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SESSÃO CLÍNICA: EFEITOS DE INTERVENÇÃO INSTITUCIONAL1
Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Psicanalista
Mestre pela UFMG e Correspondente da EBP
Professora da FEAD
Rua Piauí, 69, sala 502, Santa Efigênia. CEP - 30250- 320
e-mail: [email protected]
Resumo: Este artigo terá como objeto a Sessão Clínica do IRS, com ênfase na repercussão
institucional desse trabalho - a discussão do caso Marlene, um exemplo paradigmático de
interpelação à instituição, que coloca o questionamento: o que fazer com um sujeito em
crise, em um quadro complexo o bastante para impossibilitar sua liberação, mas em
gravidade suficiente para justificar sua internação? Tomar essa questão, não pela vertente
da discussão teórica, mas sob a perspectiva da construção do caso clínico, levou a equipe a
interrogar a lógica de funcionamento do setor de urgência, assim como da articulação da
equipe. Mostraremos as questões que foram suscitadas neste primeiro encontro e o efeito de
mudança que pôde ser constatado, ao longo do ano, em outros casos levados para a Sessão
Clínica pela equipe da Urgência.
Palavras-chave: Psicanálise, instituição, intervenção institucional
Abstract: This article aims the IRS Clinic Session, emphasizing the institutional
repercussion of this work. The discussion about R’s case brought us question: what we
should do with a patient in crises, in a complex situation where could not be discharged,
without major seriousness which wouldn’t justify an admission at the hospital? Considering
this question, not by the theoretic discussion, but for the construction of a clinic case, it leds
the group to the to question the sector logical function, introducing a change in the
perspective about the urgency factor, as well as the group procedure.
We will show the questions which were brought in this first meeting, and the effect of
change that was noticed, through the year, in other cases brought to the clinic Session, by
the urgency group.
Key words: Psychoanalyses, institution, institutional intervention.
1
Publicado em: Mental – Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC, ano III, n. 4, jun. 2005.
SOBRE A SESSÃO CLÍNICA
Em tempos de reforma, a existência de hospitais psiquiátricos na rede de saúde
pública ainda é uma realidade. Entretanto, se não podemos dispensar a internação, podemos
repensar sua lógica de funcionamento.
Bem, pelo menos este foi o esforço que pudemos acompanhar no IRS2 – Instituto
Raul Soares, nestes últimos anos. Com o intuito de diminuir o tempo de permanência3 no
hospital, mas mantendo a qualidade do atendimento e um encaminhamento responsável, a
comunidade hospitalar e sua direção clínica iniciaram um processo de rediscutir seu modelo
assistencial.
Com o objetivo de buscar novas formas de lidar com as dificuldades clínicas e
institucionais do dia-a-dia, diversos dispositivos foram propostos. Dentre estes dispositivos,
a Sessão Clínica4 surgiu como um espaço privilegiado para se discutir os casos mais
complicados: casos de pacientes que colocavam em questão a própria capacidade da
instituição em se a ver com a clínica da Saúde Mental.
A Sessão Clínica se constitui enquanto um clínico-institucional, aberto a todos os
profissionais, (de diferentes especialidades, de diversas formações teóricas, de todos os
setores, tanto de nível superior quanto de nível médio) interessados em contribuir na
construção de um caso clínico. Esse trabalho pode ser feito a partir da apresentação do caso
pelo próprio paciente através de uma entrevista, ou pelo relato feito pelos técnicos
envolvidos no tratamento. A idéia é tomar os pontos de impasse e dificuldades de um caso,
a partir da particularidade do sujeito em questão, procurando, a partir daí, estabelecer as
principais coordenadas do tratamento, rediscutindo manejo transferencial, hipóteses
diagnósticas, atuação da equipe, interação com a rede...
2
O IRS é um hospital público da Rede FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), que conta
com serviço de internação (120 leitos), e ainda serviços de ambulatório, hospital-dia, observação e urgência.
3
O hospital psiquiátrico responde na nossa rede de tratamento pela internação em momentos extremamente
agudos, graves, com riscos para o próprio paciente, ou para terceiros, nos quais não há qualquer condição de
tratamento externo. Entretanto a média de permanência é considerada muito alta – entre 40 e 50 dias.
4
Este projeto teve início em agosto de 2000, sendo realizado semanalmente, sob a orientação do psicanalista
do Dr. Wellerson Alkmim.
Há 5 anos, realiza-se regularmente no IRS5, a prática de apresentação de pacientes6.
Pensar nos efeitos que a apresentação pode ter na extensão7 de um tratamento, já não é mais
uma novidade. Mesmo profissionais, de formações diversas, que não a psicanalítica,
demandam o uso deste dispositivo diante de impasses da clínica. Temos assim que o
encaminhamento de um paciente para uma apresentação, se dá menos pelo interesse na
prática e teoria psicanalítica, do que pelo interesse na discussão de um tratamento.
É assim que podemos acolher a demanda de equipes, compostas por profissionais
das diferentes especialidades e formações teóricas diversas, mas que se encontram diante de
um impasse comum: o que fazer com um determinado paciente. Dessa forma, os casos que
vem para uma apresentação, geralmente são os casos mais difíceis, complexos, que
implicam questões seja em relação ao diagnóstico, seja em relação ao manejo da
transferência, seja nos impasses quanto ao encaminhamento, enfim, sobre a direção de um
tratamento.
E, efetivamente, como efeito de uma apresentação, é possível fazer uma apreciação
mais cuidadosa do caso. O esclarecimento do diagnóstico, indicações de premissas de uma
transferência, de perspectivas de estabilização, são exemplos de aspectos que podem ser
esclarecidos, ou redefinidos, a partir de elementos revelados durante a entrevista. Isto gera,
com freqüência, efeitos muito positivos na implicação da equipe, favorecendo, inclusive,
que as intervenções dos diversos profissionais envolvidos no tratamento sejam mais
articuladas, integradas, uma vez que podem ser orientadas por um cálculo feito,
coletivamente, na discussão do caso que se segue à entrevista. No que diz respeito à
psicanálise, este dispositivo possibilita que sua lógica circule, servindo de orientador último
para o trabalho de uma equipe, mesmo que heterogênea quanto a formação de seus
profissionais. O efeito, em extensão, no tratamento é, geralmente, constatável a posteriori.
Podemos dizer que esse efeito articulador das intervenções, reordenador do
tratamento, decorre do objetivo essencial da apresentação que é, justamente, buscar os
5
Instituto Raul Soares – hospital psiquiátrico da Rede FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas
Gerais).
6
Acontece, regularmente no IRS, dois espaços de discussão clínica – Núcleo de Pesquisa em Psicose (desde
1999), um projeto do IPSM.MG em parceria com o IRS, e a Sessão Clínica do IRS (desde 2000). Ambos os
espaços, de orientação psicanalítica, sendo as entrevistas realizadas por analistas, segundo proposição de
Lacan.
7
Tomamos aqui o termo extensão para designar o tratamento em sua forma mais ampla – direção do
tratamento, orientação da equipe, encaminhamento do caso.
aspectos do caso que escapam a um saber previamente estabelecido. Ou seja, o que se
busca é o saber que o próprio paciente produz sobre sua história, a interpretação que faz de
seu sofrimento, e as saídas que inventa para tratá-lo.
APRENDENDO COM A PRÁTICA
Mais do que um lugar de discussão sobre a direção do tratamento, a Sessão Clínica
é uma possibilidade de pontuação que produz efeitos sobre o paciente, sobre a equipe, sobre
a instituição. E para, além disso, a Sessão Clínica configurou-se como um dispositivo
privilegiado para intervir na fragmentação institucional e seus conseqüentes impasses
operacionais - mas não sob o olhar burocrático da norma, da regra, mas sim pelo inusitado
da escuta clínica.
Foi nesse contexto que o setor de urgência levou para a Sessão Clínica o caso
Marlene - não por se tratar de um caso que trouxesse impasses ou dificuldades
excepcionais, mas antes por ser mais um, igual a muitos outros, que colocavam a urgência
diante de uma mesma questão: o que fazer com um sujeito em crise, em um quadro
complexo o bastante para impossibilitar sua liberação, mas sem gravidade suficiente, que
justificasse uma internação?
É certo que para tais casos em crise, a rede criou o CERSAM8, serviço de
atendimento de crise, e até certo ponto, ele responde. Mas e aqueles casos que, por um ou
outro motivo, lhe escapam?
Marlene é um desses casos. Ela tem 39 anos, é solteira, não trabalha, e mora com os
pais e outras duas irmãs. Os relatos, tanto da família, quanto da paciente, são de uma
convivência difícil. Os primeiros queixam da agressividade, falta de limite e manipulação
de Marlene, enquanto esta, queixa que todos implicam com ela e que, em sua casa, tudo
está trancado para ela.
“Televisão tem cadeado, armário tem cadeado, geladeira tem cadeado, os quartos ficam trancados,
tudo tem cadeado por causa dela. Até o banheiro tem cadeado porque ela entra para dentro do
banheiro, abre as torneiras, deixa a água toda ir embora. Então tem que trancar tudo.”9
8
Centro de Referência em Saúde Mental. (Serviço destinado ao atendimento de crise – equivalente ao CAPS)
Fica tudo fechado, mas o quarto dela não tem porta. Ou seja, “a família se tranca
longe dela, ela fica trancada do lado de fora – dentro e fora ao mesmo tempo, e de
qualquer maneira, sem ter acesso”.10
Em uma crise de agitação Marlene quebra a porta de sua casa, sendo então, levada
para o HGV11. É como efeito dessa lógica de trabalho, de só internar e caso de extrema
necessidade, que após ser medicada e mostrar-se mais tranqüila, no dia seguinte, ela é
liberada da observação daquele serviço. Contudo, ao chegar em casa, passa por nova
agitação, quebra o vidro do banheiro, sendo desta vez, trazida ao serviço de urgência do
IRS.
Um sujeito em crise, necessitando de intervenções mais incisivas, com uma
importante questão familiar a ser trabalhada – seria um caso típico para CERSAM, mas
Marlene, se recusa, terminantemente, a ir para lá. Relata que num momento anterior, já
havia freqüentado aquele serviço, mas não se adaptou, interrompendo o tratamento. Sua
referência é um Centro de Saúde, aonde vai a cada 40 dias, para atendimento ambulatorial,
dispositivo insuficiente para este momento de crise.
A questão que se colocava era: o que fazer com essa paciente? Por um lado, uma
dúvida diagnóstica e a necessidade de se fazer alguma intervenção com a família não
seriam suficientes para justificar sua internação. Mas, por outro lado, tomando de exemplo
o que se passara após a liberação do HGV, entendia-se que deixá-la um tempo na
observação e liberála após melhora do quadro, seria ineficiente, pois sabendo que ela não
iria continuar voluntariamente o tratamento, seria o mesmo que estarmos nos
desresponsabilizando pelo caso.
Tomar este caso em discussão, deter nosso olhar e escuta sobre ele, nos possibilitou
perceber que operávamos com uma lógica totalmente equivocada. O imperativo de dar um
encaminhamento rápido para os casos, seja pela necessidade de dar vazão à sala de
observação sempre cheia, ou mesmo pela pressa do automatismo institucional, acabava por
levar a um estrangulamento do tempo de elaborar e conseqüente precipitação do momento
9
Informações apresentadas por Hilda Mesquita (Ass. Social do Setor de Urgência), recolhidas nos
atendimentos à família e à paciente. - Sessão Clínica, 20/09/2001.
10
Dr. Marco Túlio Pellegrini (psiquiatra, plantonista do Setor de Urgência) - Sessão Clínica, 20/09/2001.
11
Hospital Galba Velloso – hospital psiquiátrico da rede FHEMIG.
de concluir. Assim, em lugar de recolher informações e construir o caso para dar uma
direção ao tratamento, a ênfase se deslocava para o desempenho do papel a nós atribuído na
rede – dar destino ao paciente: interna /não interna, decisão pautada na situação encontrada
no momento da avaliação, do instante de olhar dos plantonistas.
Uma primeira pergunta que Marlene nos impulsionou a fazer foi acerca da função
da sala de observação:
“Por que que para fazer uma intervenção na paciente e em sua família, no sentido de trabalhar sua
adesão e suporte ao tratamento, a paciente vai ter que ir para a enfermaria, ser do CERSAM ou do
Centro de Saúde e não da própria Urgência?”12
A sala de observação não pode ser de tratamento de crise?
Mais além da sala de observação, Marlene colocava em questão não apenas a instituição,
mas o próprio funcionamento da rede.
“A cena que localiza a gente no caso é a cena dos cadeados: ela tinha cadeados na casa e tinha o
quarto dela aberto. Isso de uma certa forma foi reproduzido no sistema como um todo – todas as
portas da rede eram fechadas para ela. Embora ela passasse aqui pelo serviço de urgência várias
vezes, fosse ao CERSAM, ambulatório, centro de convivência, e tal, ela pode circular, mas ela não
adere a nenhum tratamento, os lugares não fazem cabê-la, ou seja, ela não cabe em nenhum dos
projetos institucionais. Então ela está totalmente solta no sistema, está sem lugar. Marlene não cabe
em sua casa, como não cabe no IRS, nem no sistema. A pergunta que ela trás é: qual o lugar que vai
me caber. ” 13
“A nós, cabe perguntar: é ela que tem que caber no que a gente propõe em termos de tratamento ou é
possível a gente fazer uma certa mudança, para atender de forma diferente o pedido desesperado,
desorganizado que ela faz?”(...)“Como é que a gente pode se preparar para escutar a demanda dessa
pessoa e dar uma resposta para ela, de acordo com o que ela pede?”14
Porque o que podemos perceber é que tanto o IRS, como a rede, oferecem diferentes
serviços. Cada serviço tem sua proposta e lógica de trabalho, entretanto, o resultado final,
em lugar de uma diversidade, é uma fragmentação. A questão não é realmente se Marlene
12
Dr. Marco Túlio Pellegrini – Sessão Clínica, 20/09/2001.
Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/09/2001.
14
Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/09/2001.
13
deve ser atendida neste ou naquele serviço, mas que precisa ser acolhida naquilo que
necessita – em sua particularidade.
O que temos nesse caso? Uma paciente querelante, em uma situação de conflito
permanente com a família. Alega que o pai não gosta dela por ser a única das irmãs que
nunca conseguiu emprego. Como não tem dinheiro, acha que o pai tem obrigação de lhe dar
uma mesada. “Se instala num lugar de doente e quer o ganho (...) tem que ser compensada
por isso.”15 Não sabemos se se trata de uma paranóia ou de uma histeria, mas sabemos que
se sente excluída, sem lugar em casa – as portas estão todas fechadas para ela. O mesmo na
rede de saúde – não cabe em serviço algum: os que aceita freqüentar, como o posto de
saúde, não tem estrutura para responder à gravidade do seu quadro no momento de crise; o
que tem estrutura, o CERSAM, ela não aceita. Na observação do IRS, ela fica bem, fica
tranqüila, mas lá o tempo é insuficiente, na enfermaria, o tempo seria excessivo.
Acolhe-la em sua particularidade é interrogar:
“Até que ponto ela não exerce um certo manejo sobre o outro para que ela não caiba em lugar
nenhum? Para que nunca tenha lugar no Outro, ao mesmo tempo deixando o outro aprisionado em
seu jogo, sem saber como sair dele?”16
Não se trata portanto de definir um diagnóstico ou encaminhamento. Trata-se antes,
de intervir, de desmontar um pouco esse jogo dela. Esse é nosso ponto de partida. Acolher
sua queixa de que em casa está insuportável. Propor que fique uns dias no hospital,
enquanto juntos – ela, a equipe da observação e sua família, verificam uma forma melhor
dela voltar para casa, dela estar em casa – o IRS fazendo a intermediação de sua relação
com a família. Se Marlene sempre coloca o outro para trabalhar, para ela, o IRS tem que
fazer uma inversão aí – colocar-se disponível para recebê-la sempre que precisar: “Estamos
de portas abertas para te receber. Você vem na hora que quiser e pode ir embora quando
se sentir melhor.”17 Assim é ela quem vai trabalhar: que vai vir à instituição para falar de
seu mal-estar.
15
Ana Denise (psicóloga da 1a enfermaria, que atendeu a paciente em internação anterior) – Sessão Clínica,
4/10/2001
16
Dr. Wellerson Alkmim– Sessão Clínica, 20/09/2001
17
Dr. Wellerson Alkmim– Sessão Clínica, 20/09/2001
E foi isso que aconteceu: Marlene foi liberada da sala de observação, mas continuou
sendo atendida nos dias seguintes, pela equipe da urgência.18 Enquanto isso, foram feitas
intervenções na família, até que um encaminhamento, com maior implicação destes e da
paciente, fosse possível. A passagem dela teve um efeito de apaziguamento sobre ela, sobre
a família. Pode ser um efeito momentâneo, mas que trás uma possibilidade de mudança,
porque nesse momento não foi a instituição que fez o jogo dela. O IRS entrou em posição
de causa para que ela produzisse alguma coisa.
É claro que mudar as rotinas de um setor não é fácil. Como dificuldades iniciais
dessa intervenção no caso Marlene, colocaram-se inúmeras dúvidas acerca da condução do
tratamento: quem seria o responsável? como dar continuidade de escuta se a urgência
trabalha com regime de plantão? entre outras.
Mas a produção mais importante dessas discussões foi uma mudança de perspectiva acerca
do que deveria ser função da urgência: em lugar de privilegiar o encaminhamento do
paciente para alguma instância de tratamento, a equipe propôs que sua função deveria ser:
“estar sustentando um pouco mais o tratamento do paciente na sala de observação até poder fazer um
direcionamento que seja um pouco mais eficaz, para que haja uma adesão, para que a pessoa consinta
em se tratar, para que ela também possa pensar que aquilo é uma solução para ela. Mesmo que isso
muitas vezes sobrecarregue a sala de observação.”19
Esses encontros foram surpreendentes, não apenas pelas questões que puderam ser
discutidas, e efeitos na condução do caso Marlene, mas por imprimir uma dimensão de
desafio. Para sustentar a sala de observação enquanto lugar de tratamento da crise ficava
evidente a necessidade de modificar a lógica de funcionamento da equipe – é possível
operar a partir da clínica de muitos?
INTERVENÇÃO INSTITUCIONAL
18
Marlene opera com o campo do Outro fazendo com que ela não caiba em lugar nenhum. Através da
querelância e da agressividade, coloca o outro para trabalhar para ela, numa tentativa infrutífera de fazê-la
caber. Em sua passagem pelo IRS, ainda que momentaneamente, houve uma mudança de discurso, pois a
instituição ao não aceitar sua manipulação, coloca-se na posição de causa. Ao vir falar sobre si, é ela quem
está na posição de produzir.
19
Dr. Marco Túlio Pellegrini – Sessão Clínica, 20/09/01
O caso Marlene foi tomado como paradigmático e um desafio foi lançado: “O hospital
pode, se a gente quiser, ter sido um até esse caso e outro depois dele.”20 É certo que ainda
há muito o que avançar, mas a urgência nos responde mostrando que uma equipe implicada
no tratamento de seus pacientes, utilizando-se da construção do caso e da criatividade pode
subverter o automatismo institucional21.
A equipe, a fim de sustentar este, e outros casos que se seguiram, teve que fazer
pequenos ajustes no funcionamento e grandes mudanças em sua lógica de trabalho. Esforço
que pode ser constatado cerca de seis meses depois, em outras participações da equipe da
observação em reuniões da Sessão Clínica, nas quais surpreenderam a todos nos relatos de
casos atendidos por eles segundo a lógica da particularidade do caso a caso, tendo como
uma estratégia principal, a criatividade.
Tivemos, por exemplo o caso de Sr.X22. Ele veio do interior para tratamento em
BH. A intervenção junto aos parentes que vivem aqui, possibilitou com que em lugar de
ficar na internação, ele pudesse permanecer em casa, vindo diversas vezes à urgência para
atendimento, fazendo uma espécie de ambulatório de crise. “Já tem um mês que ele está
aqui na urgência, vindo e voltando, e a gente está fazendo um movimento direcionado para
fora, mas deixando ele chegar.”23
Após um mês, Sr.X se sentiu mais seguro para retornar a sua terra e continuar seu
tratamento em sua cidade natal.
Outro exemplo interessante, é o caso de M24. Ela chegou ao IRS em crise de
extrema agitação, não conseguindo dar qualquer informação. A tia informa que M mora em
Ouro Preto, tendo vindo a Belo Horizonte para encontrar o namorado, mas como não tomou
a medicação, acabou agitando. A dúvida diagnóstica, entre uma dissociação histérica e
psicose, associada à pressão familiar anteriormente justificariam interná-la. Entretanto,
mesmo sendo feriado prolongado, a sala de observação superlotada, inclusive com leito
chão, e com um quadro inicial sugestivo de internação, a equipe optou por aguardar, até que
20
Dr. Wellerson Alkmim – Sessão Clínica, 20/09/2001.
Este texto foi baseado no material recolhido durante os encontros da Sessão Clínica, realizadas nos dias
20/09/01, 4/10/01, 4/04/02, 25/04/02 e 27/06/02. Este processe de rediscussão da lógica institucional, com
ênfase na clínica teve início em 2000, quando tivemos um psicanalista na direção do hospital, tendo perdido
sua fecundidade após mudanças políticas em 2003.
22
Caso atendido por residentes, tendo sido relatado pelo Dr. Marco Túlio Pellegrini - Sessão Clínica,
25/04/2002
23
Dr. Marco Túlio Pellegrini - Sessão Clínica, 25/04/2002
24
Sessão Clínica, 4/04/2002
21
ela mesma pudesse falar sobre seu caso. Em meio a agitação M questiona: “Vim namorar.
Não posso namorar?!” A assistente social pergunta: “Pode namorar, mas tem que tomar o
remédio, senão, como é que você vai namorar?”25 A surpresa da paciente diante dessa
colocação tem efeito de implicação, de possibilitar elaborar sobre sua situação. O efeito da
medicação, associado a possibilidade de estar sendo escutada pelos técnicos da equipe, a
intervenção firme junto a família, buscando o suporte destes, e ainda o apoio do Centro de
Saúde de Ouro Preto, onde ela já fazia tratamento, permitiu que em três dias ela fosse
liberada para tratamento externo26.
Esses encaminhamentos só foram possíveis, porque em lugar de uma decisão
solitária, sustentada no instante fragmentário do olhar do plantonista sobre o paciente, a
equipe trabalhou de forma integrada e articulada. Sob o olhar e escuta atenta dos vários
profissionais, através das anotações em prontuário e discussões de equipe, “foi possível ter
mais informações, consequentemente, encurtar o tempo de elaboração, para concluir num
tempo mais rápido, dando uma perspectiva mais eficaz e particular para cada caso.”27.
Tomar a palavra do paciente para orientar o que fazer em seu tratamento, trás como
conseqüência uma intervenção no automatismo institucional.
Também fez parte desses procedimentos, um maior investimento no atendimento às
famílias. “Por aí a gente consegue um pouco mais de sustentação no tratamento e no
encaminhamento.”28
25
Intervenção feita e relatada por Hilda Mesquita
Caso a paciente tivesse sido encaminhada para a internação, possivelmente ficaria um bom tempo lá, visto
que a médio de permanência está em torno 40/50 dias.
27
Dr. Wellerson Alkmim – Sessão Clínica, 27/06/2002
28
Mercês Dutra (Ass. Social do Setor de Urgência) – Sessão Clínica, 4/04/2002.
26
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