CAPA Artistas dentro e fora do palco Além de tocar um instrumento ou de cantar*, muita gente que começa na profissão de músico também tem que ser artista nos bastidores dos bailes da vida e ´ralar´ muito fora dos palcos para se divulgar, gravar, ensaiar e ter infra-estrutura para poder fazer o seu melhor em cima dele. Quem não faz, aliás, pode começar, mas dificilmente continua. João Pequeno [email protected] A Backstage coversou com alguns cantores, compositores e instrumentistas para conhecer detalhes de suas carreiras e de suas impressões sobre a carreira musical, quando começaram e como estão hoje em dia. Migrações de um nordestino não ortodoxo Como chegar ao sucesso? Fotos: Divulgação Quando o cantor e compositor paraibano Chico César começou a aparecer como “revelação” em meados dos anos 90, por meio de vozes como as de Maria Bethânia e Daniela Mercury, pouca gente imaginava que, somente no Sudeste, suas andanças para viver de sua música já passavam de dez anos, período suficiente para muito artistas ser um considerado veterano. Só para comparar, em um mesmo intervalo de tempo Eric Clapton entrou e saiu de nada menos que cinco bandas. Muito antes de Daniela gravar À primeira vista, Bethânia, Onde estará o meu amor?, e Elba Ramalho mais Zizi Possi, Béradêro, Chico César, natural de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, chegou ao Sudeste, no 54 www.backstage.com.br CAPA fim de 1984 para o começo de 1985. Após viver um mês em Ouro Preto, em Minas Gerais, ele passou mais cinco anos em Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro. Nesse período, fez algumas apresentações na TV Educativa, em um programa dirigido e apresentado por Fernando Lobo, pai de Edu Lobo, que o aconselhou a não ficar no Rio e ir para São Paulo, que considerava mais promissora. “Era para cá (São Paulo) mesmo que eu já viria, para ficar perto da música de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, da vanguarda paulistana. Eu sabia que havia mesmo mais espaço para o tipo de música que eu fazia e ainda faço, MPB com raízes nordestinas”. Havia, mas logo depois deixou de haver, quando fechou o Teatro Lira Paulistana, onde nasceu um movimento musical de vanguarda em São Paulo lançando os artistas citados e ele via a cidade como o local onde talvez pudesse ter mais chance. “Os espaços mais intelectualizados e alternativos, onde tocavam artistas tipo Mulheres Negras, Luni ou os remanescentes da chamada vanguarda paulistana, me viam como nordestino demais ou um nordestino a mais. E os lugares de música nordestina, as casas de forró, me viam como excessivamente cool, urbano e até experimental. Ao lado do rock, que vivia seu momento de afirmação, a música nordestina havia se tornado o mainstream”, lembra. Quatro anos depois, em 1989, ele conheceu outro migrante da música, o maranhense Zeca Baleiro. Eles se identificaram justamente por não se encaixaram em nenhum dos nichos predominantes na música que se fazia em São Paulo na época e acabariam se tornando parceiros em músicas como Mend´ela e Pedra de responsa. Até de ser “descoberto” pelo mainstream da MPB, Chico, que é formando em jornalismo, trabalhou como revisor de textos “para sobreviver” enquanto fazia shows em bares e teatros, sempre cantando suas próprias músicas. “Foi assim que consegui divulgar meu trabalho”, lembra. Dos pequenos aos grandes palcos, Chico César, que lançou seu disco mais recente, De uns Tempos pra Cá, pela gravadora Biscoito Fino, diz que não se preocupa seriamente com as quedas de vendagens de CDs e dowloads de música via internet. “Artista nunca ganhou muito dinheiro com disco”, afirma. “Atualmente, é o show que muitas vezes vende o disco. Seja na banquinha que a produção coloca no saguão do local do show, seja pela presença do artista em tal praça, que de alguma maneira sempre mexe com as vendas locais. Os suportes de música vão sempre mudar, mas nada substitui a presença do artista, a magia que isso envolve e coloca na relação entre quem faz e consome música”. Já as definições sobre estilo de música continuam indefinidas. “No Brasil, posso ser MPB, nova MPB, regional. Fora do Brasil posso ser world music, latin jazz, new beats, afro, afro-latino, lusófono. Tem de tudo e mais um pouco. Mas, pra mim, se eu puder e tiver que me encaixar, peço que me considerem MPB”. E ainda atrapalha? “Se são rótulos que ajudam a entender e a encontrar o meu trabalho, vá lá. Mas isso muitas vezes cria ligações empobrecedoras e passa como uma motoniveladora sobre coisas que nem sempre têm a ver. Aí atrapalha”, afirma o cantor. Os espaços mais intelectualizados e alternativos, onde tocavam artistas tipo Mulheres Negras, Luni ou os remanescentes da chamada vanguarda paulistana, me viam como nordestino demais ou um nordestino a mais (Chico César) Samba de muitos verões Há mais de quatro décadas vivendo de música, Marcos Valle vê mais que em simples rótulos, mas em determinados nichos do mercado musical, uma boa saída para músicos que iniciam suas carreiras nos dias de hoje. Foi por meio de um desses nichos, o da música eletrônica, que ele viu o interesse por sua música no Brasil crescer novamente na década de 90, principalmente para um público mais jovem, que nem pensava em nascer quando ele lançou seu primeiro disco, Samba demais, em 1962. Formado em piano clássico e teoria musical em 1956, com apenas 13 anos, com os amigos Edu Lobo e Dori Caymmi, ele passou a freqüentar reuniões de bossa nova na casa de Vinícius de Moraes, onde conheceu Roberto Menescal, que o levou à gravadora EMI (na época, Odeon). Além de gravar seus próprios LPs, Marcos e seu irmão, o letrista Paulo Sérgio Valle viraram sucesso em outras vozes, como a de Cauby Peixoto, que em 1965 gravou sua Samba de verão que, no ano seguinte, chegou ao segundo da parada nos Estados Unidos com a gravação instrumental do pianista e organista Walter Wanderley. www.backstage.com.br 55 CAPA Um caminho simples e difícil de imaginar para a maioria dos músicos, mas que até para o próprio Marcos Valle foi se perdendo diante das vendagens milionárias alcançadas principalmente nas décadas de 80 e início da de 90. “Nessa época, as gravadoras eram mais abertas a artistas que talvez não vendessem tanto, mas que eles sabiam que iam ter uma carreira sólida e iam vender alguma coisa, sempre. Foi assim comigo, com o próprio Milton Nascimento (que ajudou a lançar no show Viola Enluarada, em 1967). A partir de uma época, elas passaram a querer vendagens muito grandes, de forma imediata. Ao mesmo tempo, os custos de produção aumentaram. Isso fechou portas que, de uns dez anos para cá, acho que estão se reabrindo através de nichos”, conta o músico, que nos anos 70 compôs com o irmão várias tri- Como chegar ao sucesso? Hoje, o melhor caminho que eu vejo para os sing for Ana Maria, tornavam-se sucesso em pistas de dança da Europa e do Japão, o que acabou ajudando sua volta às gravações e aos ouvidos de novas gerações da música brasileira. “Eu acho muito válido o recurso dos remixes, porque a música passando a ser dançante é mais um sentido que ela atinge, mais pessoas chegam à sua música. Me levou a trabalhar com vários artistas novos para mim, como Gabriel, o Pensador, Cidade Negra, Lulu Santos e Bossacucanova”. Além de parcerias, Marcos Valle foi regravado por Caetano Veloso (Samba de verão, em 2000), e até pela ex-Spice Girl Emma Bunton (Crickets..., em 2004). Já em 1996, o Paralamas do Sucesso havia regravado Capitão de indústria, da versão original da novela Selva de pedra. Em Recife, o mangue beat refez o faça você mesmo Mais do que um nicho, a Nação Zumbi, ainda com músicos é procurarem um nicho para se Chico Science e vários outros artistas pernambucanos, sentiram a necessidade de chamar atenção do país para apresentarem. Aqui no Rio mesmo, existem vários, do a cena cultural que era produzida no estado, principalsamba à música eletrônica, e o público que gosta de mente na região metropolitana de Recife, de onde tamum estilo musical procura, se interessa (Valle) bém vieram o Mundo Livre S/A, Eddie, Mestre Ambrósio, veteranos como Erasto Vasconcellos – irmão de Naná -, Lia de Itamaracá, Selma do Coco, os cineaslhas de novelas e teve em Bicicleta, de 1981, seu último tas Lírio Ferreira e Paulo Caldas, etc. hit antes de ser “redescoberto”. “A coisa do mangue beat não se restringiu à Nação “Hoje, o melhor caminho que eu vejo para os músicos Zumbi ou ao Mundo Livre, era uma cena de muita é procurarem um nicho para se apresentarem. Aqui no gente, em cinema, literatura, artes plásticas... E, mesRio mesmo existem vários, do samba à música eletrônica, mo na música, gente que fazia estilos completamente passando pela bossa, música pop, regional, e o público que diferentes. O que a gente fez (referindo-se ao manigosta de um estilo musical procura, se interessa, enquanfesto de lançamento do movimento mangue beat) foi to veículos de massa, como chamar a atenção do resto o rádio, perderam a força”, do país para uma agitação avalia ele, que em 1998 foi que já acontecia em Recipremiado pela APCA (Asfe. A gente via que todo sociação Paulista de Crítifestival enchia. Tinha alcos de Arte) como melhor gumas bandas boas e muiarranjador pelo disco Nova tas, mas muitas bandas rubossa nova, seu primeiro álins, como em todo lugar. bum de inéditas em 12 anos, Mas dava para sentir que lançado originalmente pela aquilo poderia crescer, o gravadora inglesa Far Out. que de certa forma comeNesse meio tempo, graçou a acontecer com o vações antigas de sua autoAbril pro Rock, que inspiLeo Gandelman se apresenta durante o Búzios Jazz Festival ria, como Os Grilos/Crickets rou festivais por todo o 56 www.backstage.com.br CAPA Brasil”, lembra Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi e um dos guitarristas mais influentes de sua geração. “No início, a gente se encontrava em shows de bandas do Rio, de São Paulo, como o Ira! e os Titãs. A partir daí, começamos a fazer também nosso próprio som. O pessoal da Nação era todo de Rio Doce (bairro de Olinda), enquanto que o que veio a formar o Mundo Livre, de Barra de Jangada (em Recife). Toquei em várias bandas, com vários nomes, antes de ser a Nação Zumbi, mas sempre com Chico, Dengue (baixista), basicamente o mesmo pessoal”, lembra. A mistura de guitarra com a percussão pesada, que caracterizou a Nação Zumbi, ainda não era um objetivo. “A gente não se reuniu já com o intuito de fazer Há muita gente que está em Recife, como o próprio ra, atualmente em São Paulo). Há muita gente que está em Recife, como o próprio Mundo Livre, que nunca saiu totalmente de lá. Isso depende do que você tem como objetivo”, frisa. “O mais importante é que hoje existe uma cena no Recife que se sustenta, sem tanta dependência do Rio ou de São Paulo”. Além da maior facilidade para adquirir instrumentos, hoje a capital pernambucana tem uma casa de shows mega, o Chevrolet Hall, nos moldes das que existem nas metrópoles do Sudeste. Há dez anos, os shows de grande porte ocorriam no Centro de Convenções e no ginásio Geraldão, que não têm acústica específica para este fim. “Tem que passar por cima quando se mostrar o trabalho. Até mais tarde, após a morte do Chico, nós às vezes saíamos com um ampzinho, guitarra baixo e bateria e fazíamos uns shows de surpresa na cidade. Tem que mostrar para as pessoas, da melhor maneira que puder, mas do jeito que puder”. Mundo Livre, que nunca saiu totalmente de lá. Isso depende do que você tem como objetivo. O mais importante é que hoje existe uma cena no Recife que Como chegar ao sucesso? se sustenta (Lúcio Maia) determinado tipo de som, até porque tínhamos influências diferentes. Mas gostávamos de tocar juntos, que é essencial, e dali fomos naturalmente, formatando o que acabou vindo a ser a banda que está junta até hoje”. Na época, Lúcio virava-se com guitarras emprestadas, porque a dele, uma Golden, teve o braço empenado “e, aí, não afinava de jeito nenhum”. Foi com o adiantamento do pagamento pelo disco de estréia, Da lama ao caos, que Lúcio Maia comprou uma Fender Telecaster, a qual ele aparece tocando nos primeiros clipes da banda, como A Cidade e A Praieira. “Particularmente, gosto dos modelos clássicos da Fender e da Gibson, porque, além do padrão de qualidade, são muito versáteis e, hoje, mais fáceis de encontrar em Recife. Na época, era complicado. Acho que isso tem a ver com o crescimento que houve naquela época, não só por nossa causa, mas de todos. Lia, por exemplo, hoje vive exclusivamente de sua música, o que não acontecia antes. E nem todos tiveram que descer para o Sudeste, como nós fizemos (primeiro para o Rio, onde ficava a sede da Sony, sua primeira gravado- 58 www.backstage.com.br A importância de sempre aprender mais Jr. Tostói, por sua vez, sempre tocou com muita gente diferente. O que sempre foi uma das maiores dificuldades – e também dos mais prazerosos desafios – para o guitarrista de 37 anos, há cinco anos acompanhando Lenine e ainda tocando, de vez em quando, com sua banda Vulgue Tostói. “Tenho que estar sempre aprendendo coisas novas, de acordo com o que o cantor pede, porque estou ali para solucionar isso para ele. É mais difícil ainda quando a gente tem que tocar uma música já gravada ou que vinha sendo tocada em uma turnê”, conta. Um dos casos que mais quebraram a cabeça de Jr. aconteceu ao substituir Billy Brandão na banda que acompanhava Paulo Ricardo. “A questão nem é só de harmonia e melodia, mas de uso de timbres, ainda mais entrando no lugar do Billy, que é mestre em tirar sons. Eu tive que aprender todos os macetes que ele usava. Quando toquei com o Lobão, também foi trabalhoso, porque tive que aprender um repertório muito vasto”, diz o músico, que fez alguns shows do Vulgue Tostói com Lobão, entre 1999 e 2000. Antes disso, porém, mas já tocando em uma banda conceituada no underground carioca (a Juliete, de onde também saíram B Negão, César Nine e o baixista Bruno Migliari (Lobão, Frejat, etc.), Jr., que ainda não usava o pseudônimo Tostói, passou a estudar harmonia “para en- CAPA Como chegar ao sucesso? tender coisas que eu não entendia, até porque precisava me comunicar com os outros músicos”, lembra. “Comecei a tocar acompanhando discos, de Deep Purple, Led Zepellin, Van Halen, coisa de guitarrista. Mas, com o tempo, fui me abrindo para outros tipos de música e tocando com outras pessoas vi que me faltava um conhecimento maior de harmonia”. Quem despertou o interesse em ‘voltar à escola’ na época, por volta de 1993, 1994, foram companheiros de banda, como Bruno, que estudava música na Uni-Rio. “Fiz aulas particulares de harmonia, que me acrescentaram bastante. Claro que não dispenso tudo o que havia aprendido antes, na marra, mas, por exemplo, se meu filho quiser tocar guitarra, vou botar ele para fazer, até porque fica mais fácil aprender assim”, conclui. tes, então acabo estendendo como produtor o trabalho que faço músico, além de aprender também”. O palco no berço Nascer em famílias de músicos, ajudou o desenvolvimento de artistas consagrados de diferentes gerações e instrumentos como o saxofonista Leo Gandelman e o violonista Yamandu Costa. Mais do que “puxar aos pais”, o crescimento em um ambiente permeado pela música faz com que se cresça tratando desde criança a música como coisa de gente grande. Tradição, renovação e ruptura Tudo junto Yamandu, natural de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, começou a estudar violão aos 7 anos, com o pai Algacir Costa, líder do grupo Os Fronteiriços, especializado em música folclórica da região Sul e das zonas de fronteira com ArEle me chamou pelo jeito que eu já tocava com o gentina e Uruguai. O contato veio de forma natural, já que Vugue, com muitos efeitos. No acústico (MTV, recém- Yamandu, nascido em 1980, costumava viajar com a família pelas cidades onde o grupo do pai se apresentava. lançado), por exemplo, eu, que não sou bem um O primeiro aprendizado fora da música do Sul se deu por violonista, deixei o grosso da harmonia e ritmo com volta dos 15 anos, quando, após ouvir Radamés Gnatalli, se interessou por músicos do resto do Brasil, como Baden ele, que sempre fez isso (Jr. Tostói) Powell, Tom Jobim, Raphael Rabello. Yamandu prefere não apontar um caminho que conCom Lenine, porém, Jr. nem se preocupa tanto com sidere o melhor a seguir para se tornar músico caso não esta parte. “Ele me chamou pelo jeito que eu já tocava aprendesse a lição em casa. “Não posso dar lição do cacom o Vugue, com muitos efeitos. No acústico (MTV, minho das pedras, não tive formação acadêmica, mas recém-lançado), por exemplo, eu, que não sou bem um me apaixonei pela música e pelo instrumento e trato violonista, deixei o grosso da harmonia e ritmo com ele, esta relação com muita seriedade, pois sempre fui um que sempre fez isso, e muito bem, e me concentrei em curioso não só pela música, mas pelos autores e seus cariffs e melodia. Também minhos musicais. Estudar usei uma craviola de 12 é sempre uma excelente cordas, que, pelo tipo de dica, desde que se entresom, entra onde eu pensague a este ato como tudo ria em pôr em efeito de pena vida”, ressalta. dal Chorus”, conta o guiA entrega – mesmo após tarrista, que também já a fama que possibilita uma atuou como produtor – de exigência maior por parte algumas faixas de CDs do do artista – inclui lá suas próprio Lenine e do disco frustrações, como em relade estréia da banda de surf ção à infra-estrutura média music Netunos, Alto Mar. das casas em que se apre“Gosto de propor timbres senta Brasil afora. “Em São Moska, antes da fama, sempre quis estar no palco alternativos, riffs diferenPaulo e em várias cidades 60 www.backstage.com.br CAPA do estado encontramos excelentes teatros com qualidade e manutenção. A acústica às vezes é renegada, mas de qualquer maneira existe a preocupação com um bom resultado. Em outros estados, há poucos teatros e alguns com manutenção precária – e isso é lastimável”, analisa. “Exigir melhores condições, você sempre solicita para quem te contrata, mas ser atendido é outra etapa do assunto, tudo depende do lugar onde se apresenta. Mas já aconteceu de estar num palco super mambembe e rolar um som de qualidade e também o inverso: estar numa sala maravilhosa e o som sair ruim”, completa. O medo é inimigo da música Filho da professora de piano Saloméa Gandelman (fundadora da Pró-Arte], do advogado especializado em direito autoral Henrique Gandelman) e pai do também saxofonista Miguel, Leo Gandelman se ufana ao falar do assunto. “Pertencer a uma família musical é um grande privilégio! Devo muito à minha família, que além de me ensinar sempre me apoiou em meus passos na vida. A mesma coisa em relação ao meu filho, sempre procurei incentivá-lo e apoiá-lo em seu percurso”. Ele não é tão otimista em relação às mudanças ocorridas no cenário musical desde que teve importante participação em uma época quando surgiram bares como Mistura Fina e Jazzmania e o festival Free Jazz. Esses movimentos ajudaram a popularizar a música instrumental no Brasil e ele próprio chegou a vender 70 mil cópias de seu terceiro disco, Solar, recorde no segmento e marca que hoje é mais do que um disco de ouro. “Com o aparecimento da tecnologia digital, o mercado ficou muito pulverizado no que diz respeito à venda de discos e visibilidade de carreira. Tocar em rádio hoje é mais difícil também, pois o jabá ficou cada vez mais instituído. Com relação a shows, com o fácil acesso de todos a uma multimídia poderosa dentro de casa e com a violência das ruas, as temporadas diminuíram – tudo isso em relação há vinte anos”, afirma o saxofonista, que não reconhece ‘música instrumental’ como um estilo www.backstage.com.br 61 CAPA nem como segmento mercadológico. “Ela não existe nem como definição de rótulo musical nem como nicho de mercado, ou seja, quando falamos em música instrumental estamos apenas dizendo que essas canções não têm letra. Pode ser clássico, pop rock, etc.” Como chegar ao sucesso? O palco como habitat natural Ainda que indiretamente, uma influência familiar também levou o cantor/compositor Paulinho Moska aos palcos – “A idéia de estar num palco sempre me acompanhou na infância”, assume. Idéia que surgiu quando acompanhava o pai que trabalhava em uma casa de shows no Pão de Açúcar. Vendo os bastidores dos espetáculos, começou a entender como funcionava a música profissional. “Aprendi que há algo de teatro também nos shows de música. Entendi que o espetáculo era composto de muitas coisas que tinham que dar certo ao mesmo tempo. A equipe técnica é muito importante e tem que ser formada por pessoas que sejam de bom convívio”. Este princípio, afirma, é o que leva para exercer sua função de ‘patrão’ dos músicos que o acompanham. “Sou amigo da minha equipe e tento fazer com que eles se sintam como uma banda, escuto o que todos pensam, discuto todos os assuntos com eles. Sei que cada um é o melhor em sua área. Respeito é o mais importante. Existem várias formas de trabalhar e todas elas se baseiam na confiança pessoal. Começar trabalhando em grupo me facilitou o entendimento de que todos na equipe são fundamentais para o espetáculo”. 62 www.backstage.com.br Dois grupos, aliás, pelos quais Moska passou antes de seguir solo. Antes, estudou teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), mas lá mesmo assistiu a uma apre- sentação do coral Garganta Profunda, fez um teste e entrou no grupo, que chegou a contar com 23 cantores. “Havia momentos onde pequenas formações (duplas, trios, quarte- Cinco pecados mortais para iniciantes Preguiça “Música não é para os preguiçosos; (...) música não é para os cabeças de vento. Música é um negócio sério” . A declaração do gaitista norte-americano Sugar Blue resume como a preguiça é um pecado mortal para quem quer ser músico. Uma gravação dela foi incluída na introdução do álbum 3 Lugares Diferentes, lançado em 1987 pela banda paulistana Fellini. O gaitista é um dos mais reconhecidos no universo no blues, e também tocou em Miss you, hit dos Rolling Stones no álbum Some girls (1978). O Fellini foi uma das bandas mais criativas e influentes entre as surgidas no Brasil na década de 80, inclusive em relação à produção – faziam gravações caseiras bem antes delas se popularizarem. A banda se separou quando o multiinstrumentista Thomas Pappon foi para a Inglaterra, para trabalhar na BBC. Os caminhos para um músico iniciante mudam conforme os tempos, como demonstram as diferenças entre as histórias de Marcos Valle e de artistas recentes. Alguns pecados, porém, são atemporais. Luxúria e vaidade até são permitidos, mas a preguiça é passaporte certo não para o inferno, mas para lugar nenhum mesmo. “Tendo uma estrutura mínima em que você pode se ouvir e ser ouvido corretamente pelo público, sendo iniciante tem que tocar, não pode ter frescura”, avalia o baterista Cid Boechat, dos Netunos. Ele conseguiu entrar na banda tendo apenas seis meses de aula de bateria, mas não se acomodou e continuou estudando. Avareza A única ressalva que ele faz é em relação a casas de show e contratantes que não cumprem os acordos. “Mas esses se queimam na propaganda de boca a boca. Em Copacabana, tinha uma casa que criou (má) fama por conta disso”. Exemplo avesso da preguiça, ele passou quatro anos tocando simultaneamente em duas bandas, mas recentemente, disposição à parte, teve que largar seu outro grupo, o glam/hard Cabaret e se dedicar integralmente aos Netunos. “É uma situação pela qual muitos músicos passam, especialmente bateristas, que são mais raros e, por isso, frequentemente tocam em mais de uma banda. No início, dava para conciliar as duas, mas elas cresceram, gravaram disco e eu acabava tendo um show um dia com uma em São Paulo, depois com outra em Minas, com a primeira de novo no Rio e acabei optando pelos Netunos com quem tocava há mais tempo, conta”. A dedicação ao estudo não é apenas para os iniciantes, como atesta o depoimento do produtor do disco de estréia dos Netunos, Jr. Tostói, que foi estudar harmonia pra se aprimorar quando já era um guitarrista razoavelmente experiente. Inveja Nada de querer aparecer sozinho. Se unir a outros artistas para criar um movimento, que não depende de homogeneidade musical, CAPA tos, quintetos…) também se apresentavam. Uma dessas era justamente com os três cantores que saíram do Garganta para formar o Inimigos do Rei – o espírito teatral do Inimigos vem desse casamento da CAL com o Coral”, lembra. “Nunca estudei canto, mas no Coral Garganta Profunda os ensaios eram bem rigorosos, com exercícios de relaxamento e alguma Saiba o que não é permitido como foi o caso do mangue beat, conforme ressaltou o guitarrista da Nação Zumbi, Lúcio Maia, sobre a união de artistas – não apenas músicos – da Grande Recife que acabaram fazendo a cena pernambucana dos anos 90 se tornar conhecida em todo o Brasil, com um banda despertando o interesse para outra. Manifestações artísticas de outros áreas, como o cinema ainda reforçaram o interesse, como foi o caso do filme Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, também de Recife, que incluía músicas como Risoflora, da Nação (ainda com Chico Science) e Compromisso de mporte, do mundo livre S/A. Organizar festivais, divulgar na imprensa esses festivais, que, por ser um evento, tem mais chance de conseguir uma boa divulgação do que shows isolados de músicos iniciantes. Além disso, acaba divulgando vários músicos ou bandas de uma só tacada. Mais uma vez, a região metropolitana de Recife é referência, tendo o festival Abril Pro Rock ajudado várias bandas como Eddie, Mestre Ambrósio e Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Inúteis a aparecer para o resto do Brasil, especialmente quando, calcado no sucesso local das primeiras edições, o produtor Paulo André conseguiu o apoio da MTV, o que garantiu ampla cobertura da emissora – na época, em meados dos anos 90, fazendo bem mais jus ao M do nome e bem mais influente neste aspecto. Ira A ira também não é recomendável e – ainda que com tensões de âmbito profissional – a boa relação em um grupo de músicos é fundamental, como em qualquer ambiente de colegas que trabalhem juntos e, portanto, convivam, como ressaltou Paulinho sobre sua amizade com os integrantes de sua banda. Nomes à parte, a banda Ira! também não faz jus neste caso, felizmente para Edgard Scandurra e Nasi, amigos desde o colégio. Soberba Relações conturbadas são um luxo reservado a músicos milionários e com atividades em conjunto esporádicas, como Pete Townshend e Roger Daltrey, do The Who. A inimizade com o vocalista Ian Gillan fez com que o guitarrista Ritchie Blackmore, há mais de dez anos, se afastasse (definitivamente?) do Deep Purple, que fundou em 1968. E um desentendimento por falta de créditos afastou Jards Macalé de Caetano Veloso, logo após a parceria – Caetano como cantor e compositor, ele como produtor e instrumentista – que resultou no maravilhoso álbum Transa, de 1972. Caetano e Macalé já tinham carreiras estabelecidas, mas músicos iniciantes que racham a banda no primeiro ensaio na garagem podem abortar de cara suas pretensões. Tocar com amigos, como gostar de exaltar B.B. King, é um prazer que também pode ser prático e evitar este pecado mortal. técnica. Isso me ajudou muito, estudar é sempre bom, mas não sei se é indispensável, há tantas formas de se cantar que fica difícil dizer isso. Não tem regra”, fala sobre sua formação. A carreira-solo começou a se desenhar durante os quatro anos em que esteve com os Inimigos e, em quartos de hotéis durante as turnês, escrevia canções que não se encaixam no estilo do grupo. “O humor tinha que prevalecer e eu não queria passar a vida toda tendo essa obrigação. Os integrantes discordaram de mim em relação à mudança e eu me vi obrigado a sair do grupo. Foi algo natural.” O cantor também encara de forma natural os momentos de maior e menor sucesso da carreira. “O fato de algumas músicas minhas terem tocado em rádio e novela me ajudou a construir uma carreira onde eu pude me dar o direito de experimentar. Nunca tive uma exposição do nível de um Roberto Carlos, e isso também colaborou para que tivesse calma e tranqüilidade para administrar minha carreira. Pude desenvolver uma assinatura e isso demora mesmo, ainda me sinto no meio do processo”. Quanto a comparações com o antigo grupo, ele considera que “ninguém esperava de mim algo parecido com o Inimigos, isso nunca passou pela minha cabeça na minha carreira-solo.” A calma de Moska só desaparece quando o assunto são as finanças e a obrigação de administrar a carreira. “Sou paranóico com dinheiro, detesto dívidas. Tive que dar um upgrade no escritório para funcionarmos como selo, editora e produção de shows. Até agora tem andado tudo muito bem, na verdade, está melhor do que quando eu estava contratado por uma gravadora. Mas dá trabalho. * Nos bailes da vida - Milton Nascimento/Fernando Brant www.backstage.com.br 63