ID: 44918238 26-11-2012 Tiragem: 43576 Pág: 45 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 19,98 x 23,16 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 1 Um olhar inconveniente P João Carlos Espada Cartas de Varsóvia or vezes há olhares inconvenientes que nos fazem olhar para as mesmas coisas de forma totalmente diversa. Esse pode ser o caso do mais recente livro de Niall Ferguson, o historiador de Harvard, Oxford e Stanford, intitulado The Great Degeneration: How Institutions Decay and Economies Die (Allen Lane, 2012). Os debates políticos na Europa continuam centrados na melhor forma de financiar a elevada despesa do Estado: ou através do aumento dos impostos, ou através de mais despesa para “estimular o crescimento”. Niall Ferguson vem alertar-nos para a hipótese de esse debate perder de vista o real problema europeu e ocidental: a estagnação do crescimento económico e a consequente transferência do centro de gravidade mundial para fora do Ocidente. Em 2012, o Banco Mundial previa uma contracção da economia europeia e um crescimento de apenas 2% nos EUA. A China cresceria quatro vezes mais e a Índia três vezes mais. Em 2016, o FMI prevê que o PIB chinês, ajustado em paridades de poder de compra, ultrapassará o dos EUA. Sem esse ajustamento, o PIB chinês será nessa data ainda apenas 60% do americano – mas era apenas 8% em 1989. O que está a acontecer aos nossos olhos, argumenta Ferguson, é o gradual encerramento da “Grande Divergência” – o longo processo que, entre 1500 e 1980, permitiu a incrível “descolagem” das economias europeias e depois ocidentais relativamente ao resto do mundo. Há cerca de 300 anos, observa Ferguson, o chinês médio ainda talvez fosse ligeiramente mais abastado do que o norte-americano médio. Em 1978, o norte-americano médio já era 22 vezes mais rico do que o chinês médio. Em 1960, a esperança de vida média na China era de 40 e poucos anos, enquanto nos EUA já era de 70. Estes são apenas alguns indicadores que exprimem a “grande divergência entre o Ocidente e o resto” durante o período de 1500 aos finais de 1900. São esses mesmos indicadores que agora indiciam uma reversão. O americano médio é hoje apenas cinco vezes mais rico do que o chinês médio. Em termos de esperança de vida e níveis de educação, alguns países asiáticos estão agora à frente de muitos ocidentais. Segundo o inquérito PISA da OCDE relativo a 2009, a diferença entre o desempenho em Matemática dos jovens de Xangai e os dos EUA era tão grande como a diferença entre os jovens americanos e os tunisinos. Estes e muitos outros indicadores semelhantes levam Ferguson a indagar o que pode explicar este declínio relativo do Ocidente ao longo das últimas três décadas. A resposta, segundo ele, só pode ser encontrada depois de compreendermos os factores que levaram à grande descolagem do Ocidente a partir de 1500. Deveremos em seguida investigar se esses factores continuam presentes ou se estão a desaparecer no Ocidente. A “Grande Divergência” tem tido inúmeras tentativas de explicação. Passando brevemente em revista alguma da mais relevante literatura na matéria, Ferguson retoma a ideia de que houve no Ocidente uma gradual mudança de instituições relativamente ao resto do mundo. Essa mudança basicamente consistiu em passar de uma sociedade de “acesso limitado” – mais ou menos comum no mundo de 1500 – para uma sociedade de “acesso aberto”. As sociedades de acesso limitado caracterizavam-se por economias de baixo ou nulo crescimento (o que Adam Smith chamou de “estado estacionário”); tinham muito poucas organizações não estatais; possuíam governos muito centralizados e não dependentes do consentimento dos governados; as suas relações sociais assentavam em laços pessoais e dinásticos. Em contrapartida, as sociedades de acesso aberto, gradualmente emergentes no Ocidente a partir de 1500, deram lugar a rápido crescimento económico. Viram surgir vibrantes sociedades civis com inúmeras instituições independentes do Estado. Os governos tornaram-se menos centralizados e passaram a ter de prestar contas aos contribuintes e aos eleitores. As relações sociais passaram a reger-se por regras impessoais, the rule of law, na expressão inglesa, envolvendo a protecção dos direitos de propriedade e a igualdade perante a lei. Ferguson resume esta grande mudança em quatro instituições fundamentais: Governo representativo, mercado livre, Estado de direito (rule of law) e sociedade civil. O que tem acontecido no Ocidente a estas instituições ao longo das últimas décadas? Na sua opinião, elas têm decaído. Os nossos governos quebraram o contrato intergeracional, gastando o dinheiro dos contribuintes e endividando as gerações vindouras. Os nossos mercados estão asfixiados por regulamentações governamentais de todo o tipo e impostos sempre crescentes. O governo das leis deu lugar ao governo dos advogados. A sociedade civil está a dar lugar a uma sociedade “incivil” onde todos esperamos que o Estado resolva os nossos mais ínfimos problemas e onde gigantescos aparelhos estatais de educação gastam sempre mais dinheiro com piores resultados. Talvez seja altura de ter em conta este olhar inconveniente, em vez de continuar a exigir à sociedade civil que pague as dívidas do Estado. O americano médio é hoje apenas cinco vezes mais rico do que o chinês médio Professor universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia. Escreve à segunda-feira