da histeria de que uma
experiência traumática ligada à sexualidade era sua causa necessária (mesmo
que não suficiente). Também não encontraremos discussões a respeito da
dinâmica necessária de seu desenvolvimento e cura. Sendo assim, faz-se
necessário que exista alguma forma de relação interna entre os critérios
diagnósticos para que possamos compreender melhor a identidade da categoria
clínica.
No entanto, o que encontraremos na definição contemporânea de
esquizofrenia é uma condição ligada à duração (ao menos 6 meses de
persistência de signos do transtorno), outra ligada à inserção social do paciente
(os “níveis de funcionamento” de uma ou mais áreas como: trabalho, relações
interpessoais e auto-cuidado, devem estar claramente abaixo de uma expectativa
média4) e, por fim, uma condição ligada a presença de ao menos um destes três
sintomas (delírio, alucinação e fala desorganizada), acrescido de mais um
sintoma (que também pode ser sintomas negativos ou comportamento
catatônico ou desorganizado).
Esta definição aproximativa leva a esquizofrenia a ser determinada,
atualmente, como uma “síndrome clínica heterogênea” cujo diagnóstico envolve:
“o reconhecimento de uma constelação de signos e sintomas associados a
debilidades ocupacionais e de funcionamento social”5. No entanto, não há clareza
a respeito do fundamento dos critérios de avaliação de debilidades ocupacionais
e de funcionamento social nas áreas do trabalho, das relações interpessoais e do
auto-cuidado. Muito menos do que deveríamos entender por “constelação de
signos e sintomas”. Seriam tais critérios de avaliação ligados à incapacidade que
o próprio paciente sentiria na sua tentativa de realizar expectativas em tais áreas
da vida ativa, incapacidade vivenciada por ele como sofrimento? Ou estariam
eles ligados ao sofrimento que o comportamento do paciente acarretaria ao
vínculo social, já que “o desconhecimento da doença é um sintoma típico da
esquizofrenia”6?
O que levou o psiquiatra Thomas Szaz a afirmar que: “a exigência de que algumas pessoas tem uma
doença chamada esquizofrenia (e que outras pessoas presumidamente não a tenha) não foi baseada em
descoberta médica alguma, mas apenas na autoridade médica, em outras palavras, ela não foi o
resultado de um trabalho empírico e científico, mas de uma decisão ética é política” (SZAZ, Thomas;
Schizophrenia: the sacred symbol of psychiatry, p. 3)
5
DSM – V, p. 100
6
Idem, p. 101
4
Neste sentido, notem que mesmo se encontrássemos uma correlação
estrita entre marcadores biológicos e estados da doença, criando assim uma
simetria entre estados cerebrais e estados mentais, não teríamos ainda
respondido ao problema da etiologia da doença. Ninguém nunca negou a
existência de paralelismos entre estados mentais e estados cerebrais, mas isto
não implica a necessidade de aceitar um reducionismo materialista que vê nos
estados mentais apenas uma maneira metafórica de descrever estados cerebrais.
Se o mundo humano é composto de quiasmas entre normatividades vitais e
normatividades sociais, podemos nos perguntar se a compreensão da estrutura
de nossas formas de sofrer não exigiria o esclarecimento do impacto de
normatividades sociais, com seus sistemas de valores, no desenvolvimento de
normatividades vitais.
Por esta razão, faz-se necessário lembrar que categorias clínicas devem
ser analisadas não apenas por aquilo que elas expressam de maneira explícita,
mas também por aquilo que elas pressupõem de maneira implícita. Dimensões
importantes de sua natureza normativa não estão explicitamente presentes, mas
poderão vir à luz através de uma reconstrução genealógica de seu
desenvolvimento e de sua história. É isto o que gostaria de propor neste
semestre através do estudo da esquizofrenia. Trata-se de afirmar que a definição
atual que encontramos é apenas a dimensão explícita de uma construção
implícita resultante da sedimentação de um processo extenso de
desenvolvimento.
Por exemplo, voltemos por um instante aos fundamentos do
aparecimento da esquizofrenia. Sabemos como a categoria aparece em 1911,
cunhada pelo psiquiatra Eugen Bleuler. Sua consolidação era resultado de um
desconforto da chamada Escola de Zurique com a estratégia de Kraepelin,
psiquiatra responsável pela mais influente nosografia psiquiátrica do final do
século XIX e começo do século XX, de elevar a demência precoce à condição de
estrutura fundamental para a compreensão das psicoses. A demência precoce,
como veremos no decorrer do curso, vinculava a compreensão da doença mental
a uma forma de degenerescência, o que submetia o horizonte de normalidade às
coordenadas próprias a uma síntese evolutiva. Dentro desta perspectiva, a
psicose fazia o caminho inverso do processo de maturação individual.
Contra tal forma claramente evolutiva de compreensão da doença mental,
Bleuler construía uma categoria que se definia funcionalmente a partir da noção
de dissociação (Spaultung). Em seu Lehrbuch der Psychatrie, organizado por seu
filho Manfred Bleuler, encontraremos definições da esquizofrenia como
vinculada a um distúrbio elementar de “unidade deficiente, de fragmentação e
dissociação do pensamento, do sentimento e do querer, assim como do
sentimento subjetivo de personalidade”7. Desta forma, a esquizofrenia indicava a
falta de unidade e ordem de todos os processos psíquicos, o que necessariamente
nos levava a: “uma imagem do mundo construída pela própria essência
contraditória e pelos próprios desejos e medos contraditórios”8 do paciente. Esta
estrutura contraditória da vida psíquica que se expressava na afetividade, no
pensamento e na identidade pessoal era a expressão maior da quebra da
7
8
BLEULER, Eugen; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 407
Idem, p. 408
normatividade definidora do comportamento normal, assim como o
enfraquecimento da capacidade de síntese do Eu.
Neste sentido, é importante perceber como tal estrutura contraditória
marcava, na maioria dos casos, a presença da perda do unidade funcional da
pessoa e suas expectativas de autonomia. Em 1919, o psicanalista Victor Tausk
chegava a comparar a esquizofrenia à presença de uma “máquina de influenciar”
(Beeinflussungsapparate), como se o sujeito fosse guiado em suas ações e
emoções por uma máquina dissociada do Eu e capaz de produzir imposição de
pensamentos, sugestão, sensações que expressam a presença de uma profunda
alteridade no sujeito. Mais ou menos na mesma época, psiquiatras como Gaetan
de Clerambaud insistiam de associar a esquizofrenia a um “automatismo
mental”, sublinhando mais uma vez a dissociação no interior da unidade sintética
do Eu9.
Notemos, por outro lado, como se tratava aqui de uma escolha clara na
reconfiguração do quadro das psicoses, pois ela abria o campo para a
secundarização paulatina de outras categorias ligadas à psicose, como a
paranoia, que acabarão por serem dissolvidas com o passar do tempo. De fato, a
definição funcional fornecida pela esquizofrenia permitia uma distinção clara e
operacional entre normal e patológico. Ela passava pela distinção, fundadora da
psiquiatria moderna, entre autonomia e alienação. Ou seja, se quisermos
entender com a esquizofrenia se constitui, teremos que ter em vista a circulação
de valores sociais e morais ligados à autonomia, à unidade, ao controle e à
coerência da conduta.
Esta distinção clara era algo que, por exemplo, a categoria de paranoia e
seu uso extensivo no interior da psicanálise não permitia. Correntes posteriores,
como a psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkowski, fortaleciam a
natureza normativa da esquizofrenia ao ver: “o transtorno inicial da
esquizofrenia não em um enfraquecimento das associações mentais [como
muitos admitiam], mas em um perda de contato vital com a realidade”10. Esta
ausência de contato vital, forma de se servir de conceitos advindos da filosofia de
Henri Bergson, seria expressa na ausência da intuição de medidas e limites, de
um certo fluxo de processos e reações, o que faria a vida do esquizoide: “uma
linha quebrada, irregular, em zigue-zague, cheia de ângulos pontiagudos, linha
que cansa o olho muitas vezes, mas que marca no espaço uma direção bem
precisa”11.
Tal clareza de distinção era muito diferente, por exemplo, da estratégia
psicanalítica de aproximar o desenvolvimento da paranoia dos processos de
constituição do Eu. Neste sentido, lembremos como Freud acreditava que a
conduta patológica expunha, de maneira ampliada, o que estava realmente em
jogo no processo de formação das condutas sociais gerais. É desta forma que
devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se atiramos ao chão um
9
Já encontrávamos esta compreensão da centralidade do problema da alienação na definição
kraepeliana de demênica precoce: “Creio não estar enganando ao considerar a ausência de distúrbio
primário da vontade na paranoia como estreitamente relacionada com a ausência de delírio de
possessão corporal. A ideia de haver forças estranhas atuando, como o faria a telepatia, no organismo,
nas sensações, nos pensamentos e nos atos voluntários não é, para mim, outra coisa senão a expressão
do mesmo disturbio de vontade que se reconhece em todas as manifestações externas dos dementes
precoces” (KRAEPELIN, Emil;
10
MINKOWSKI, Eugène; La schizophrénie, Payot, p. 31
11
Idem, p. 61
cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas
de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam
determinados pela estrutura do cristal”12. O patológico é este cristal partido que,
graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como
normal. Neste sentido, a paranoia aparecia como a patologia que permitia a
ampliação dos processos normais de constituição do Eu a partir de
identificações. Uma aproximação entre patologia e gênese do Eu que ganhará
consequências maiores com o desdobramento da psicanálise, principalmente
através de Jacques Lacan. Neste sentido, vemos como a definição a respeito do
eixo de compreensão das psicoses determina, necessariamente, o modo de
relação aceita entre normal e patológico. Ë a identificação de tais modos que
teremos em mente em nossa discussões sobre a genealogia da esquizofrenia.
Tendo em vista esta genealogia da esquizofrenia, o curso irá se estruturar
da forma que se segue. A primeira aula será dedicada ao debate epistemológico a
respeito das categorias clínicas como espécies naturais. A partir daí utilizaremos
a reconstrução proposta por Foucault em A história da loucura para dar conta do
processo de transformação da experiência da loucura em doença mental até o
momento em que um setor fundamental da doença mental será definida por Emil
Kraepelin como demência precoce.
A partir daí, discutiremos a polaridade entre a psiquiatria de Emil
Kraepelin e a proposta da Escola de Zurique. Ou seja, veremos a natureza do
embate entre demência precoce e esquizofrenia, suas distinções e a modificação
do próprio conceito de doença mental que o advento da esquizofrenia implicou.
Em seguida, discutiremos a teoria psicanalítica das psicoses, centrada na
paranoia como paradigma central, principalmente tendo em vista os trabalhos de
Freud e Lacan, contrapondo-a com a compreensão da esquizofrenia no interior
da psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkoviski, que se desenvolve
mais ou menos à mesma época. Depois, veremos o movimento de crítica à
esquizofrenia levado à cabo pela anti-psiquiatria, assim como trabalhos com a
esquizofrenia dentro das práticas de análise institucional, como os que podemos
encontrar em Félix Guattari e suas teorias, juntamente com Gilles Deleuze, de
relação entre esquizofrenia e modos de socialização no interior do capitalismo.
Por fim, estudaremos o processo de consolidação da hegemonia crescente da
esquizofrenia a partir do DSM III até os dias de hoje.
12
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, v. XV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 64
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