Pânico, Enigma e Mal-Estar Pânico - Laboratório de Psicopatologia

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Pânico, Enigma e Mal-Estar
Deysiane Ribeiro Pessoa
O Pânico constitui um transtorno que vem ocupando um lugar de referência nos
estudos do campo clínico e psicopatológico. Introduzir uma perspectiva psicanalítica
para a compreensão desse estado afetivo, extremo de angústia, implica marcar a
pertinência a um lugar discursivo próprio. E assim, buscar apreender como se apresenta
este fenômeno nos tempos atuais.
O sujeito na contemporaneidade se encontra diante de um cenário de
transformações e arranjos sociais. Contextos que vêm contribuindo para o surgimento
de um estado de fragilidade psíquica, frente a uma sociedade de exigências para o
cumprimento de tarefas que demandam investimentos e renúncias pessoais, levando o
sujeito a um nível de responsabilização muitas vezes maior do que consegue suportar, e
ainda num período de tempo cada vez mais urgente.
É nessa configuração que o quadro psicopatológico do pânico se instaura
enquanto uma condição de adoecimento psíquico que se expressa no corpo, como sinais
de um intenso sofrimento emocional.
São transformações que atuam de forma imperativa no modelo de organização
subjetiva, e provocam uma condição de vulnerabilidade, na qual o sujeito se desloca,
simbolicamente, para uma posição de desamparo originário.
No pânico o sujeito apresenta esse estado de fragilidade psíquica, e com isso
cada experiência que se remete a essa situação de desamparo originário passa a ser
vivenciada no ataque de pânico como uma forma de ameaça. Com isso, é possível
perceber que os sintomas do referido transtorno se voltam para um tempo primitivo, no
qual o cuidado se apresenta de modo estruturante para o sujeito em constituição.
De acordo com Winnicott (2011), cada indivíduo possui um processo de
crescimento no qual surge, desenvolve-se e torna-se maduro. Sendo este
desenvolvimento, algo extremamente complexo que ocorre de modo contínuo, desde o
nascimento, ou até mesmo antes deste.
E nesse caminho, acompanhando a evolução do desenvolvimento emocional,
ainda com Winnicott (2011), tem-se que o sujeito cresce, ao longo do tempo, na busca
pela aquisição de independência, que se realiza a partir de um momento de dependência
inicial, vinculada a uma condição de sobrevivência.
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A partir disto, ainda de acordo com o pensamento winnicottiano, a criança,
recebendo o cuidado adequado, irá se desenvolver de modo gradual, atingindo
capacidades internas vinculadas a uma estruturação simbólica que vem sendo formada.
A integração, por exemplo, vai estar ligada a um senso de segurança que deverá ser
propiciado pela mãe, estando incluídas também as experiências afetivas de caráter mais
definido. Deste modo, sendo atingido o grau de integração, este pode ser bastante
variável. E, esse grau de integração estará fortemente relacionado com a definição de
características da personalidade humana, mesmo estando num estágio infantil do
desenvolvimento. (WINNICOTT, 2011, 4ªed.).
Angústias muito fortes são experimentadas nos estágios iniciais do
desenvolvimento emocional, antes mesmo que os sentidos estejam organizados e antes
que se instaure algo que pode ser denominado de ego autônomo. (PEREIRA, 2008).
Para esta criança, as demonstrações de cuidado por parte da figura materna,
através do toque, da atenção e da presença real e simbólica, provocam uma sensação de
confiança para lidar com um mundo de realidades adversas. (WINNICOTT, 2011).
No momento de constituição da subjetividade da criança, a dependência, tanto
física como psíquica, é real, sendo que a história do desenvolvimento infantil parte de
um estado de dependência absoluta para a aquisição da autonomia. E segundo
Winnicott, só com uma assistência satisfatória, sentimentos terríveis ligados à angústia
de sobrevivência se transformam em experiências positivas, vindo assim a somar-se à
confiança que o bebê adquire em relação ao mundo e às pessoas.
Medos referentes a momentos da vida em que a subjetividade estava em
processo de estruturação se instauraram de modo não intencional no relacionamento
parental, e vão se acumulando no mundo psíquico até o momento em que desencadeia
uma sensação de transbordamento, sendo este estado afetivo vinculado a uma situação
que não pôde ser compreendida.
No contexto da clínica, o que escuto são discursos que se entrelaçam em torno
de questões muito semelhantes no sentido de serem relatadas vivências de “abandono”
ou “ausências” em decorrência de situações diversas do contexto parental, familiar.
Na busca por elaborar uma concepção psicanalítica do desamparo, Freud não
deixa de se utilizar da referência ao estado de dependência absoluta do bebê. E no
aprofundamento de seus estudos descobrirá um estatuto ainda mais fundamental de
desamparo, situado nos limites das possibilidades do funcionamento psíquico que na
situação de desamparo apresenta uma fragilidade fundamental (PEREIRA, 2008).
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A respeito da organização e do funcionamento do aparelho psíquico, tem-se que
as exigências pulsionais têm origem no Isso e no Super-Eu, enquanto que outras formas
de exigências são produzidas pelo contexto social. Sendo assim, à medida que uma
organização não consegue satisfazer todos os níveis de exigência, esta, por sua vez, será
abandonada. (ALMEIDA, 2007).
Este autor afirma que, de acordo com Freud, podemos identificar “um nível de
mal-estar tolerável quando temos de abrir mão de nossas satisfações pulsionais (sexuais
e agressivas) em troca de uma certa segurança que a cultura nos proporciona
[...]”(ALMEIDA,
2012; p. 42). Existe um momento, porém, em que a cultura passa a
cobrar do sujeito uma “quota” extra de mal-estar, um “sobre-mal-estar”, representado
pela idéia do excesso, em troca do qual não oferece a segurança que antes ofertava.
(ALMEIDA, 2012).
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud ressalta que é por intermédio do
movimento do recalque primitivo de sentimentos, condição própria à existência da
cultura e presente desde sempre em todo e qualquer grupo humano, que os movimentos
constitutivos do ser humano ocorrem.
Para Freud, há nos grupos humanos uma necessidade de se reconhecer como
parte da cultura, e isso se dá através da identificação com o outro e da idéia de que este
outro vai responder ao seu investimento libidinal. Sobre isso CECCARELLI (2006, p.
116) escreve:
“A cultura que constitui o sujeito e o protege, exige dele o recalque
pulsional para que a vida em comum seja possível. Via sublimação, a
energia recalcada é transformada e (re)utilizada, como força de trabalho
para a manutenção da cultura. Porém, a renúncia pulsional só é suportável
se o processo civilizatório garantir ao sujeito acesso e continuidade às
satisfações substitutivas” .
A respeito dessa questão, ALMEIDA (2007, p. 158 e 159) reflete:
“[...] Estávamos habituados ao fato de que uma geração toma como ponto
de partida algumas idéias ofertadas pela geração anterior, para a partir daí
fundar suas certezas e fazer suas interrogações. [...] Partiu-se o elo
experiencial que ligava uma geração a outra. [...] Resta um vazio, uma falta
de fundamento que reativa uma situação originária de desamparo comum a
todo ser humano.”
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Neste contexto, é possível perceber que o sujeito está em busca de elementos
que lhe dêem referência, de algo que lhes façam sentir incluídos e protegidos. Exercer a
própria subjetividade em meio a esse processo desagregador é muito difícil. Como
conseqüência disto o indivíduo adoece, o que explica o considerável aumento de
sintomas intitulados de “síndrome do pânico” na contemporaneidade. (PEREIRA,
2008).
Para Freud (1926 [1925]), somos por definição seres desamparados, marcados
pela falta primordial que estrutura nossa subjetividade, falta do objeto de amor primeiro,
e nada nos ampara na nossa incompletude. A falta de um objeto protetor é ameaçadora e
o desamparo surge como modelo de qualquer situação traumática.
Trazendo tal cenário para o quadro do pânico, é possível ressaltar que, diante
desse lugar de incertezas em que se configura o contexto atual, o aparelho psíquico
encontra-se numa condição de precariedade fundamental. Com isso se constitui um
quadro de desamparo puramente psíquico que se prolonga muitas vezes em silêncio,
impossível de ser expresso em palavras:
“Uma impossibilidade bastante radical nas passagens ao símbolo é que cria
buracos negros no psiquismo, áreas de não simbolização e de elementos
não representáveis. [...]. A este silêncio se associa uma experiência
traumática, seja como causa (o trauma que emudece), seja como
conseqüência, pois o enfraquecimento de sua potência imaginativa torna o
sujeito menos apto a lidar com o que lhe afeta vindo de fora ou de dentro do
corpo”.
(FIGUEIREDO, 2009; P. 36,37).
A existência humana transcorre longe da perfeição, da estabilidade e da
permanência. Nem há garantias, nem correspondência preestabelecida entre nossos
impulsos e desejos, de um lado, e seus objetos e condições de satisfação, de outro, nem
entre aquelas forças poderosas e insistentes e nossas capacidades de domínio e
autodomínio. (FIGUEIREDO, 2009).
No pânico, quando as experiências emocionais desagradáveis não podem ser
elaboradas, são vivenciadas como uma ameaça de aniquilação total. E assim, quando o
excesso de desprazer não pode mais ser diminuído, ele resulta numa condição psíquica
desesperada e aterrorizante. Aqui se constitui, portanto, uma falha no processo de
estruturação psíquica. (COSTA, 2005).
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Freud supõe que o caminho para a compreensão mútua começa a se estabelecer a
partir das manifestações automáticas de descarga emocional do bebê, quando este se
encontra acometido por um acúmulo de necessidades, nas quais seus gritos e
manifestações corporais de sofrimento constituem a expressão de suas vivências de
desprazer. Em Inibição, Sintoma e Angústia, 1926, Freud afirma que sentir-se amado
pelo “ser superior”, representa, no inconsciente, a proteção contra todas as ameaças.
(PEREIRA, 2008).
Nesse caso é preciso que o psiquismo do adulto, no caso, a mãe, intervenha antes
que o desprazer possa alcançar um nível insuportável para a criança. Um dos papéis
essenciais dessa função é “a nomeação”, por meio da qual se deve atribuir um sentido,
um nome, às manifestações descarregadas pelo bebê. Sendo que a mãe consegue
alcançar essa função, através do laço de amor que a une à sua criança, e se torna capaz
de acolher e dar sentido às projeções violentas de seu bebê. (PEREIRA, 2008).
O desafio para o analista é o de acolher na clínica estes pacientes que vem em
busca de cuidar de algo que lhes causa sofrimento intenso, porém não conseguem
identificar de onde vem, nem muito menos traduzir tal enigma para o campo da
linguagem. A função do analista é a de transformar o sofrimento trazido pelo sujeito em
experiência, pela via da transferência.
Na teoria de Bion, ele descreve um estado de terror extremo, no qual todo
sentido se perde, e tal temática encontra-se relacionada com a expressão da função
materna na estruturação do desenvolvimento emocional infantil. O autor aponta para tal
estado como a multiplicação do efeito traumático sobre a criança, quando a mãe se
mostra incapaz de garantir esta função de elaboração simbolizadora, denominada
devaneio (rêverie). Segundo Bion, a persistência da falta dessa condição na mãe leva à
constituição na criança de um objeto interno criado segundo o modelo de tal situação,
na qual, do ponto de vista do inconsciente, se rejeita a compreender seu desespero, bem
como todas as cadeias associativas, impedindo assim a emergência de um sentido.
(PEREIRA, 2008).
Winnicott, por sua vez, aponta para o papel essencial da mãe na constituição de
uma “área de ilusão” e “espaço transicional” que se insere entre o bebê e o mundo real,
para com isso permitir à criança suportar seu desamparo fundamental. Na ausência de
uma relação com essa figura materna, suficientemente boa, ocorre um estado de
angústias impensáveis, denominadas por Winnicott de “agonias primitivas”. Sendo o
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pânico, para este autor, a defesa mais extrema para impedir a queda do sujeito nessa
condição. (PEREIRA, 2008).
Todo esse cenário descrito a partir do que postulam Bion e Winnicott a respeito
do funcionamento mental infantil, e desses conceitos “terror extremo” e “agonias
primitivas” como elementos que vêm para dar sentido ao que se constitui enquanto falta
na estruturação da vida psíquica, à medida que se instauram, dá lugar à manifestação de
uma seqüência de sinais e sintomas com os quais o sujeito se depara numa condição de
enigma e mal-estar.
A clínica psicanalítica nos confronta incessantemente com as repercussões de
acontecimentos que remetem a um estado de angústia e mal-estar intoleráveis, que
acomete os sujeitos da atualidade.
A respeito disso Luís Cláudio Figueiredo (2009, p. 20) afirma que,
“São patologias do self, transtornos no campo das relações de objeto,
transtornos no campo da pulsionalidade e problemas nos processos
terciários de simbolização, ligados a falhas nas cadeias de mediação entre
processos primários e secundários”.
Com isso, tem-se que, diante de novos desafios e novas demandas, surgem
exigências teóricas com as quais o analista é instigado a recuperar em sua prática a
dimensão de liberdade e pesquisa que Freud sempre atribuiu à sua criação.
(FIGUEIREDO, 2009).
Nosso
tempo
se fundamenta na
destruição
de uma
esperança,
no
desmoronamento de uma ilusão. Há o desaparecimento de um modo de pensamento
inconsciente, e certamente ilusório, sobre a existência de uma instância protetora, de um
objeto acolhedor.
Segundo Figueiredo (2009), a relação de confiança se constrói de uma sucessão
feita de entrega, susto, medo e conforto recuperado. Na experiência clínica tal processo
de sucessão é algo que se faz presente, mas que muitas vezes o paciente não chega nessa
condição de entrega. No pânico, por exemplo, o paciente chega à clínica assustado, com
medo, necessitando de um espaço que o possa acolher. E oferecendo um ambiente de
proteção, se permite esse momento de entrega no qual o sujeito consegue falar de uma
forma mais livre acerca de seu sofrimento.
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“[...] Colocar em palavras é uma atividade do ego que, assim, se enriquece
e adquire maiores poderes de reflexão; isso favorece a ampliação da rede
associativa e do poder sintético do sujeito, dando relevo ao que é falado e
narrado, impondo-lhe provavelmente, uma quebra de onipotência [...]”
(FIGUEIREDO, 2009; P. 35).
De acordo com Winnicott (1970), a confiança constitui uma condição essencial
para o habitar e o existir no próprio corpo, e com isso enraizar-se no soma e
personalizar-se. Porém, para que tal situação aconteça, é necessário um ambiente
responsivo e empático, que ofereça espaço e tempo adequados para o desenvolvimento
de um pensamento criativo. (FIGUEIREDO, 2009). O espaço transferencial se propõe a
ser este ambiente.
Referências
ALMEIDA, Ronaldo Monte. O lugar da cura: construção da situação psicanalítica.
João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007.
ALMEIDA, Ronaldo Monte. Sofrimento e mudança. Reflexões sobre o mal-estar
contemporâneo. João Pessoa, 2012.
CECCARELLI, Paulo Roberto. As repercussões das novas organizações familiares
nas relações de gênero. Cronos, v.7, n.2, jul/dez. 2006 (no prelo).
COSTA, Veridiana Alves de Sousa. Lei simbólica, desamparo e pânico na
contemporaneidade: um estudo psicanalítico. UNICAP. Pernambuco, 2005.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de
psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta,2009.
FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização (1915). ESB. Rio de Janeiro: Imago,
v.XXI, 1ª Ed., 1974.
PEREIRA, Mario Eduardo Costa. Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico. São
Paulo: Editora Escuta, 2008.
WINNICOTT, Donald W. A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo:
Martins Fontes, 2011 – 4ªEd.
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