O Efeito Depressivo Eduardo Mendes Ribeiro As estatísticas médicas e farmacêuticas indicam que vivemos em tempos de depressão. Nada de novo nesta constatação. Entretanto, chama a atenção o fato de outras avaliações de nossa sociedade apontarem para a direção oposta: cada vez mais, percebemos a existência de uma cultura dinâmica, voltada para a busca de prazeres imediatos, que reconhece e valoriza (quase) todas as formas de gozo. Nos tornamos maníacos e depressivos, mas não necessariamente ciclotímicos. Talvez seja mais preciso afirmar que uma sociedade maníaca tende a produzir subjetividades depressivas, pois, se o ideal social que nos serve de referência preconiza que todo sofrimento deva ser superado, encontra-se desvalorizado, todo aquele que não consegue ajustar-se aos modelos de felicidade propostos. Cada sociedade, ou cada época, produz suas próprias formas de gozar e sofrer. Para percebermos estas mudanças em nossa sociedade, basta analisar e comparar três textos sobre esta temática, escritos em épocas distintas: “O século nevrótico”, de Paulo Mantegazza, escrito em 1896; “O mal-estar na civilização”, de Freud, escrito em 1930; e “A era do vazio”, de Gilles Lipovetsky, escrito na década de 80. No texto de Mantegazza, o século XIX é definido como fisicamente nevrótico, moralmente hipócrita e intelectualmente cético. Para ele, as diversas expressões de “nervosismo” (hipocondria, histeria, mania, apatia, etc...) eram atribuídas a algum tipo de problema “dos nervos”, ou seja, neurológico. Segundo esta perspectiva, que ainda hoje pode ser encontrada em certos meios populares, padrões de comportamento e humores eram situados no plano físico-moral, onde a moral definia o que deveria ser considerado como patológico, e a fisiologia explicava suas causas. Para Mantegazza “O nervosismo pode ser passageiro ou permanente. Até o homem mais pacífico deste mundo pode tornar-se nevrótico durante algumas horas do dia ou durante alguns dias da semana, quando, por um trabalho excessivo, ou por uma perda demasiada de sangue, ou por um abuso qualquer das forças vitais, ou por ter comido excessivamente pouco, se encontra em um estado de agitação ou de excitabilidade extraordinária. Suprimida a causa, cessa o efeito. Outras vezes, pelo contrário, herdamos dos nossos progenitores, ou de um só deles, e mais freqüentemente da mãe que do pai, um estado particular do sistema nervoso, que é extremamente excitável, e somos nevróticos em permanência,... Assim como temos indivíduos nevróticos, temos famílias nevróticas, populações nevróticas e tempos nevróticos.“ (Mantegazza, 1896) Portanto, em todos os casos o nervosismo se manifesta através de alterações neurológicas, adquiridas, ou por herança genética, ou por contingências sociais. Como não poderia deixar de ser, tratando-se de uma concepção pré-psicanalítica, não são consideradas as determinações psicogênicas. Passamos ao segundo texto... “O mal-estar na cultura” trata dos limites impostos à felicidade humana, limites estes considerados constituintes de nossa humanidade. Freud parte de uma análise das diversas estratégias, socialmente instituídas, utilizadas para minimizar o sentimento de mal-estar, para, depois, construir uma teoria que explique as fontes primeiras do sofrimento psíquico. As coisas são colocadas da seguinte forma: faz parte da essência de toda vivência social a repressão das pulsões individuais, o que produz sentimentos ambivalentes, conflitos inconscientes e sintomas. Contingências próprias do processo de constituição subjetiva de cada indivíduo definirão sua estrutura psíquica, ou seja, um tipo de subjetividade relativamente estável no que diz respeito à posição a ser assumida frente ao Outro (ou, frente à castração imposta pelo Outro). E, seguindo uma ordem lógica, em outro momento, as diferentes formas de inserção social a serem assumidas pelos indivíduos definirão seus valores e ideais, e, conseqüentemente, as estratégias que adotarão para lidar com seu mal-estar. Temos, portanto, em Freud, a descrição de um conflito universal entre cada indivíduo e a sociedade, esta sendo concebida como uniforme e representada pelo estágio atual do processo civilizatório. Perspectiva diferente é assumida por Lipovetsky, em “A era do vazio”. Neste livro, ele aponta para o caráter plural da sociedade contemporânea, e identifica uma tendência de busca de autonomia frente ao Outro, representada por um esforço permanente de transformação de si, objetivando a garantia de um máximo de bem-estar em um mundo privado. Esta interpretação parte da consideração da característica individualista de nossa sociedade, em que “liberdade” e “autonomia” apresentam-se como valores centrais. Entretanto, paradoxalmente, este eu superinvestido se vê esvaziado de sua identidade e dessubstancializado. A tentativa de desconsideração das histórias individuais e da herança familiar, e a indiferença frente ao futuro, podem produzir um estado de apatia da vontade e um sentimento de vazio interior. Esta fraqueza da vontade seria resultado da pluralidade e desagregação dos investimentos pulsionais, na medida em que falta um centro de gravidade que organize o todo, ou, em outras palavras, falta um significante paterno que sirva de referência. Existe um alto grau de consenso entre diversos analistas de nossa cultura em reconhecer que, na sociedade atual, torna-se cada vez mais difícil a constituição e consolidação de ideais capazes de servir de referência para os investimentos individuais e sociais. Este é o ponto que eu gostaria de enfatizar, e que me parece estar diretamente ligado ao problema da depressão. Considerando este breve percorrido histórico em torno de algumas interpretações do mal-estar, é possível apontar para um deslocamento destas concepções, do plano físico-moral para o plano psicossocial, sendo que, neste último, a psicanálise privilegia as trajetórias individuais e as formas particulares de apreensão da realidade social, e os modernos estudos culturais privilegiam o pólo social destas relações. O fato é que o domínio do psíquico passou a ser reconhecido como portador de uma lógica própria, que, entretanto, encontra-se intrinsecamente relacionada com a esfera cultural. Mas, paralelamente ao desenvolvimento destes campos de estudo (da psicanálise e dos estudos culturais), a psicofarmacologia e a psiquiatria biológica, herdeiras de um ideal científico, têm avançado na investigação das relações existentes entre o funcionamento cerebral e os comportamentos e sentimentos humanos. Eles representam a continuidade da tradição em que se situava Mantegazza e o senso-comum do século XIX, sendo que o “problema de nervos” foi substituído por problemas no funcionamento dos neurotransmissores, ou pela pesquisa genética. Deve-se levar em conta, entretanto, que em ciências humanas nenhum campo de saber é completamente autônomo, estabelecendo-se sempre uma “rede de significados”, para utilizar uma expressão de Geertz, em que as inter-relações acabam por se manifestar, como força de resistência a todo discurso com pretensões totalizantes. O resultado do entrelaçamento destas diversas perspectivas é a produção de conceitos e categorias que, na maioria das vezes, tornam-se imprecisos, podendo referir-se a realidades diferentes. O conceito de “depressão” é exemplar desta situação, pois, dependendo da perspectiva que se assuma, pode estar relacionado a um distúrbio orgânico, a uma dificuldade de integração social ou a um conflito psíquico. Mesmo que atualmente ganhem força as interpretações que procuram considerar, de forma articulada, as dimensões biológica, psíquica e social do ser humano, percebe-se que o discurso psicanalítico enfrenta resistências junto aos demais campos, ao revelar a natureza narcísica do conflito psíquico que produz os estados depressivos. Aliás, este parece ser o ponto em que a psicanálise mais dificilmente penetra em nossa cultura: a sexualidade infantil, o complexo de Édipo, a etiologia sexual das neuroses, etc. já fazem parte deste repertório de significações, através do qual é produzido um sentido para conflitos e sentimentos que a moral e a medicina explicavam de forma insatisfatória. Por outro lado, a noção de castração simbólica, por mais que tentemos traduzi-la para uma linguagem comum, ou que apontemos seus efeitos nas experiências de cada um, é difícil de ser aceita. Não é fácil abrir mão da idéia de que existe uma causa objetiva para nossos sofrimentos, e que é possível remove-la. Por mais que as evidências apontem o contrário, a sedução da idéia de uma felicidade sem lacunas é muito forte. Bibliografia: FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”, in Obras Completas de Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974. LIPOVETZKY, Gilles. A Era do Vazio. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1989. MANTEGAZZA, Paulo. O Século Nevrótico. Lisboa: Editores Santos & Vieira, 1896.