I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 1 Identidades e hibridismos: pensar o reggae maranhense a partir da diferença1 Karla Cristina Ferro Freire, UFMA2 Resumo O reggae em São Luís é um fenômeno de massa. Popularizando-se entre as classes sociais mais pobres, antes mesmo de se tornar midiático, o ritmo, importado da Jamaica, conquistou espaço na Ilha através de um processo de identificação, que não compreendeu, necessariamente, uma imposição cultural. Com a ampliação do público do reggae, no entanto, o estilo musical ganha novas proporções, inclusive, na mídia hegemônica do Maranhão. A partir de então, verifica-se um movimento de segmentação do reggae, dos espaços, dos públicos e mesmos das formas de publicização do ritmo. Palavras-chave: Reggae – Cultura Midiática – Segmentação Introdução Se você for ouvir a música de Bob Marley mesmo e traduzir, você vai ver que é a coisa mais linda. É por isso que eu viajo, viajo (Claudinei Guimarães, instrutor de capoeira, em matéria exibida no dia 11 de maio de 2006 pela TV Mirante). Em Belém eu conhecia aquela coisa básica: Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh. Quando eu vim ao Maranhão passei a conhecer outros que eu não sabia e passei a gostar, e aí buscar a partir daí começar a colecionar (Sônia Soares, colecionadora de reggae, em depoimento no making of de gravação do DVD da Tribo de Jah, dia 02 de outubro de 2008). A gente fala massa regueira, nação regueira, não é a galera que vai pro bar do Nelson. É uma referência direta à massa popular do reggae, aquela que freqüentava o Pop Som, o Espaço Aberto, que ia pras grandes festas de reggae (Fauzi Beydoun, cantor da banda Tribo de Jah, em entrevista no dia 03 de outubro de 2008). A cidade de São Luís, no Maranhão, é propagandeada e conhecida por muitos brasileiros como Jamaica brasileira ou mesmo capital nacional do reggae. É perceptível que o reggae mobiliza milhares de pessoas e até envolve, de acordo com a Secretaria Municipal de Turismo, uma cadeia produtiva que agrega bandas, cantores, colecionadores, pesquisadores, grupos de dança, DJs, radioleiros, associações e ONGs, e empresários do ramo3. Mas o que é o reggae maranhense? Quais são as representações desse ritmo na mídia? Será que o reggae é a imagem divulgada pela indústria turística? A massa regueira da qual fala Fauzi Beydoun, gosta de Bob Marley? Em geral, não. Como pode a massa regueira não se identificar com maior ícone do reggae mundial? Como pode uma colecionadora de reggae dizer que Bob 1 Trabalho apresentado no I Musicom – Encontro de Pesquisadores em comunicação e Música Popular, realizado de 21 a 23 de outubro de 2009, no Campus da UFMA, São Luis - MA 2 Graduada em Comunicação Social (Jornalismo), com especialização em Jornalismo Cultural e mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected]. 3 A Secretaria Municipal de Turismo desenvolve, desde 2006, o projeto “São Luís – Ilha do Reggae”, cujo objetivo, segundo o folder de divulgação, é “promover o Reggae como produto turístico, por meio do fortalecimento de sua identidade, valorização dos costumes locais, da articulação e integração dos segmentos, visando a satisfação dos visitantes, comunidade e agentes dos segmentos do Reggae em São Luís”. No projeto, a Prefeitura considera como cadeia produtiva do reggae todos os segmentos acima citados. Foi, inclusive, formada uma Comissão Maranhense do Reggae, que tem representantes de cada um desses setores. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 2 Marley é “básico”? Se o bar do Nelson é um bar que toca predominantemente reggae, como pode o público de lá não ser a massa regueira? A resposta que me parece mais sensata a essas perguntas é: o reggae maranhense não é uma coisa só. Para pensar nesse reggae (ou seria melhor falar em reggaes?) recorro ao Mundo em pedaços de Clifford Geertz. Se o mundo em que vivíamos não existe mais e o que nos resta é um mundo estilhaçado, é preciso pensar nos fragmentos, questionar as categorias que representam uma visão universal como, por exemplo, a que mais me interessa aqui: identidade. Como fica a identidade nesse mundo onde domina um “sentimento de dispersão, particularidade, complexidade e descentramento”? (Geertz, 2001: 192). Para Geertz, a unidade e a identidade têm que ser refletidas a partir da diferença, pois “o catálogo de identificações disponíveis se expande” (Idem, 197). A cultura está em permanente mudança e, desta forma, a identidade cultural não pode ser solida e única, ela é fluida e é composta também de pedaços. A identidade é o que nos define socialmente, é uma construção que nos vincula a um determinado contexto. E o que nos define, nos define nos distinguindo daquilo que não nos é próprio. A identidade cultural é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela identifica o grupo (são membros do grupo os que são idênticos sob um certo ponto de vista) e o distingue dos grupos (cujos membros são diferentes dos primeiros sob o mesmo ponto de vista) (Cuche, 2002: 177). A identidade não existe, desta forma, senão em relação a outra identidade. Ela resulta de processos de identificação que ocorrem dentro de contextos sociais que influenciam na posição dos agentes e nas tomadas de posição e escolhas deles. Como defende Stuart Hall, toda identidade é fundada sobre uma exclusão; “todos os termos da identidade dependem do estabelecimento de limites – definindo o que são em relação ao que não são” (2003: 85). A identidade num contexto de globalização cultural A cultura no processo de globalização resulta de processos de hibridizações. Nesse contexto, os produtos culturais, enquanto mercadorias, não são simplesmente homogeneizados. Para Stuart Hall, a globalização contemporânea traz consigo duas tendências contraditórias: existem forças dominantes de homogeneização cultural, mas existem também processos que disseminam a diferença cultural e o que é “local” acaba por resistir aos fluxos homogeneizantes do universalismo (2003: 45 e 61). Portanto, A globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação (Hall, 2006: 87). Isso quer dizer que, ao lado da tendência de homogeneização das culturas, está uma fascinação pela diferença, que provoca a mercantilização da alteridade. É nessa conjuntura que a Indústria Cultural, descrita primeiro pelos pensadores de Frankfurt4, exarceba-se. A priori, todos são consumidores; e, hoje, consumidores especializados, uma vez que a Indústria atende a todos os gostos, personalizando as tendências, tratando os indivíduos singularmente, potencializando e cultivando a diferença, em vez de valer-se da padronização. “Trata-se por toda parte de substituir a unicidade pela diversidade, a similitude pelas nuanças e pequenas variantes, compatível com a individualização crescente dos gostos” (Lipovetsky, 1989: 162). 4 O termo Indústria Cultural foi criado por Max Horkheimer e Theodor Adorno na década de 1940 para designar a transformação, pela técnica, da cultura em mercadoria, em produtos alientantes e homogeneizantes. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 3 Apesar da força exercida pela indústria do consumo (reforçada pela influência da mídia de massa5 que predominantemente caminha pela mesma lógica), o gosto cultural não pode ser entendido cartesianamente apenas enquanto “imposição” de mercado, na medida em que a sensibilidade estética, as experiências individuais e o contexto sócio-cultural contribuem para a construção do gosto. Reggae: um ritmo híbrido e diaspórico O reggae é um ritmo que surgiu de um processo de hibridização na Jamaica e se internacionalizou, principalmente na voz de seu maior ícone, Bob Marley. Surgido nos anos 1970, o ritmo é uma mesclagem do mentho – música folclórica jamaicana – com vários gêneros musicais como os ritmos africanos, o ska e o calipso. Ao analisar a diáspora africana, Paul Gilroy ressalta que, além de ser um elemento de fragmentação e de trocas identitárias, o processo gerou o encontro de visões de mundo: é a partir desse deslocamento que os intelectuais passam a trabalhar idéias como hibridismo cultural e pan-africanismo, por exemplo. Gilroy (2001: 41) afirma que intelectuais como C.L.R. James, Stuart Hall, Cornel West, entre outros, contribuíram para que o foco da crítica cultural ultrapassasse a perspectiva nacionalista e ofereceram conceitos situados entre o local e o global. Isso implica em pensar na cultura não mais como uma unidade que tem uma origem, um lugar, mas como um algo híbrido, que se encontra no entre-lugar. Se a cultura caribenha é diaspórica (Hall, 2003: 34) e a diáspora provoca o encontro/confronto de culturas e tem como conseqüência a relativização de valores, essa cultura derivada de hibridismos é deslocalizada. Hall propõe também que a hibridização das culturas não seja encarada como perda, mas como ganho6. Por isso, ele defende que as novas formas musicais híbridas que surgem fruto da mistura não devem ser analisadas a partir da lógica centro/periferia, pois tanto centro quanto periferia produzem músicas novas que só são possíveis por causa dos encontros decorrentes da diáspora. Os processos de identificação da população de São Luís com o reggae As culturas negras da diáspora mostram-se abertas, inacabadas e internamente diferenciadas. Elas são formadas a partir de múltiplas fontes por movimentos que se entrecruzam no mundo atlântico [...] Elas são continuamente criadas e recriadas com o tempo e a sua evolução é marcada pelos processos de deslocamento e de reposição dentro do mundo atlântico, e pela disseminação através de redes mundiais de intercâmbio de comunicação e cultura (Gilroy apud Guerreiro, 2000: 98). Carlos Benedito Rodrigues da Silva (1995) percebeu o reggae em São Luís como um fenômeno de identificação da juventude negra da periferia. Segundo ele, na cidade, que possui uma população predominantemente negra, com raízes africanas e algumas 5 Leia-se jornais, emissoras de televisão e de rádio de grande circulação e audiência, que funcionam na lógica do lucro e da mercantilização. Sobre a influência dessa mídia de massa, Manuel Castells adverte que “a questão principal é que enquanto a grande mídia é um sistema de comunicação de mão-única, o processo real de comunicação não o é, mas depende da interação entre o emissor e o receptor na interpretação da mensagem” (Castells, 1999: 419-420). Isso quer dizer que o significado das mensagens midiáticas é dado essencialmente pelo receptor e não pelo emissor, como explica Umberto Eco (apud Castells 1999: 420): “A mensagem tem uma forma significante que pode ser completada com diferentes significados [...] o emissor organiza a imagem televisual com base nos próprios códigos”. 6 Ele cita Laclau: “Essa universalização e seu caráter aberto certamente condenam toda identidade a uma inevitável hibridização, mas hibridização não significa necessariamente um declínio pela perda de identidade. Pode significar também o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades. Somente uma identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia experimentar a hibridização como uma perda” (Laclau apud Hall, 2003: 87). I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 4 características culturais semelhantes às da Jamaica, o reggae foi sendo acolhido por uma questão de gosto, de identificação. Se na Jamaica o reggae era símbolo da expressão dos negros oprimidos, em São Luís, ele pode ser considerado também uma forma de resistência, uma vez que ampla parcela da juventude negra concentrada na periferia urbana de São Luís se mobiliza em torno do ritmo como instrumento de lazer e, ao mesmo tempo, como demonstração da capacidade de criar suas próprias alternativas de identificação, ainda que estes símbolos de identificação venham de fora (Silva, 2004). Assim, o reggae tem imensa popularidade na capital maranhense: de acordo com levantamento feito pela Secretaria Municipal de Turismo7, em 2008, existiam oito programas de rádio que somavam cinqüenta e duas horas de programação por semana, de domingo a domingo; dois programas de televisão, somando duas horas por dia, de segunda a sexta-feira; e cerca de sessenta radiolas8 de reggae em São Luís. Na década de 1970, o reggae era tocado em festas onde predominavam ritmos como merengue, lambada, forró e bolero. Assim, nos intervalos de seqüências mais agitadas, os discotecários passaram a tocar estilos cadenciados. Desta forma o reggae foi despontando no cenário musical da capital, onde era conhecido, no início, como música estrangeira lenta. Aliás, como estes ritmos que dominavam os salões populares da cidade eram dançados a dois e ninguém sabia o modo de se curtir o novo ritmo, o reggae passou a ser dançado agarradinho, como se convencionou dizer. Os maranhenses ressignificaram a dança, tornando-a mais sensual. Essa proximidade do som jamaicano com os ritmos caribenhos, que eram bastante tocados em São Luís na época, deu impulso ao reggae, que foi rapidamente conquistando um numeroso público. Em entrevista (2004), Carlos Benedito Rodrigues da Silva esclareceu que: A identificação com o reggae em São Luís pode ser explicada pela familiaridade do ritmo com o merengue, bolero, forró e outras manifestações culturais regionais como o tambor de crioula e o bumba-meu-boi. Além disso, há também muitas semelhanças culturais entre a Jamaica e o Maranhão. Ora, a cultura envolve também poder e “não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e lutas sociais” (Johnson, 1999: 13). Assim, em uma época em que as manifestações da cultura popular do Maranhão eram marginalizadas e ficavam praticamente restritas às classes mais pobres9, o reggae surgiu como um estilo musical próprio desta classe, predominantemente negra no Maranhão. Embora, naquele momento, no estado o ritmo não tenha assumido o caráter de protesto que possuía na Jamaica, passou a reunir em São Luís as classes mais oprimidas em torno de um estilo musical por uma questão de gosto. O reggae não implicou na perda das tradições regionais e das raízes locais. Há, inclusive, semelhança musical com os ritmos da cultura popular maranhense. No caso do bumba-meu7 Os dados estão presentes no “Guia Turístico do Reggae de São Luís”, lançado em dezembro de 2008 pela Secretaria Municipal de Turismo. A pesquisa foi feita por José de Ribamar Mendes Bezerra. 8 Radiola tradicional é a aparelhagem de som móvel que toca vinil e MD, e possui até quarenta caixas de som, com alto-falantes de grande potência. 9 Na década de 1990, as manifestações folclóricas às quais me refiro (como, por exemplo, o bumba-meu-boi) receberam incentivo através de políticas públicas do governo estadual, voltadas para o desenvolvimento de uma indústria turística, sendo, portanto, reconhecidas enquanto cultura popular legítima do Maranhão. Antes dessa política de valorização, as manifestações – a maioria de origem africana – eram praticadas à margem da sociedade pelas classes mais pobres, na periferia da capital e no interior do estado. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 5 boi, por exemplo, em uma matéria publicada na Folha de São Paulo de 18 de setembro de 1988, o jornalista Otávio Rodrigues, apresentador do primeiro programa de reggae do rádio brasileiro, disse que a identificação está na marcação dos couros do bumba-meu-boi, que é centrada em contratempos como acontece no reggae. Já Ramúsyo Brasil traça um paralelo entre o tambor de crioula e o reggae: Considerando seus respectivos ritmos, podemos fazer uma comparação entre seus elementos tímbricos: a guitarra, que no reggae produz o efeito da repetição, tem a função de dar a ginga ao reggae, assim como as matracas no Tambor. A bateria faz a pontuação da música, trabalha a dinâmica do som. Também é constatada tal função no “meião e no crivador”, que no Tambor, constituem a base da instrumentação, ou como também é conhecida pelos músicos, “a cozinha”. O “tambor grande” e o contra-baixo em seus respectivos gêneros são responsáveis pelos graves (maior vibração), ambos estão livres para criar arranjos com acentos inusitados, sincopados, fora da cabeça do tempo, nos contratempos e com notas fantasmas (2006: 10). A identificação musical vai ao encontro do contexto histórico-cultural, uma vez que as principais manifestações culturais do estado nasceram da cultura afro-descendente, assim como o reggae na Jamaica. Muitas vezes, o mesmo indivíduo – em geral, negro e pobre – que nas décadas de 1970 e 1980 lotava os salões de reggae, participava das manifestações da cultura popular tradicional do Maranhão, tais como o bumba-meu-boi e o tambor-de-crioula. A consolidação do ritmo jamaicano em São Luís se deu com as festas de reggae. Nelas, onde passaram a dominar as radiolas, é justamente a potência dos paredões de som que provoca uma espécie de “transe” nos clubes populares de reggae, como revela o promotor de festas José Ribamar Vieira Guimarães (2004): “O reggae é muito rico em termos de música. Isso faz com que a gente goste das ‘pedras’. A gente gosta daquilo que estremece”. A idéia de utilizar sistemas de som que pudessem ser deslocados para os mais diversos salões de reggae da capital foi inspirada nos sound systems jamaicanos, que eram tipos de discotecas ambulantes utilizadas para driblar o controle governamental. A diferença, porém, está no tamanho: enquanto os sistemas de som jamaicanos eram compostos de poucas caixas alojadas em carros de passeio, a maioria das radiolas maranhenses precisa de dois ou três caminhões para ser transportada. Para fazer sucesso, as radiolas investem nas músicas jamaicanas mais antigas, o denominado reggae roots, o preferido do público dos clubes da periferia, como explica o promotor de festas José Ribamar (2004): O regueiro de São Luís só gosta do reggae jamaicano, aquele bem lento que se dança agarrado. Tem muita música que fica guardada com os donos de radiola por até dez anos. São as músicas de bilheteria, que chegam a custar até dez mil reais. Estas músicas exclusivas, garantia de sucesso, são reggaes jamaicanos dos anos de 1960 e 1970 comprados diretamente nas feiras da Jamaica e de Londres. Desde que se descobriu essa fonte no exterior, o mercado das radiolas passou a se alimentar da exclusividade e as radiolas travavam uma guerra pela preferência dos regueiros – que têm como objetivo “ir a uma festa e ouvir as músicas exclusivas de sua radiola e sentir a motivação, o delírio do discotecário ao executá-las” (Araújo, 2004: 04). As músicas mais famosas entre os fãs são as pedras. Assim são chamados os reggaes que conquistam o público pela sua força e pela I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 6 levada: pedrada, tijolada, pedra de responsa são alguns termos da linguagem do regueiro que caracterizam as músicas que mais empolgam a massa regueira. Como a maioria dos fãs do reggae de radiola em São Luís não entende as letras cantadas em inglês, foi preciso dar um novo sentido às músicas, e são os criadores dos melôs que constroem esse significado. Na maioria das vezes, eles utilizam um trecho da música que se pareça com alguma palavra em português para criar a identificação do som, através de uma adaptação fonética. Exemplificando, podemos observar o caso da música White Witch, da banda Andrea True Conection, conhecida em São Luís como “melô do caranguejo”. O refrão deste reggae diz White witch’s gonna get you (A bruxa branca vai te pegar). Ao escutar, o regueiro maranhense “entende”, no entanto, “olha o caranguejo”, o que deu origem ao nome do melô. Mas não só as músicas raras garantem o retorno financeiro das radiolas, até porque, já nos anos 2000, poucos são os Dj´s que continuam descobrindo as músicas antigas jamaicanas. Muitas músicas já são produzidas digitalmente nos estúdios de São Luís. No entanto, a qualidade dessas músicas eletrônicas, conhecidas como reggae robozinho – é questionada por vários fãs, músicos e colecionadores de reggae: É uma conveniência das radiolas, né? Aí eu acho que os donos de radiolas têm um papel determinante. Até então era aquela briga pela exclusividade. O pessoal ia pra Jamaica buscar e isso foi ficando escasso realmente, embora hoje tenha uma produção de reggae mundial muito grande: tem bandas no Havaí, nos Estados Unidos, no Canadá, na Suécia, na Hungria, na Rússia, no Japão... tem bandas excelentes de reggae, só que o pessoal tá muito desinformado, totalmente alienado. Então eles deixaram de ter aquele papel do descobridor das pedras para pegarem assim mecanicamente nesse repertório que é conhecido, que é produzido aqui, e fazer sua seleção. O reggae deixou de ter aquele componente cultural. A música jamaicana original é bonita porque é uma cultura genuína, linda, própria, com um grande teor de poesia, de cultura realmente (Fauzi Beydoun, entrevista 03/10/2008). É pública e notória a crise de identidade pela qual passa o reggae no Maranhão, principalmente no que diz respeito às radiolas que optaram por um ritmo musical pobre, chamado popularmente de “robozinho”, “bate lata”, “couro” ou “música de maluco”. Como também se pode notar nos últimos cinco anos a ascensão crescente e vertiginosa dos chamados “bares de reggae” [...] Sem mencionar nomes, podemos dizer que o público freqüentador dos bares é realmente, hoje, a parcela mais significante do chamado “Movimento Reggae” do Maranhão. Os regueiros de verdade, alguns saudosistas amantes do reggae de raiz com idades entre os 35 e 50 anos, colecionadores, discotecários de radiolas dos anos 70 e 80, DJs, na sua grande maioria, os freqüentadores são pessoas que buscam tranqüilidade, boa música, um papo com os amigos e, acima de tudo, reviver os bons tempos. (Tarcísio Ferreira, professor universitário fã de reggae: Jornal Pequeno, junho 2008). Falando de reggaes... Os regueiros de verdade aos quais se refere Tarcísio Ferreira são, em geral, o público que freqüentava os clubes ditos tradicionais, localizados, em sua maioria, na periferia da cidade. É esse regueiro também que faz parte da massa regueira da qual falava Fauzi Beydoun. Já os freqüentadores dos bares de reggae (como o Bar do Nelson, citado por Beydoun) não são regueiros, assim como o reggae robozinho já não é o mesmo reggae cultuado por colecionadores e fãs do reggae. Desenhando o quadro do reggae em São Luís, parece um emaranhado complexo de gostos, identidades, interesses e caminhos diferentes, que, no entanto, não deixam de se entrecruzar. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 7 Existem pelo menos três tipos de movimentos que se pode enxergar, mesmo que eles às vezes se confudam, se entrelacem: primeiro, o reggae descrito por Carlos Benedito da Silva, o reggae de gueto10, que mobilizava (e ainda mobiliza) as populações das periferias de São Luís, que conquistou fãs (os quais agregam dançarinos, colecionadores etc.). Ao lado desse tipo de reggae, há um movimento muito recente de fabricação dos reggaes nos estúdios da cidade. Diferentemente dos cantores e das bandas maranhenses que vêm fazendo um som há um certo tempo, esses novos cantores geralmente fazem covers de músicas de grande sucesso dos salões, com gravação de baixa qualidade, como critica Beydoun: “Parece uma música só do começo ao fim. Tem a mesma pegada e entra um, sai outro, todo mundo cantando desafinado. E letras incompreensíveis, um inglês macarrônico assim, coisa sem pé nem cabeça” (entrevista em outubro de 2008). O reggae robozinho, como está sendo chamado pelos freqüentadores dos clubes, tem esse nome porque é gravado mecanicamente (o que reduz muito os custos): sem banda, apenas com um computador que simula todos os sons ou ainda com um teclado de auxílio. O ritmo perde a cadência, o arranjo é repetitivo e, em alguns casos, está mais acelerado, provocando a mudança na forma de dançar. Os clubes ditos tradicionais já fazem festa com os dois tipos de reggae: o antigo que se pode dançar aos pares e o robozinho, que se dança em geral sozinho. Um terceiro movimento é o dos bares de reggae, que já tocam um reggae diferente (identificado pelos freqüentadores como roots) para um público de classe média, onde as bandas maranhenses têm espaço (pois dificilmente elas se apresentam em clubes “tradicionais”). O próprio Guia Turístico do Reggae de São Luís, lançado em 2008 pela Prefeitura, diferencia a massa regueira do público dos bares: A gente do reggae, ou seja, a massa regueira, a galera das pedras (pedra é um reggae bom, envolvente, muito gostoso de dançar e ouvir), como se diz na linguagem do reggae, é formada, em grande parte, por pessoas negras, oriundas de estratos sociais de baixa renda. Entretanto, vale ressaltar que o reggae em São Luís não é freqüentado exclusivamente por negros ou por outras pessoas da periferia. Há, nesse universo, pessoas de diferentes etnias e de todas as camadas socioeconômicas [...] (2008: 14). Percebendo essa segmentação do público, os radioleiros, enquanto empresários, começam a customizar o produto que vendem, como observou Tarcísio Ferreira: [...] lembramos que Pinto Itamaraty, de olho nessas mudanças que estão acontecendo em relação aos bares e os emergentes grupos de colecionadores, inteligentemente, anunciou em alto e bom som em seu programa de rádio que vem aí a Itamaraty Roots, que vai operar dentro desta forte tendência do movimento regueiro (Jornal Pequeno, julho 2008). Refazendo o caminho das pedras: A midiatização do reggae em São Luís O fenômeno do reggae em São Luís, enquanto cultura midiática, foi um movimento que ocorreu de baixo para cima, das classes sociais mais populares para a elite, ao contrário do que acontece com a maioria dos produtos promovidos pela Indústria Cultural. Do ponto de vista da hibridização, no caso do reggae no Maranhão, esta não pode ser entendida como uma 10 A expressão gueto é muito utilizada por vários interlocutores (principalmente músicos de bandas de reggae maranhense) para designar lugares da periferia da cidade, ou mesmo os clubes de reggae considerados tradicionais (que ficam nos bairros populares). I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 8 imposição cultural ou mesmo como uma aculturação11, uma vez que o movimento conquistou primeiro as classes populares – por uma série de fatores que incluem, sobretudo, a identificação e o gosto – e, só depois, foi adaptado e admitido também pelas classes média e alta. Além disso, como já foi dito, o reggae não implicou na perda das tradições regionais. Assim, a trajetória do reggae, que começou na capital maranhense na década de 1970, nos salões populares de festa, durante praticamente uma década permaneceu fora do circuito midiático, como explica Brasil: Chamamos de cultura não midiatizada porque, nesse espaço de tempo, que vai de meados dos anos 1970 a meados dos anos 1980, o reggae em São Luís não possuía espaço geográfico e midiático próprio de veiculação e de difusão (2006: 12). São as radiolas e clubes de reggae que, conquistando um espaço no cenário musical da cidade, fizeram a ponte para que o reggae assumisse um caráter midiático. A própria radiola, que se desloca de salão em salão, levando as pedras e um Dj-estrela que comanda a festa interagindo com o público, é considerada por Brasil a primeira mídia genuína do reggae. A figura do Dj aparece como um comunicador, na medida em que ele apresenta e comenta as músicas, dá recados, divulga outras festas, fala com o público até mesmo durante as músicas, tornando-se, assim, um mediador12. Mas, foi na década de 1980 que surgiram os programas de rádio FM especializados em reggae e, em seguida, de televisão. De acordo com a pesquisa feita por Silva, o primeiro programa específico sobre o ritmo em São Luís foi o Reggae Night, apresentado entre 1984 e 1986 por Ademar Danilo e Fausi Beydoun: Somente a partir do “Reggae Night” começaram a ser produzidos outros programas que, além das músicas, apresentam comentários sobre os principais fatos relacionados aos cantores de reggae da Jamaica e divulgam festas que acontecem semanalmente em São Luís (1995: 87). Criados pelos próprios donos de radiolas e de clubes ou por pessoas já envolvidas com este mercado, os programas de rádio e TV são veículos de divulgação do ritmo, voltados para a massa regueira freqüentadora dos clubes populares. Estes programas têm um formato que segue o modo de comunicação do Dj: o locutor usa uma linguagem própria, com termos popularizados entre o público-alvo, anuncia festas e apresenta novos melôs. O processo de legitimação do reggae pela classe média Entre os anos de 1980 e 1990, um novo público começou a aderir ao reggae: universitários, essencialmente de classe média. Integrantes da intelectualidade maranhense, os estudantes universitários costumam se aproximar das manifestações da cultura popular e marginal. Quando o reggae começou a ser percebido como um fenômeno de periferia e não mais simplesmente como uma conseqüência da invasão cultural estrangeira, os universitários encontraram dois espaços – que merecem destaque – para a apreciação do reggae. Primeiro, o Tombo da Ladeira, que na década de 1990 tornou-se sucesso no meio universitário. O bar 11 O termo aculturação está sendo usado no sentido dado por Peter Burke (2003): está ligado à idéia de que uma cultura subordinada cede à imposição da cultura dominante, adotando suas características. Para Burke, a hibridização é entendida como troca de elementos culturais, interpenetração entre culturas a partir de seu encontro, que pode resultar em quatro reações: aceitação (que provoca a aculturação), rejeição, segregação e adaptação, implicando ou não na perda de tradições regionais. 12 O mediador como um agente comprometido em facilitar o diálogo e o entendimento, transmissor de conteúdos; possuidor, portanto, de credibilidade, de capacidade de criar harmonia e facilidade de comunicação. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 9 ficava em uma ladeira no Centro Histórico de São Luís em frente à sede da escola de capoeira do Mestre Gavião, que tinha o mesmo nome. No início, o local era um ponto de encontro dos capoeiristas, que saiam do treino e iam se divertir dançando reggae na ladeira. Como muitos dos praticantes eram universitários, o Tombo da Ladeira começou a lotar todas as quartasfeiras e, durante alguns anos, foi um local de divulgação do ritmo fora da periferia, no centro cultural da cidade. Depois, o bar do Nelson, localizado na Avenida Litorânea, praia do Calhau. Assim como o Tombo da Ladeira, o bar do Nelson foi essencial para a consagração do reggae para o público de classe média. Como ficava em uma das praias mais elitizadas de São Luís e o transporte público era mais escasso, o bar do Nelson tinha um público relativamente específico: universitários, intelectuais, poetas.13 Além do público diferenciado em relação aos freqüentadores dos clubes de reggae, os dois bares também começaram a difundir outro tipo de reggae (apesar do predomínio do reggae roots), partindo do resgate da filosofia e dos significados originários do estilo musical jamaicano. No bar do Nelson, por exemplo, a responsável pela discotecagem era a radiola Vibration Sound. Com um aparato de som bem menor do que os paredões de caixas de som das demais radiolas, a Vibration optava, em geral, por músicas de Bob Marley, Peter Tosh e outros grandes cantores do reggae jamaicano, ao invés dos cantores considerados mais românticos, como John Holt, Gregory Isaacs e Erick Donaldson (os preferidos das radiolas que tocam em clubes). O Dj Andrezinho Vibration também não era parecido com os demais Dj´s de radiolas e sim com Dj´s comuns. Ele apenas colocava a música para tocar e fazia as mixagens, sem falar, comentar ou divulgar outras festas. A esta altura, os universitários gostavam de reggae, mas não se identificavam com os melôs, pois eles entendiam as letras ou, se não entendessem, buscavam a tradução para compreender a mensagem das músicas. O ícone internacional Bob Marley passou, então, a ser o ídolo maior desse público, pelas letras que falavam de paz, harmonia e felicidade. Desta forma, o reggae, tradicionalmente ouvido nas radiolas em São Luís, passou a ser feito ao vivo pelas bandas maranhenses, que encontraram como público justamente os universitários que se identificavam com Bob Marley e freqüentavam o Tombo da Ladeira e depois o bar do Nelson, já que nos clubes tradicionais de reggae o domínio era das radiolas, como explica Fauzi Beydoun, em entrevista à Revista Massive Reggae: O começo foi muito difícil devido ao descrédito total em relação à banda e à falta de recursos, porque os instrumentos eram muito precários e o público do reggae estava acostumado com a potência das grandes radiolas e, sobretudo, com o reggae puramente jamaicano. A gente chegou a receber até vaias quando tocamos dentro de um clube de reggae. Relembrando Stuart Hall, percebe-se nesta fala de Beydoun a identidade marcada pela exclusão: nos clubes não se gosta de ouvir bandas e sim as radiolas. Já nos bares de reggae, são as bandas que fazem sucesso, e as tradicionais radiolas geralmente não têm vez. As bandas maranhenses também tiveram papel importante na conquista desse público de classe média, uma vez que faziam um reggae geralmente com letras de protesto, buscando a valorização da filosofia de Bob Marley e dos ritmos maranhenses, e com letras em português, como explica Fauzi Beydoun, vocalista da Tribo de Jah, uma das primeiras bandas a fazer sucesso nacionalmente e que inspirou muitas outras posteriormente: 13 Além desses dois espaços, existiam outros locais, como, por exemplo, o Espaço Cultural, que realizava já nos anos 1980 grandes shows de reggae e começava a atrair pessoas da classe média. O enfoque aqui foi dado ao Tombo da Ladeira e ao bar do Nelson porque estes bares consolidaram, de fato, o ritmo para um novo público. I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 10 [...] a Tribo teve esse papel de transpor para o português e para o Brasil toda a temática original do reggae. Ela foi a primeira banda que falou em Jah, Babilônia, em roots. Nunca ninguém jamais tinha citado esses conceitos. Então a partir daí a banda passou a imprimir uma cultura reggae a nível nacional (entrevista em outubro de 2008). Assim como aconteceu com o baião, que começou como fenômeno de massa no Nordeste e conquistou os universitários do Sudeste do país para, então, tornar-se reconhecidamente um estilo musical legítimo da música popular brasileira (Ferreti, 2007), foi na década de 1990, com a legitimação do reggae pelos estudantes universitários e intelectuais maranhenses, que a mídia hegemônica de São Luís passou a publicizar com mais freqüência o reggae enquanto estilo musical de expressão no Maranhão. No caso da Tribo de Jah, foi fazendo sucesso no Sudeste do Brasil que a banda se projetou nacionalmente, embora já fosse sucesso entre um público de surfistas, universitários e outras camadas da classe média desde o início da década de 1990 no Nordeste. Para Beydoun, esse público teve um papel importante na disseminação do reggae maranhense para outros setores da sociedade além das periferias: A classe média, como tem mais acesso à informação cultural, eles acabaram entendendo o reggae de uma outra maneira. Eu acho que a classe média na verdade teve um papel fundamental da inserção do reggae num contexto digamos mais na sociedade. [...] Hoje em dia tem muita gente da classe média que diz “ah, eu gosto de reggae, eu curto reggae”. Então eu acho que essa adesão da classe média na verdade fez com que o reggae fosse mais consensual em termos sociais no Maranhão. Você percebe isso, embora essa galera não vai se dispor a ir – é até compreensível né? – em gueto (entrevista em outubro de 2008). O fato de a classe média não se dispor a ir ao gueto, mas se interessar pelo reggae, que surgiu como expressão da identidade das populações negras e pobres (quer se veja o reggae na Jamaica ou, seguindo o raciocínio de Silva, em São Luís), intriga José Jorge de Carvalho: [...] entender por que, subitamente, um setor da classe média branca precisa posar de nativo de tradições populares e, às vezes, até invadir diretamente o espaço expressivo das classes populares (sobretudo afrobrasileiras) em uma tentativa de performar para si mesma que aquela cultura popular lhe pertence, quando historicamente tem sido um emblema da resistência das comunidades afrobrasileiras justamente contra a discriminação que ainda sofrem pelas mãos dos brancos (2004: 70). Talvez, uma resposta parcial a esse questionamento seja pensar no processo de identificação da classe média com uma cultura que, a princípio, representaria a identidade das classes populares, a partir do que Homi Bhabha chama de identidades diferenciais (1998: 301), que são constantemente negociadas, híbridas e transitórias. A globalização cultural é figurada nos entre-lugares de enquadramentos duplos: sua originalidade histórica, marcada por uma obscuridade cognitiva; seu “sujeito” descentrado, significado na temporalidade nervosa do transicional ou na emergente provisoriedade do “presente” (Bhabha, 1998: 297). O raciocínio de Bhabha esclarece porque um sujeito de classe média branca pode se identificar com a cultura do reggae – já que em uma perspectiva de globalização cultural o leque de identidades se expande e os limites se afrouxam, deixando as identificações mais fluidas e efêmeras – no entanto, o que é mais complicado é pensar como se dá essa identificação? Na visão de Carlos Benedito da Silva, mesmo com a expansão do reggae para áreas da cidade consideradas mais higienizadas e com a ascensão de novos públicos de classe média, o ritmo não é aceito por estes grupos como identidade cultural maranhense. Para ele, o consumo da cultura do negro pelo branco se dá como diversão e como moda, enquanto I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 11 espetáculo midiático, o que, inclusive, não diminui as desigualdades sociais nem a discriminação racial. Em dois depoimentos colhidos por Silva fica clara a manutenção da segregação racial e o tratamento diferenciado da sociedade (aqui na figura da polícia) para com os brancos presentes nos reggaes: No tempo que a polícia vivia baixando o pau na negrada, os brancos nem sabiam que o reggae existia. Agora que o reggae virou moda, os brancos começam a invadir o salão e a gente não tem mais espaço pra dançar (Guiu Jamaica, dançarino, apud Silva, 2007: 121). Quando a polícia chegava no salão, baixava o pau em todo mundo. Agora não, os brancos descobriram o reggae e os negrinhos já não têm mais lugar para dançar porque o reggae ta ficando caro, e se a gente não se organiza a gente perde o nosso espaço (Ruy Pinto, capoeirista, apud Silva, 2007: 123). A proposta das bandas maranhenses: identidade de resistência A polêmica a respeito do título Jamaica brasileira já é antiga. Os defensores da Atenas brasileira, como foi colocado por Silva, não toleram que São Luís hoje sustente esse título ligado ao reggae. Um exemplo é o professor de Língua Portuguesa, Ubirajara Rayol: No momento em que os meios de comunicação maranhenses passam a cognominar a nossa ao Luís não mais de “Atenas brasileira”, mas de “Jamaica brasileira”, urge que se repudie tamanho e tão deplorável abuso. Não se conhecem na história da Jamaica feitos nos campos das letras, artes e ciências. Sabe-se das lutas de seu povo contra os colonizadores ingleses [...]. Por outro lado, a Grécia antiga continua sendo um ponto de referência para a cultura ocidental [...] De repente, muda-se o epíteto, belo e dignificante, de Atenas brasileira, para este, atroz e destruidor: Jamaica brasileira (Rayol: O Estado do Maranhão, abril 1991). Essa visão, entretanto, vem sendo rebatida tanto pelo Movimento Negro (organizações como o Centro de Cultura Negra e o Laborarte, músicos, grupos de dança etc.) quanto por trabalhos acadêmicos, sobretudo os do antropólogo Carlos Benedito da Silva. Mas outros setores sociais já reconhecem o reggae como um elemento da cultura maranhense: a mídia de forma geral incorporou e naturalizou a expressão Jamaica brasileira, e até representantes da Academia Maranhense de Letras já não vêem mais o reggae como uma invasão cultural nociva: [...] A gente deveria advogar como cultura original do Maranhão, essa mistura, esses povos que vieram para cá, índios, franceses e negros, tudo caldeou numa cultura com uma cara maranhense [...] Então o fato de aqui ter chegado o reggae não me causa nenhuma oposição, até porque sei que o reggae é uma expressão forte da raça negra e o Maranhão é um estado essencialmente negro [...] (Jomar Moraes apud Silva, 2007: 75-76). Mas são as bandas maranhenses, muitas delas ligadas ao Movimento Negro, que surgiram com o intuito de utilizar o reggae como forma de protesto e de afirmação da identidade do negro. O reggae feito pelas bandas é, de fato, diferente do tocado nas radiolas maranhenses. Além de a maioria das letras das músicas serem em português e falarem de problemas sociais locais, algumas bandas misturam a batida do reggae roots jamaicano aos ritmos locais, como tambor-de-crioula e o bumba-meu-boi. Na proposta das bandas também aparece a filosofia do reggae e a identificação cultural – o reggae é visto como música de resistência, como esclarece o músico Tadeu de Obatalá, da banda Guetos, em matéria exibida pela TV Mirante, no dia 17 de março de 2006: I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 12 A gente sempre quis fazer música negra, então fazia samba, mina, nosso tambor de crioula, bumba-meu-boi, fazia blues [...]. Aí o reggae falou mais alto porque rola uma identificação com o nosso cotidiano, nossa história, com toda essa ancestralidade que a gente traz na nossa música. E isso tudo também fortalece a identificação com o público. O exemplo da Guetos é importante para se perceber uma contradição latente no cenário do reggae em São Luís. Criada em 1993 por músicos integrantes do Centro de Cultura Negra do Maranhão, ao se afirmar enquanto uma banda de reggae maranhense, que se propõe a discutir o racismo e estudar ritmos e sons de origem africana como o blues, tambor-de-crioula, afoxé e bumba-meu-boi, a Guetos se afirma rejeitando a proposta das radiolas (considerada mercadológica pelo grupo), como fica claro no depoimento do músico Sérgio Barreto, exvocalista da banda: Esse lance de Jamaica brasileira é mais um esteriótipo criado pelo Fauzi no programa Conexão Reggae. Nada contra a expressão, mas sim os motivos pelos quais ela é usada. Porque depois os outros caras das radiolas começaram a divulgar isso aí pra vender, saca? As radiolas, de modo geral, são totalmente alienantes (entrevista em fevereiro de 2004). A banda parece tentar desenvolver um trabalho voltado para o que Manuel Castells chama de Identidade de Resistência: Criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos [...] (1999: 24). No entanto, o público das radiolas é exatamente a população da qual eles falam em suas letras: a juventude negra da periferia. E essa juventude, em geral, não ouve as bandas maranhenses, pois está ligada ao reggae muito mais pelo ritmo, pelo dançar, e se identifica com o reggae dos clubões, quer seja o reggae antigo jamaicano, quer seja o reggae robozinho produzido em São Luís. O protesto exposto nas letras da Guetos, portanto, chega mais às classes média e alta que às classes mais populares, alvo das discussões. O reggae de salto alto: a classe média também não é uma coisa só Nos anos 2000, a divulgação do reggae na mídia maranhense e nacional, enquanto fenômeno cultural de grande relevância no Maranhão, foi-se fortalecendo. Nas matérias produzidas sobre o ritmo termos como Jamaica brasileira e Capital brasileira do reggae são freqüentes. Como os veículos de comunicação têm a capacidade de colocar temas em discussão e fazer moda, o reggae assume uma nova proporção dentro da sociedade maranhense. Mesmo aqueles que não aceitam o reggae como um estilo musical da cultura local, reconhecem a força do ritmo em todas as classes sociais. Desta forma, o reggae passou a ser moda em São Luís, de fato, no final de 2004. Os bares que tocavam reggae passaram a atrair cada vez mais turistas e as classe média e alta. O marco, no entanto, foi a transformação do bar do Nelson, em 2005. O local, que há anos promovia festas de reggae aos sábados para os universitários e intelectuais da Ilha, era bem rústico: cercado com tapumes improvisados, tinha um balcão feito de madeira, algumas mesas de sinuca em uma parte cimentada e grande parte do chão do bar era de areia (já que ficava na praia). Entretanto, com a perceptível mudança do público, o proprietário do bar precisou fazer algumas alterações na estrutura do local: “Tive que cimentar tudo porque as I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática 21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA. 13 meninas tavam reclamando que era ruim dançar reggae na areia de salto alto. A gente tem de fazer o que o público pede; esse pessoal agora é maioria aqui” (Nelson, entrevista em 2005). Além de pôr piso em todo o bar, Nelson trocou os tapumes por uma cerca grafitada e reconfigurou a decoração do bar. No ano de 2005, o “Nelson” deixou, gradativamente, de ser um ponto de universitários e passou a ser point da juventude “fashion” e de turistas. Seguindo a tendência da moda, dezenas de bares de reggae vêm surgindo desde 2005. Diferentemente dos universitários (aqueles que se identificam com a filosofia de Bob Marley, com o ritmo do roots, com as bandas maranhenses; que são, a maioria, de classe média), esse novo público passou a freqüentar os bares de reggae como freqüentava as boates e outras casas de show. Para este público (que é de classe média e abrange turistas e também universitários), parece não haver identificação com o reggae; o ritmo muitas vezes é só um detalhe, como demonstrou um grupo de jovens de classe média alta entrevistados por Carlos Benedito da Silva (2007: 85): Nós sempre freqüentamos as danceterias, mas aquilo estava ficando maçante e a gente queria ir pra outros lugares. Ai um ou outro ia no reggae e falava pros outros, no início a gente tinha um certo receio de ir porque muita gente falava que era local violento, principalmente os colegas de escola que os pais não deixavam ir. Mas depois que a gente começou a freqüentar em grupos, levávamos nossas garotas e nuca houve problema. A gente queria outra alternativa e no salão de reggae é isso, a gente se sente mais à vontade, mais livre. A gente acabou se enturmando com os regueiros. Eles sabem que a gente tem uma condição diferente da deles, mas mesmo assim nunca houve problemas com nenhum de nós porque a gente também respeita o espaço deles (Brenno, Tito e Guilherme). Considerações finais O reggae, nesse caso, é apenas uma opção de lazer. Mas será que não pode ser também apenas uma opção de diversão para o jovem negro de classe popular que freqüenta o clube de seu bairro? Tentar medir os níveis e limites entre identificação e diversão pura e simples (dá para ser pura e simples?) é uma tarefa impossível, pois a construção do gosto, embora deva ser analisada dentro de um contexto, é feita através de um processo de individuação (Castells, 1999: 23); passa por experiências mediadas, mas também pelas vividas. Assim, a massa regueira, apesar do nome massa, não é uniforme, uma vez que é formada por indivíduos diferentes que compartilham o gosto pelo reggae. Também não se pode dizer que todas as bandas maranhenses de reggae toquem o roots, cantem em português e façam um tipo de música de protesto e de resistência. Há, no entanto, predominâncias: entre os freqüentadores dos bares de reggae predomina a classe média, entre os fãs do reggae robozinho predominam jovens da periferia, entre os colecionadores predomina o gosto pelos reggaes mais antigos, e assim por diante. Desta forma, olhar o reggae ludovicense é construir um olhar sobre um fenômeno múltiplo. 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