investimentos tecnológicos direcionados às comunidades

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INVESTIMENTOS TECNOLÓGICOS DIRECIONADOS ÀS COMUNIDADES
TRADICIONAIS E ATUALIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS EVOLUCIONISTAS
Cynthia Carvalho Martins
1
Resumo:
Avalio
em
que
medida
está
ocorrendo,
contemporaneamente, através da imposição dos projetos
desenvolvimentistas, mesmo que de forma dissimulada, uma
atualização, pelas políticas públicas, de princípios evolucionistas
cunhados no final do século XIX. Será considerado o campo de
disputas em relação à implantação de projetos tecnológicos com
ênfase na análise das políticas públicas direcionadas ao extrativismo
do coco babaçu e que tem investido fortemente na implantação de
máquinas de quebrar coco babaçu. A produção científica, em
especial antropológica, que trata da atualização dos princípios
evolucionistas nas análises científicas contemporâneas e nas
políticas públicas também será apresentada e analisada no presente
artigo.
Palavras-chave: Políticas públicas, evolucionismo, extrativismo.
Abstract: Evaluate to what extent is occurring, contemporaneously,
through the imposition of development projects, even in disguised
form, an update on the policies, principles of evolutionary brother at
the end of the nineteenth century. It shall be the field of disputes
regarding the implementation of technological projects with emphasis
on analysis of public policies directed to the extraction of babassu
coconut and has invested heavily in setting up machinery to break
babassu coconut. The scientific production, particularly anthropology,
which deals with the update of the evolutionary principles in
contemporary scientific analysis and public policies will also be
presented and analyzed in this article.
Key words: Public policies, evolutionism, extraction.
1
Doutora em Antropologia. Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
Procuro refletir nesse artigo em que medida a implantação de projetos
governamentais que investem em tecnologia direcionada para o extrativismo do coco
babaçu impõem um modelo que nem sempre se adéqua ao modo de vida das famílias que
utilizam esse produto no espaço doméstico.
Se, em fins do século XIX um dos critérios de definição das etapas evolutivas e do
grau de avanço dos povos centrava-se no tipo de instrumento e de matéria prima da qual
esses instrumentos eram confeccionados, (MORGAN:2005), atualmente, o chamado nível
tecnológico vem orientando os investimentos e as concepções sobre o que pode ser
considerado “avançado” ou “desenvolvido”.
A noção de evolução continua presente quando se trata da implantação de políticas
públicas e com ela todos os estigmas necessários para manter o campo de disputas como
um espaço privilegiado para os grandes grupos econômicos. No caso das políticas
direcionadas ao extrativismo de coco babaçu configura-se um cenário de investimentos nos
projetos de implantação das máquinas de quebrar coco babaçu que beneficiam os
inventores e os empresários que investem na produção de carvão vegetal e não consideram
as práticas tradicionais das denominadas quebradeiras de coco babaçu.
I.
A ATUALIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS EVOLUCIONISTAS NOS PROJETOS
GOVERNAMENTAIS
Quando o assunto é implantação de tecnologia direcionada ao extrativismo do
coco babaçu presencia-se, logo de início, visões muito diferenciadas. De um lado, os
defensores do desenvolvimento que consideram a prática manual atrasada e como um
entrave, de outro lado, as extrativistas organizadas em movimentos sociais que defendem
uma tecnologia que esteja em consonância com seus modos de vida.
Durante muito tempo o poder público vem investindo no aperfeiçoamento das
chamadas máquinas de quebrar coco babaçu. Desde, pelo menos os anos 50, período de
dominância do setor empresarial na definição das políticas públicas, são inventadas
máquinas que visam substituir a quebra manual.
Esse debate se manteve e se acirrou com a entrada no cenário político, a partir
dos anos 90 do século passado, das chamadas quebradeiras de coco babaçu que se
organizaram em movimentos sociais e reivindicam políticas de valorização da especificidade
de seu trabalho.
Pela leitura dos projetos governamentais identifiquei várias passagens que
classificam a quebra manual como “primitiva” e que apontam uma solução tecnológica
única, centrada na invenção de uma máquina de quebrar coco. Aparece de forma implícita a
noção segundo a qual todos os grupamentos humanos passam pelos mesmos processos e
que a saída para o atraso desses grupos é o investimento em tecnologia.
No excerto que segue, retirado de do projeto Quebra Coco, elaborado por
técnicos da SEAGRO, Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, percebi
que quando aparece o termo machado ele vem antecedido do termo “até hoje”, passando a
idéia de algo anacrônico e ultrapassado, segue o trecho:
Até hoje o machado é utilizado como instrumento principal na quebra do coco para
extração das amêndoas cujo trabalho é realizado por famílias rurais de baixa
renda, que encontram nessa atividade um complemento à renda familiar. A mão de
obra utilizada nessa atividade é em sua totalidade composta por mulheres e
crianças acima de 10 anos, sendo mínima a participação do homem, que se dedica
ao trabalho da roça. A operação da quebra manual é morosa e exaustiva; cada
quebradeiras produz em média cinco quilos de amêndoas por dia de trabalho, que
a um preço médio de R$ 0,30/KG, proporciona uma renda diária de R$ 1,50. O
sistema tradicional de exploração do coco babaçu através da quebra manual, tem
sido responsável pela baixa taxa de aproveitamento do potencial de coco existente,
assim como pela diminuição da oferta de amêndoas às indústrias esmagadoras.
Nesse sistema, além do baixo rendimento da mão-de-obra, apenas as amêndoas
que correspondem a 7% do peso do coco são aproveitadas, ficando no campo
como resíduos, 93% restante, material esse de onde poderiam ser extraídos o
mesocarpo rico em amido e o endocarpo que pode ser transformado em carvão de
alto poder calorífico. (PROJETO QUEBRA COCO, 2001, p. 3)
Conforme os trechos sublinhados, prevalece, nesse projeto de investimento em
tecnologia, uma lógica empresarial centrada na produção em grande escala. O fato dos
projetos privilegiarem a implantação da máquina diretamente na comunidade não significa o
atendimento de demandas das famílias da zona rural, ao contrário, trata-se de uma
estratégia empresarial já que os subprodutos extraídos da máquina são inapropriados ao
consumo pela família.
Recentemente, em debate sobre as prioridades para definição do plano
plurianual e sobre a necessidade de incluir o agroextrativismo nesse plano, presenciei a
disputa em relação à tecnologia.
As quebradeiras de coco babaçu se posicionaram
claramente contra os projetos que investem somente na compra das referidas máquinas de
quebrar coco. Os planejadores defendiam a implantação das máquinas como fazendo parte
de um tipo de financiamento público, no âmbito do PRONAF e as extrativistas se colocavam
completamente contrárias, defendendo o investimento em projetos que potencializassem as
suas experiências, que estão em andamento e que estivessem articulados a um
planejamento com resultados a curto e longo prazo. Elas reivindicavam investimento em
aperfeiçoamento de pequenas máquinas, inventadas por metalúrgicos locais, assim como
prensas, enfim, equipamentos que melhorassem a qualidade dos produtos a ponto de
permitir o consumo desses produtos pela família, e, ao mesmo tempo, a venda em pequena
escala.
Ainda no âmbito do campo de disputa identifiquei que há uma atualização dos
princípios evolucionistas nos planejamentos governamentais que com seus modelos
apontam para uma unicidade no processo de transformação de implantação de projetos que
investem em tecnologia.
Os planejadores das políticas públicas voltadas para o extrativismo lançam mão
de uma abordagem supostamente científica para justificar sua intervenção. Não se trata de
uma aplicação automática de conceitos científicos e sim de uma adesão a uma forma de
classificação cristalizada que pressupõe uma associação quase que inevitável entre ciência,
tecnologia e desenvolvimento.
O evolucionismo é atualizado na prática dos planejadores a partir da
interiorização de uma forma de ação e intervenção marcada por um automatismo. Conceitos
cunhados no campo científico se tornam noções operacionais atualizadas no âmbito da
elaboração das políticas governamentais. São os princípios de classificação do
evolucionismo produzido no campo científico que estão implícitos nas políticas
governamentais. A concepção de desenvolvimento, por exemplo, é representada pelos
planejadores, na situação que me propus estudar como sendo alcançada via implementação
da máquina de beneficiamento integral do babaçu. O princípio fundamental é a substituição
do trabalho manual e a eliminação do saber fazer artesanal.
II.
ATUALIZAÇÃO
DO
PRINCÍPIO
EVOLUCIONISTAS
NO
CAMPO
CIENTÍFICO.
Se analisarmos as políticas públicas direcionadas ao extrativismo no âmbito das
políticas neoliberais veremos a recorrência dos investimentos na denominada tecnologia.
No caso específico da economia está em jogo, desde os anos 90, a instituição, de diretrizes
e orientações de políticas governamentais que configuram, em certa medida, um neodarwinismo social, segundo a resenha intitulada Diálogo entre Marx e Darwin na periferia
(ALMEIDA, 2004, p.9). Segundo a resenha a imaginação político-social das burocracias e,
sobretudo dos tecnocratas das agências multilaterais têm desdobrado aquele sentido
genérico de “desenvolvimento” em particularidades, quando não em etapas, consoante
critérios de seleção, que não só implementam políticas públicas, como operacionalizam o
desenvolvimento como “local”, “sustentado”, “autônomo”. E diria, para acrescentar, baseado
em critérios organizativos ditados pelos próprios planejadores.
No caso que estou analisando são criadas denominadas associações de
quebradeiras de coco para viabilizar os projetos governamentais, que acabam por
“esvaziar”, em certo sentido a capacidade de mobilização dos movimentos sociais. As
próprias agências de financiamento dos projetos governamentais colocam como exigências
para a liberação dos recursos o critério organizativo.
Vale ressaltar aqui a diferença estabelecida entre evolução e evolucionismo.
Enquanto a teoria da evolução biológica desvinculou-se da noção de progresso, a
abordagem evolucionista, de maneira inversa, constituiu-se num padrão explicativo
da vida social ancorado na idéia de “progresso contínuo” e num sentido genérico de
“desenvolvimento”, sendo espontaneamente absorvida por instanciais acadêmicas e
pelos aparatos de poder. (ALMEIDA, 2004, p. 5)
Adam Kupper demonstra, no seu texto intitulado The Idea of Primitive Society
que apesar dos avanços no campo da antropologia, há uma persistência da idéia de
sociedade primitiva, cunhada no século passado (KUPER, 1991, p.2-5).. Demonstra ainda,
que há uma construção da concepção de sociedade primitiva, apoiada por um conjunto de
teorias e noções operacionais que apontam os critérios e as características desses
denominados “primitivos”. Então a interpretação das diferenças como estágios ainda está
presente, não somente nas formações discursivas atuais como na orientação das políticas
públicas.
Adam Kuper também dirige crítica aos conceitos generalizantes mostrando em
que medida apesar dos avanços na área da antropologia a concepção de primitivo ainda se
faz presente, mesmo que o termo seja substituído por outros termos como nativos. A
classificação continua incorporando categorias estigmatizantes no âmbito das ciências
sociais e no âmbito das políticas governamentais. Mesmo que os autores não se refiram
diretamente a
categoria primitivo, a forma de classificação dos grupos humanos pelos
antropólogos, recorrentemente, atualiza uma noção de primitivo, baseada principalmente na
noção de inferioridade e falta de tecnologia. No caso das políticas públicas voltadas para o
extrativismo o símbolo do que deve ser substituído para que o desenvolvimento ocorra é o
instrumento machado, considerado um instrumento típico dos povos atrasados.. Há uma
incapacidade dos planejadores em perceber que o instrumento que supostamente remete
ao passado pode ter uma eficácia positiva na reprodução das famílias e ao mesmo tempo
significados simbólicos relacionados a afirmação de uma identidade.
Sem a pretensão de esmiuçar a construção teórica acima vale, para o âmbito
desse artigo recuperar uma concepção de Adam Kuper que reforça o meu argumento e que
está baseada no seguinte princípio: é papel da antropologia discutir no campo da
metodologia essa persistência e desnaturalizar a categoria “sociedade primitiva” (KUPER,
1991). Ao invés de classificar, como os planejadores das políticas governamentais tem feito,
as diferenças como atrasos, deveriam implementar políticas étnicas em de respeito real a
essas diferenças.
A noção de primitivo aparece atrelada à concepção de baixo desenvolvimento
tecnológico e os próprios autores que a utilizam inspiram-se nos evolucionistas, que
afirmavam que às chamadas invenções e descobertas correspondia um grau de evolução
mental, propondo uma linearidade nos processos sociais. Essa interpretação é atualizada
nos projetos que investem em tecnologia voltada ao extrativismo do babaçu e reafirma o
caráter primitivo de práticas como a quebra manual, a produção de artesanato e inclusive a
prática da agricultura baseada em técnicas de cultivo e de encoivaramento.
Retomando Adam Kuper, diríamos que ele não está interessado em saber se as
teorias evolucionistas são atualizadas na intervenção governamental, sua preocupação é
com o campo científico. No entanto, a partir de suas colocações podemos perceber que há
uma dificuldade em classificar os povos que não estão inseridos na sociedade ocidental
(KUPER, 1991). Eles continuam sendo classificados de maneira estigmatizante e em suas
formas de resistência, têm buscado acionar uma identidade coletiva de forma a reverter
esses estigmas (BOURDIEU: 1989). Essa seria uma forma de afirmar seus elementos de
contraste diferenciando-se da natureza e se colocando concomitantemente como operando
transformações nas formas de classificação do mundo social.
Há autores contemporâneos que identificam essa atualização dos princípios
evolucionistas por políticas governamentais e criticam categorias como
modernização.
Pierre Bourdieu considera que com a implementação das políticas neoliberais nós estamos
vivenciando uma atualização da visão etnocêntrica do evolucionismo. O autor enfatiza que a
categoria modernização, por muito tempo foi utilizada pelas Ciências Sociais como uma
maneira eufemística de impor um modelo evolucionista ingenuamente etnocêntrico que
permite classificar as diferentes sociedades segundo sua distância em relação à sociedade
economicamente mais avançada (BOURDIEU, 2001a, p.31). Para o autor a categoria
modernização continua presente na orientação das políticas governamentais, como um ideal
a ser alcançado e o neoliberalismo impõe um modelo universal para todas as sociedades,
centrado, em última instancia na concepção de desenvolvimento e progresso.
A partir dessas considerações de Bourdieu (2001a) podemos dizer que para
esse autor, diferentemente do que ocorre no caso da análise de Eric Wolf, o evolucionismo
está atualizado contemporaneamente. Para Eric Wolf o evolucionismo está preso a um
momento específico da construção da antropologia. Esse último divide em períodos os
momentos políticos da sociedade americana enfatizando que para cada um desses períodos
predominou, no campo científico, uma forma de abordagem e de conhecimento que em
certa medida esteve em consonância com as diretrizes do desenvolvimento dessa
sociedade. As fases seriam os seguintes: capitalismo triunfante, que vai do final da Guerra
Civil até a última década do século XIX; período das reformas liberais que dura até o final o
começo da Segunda Guerra Mundial e finalmente o momento presente, caracterizado pelo
termo complexo industrial-militar, tomado de um discurso do presidente Eisenhower. Cada
fase caracterizou-se por um problema central e um conjunto central de respostas a esses
problemas, oferecidos pela antropologia (WOLF, 2003, p.225-268). O darwinismo social,
respondeu com a elaboração da teoria evolucionista a primeira fase, do capitalismo
triunfante. A resposta ao período das reformas liberais, marcados pelo impulso à
democratização do país teria sido a concepção de uma América pluralista. No presente a
questão é a natureza do poder público e de seu exercício, sensato ou insensato,
responsável ou irresponsável (WOLF, 2003, p. 225-268).
O que me interessa no trabalho de Wolf é o fato do evolucionismo aparecer, na
sua concepção como preso a um período determinado e, portanto, como superado. Wolf
analisa, via o que denomina “sociologia do conhecimento antropológico”. A produção
intelectual é interpretada como correspondendo e atendendo a problemas que aparecem no
bojo do plano político da sociedade americana (WOLF, 2003, p. 225-268).
Considerando a referência aos autores Eric Wolf e Pierre Bourdieu, considero
que o primeiro trabalha no âmbito da sociedade americana, enquanto o segundo no
contexto europeu. O que os diferencia é o fato do Wolf (2003) trabalhar com a superação do
evolucionismo, enquanto Bourdieu (2001a) enfatiza que a força da ideologia neoliberal se
apóia em uma espécie de neodarwinismo, onde os melhores e mais brilhantes conseguem
triunfar. Essas posturas diferenciadas estão relacionadas com o fato do primeiro está
interessado na produção de uma análise da história da antropologia, em suas relações com
o poder e o segundo com a preocupação com o campo político propriamente dito.
Almeida, na resenha já citada, fala em uma difusão vastíssima do evolucionismo
em todas as modalidades de produção intelectual. O evolucionismo estaria presente na
filosofia e sociologia contemporânea, assim como na política e economia (ALMEIDA, 2004).
Nesse sentido ele amplia o que poderíamos chamar as influências do evolucionismo para
além do campo acadêmico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atualização de princípios evolucionistas presente nas práticas dos
planejadores dos projetos governamentais tem levado a implantação de projetos que não
condizem com o modo de vida das famílias extrativistas. A visão das extrativistas
organizadas em movimentos sociais como o Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Coco Babaçu (MIQCB), sobre esses projetos é de que eles dificultam sua reprodução social
na medida que os subprodutos oriundos da quebra com a máquina são inadequados ao
consumo familiar. A quebra manual é considerada como mais eficaz, e apropriada às suas
condições materiais de existência comparada à quebra mecânica. Isto pode sugerir, à
primeira vista, uma recusa do que é considerado como avançado ou civilizado. Pode ser lido
também, como uma persistência do atraso. Entretanto, se os planejadores avaliassem as
representações daquelas que praticam o extrativismo poderiam concluir que as ações
generalizantes acabam reproduzindo uma concepção de desenvolvimento única e
alicerçada no alto desenvolvimento tecnológico, o que atende muito bem aos interesses
neoliberais e muito pouco aos grupos étnicos da nossa sociedade plural.
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