O discurso esquizofrênico de “vida simples” na TV Nesta semana, uma discussão foi levantada por uma declaração da apresentadora Bela Gil em sua página da internet. Em uma postagem, Bela – que é nutricionista por formação – recomendou o uso de cúrcuma, um tempero, para a limpeza dos dentes, em substituição ao creme dental, por não conter, em suas palavras, “flúor, sulfato, adoçantes, aromas artificiais, goma xantana e outros porcaritos” (leia aqui sobre o episódio). A declaração foi muito criticada nas redes sociais em razão de que a apresentadora – querendo ou não, figura pública, com mais de 350 mil fãs na página do Facebook – estaria assumindo uma postura irresponsável, ao fazer uma recomendação de saúde baseada mais em achismo do que em dados comprovados pela ciência. Vale lembrar que Bela Gil comanda o programa de culinária saudável Bela Cozinha no canal GNT, que faz parte do grupo Globosat, e que ela mesma tem-se tornado, nos últimos meses, uma espécie de meme fácil para ironizar o modismo do bem estar e vida simples. Conecto este episódio a uma matéria veiculada em uma das últimas edições do Fantástico (assista à reportagem aqui). Trata-se de uma reportagem investigativa que buscava desvendar o mito do “detox”, ou seja, do “rótulo” (literal ou discursivo) colocado em uma série de produtos e serviços que são oferecidos a um público em busca de vida saudável e equilibrada. A proposta da pauta, com muita clareza, era a de denunciar que muito do que é oferecido ao público como “detox”, na verdade, baseia-se mais num modismo que se sustenta pelo discurso do marketing – em resumo: propaganda enganosa – do que em ganhos reais à saúde. Ou seja, para o Fantástico, muito do que se anuncia – como dietas especiais, spas, retiros, produtos diversos que pegam carona na “onda gourmet”- não possui, afinal, respaldo na ciência. Seriam, portanto, crendice, achismo. Aparentemente desconectados, ambos os episódios se encontram ao explicitar um conflito no discurso televisivo entre duas lógicas presentes nas atrações das emissoras, alimentadas sob óticas distintas. Por um lado, o discurso da vida simples, do “menos é mais”, da “gourmetização” de tudo, no qual se inclui uma grande parte da programação televisiva atual, como os programas de culinária em vários canais, os muitos quadros do canal GNT, o programa Bem Estar e suas ordens para uma vida mais “natural”, as várias edições de Globo Repórter que festejam a simplicidade dos que largam tudo para viver com quase nada. Por outro, a lógica da ciência como palavra última, como lugar da verdade, da crença apenas naquilo que pode ser provado, um dos principais discursos vigentes pelo menos desde o Iluminismo. Nesta perspectiva, segundo apresenta o Fantástico, o discurso da ciência, então, silenciaria os outros discursos possíveis. Ao menos na teoria, é esta lógica que privilegia a voz de “autoridade” que impera nos manuais de jornalismo. Todo estudante é treinado desde cedo que a chave para uma boa matéria é buscar as melhores fontes; dentre elas, pesam, sem dúvida, as respaldadas pelo “selo” da ciência, do conhecimento gerado por meio do processo científico. Obviamente, é uma lógica que faz sentido e que assegura que muita irresponsabilidade seja evitada. Mas é nítido que há um contrassenso entre um discurso televisivo que valoriza este tipo de conhecimento e outro que exalta aquilo que viria de saberes outros, mais “primitivos”, digamos assim. Vejamos com mais detalhamento a estrutura da matéria do Fantástico. Ela se fundamenta em uma construção narrativa que coloca em disputa a “voz do povo” (os enganados), a voz dos comerciantes (responsáveis por enganá-los) e a voz da ciência (os médicos e demais especialistas consultados). A reportagem abre com uma consulta à população, ouvindo várias mulheres que, portando em mãos um suco “detox” produzido por uma vizinha, dão opiniões (iludidas?): “Você toma e sente que aquilo vai te fazer bem”, diz uma senhora; “é um suco mágico, que me livrou de uma série de problemas”, completa outra. Em seguida, a fala em off dos apresentadores Tadeu Schmidt e Poliana Abritta: “Mas o que este suco tem de tão especial? (entra uma cena de pessoas, em uma espécie de transe, gritando e se sacudindo) A mesma coisa que leva essas pessoas a um estado de êxtase, e estas outras a cobrir a barriga com argila sob o sol do meio dia”. A câmera volta a dar close na vizinha que prepara o suco “detox” e destaca as potencialidades do produto para a melhoria da saúde. Com muita nitidez, a reportagem explicita: ela não está autorizada a falar sobre o que fala. Para reiterar este sentido, um médico é chamado para opinar sobre o tal suco. Sua frase não poderia ser mais didática. “Isto parece muito mais uma crença religiosa do que um conhecimento que vem da ciência”, diz. Em uma espécie de ironia audiovisual, a construção é clara: tais pessoas não têm legitimidade para dizer o que dizem; os que “caem” nos truques do “detox” e se seduzem pelos ideais da vida simples são um tanto ridículos (e se submetem, por exemplo, a urrar no Fantástico ou a torrar a barriga com argila em pleno sol). Afinal, no que creem aqueles que fazem televisão? Qual é afinal o discurso que pretendem fazer perpetuar? Sob a perspectiva de que os meios de comunicação de massa – em especial, os que comunicam a uma imensidão de pessoas, como a TV – devem se responsabilizar sobre aquilo que divulgam, é no mínimo interessante observar esta espécie de esquizofrenia discursiva entre uma programação ainda pautada pelos ideais da ciência e aquela que busca inspiração em um retorno às origens, a um tipo de revisão daquilo que o avanço científico nos proporcionou (para o mal ou para o mal). Basta lembrar, por exemplo, que cada vez que o Globo Repórter divulga alguma fórmula milagrosa de saúde – legitimada pelos tais dados científicos -, nos dias seguintes os produtos se esgotam nas lojas das cidades. É apenas exemplo do quanto os veículos televisivos têm compromisso com aquilo que divulgam. Voltemos então à fala de Bela Gil e a polêmica da pasta de cúrcuma. Em resposta divulgada em seu site, Bela se defendeu: “Não sei por que o mundo tem que girar em torno dos artigos científicos, como se pudéssemos e devêssemos acreditar em todos eles sem reparar na tendenciosidade de muitos deles”. Eu talvez rescrevesse: seria interessante notar que legitimamos o discurso da ciência sem notar que ele é, afinal, discurso, e por isso não é neutro, nem definitivo, nem verdade gravada em pedra, nem uma “entidade” a ser aceita passivamente. Como dizia Foucault, cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade e discursos que faz funcionar como verdadeiros. Talvez equilibrar esta equação entre as diversas visões de mundo, entre os saberes possíveis, seja um grande desafio à televisão. *** Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha