Medicina

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Medicina
O ar rarefeito
POR RAFAEL CAMPOS
CORREIO
BRAZILIENSE
Brasília, domingo,
7 de outubro de 2012
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Carlos Vieira/CB/D.A Press
Os pacientes
de doença
pulmonar
obstrutiva
crônica
veem sua
autonomia
declinar à
medida
que o fôlego
diminui.
A maioria
deles foi
fumante
inveterado
na juventude
Uma brincadeira comum entre crianças é ver
quem consegue passar
mais tempo prendendo a
respiração. Respirar é um
ato tão fundamental que a
disputa se resume em saber quem consegue uns
segundinhos a mais de nariz tapado. Em sua inocência, os pequenos não imaginam a angústia de adultos cujos pulmões estão
debilitados após anos de
tabagismo. O desafio dessas pessoas é ter forças para fazer o oxigênio entrar
no organismo.
Nos casos de doença pulmonar obstrutiva crônica
(DPOC), respirar deixa de ser
natural para se tornar um esforço, pois as vias que carregam o oxigênio para os pulmões estão estreitadas (veja
infográfico). Para muitos
portadores desse mal, a solução é usar um cateter no nariz, ligado a um grosso cilindro de oxigênio — e viver assim.“Minha única mobilidade hoje é em casa, porque lá
tenho um fio bem longo que
O aposentado Luiz Carlos dos Santos depende do tubo de
me permite andar sem que o
oxigênio 24h por dia e, hoje, não pode nem sair de casa sozinho
cilindro fique perto. Mas não
posso sair sozinho, não dirijo
mais. Nem mesmo visito
meus filhos — são eles que precisam vir
Hoje Luiz Carlos é refém da oxigeaqui.” Falando pausadamente, o apo- noterapia domiciliar prolongada
sentado Luiz Carlos dos Santos, 70 anos, (ODP), modalidade de tratamento
lembra-sebemdorapazquecomeçoua reservada àqueles com insuficiência
fumar aos 14. Como outros de sua gera- respiratória aguda. Sempre acompação, foi atraído pelo charme que o nhado dos cilindros de O², ele é um
cigarro proporcionava, sem levar os ris- dos 466 pacientes com direito a recos em conta. Ao todo, foram quatro dé- ceber o gás gratuitamente pelo Gocadas de vício. Em boa parte desse tem- verno do Distrito Federal (GDF). O
po, fumou três carteiras por dia, o equi- tratamento é meramente paliativo. A
valente a 60 cigarros diários.
DPOC não tem cura e engloba várias
doenças, sendo as mais
graves o enfisema pulmonar e a bronquite crônica,
que aparecem juntas,
mas em graus diferentes.
“Ela se mostra nos processos inflamatórios dos
brônquios ou dos alvéolos, em um misto de situações”, explica o pneumologista Ricardo Martins. Segundo dados da
Sociedade Brasileira de
Pneumologia e Tisiologia
(SBPT), a doença reponde
pela morte de 40 mil brasileiros por ano, o que a
torna a quinta enfermidade mais perigosa no país.
A fumaça deletéria
Apesar de não ser o único fator de risco, o fumo é,
sem dúvida, o principal
causador da DPOC. “Em
80% dos casos, os pacientes são ou foram tabagistas”, garante o pneumologista Laércio Moreira Valença. Como os malefícios
do cigarro demoram a
mostrar seus efeitos, os primeiros sintomas não são
encarados como decorrentes do consumo. Os mais
comuns são os episódios
de tosse e as crises de falta de ar, que
começam a limitar atividades corriqueiras do paciente.
De modo geral, a ajuda só é buscada quando a situação se torna insustentável. O fumante acha normal se
cansar ao subir um lance de escada —
a “ficha” cai quando já não consegue
fazer coisas simples, como tomar banho sozinho.“Agora, tudo é difícil para
mim. Fico cansado em quase todas as
ações do dia. Só converso com as pessoas
se estiver usando oxigênio”, resigna-se
Luiz Carlos dos Santos. Entretanto, falta
de ar e tosse nem sempre indicam DPOC.
Somente após uma espirometria é que o
diagnóstico será completo. O exame consiste em soprar um aparelho que mede a
capacidade pulmonar. O teste deve ser repetido com frequência, de modo a avaliar
uma possível evolução do problema.
“Não há espirômetros suficientes em vários lugares do país. Em Rondônia, somente um aparelho atende todo o estado”, reclama Roberto Stirbulov, presidente SBPT. No DF, existem quatro deles na
rede pública, informou a Secretaria de
Saúde do Distrito Federal à reportagem.
Em abril deste ano, novas diretrizes
foram definidas para o diagnóstico, tratamento e prevenção da DPOC graças à
Iniciativa Global para Doença Pulmonar
Obstrutiva Crônica (Global Initiative for
Chronic Obstructive Lung Disease,
Gold, no original), entidade que reúne
especialistas e médicos em todo o mundo. De acordo com o documento, além
dos resultados da espirometria, a DPOC
deve ser avaliada em relação à gravidade
dos sintomas — tosse, falta de ar e catarro — e ao histórico de exacerbação deles. “Em 70% dos casos, essas exacerbações ocorrem por conta de infecções
bacterianas ou virais”, destaca Roberto
Stirbulov. Essas novas diretrizes dividem
os pacientes em quatro grupos, a partir
da seriedade dos pontos analisados, o
que vai ser decisivo para indicar o tratamento adequado. ➧
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Medicina
Malhar para respirar
vez que colocava algo na boca, porque
isso me chamava atenção para o cigarro. Acabava de almoçar? Fumava. Tomava um cafezinho? Fumava.” Ainda
na década de 1980, começou a sentir os
efeitos do vício. Porém, considerava-os
“coisa da idade” e pensava que fortificantes seriam suficientes para mudar o
quadro. “Mas sentia um desânimo só
de ver alguém caminhando na rua. Eu
me perguntava: ‘Como essa pessoa anda tão rápido?’.” Disciplinado, ele hoje
segue à risca o tratamento.
Uma das principais recomendações
para portadores da doença é atividade
física. Parece paradoxal sugerir exercícios para quem não consegue respirar
direito, mas é a partir da melhora da
função muscular que o enfermo consegue puxar melhor o ar para dentro de
Carlos Vieira/CB/D.A Press
Apesar do avanço gradual, os doentes têm a impressão de que o mal ataca de repente. Foi assim com o aposentado José Messias, 70 anos. Ele
lembra que estava animado para a festa de São João de 2003. Ao terminar a
montagem da fogueira, decidiu tomar
um banho e se vestir para a comemoração. “Quando comecei, fui sentindo
uma falta de ar, mas não me importei,
isso já era comum. Só que, naquele
dia, foi muito pior. A sensação é que eu
estava morrendo.” José Messias ficou
desacordado até ser acudido pelo filho
e levado às pressas para o hospital, onde ficou internado por sete dias. O
diagnóstico: DPOC.
José fumou dos 14 aos 50 anos. Era
da Marinha e, nas viagens, sua única
distração era o tabaco. “Fumava toda
Até descobrir a
DPOC, José Messias
imaginava que
o cigarro não
faria tão mal.
Hoje, tem a vida
limitada pela
doença
Tratamento
pelo SUS
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si. De acordo com o fisioterapeuta Sérgio Leite, um dos coordenadores do
programa de reabilitação pulmonar do
Hospital Universitário de Brasília
(HUB), o músculo sedentário tem dificuldades de captar o oxigênio, mesmo
em pacientes sem DPOC. Nesses, com
a debilidade dos pulmões, a situação é
ainda pior. “Na DPOC, o órgão primeiramente afetado é o pulmão. Em seguida, o sistema musculoesquelético. Os
pacientes entram em um círculo vicioso: fazem atividade, sentem falta de ar,
então param a atividade. Aí, respirar
fica ainda mais difícil”, resume.
A sala para a avaliação do paciente,
cheia de bicicletas ergométricas e pesos, é silenciosa. “Eles não conseguem
fazer os exercícios e conversar ao mesmo tempo porque o esforço é grande.”,
afirma Sérgio. Os exercícios são passados de forma progressiva, de modo a
evitar riscos e não desanimar — o
programa dura oito semanas.
Além da reabilitação muscular, para
fortalecer a capacidade respiratória,
quem tem o problema depende de medicamentos. No mês passado, o Ministério da Saúde anunciou que os pacientes terão acesso a remédios pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). Serão
distribuídos os fármacos budesonida,
beclometasona (corticoides inalatórios), fenoterol, sabutamol, formoterol
e salmeterol (broncodilatadores), antes
disponíveis apenas para o tratamento
de asma. Vacinas contra influenza e
oxigenoterapia domiciliar prolongada
(ODP) também foram incluídas. Os
gastos com o tratamento de pacientes
com DPOC na rede pública vêm crescendo. Em 2010, foram investidos R$
83,6 milhões. No ano passado, o valor
saltou para R$ 87,1 milhões.
Mesmo elogiando a medida, o presidente da SBPT, Roberto Stirbulov, lamentaaausênciadobrometodetiotrópio na lista, já que se trata de um broncodilatador muito usado por portadores da doença. “Faltou ouvir a sociedade. Nós juntamos 400 manifestações de
pacientes durante três meses e essa
medicação foi reivindicada. O que temos é um avanço, mas ainda incom-
pleto”, pondera. Paralelamente à Iniciativa Global para doença pulmonar obstrutiva crônica, o Ministério também
elabora um protocolo clínico para fixar
critérios de diagnóstico.
No DF, os pacientes se beneficiam
com o Programa de Oxigenoterapia Domiciliar desde 2006. A política pública
trouxe maior qualidade de vida a quem
faz uso do concentrador de oxigênio —
equipamento que estabiliza a função
respiratória.“Além disso, são fornecidos
broncodilatadores, corticoides orais,
inalatórios e sistêmicos”, informa a médica Graciene Silveira, assessora da Gerência de Atenção Domiciliar do Distrito Federal. Aqui, o brometo de tiotrópio
é oferecido gratuitamente. ➧
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“Sou prisioneiro de mim mesmo”, diz José Edmundo (E), que fumou durante 40 anos
Uma advertência
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Aos 15 anos, a aposentada Carmelita Aderalda da Silva, 63, fumou o
primeiro cigarro. Casou-se cedo, tendo no marido alguém que controlava
seu vício. “Eram dois ou três por dia,
nunca passava disso. Foi assim até os
50 anos, quando fiquei viúva”, lembra. A partir daí, a solidão foi compensada pelo fumo, e ela começou a
dar fim a uma carteira inteira. Como
o consumo era mediano, nunca havia considerado a possibilidade de o
tabaco fazer mal. “Daí, comecei a ter
dificuldades para me vestir. Passar o
sabonete era complicado e, se comia
algo mastigando muito, precisava
parar e descansar um pouco.” O aviso na embalagem é claro: “Não existem níveis seguros para o consumo
destas substâncias”.
Só que o poder viciante da nicotina
acoberta as letrinhas miúdas. “Cerca
de 60% das pessoas que fumam vão
se tornar viciadas. O tabagismo tem
relação com mais de 50 doenças”, garante Ricardo Henrique Meirelles,
pneumologista da Divisão de Tabagismo do Instituto Nacional do Câncer
(Inca). De acordo com José Jardim, diretor de ensino da SBPT, existem 4.721
substâncias conhecidas no cigarro. “E
mais 3 mil desconhecidas.” A DPOC
também pode ocorrer em quem trabalha com fogões a lenha, sendo essa
fumaça ainda mais perigosa aos pulmões. Como esse tipo de forno é uma
raridade, é mesmo o cigarro o grande
desencadeador do mal.
Quando diagnosticados, 65% dos
pacientes deixam de fumar. “Assim
que soube, decidi parar. Precisei de
três dias: no primeiro, foram três cigarros. No segundo, dois. No terceiro,
apenas um. A partir daí, nunca mais
pus um cigarro na boca”, revela o aposentado Luiz Carlos dos Santos. De
maneira geral, a doença leva 17 anos
para ser diagnosticado. Os médicos
usam a proporção ano/maço (um
ano fumando um maço por dia) na
tentativa de dar uma estimativa de
quantos cigarros devem ser fumados
antes de a doença se estabelecer. Em
média, a DPOC é caracterizada por 20
anos/maço, mas os tabagistas moderados, como Carmelita, também
adoecem. “O nome dessa doença parece até bonito, mas só até você conhecê-la de verdade. Depois, sente o
quanto é terrível conviver com ela”,
adverte a aposentada.
O arrependimento é uma constante. Com os cabelos brancos e a voz
sempre ofegante, José Edmundo Ferreira Assis, aposentado de 64 anos,
que fumou durante 40 deles, parece
até se esquecer do tubo de oxigênio
quando perguntado o que acha, hoje,
do cigarro, tamanha é sua exasperação. “Tenho horror. Me considero um
idiota por ter fumado. Hoje sou prisioneiro de mim mesmo. Quisera eu
poder colocar na cabeça das pessoas
o quanto isso é ruim.” Quem o vê tão
limitado — “Sou uma pessoa completamente sem autonomia sobre a minha vida por causa da DPOC” — se
convence disso rapidamente. ■
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