JOSÉ CARLOS DA SILVA BERNADETE APARECIDA

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
PATRIMÔNIO CULTURAL, EXPROPRIAÇÃO E TURISMO: A RESERVA DA JUATINGA
E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS.
JOSÉ CARLOS DA SILVA1
BERNADETE APARECIDA CAPRIOGLIO DE CASTRO2
Resumo:
O objetivo principal deste trabalho é analisar o processo de expropriação das comunidades
tradicionais na Cajaíba – Paraty (RJ). Trata-se de analisar a ocupação da área pela especulação
imobiliária, associando o turismo e o patrimônio cultural como elementos potenciais no
desenvolvimento e manutenção da cultura caiçara. Foi tomado como recorte a Reserva da Juatinga
na Enseada da Cajaíba, inseridos na Baía de Ilha Grande- RJ, Brasil. O tema do artigo está
relacionado ao processo de privatização de áreas dentro da Reserva da Juatinga, ou seja, a
apropriação privada dentro de Unidades de Conservação.
Palavras-chave: populações tradicionais; turismo e patrimônio; reserva ambiental;
1 – Introdução
O objetivo do trabalho é analisar o processo de expropriação das
comunidades tradicionais na Cajaíba. Para os objetivos específicos elencamos
analisar a ocupação da área pela especulação imobiliária, associando o turismo e o
patrimônio cultural como elementos potenciais no desenvolvimento e manutenção da
cultura caiçara; analisar as alterações na configuração espacial da área de estudo,
bem como identificar o patrimônio cultural local e documentar expressões do
patrimônio cultural presentes nessa área.
Apesar dos atrativos naturais e culturais do local, as desigualdades sociais e
a apropriação das terras para lazer, têm fragilizado a organização das comunidades
caiçaras. O que nos levou a discutir essa questão foi a presença do patrimônio
cultural e natural caiçara ainda presente na localidade em conflito com o processo
de concentração de terras. A linha de análise está pautada em levantamento sobre a
história da área e nos estudos de Geografia Humana, com abordagem da Geografia
Cultural. Os desafios colocados por essa nova organização social se deslocam e se
intensificam com a profunda intervenção dos agentes financeiros e com o
1
Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista.
E-mail de contato: [email protected]
2
Docente do programa de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista.
E-mail de contato: [email protected].
Agência financiadora; CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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afloramento da dependência econômica das comunidades frente às restrições
impostas pela criação da Reserva da Juatinga.
A velocidade com que se constata o desenvolvimento do turismo e serviços
associados causam problemas ambientais, pobreza e violência nestas comunidades.
Busca-se, portanto, ampliar o debate sobre a preservação ambiental diante da
pressão imobiliária em Unidades de Conservação e valoração de culturas
tradicionais diante do turismo.
No
período
de
implantação
da
BR
101
(Rio-Santos),
diferentes
empreendimentos de grande porte foram instalados na região. São exemplos desses
empreendimentos as conhecidas Usinas Nucleares de Furnas Centrais Elétricas em
Angra dos Reis e o Terminal Portuário da Petrobrás em São Sebastião.
Além da migração de trabalhadores para essas áreas, a valorização da terra
no eixo SP–RJ, atraiu intensa especulação imobiliária e o turismo se transformou em
outro fator de impacto sobre as comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas.
Desse modo, o patrimônio natural e cultural existente na região está sendo
ameaçado, comprometendo a sobrevivência dessas populações.
2 – Desenvolvimento
A área de estudo destaca-se pela reunião expressiva de fatores bióticos e
uma extrema compartimentação do relevo e cobertura vegetal, onde se apresentam
paisagens naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, além da
presença do patrimônio histórico como apresentado na figura 1 e de elementos
naturais que segundo Cavalieri, 2003; passaram a ser o suporte financeiro das
comunidades, ao mesmo tempo em que as estruturas sociais de organização veem
sofrendo um processo de desestabilização.
Figura 1. Capela católica na Praia de Itaoca, patrimônio histórico e cultural.
Foto: SILVA, 2014.
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Esse processo se deu pela intensa ocupação de novos proprietários que não
pertencem às comunidades caiçaras, mas que adquiriram suas terras, fruto muitas
vezes de ações de grileiros e outros agentes financeiros que interferem diretamente
no cotidiano caiçara através do turismo e atributos advindos da cidade. Neste
contexto, algumas das grandes questões que se formulam dizem respeito às
possíveis consequências, ambientais, sociais e culturais de tal processo sobre as
comunidades envolvidas.
A valorização e os meios de apropriação do território nestas áreas,
dadas à constatação da acelerada desestabilização das famílias e as intensas
transformações que atingem de forma definitiva esses espaços pertencentes aos
caiçaras, alteraram o modo de vida da população local.
A emergência da questão do patrimônio cultural nesse contexto desperta
algumas possibilidades de salvaguarda de elementos significativos da cultura local,
além de considerar a importância da imagem e representação destes territórios
(MIRANDA, 1998).
Com o desenvolvimento dos setores econômicos no fim do século XIX e início
do século XX muitos projetos foram pensados e implementados de forma que as
mais diferentes organizações humanas não tiveram a oportunidade de dialogar com
os empreendedores e órgãos governamentais. Foi o começo do genocídio (morte
física) acompanhado do etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e de agrupamentos
de índios guaranis existentes na região (In: SIQUEIRA,1984: prefácio).
A estrada Rio-Santos (BR 101), utilizada desde 1984 entrou direto nesse
processo desenvolvimentista regional, e embora não tenha alcançado todas as
localidades de Paraty, seus reflexos, conhecidos nessa porção do litoral, trouxe
mudanças profundas com a instalação de diversos empreendimentos.
Além disso, é um verdadeiro cartão postal que permite aos turistas, visitantes
e aventureiro, percorrerem e apreciarem durante todo o trajeto, uma das mais belas
paisagens litorâneas do país, um trajeto repleto de sinuosas curvas e caminhos que
levam a praias paradisíacas e cenários maravilhosos em lugarejos com rica história
caiçara e natureza exuberante, (experiência vivida pelo autor do presente trabalho).
2.1. A CHEGADA DOS PAULISTAS
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Com a instalação dos empreendimentos deu-se início a uma migração de
trabalhadores nessa região, trazendo em seu bojo uma intensa especulação
imobiliária e em seguida o turismo sem precedentes que segue aumentando, devido
à presença do patrimônio histórico e de elementos naturais.
Segundo Cavalieri, 2003; a presença desse patrimônio histórico e dos
atributos naturais da paisagem passou a ser o suporte financeiro das comunidades,
ao mesmo tempo em que as estruturas sociais de organização veem sofrendo um
processo de desestabilização, que vão desde a alteração na ocupação do território,
bem como na forma de vida e principalmente em grandes ondas migratórias para a
região. Com essa migração veio também uma grande leva de grileiros e turistas, que
chegaram e lançaram as comunidades num universo distinto daquele vivido pelas
gerações anteriores.
De acordo com Cavalieri, (2003); os moradores que detinham a posse da
terra conheceram, na década de 60, os processos de reintegração de posse, as
ações demarcatórias e as fraudes de cartório para consolidar a propriedade da terra.
Tais processos foram movidos, e continuam sendo, pelos recém - chegados
proprietários, muitos deles paulistas. A partir dessa década, várias famílias,
moradoras das áreas conhecidas como roça, saíram de sua terra de origem e de
trabalho.
Algumas famílias foram obrigadas a venderem ou trocarem a posse por uma
casa no bairro mais simples de Paraty, talvez encantadas com a nova vida que a
cidade começava a experimentar com a chegada do turismo. Segundo relatos dos
atuais moradores muitas foram forçadas a vender a posse devido ao esbulho
violento pelos proprietários recém-chegados como, por exemplo, a criação de
búfalos, que amedrontava a comunidade, sujava as nascentes e pisoteava as roças.
A referência aos búfalos, segundo Cavalieri, 2003; é remetida a uma família
de nome Gibrail Nubile Tannus, grileiro conhecido em toda a região que se instalou
nessas paragens e conseguiu desestabilizar muitas famílias que acabaram
vendendo ou trocando suas posses por valores irrisórios e hoje vivem em situação
degradante na cidade de Paraty ou em casa de parentes.
O problema maior que as comunidades enfrentam atualmente, conforme
referido, são os processos de reintegração de posse e os supostos contratos de
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comodato. A perda da terra, herdada dos antigos, é a maior ameaça que os tempos
modernos trouxeram ao cotidiano caiçara. O conhecimento tradicional (Cavalieri,
2003) dessas comunidades se reproduz enquanto prática social quando se assenta
no território conquistado e transmitido pelas gerações anteriores, sendo essa a
condição para a sua existência.
Muito antes desse processo de ocupação do território pelos grileiros e do
advento da criação da Reserva da Juatinga, os caiçaras produziam seu próprio
alimento e trocavam ou vendiam o excedente em Paraty para comprarem o sal, o
querosene e roupas apenas. A produção era diversificada e cada família detinha um
pedaço de terra demarcada pelas trilhas que cruzam os terrenos e quintais, uma
roça, uma cerca de bambu, uma pedra ou árvore que delimita a posse de cada
família.
“Essa resga de terra é da Belinha, casada com o Benedito, onde tá
construída a barraca verde. Pega do pé de baixo, pega o barranco, passa
na toca grande, atravessa a cachoeira e volta pro pé de araçá”. Depoimento
de Zezinho, que em 1998 ainda morava na Praia Grande de Cajaiba.
(CAVALIERI, 2003, p. 31).
Merece destaque a produção de bananas, ervas medicinais, feijão, mandioca,
batata, laranja, abóbora, tomate, farinha, jabuticaba, camucá, entre outros. Os
caiçaras apontam que havia também a criação de animais como porcos, galinhas,
patos e cabras e todo o excedente da produção era levado à Paraty para trocas e
vendas.
De acordo com os relatos dos atuais moradores, a viagem durava cerca de 6
a 8 horas de remo até a cidade em grandes expedições caiçaras. Naquele tempo
ainda não existiam as canoas a motor. Com elas a viagem passou a durar 2h30, o
que permitiu realizar a travessia e voltar no mesmo dia além de aumentar
consideravelmente o número de idas à cidade.
Porém, esse contato mais frequente com a cidade também foi responsável
pela incorporação de novos elementos na cultura caiçara já bastante alterada pela
chegada dos grileiros e outros proprietários de terras. Hoje os moradores dessas
localidades não compram apenas o sal, o querosene e roupas como no pretérito, já
necessitam de produtos específicos da cidade e as trocas já não ocorrem mais.
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A dependência do modelo capitalista se tornou parte do cotidiano e a própria
criação da Unidade de Conservação estimula, por exemplo, o uso do gás de cozinha
substituindo a lenha, que passou a ser proibida em toda a Reserva.
O turismo também é responsável por inovações no modo de pensar e introduz
o consumo de produtos industrializados. É o dinheiro que interessa agora, são as
coisas que os turistas apresentam que interessa ao caiçara, são os inúmeros artigos
e produtos da cidade que encantam as crianças e adultos.
Atualmente outro problema é a entrada de drogas sintéticas, vendida nas
cidades, trazidas pelos turistas e apresentados aos jovens caiçaras, ávidos por
fazerem parte do mundo civilizado das cidades modernas com seus atributos
encantadores do mundo do consumo. Relatos dessa natureza foram repetidas vezes
pronunciados pelos próprios caiçaras mais velhos se referindo aos turistas que
trazem drogas para os caiçaras.
Essa fusão de diferentes valores advindos do crescimento da atividade
turística segundo Mantovani, 2005; têm resultado na obtenção de novos hábitos
como a disseminação do uso da maconha e outras drogas que atingem
principalmente os mais jovens.
“Fica ai fumano, dá fome e vai robá, num vai trabaiá. Vai no Pouso, até a
escola já robaro. Porque fuma e ai dá fome, num tem dinheiro e aí roba, vende pra
qualqué um por mixaria, pra cumê”. Moradora, 53 anos.
As crianças podem até estar com tênis, mas escondem o calçado no mato,
pois pulam melhor as pedras da cachoeira sem ele. No atual período essas crianças
ainda seguem os rastros das pacas como no pretérito e se prontificam a caçá-las de
acordo com as próprias referências dos caiçaras.
Nas comunidades o tempo dos antigos ainda permanece nas memórias, nos
encontros, na roça, na pesca, na caça, nas histórias, nas festas, na música ainda
recitada pelos mais velhos, na ética ao lidar com o ambiente, com a família, com a
terra, as crenças, os medos... O sagrado e o profano convivem em um mesmo
ambiente.
Não é somente o tempo que é sagrado, descontínuo e eternamente revivido,
há também espaços sagrados, fortes e significativos, as memórias, lembranças,
reminiscências, vivências dos antepassados que ainda permanecem vivas. São
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essas memórias a mediação entre o passado e o presente na vida dessas
comunidades que garante que toda produção caiçara tenha um sentido na
construção do presente, palavras do Sr. Chico do Calhaus como é conhecido.
Ainda buscam nos rios os siris que utilizarão como iscas para pescarem o
peixe do dia, alguns jovens ainda acompanham os mais velhos na visita ao cerco e o
cotidiano se reproduz na materialização do espaço caiçara.
O saber do cotidiano parece ser, na concepção caiçara, essencial à própria
existência, é a expressão do interior e do exterior, situada no âmago do meio social
do qual o caiçara faz parte onde ele mesmo é a expressão privilegiada dessa
dinâmica humana onde o ser constrói e se desconstrói no cotidiano, - observações
do autor durante os vários anos de visitação a essa comunidade da Praia do
Calhaus e adjacências.
2.2. Populações tradicionais e as Unidades de Conservação
A Área de Proteção Ambiental Cairuçu é uma Unidade de Conservação
Federal de Uso Sustentável criada pelo decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de
1983. Localiza-se ao sul do Município de Paraty, Estado do Rio de Janeiro,
constituída para cumprir a função de proteger a maior concentração de
remanescentes de Mata Atlântica da costa fluminense e também se dispõe a
proteger as comunidades caiçaras da região.
O plano de manejo da APA Cairuçu, na Enseada da Cajaiba, aprovado pela
Portaria ICMBio nº 28/2005, foi elaborado entre os anos 2000 a 2005 pela SOS Mata
Atlântica com recursos do Condomínio Laranjeiras (ver figura 4).
A Enseada da Cajaiba (figura 2) apesar de ser um braço do continente,
apresenta interfaces com o centro urbano de Paraty e na região de Trindade com
um processo urbano mais evidente com via de acesso pavimentada e expressivo
comércio local. As áreas de proteção ambientais intimamente relacionadas com
centros urbanos, como é o caso da APA Cairuçu e Paraty, necessitam estar
minimamente articuladas com o Plano Diretor que é o principal instrumento de
ordenamento do uso e ocupação do solo do município. É fundamental que o Plano
de Manejo e o Plano Diretor sejam elaborados de forma integrada definindo regras
coerentes que não gerem conflitos na gestão do uso de um mesmo território.
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Figura 2. Enseada da Cajaiba. Fonte: Google Image 2008. Acesso em fevereiro de 2015.
No período atual o Município de Paraty vem passando por um momento
importante onde a Prefeitura está conduzindo um processo de revisão do Plano
Diretor e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio vem trabalhando na avaliação e atualização do Plano de Manejo da APA Cairuçu, de
acordo com Cavalieri, 2003 e segundo as informações apresentadas pelo agente do
INEA – Instituto Estadual do Ambiente - em 2012 durante trabalho de campo
realizado.
Ao mesmo tempo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN - está conduzindo um processo de revisão da Portaria que normatiza o
tombamento do município de Paraty como sítio histórico, arqueológico e
paisagístico. O INEA também está conduzindo um processo de recategorização da
Reserva Ecológica da Juatinga, criada pelo Decreto Estadual nº 17.981 de 30 de
outubro de 1992 e da Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim, duas áreas
protegidas sobrepostas totalmente a APA Cairuçu não contempladas pelo SNUC,
que vem sofrendo com a expansão das ocupações humanas.
Diante do contexto atual, a revisão das normas que regem o uso e a
ocupação do solo de Paraty deve ser vista como uma oportunidade para o município
aperfeiçoar as suas ferramentas de direcionamento do desenvolvimento da região
em busca de um equilíbrio ambiental e não uma brecha para viabilizar
empreendimentos imobiliários ou atividades meramente especulativas como veem
ocorrendo nessa região desde muito antes da criação da Reserva.
Cavalieri (2003) aponta que essas comunidades da Cajaiba vivenciaram, da
década de 50 até a década de 80, uma forte especulação imobiliária com a chegada
de grileiros e dos turistas. A partir da década de 90, somados aos problemas
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fundiários surgiram conflitos ambientais devido
à
criação
dessa
Unidade
de
Conservação de natureza non edificandi – a Reserva da Juatinga.
Atualmente, além dos desdobramentos da chegada dos grileiros, dos turistas
e da Unidade de Conservação (há um Plano de Gestão em elaboração), os
moradores enfrentam mais um desafio: continuar na sua terra por meio da
reclassificação da Unidade, prevista em lei federal de 2000.
Essa questão da reclassificação, de acordo com Cavalieri, 2003; já mobilizou
inúmeros
especialistas,
pesquisadores,
estudantes,
entidades
e
órgãos
governamentais no sentido de tentar definir os melhores usos para o local, porém,
surgiram inúmeros conflitos com a ideia de criação da Reserva e agora a
necessidade de reclassificação da mesma.
Por outro lado os caiçaras veem sofrendo uma série de restrições como a
proibição de manter a roça, modificar o estilo de suas casas e retirar árvores para
construírem suas canoas, legado que foi deixado pelos mais antigos moradores
daquelas paragens. Assim, a tradicional canoa caiçara, apresentada na figura 3,
esculpida em um único tronco de árvore, corre o risco de desaparecer.
Utilizada para a pesca por gerações em Paraty e na Enseada da Cajaiba, a
canoa já não pode mais ser construída com troncos da região da Reserva Ecológica
da Juatinga. Com essa perspectiva de mudança, outras atividades também correrão
o risco de desaparecerem para sempre, o que poderá inviabilizar a sobrevivência
dos caiçaras dessa região, segundo explanações do Sr. Chico da Praia do Calhaus.
Figura 3. Canoa construída com um único tronco retirado da região. Foto: SILVA; 2014
Se com a criação da Reserva Ecológica já fica difícil a reforma das casas,
torna ilegal fazer roça, pegar uma casca de árvore para remédio, cipó para
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artesanato, tirar madeira para a canoa ou remo, logo mais será proibido também
passar pelas trilhas de séculos que dão acesso às comunidades, pois os turistas
estão adquirindo as terras dos caiçaras e nelas reproduzindo os problemas e vícios
das cidades.
A questão sobre Cajaiba entrou em pauta por meio de uma consulta pública
sobre
a
transformação
da
Reserva
em
Parque
Estadual,
a
chamada
recategorização, no município de Paraty. A proposta de mudança faz parte do
esforço da Secretaria Estadual do Meio Ambiente para se adequar à lei federal que
criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), mas o modelo,
segundo Cavalieri, 2003; não previa a categoria “Reserva Ecológica” e sugeria 12
modalidades de Unidades de Conservação, entre elas, além do Parque, está a
Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que tem a preferência de algumas
comunidades caiçaras na Mata Atlântica de Paraty.
Na proposta do estado algumas áreas seriam transformadas em Parque e
outras em RDS. Porém, nenhuma das duas categorias resolverá de vez os inúmeros
problemas locais já criados pela Reserva. Atualmente a maioria das comunidades
caiçaras vive confinada na área costeira da Enseada (ver figura 5), pois com a
criação da reserva muitas proibições foram instituídas sem nenhuma consideração
pela cultura secular dessas comunidades.
Um Parque Estadual na Enseada da Cajaiba fragiliza a vida da população
residente, pois essa categoria vai praticamente expulsar de vez os caiçaras dessa
região e mesmo a proposta de uma RDS - Reserva de Desenvolvimento
Sustentável, permitirá a criação de um mosaico de propriedades públicas e privadas,
o que beneficiará muitos grileiros que também têm como prática expulsar os
caiçaras para a construção de condomínios de luxo ou hotéis.
Como exemplo disso temos o condomínio Laranjeiras na APA Cairuçu (figura
4), localizado numa planície entre a serra e o mar, distante aproximadamente 25km
do centro histórico de Paraty. Durante a instalação do mesmo, a comunidade caiçara
foi praticamente expulsa do local sendo empurrada para uma vila de pescadores ás
margens do condomínio, a Vila Oratório.
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Figura 4. Vista aérea do Condomínio Laranjeiras. Fonte:
http://www.imobiliariaparaty.com.br/condominiolaranjeiras.php. acessado em fevereiro de 2015.
A Vila foi criada para abrigar a comunidade que hoje são meros empregados
em serviços gerais nas luxuosas propriedades do Condomínio, porém, os mesmos
não podem mais circular livremente pelo território onde nasceram e cresceram,
todos estão sujeitos às normas estabelecidas pelo Condomínio, onde nem o turismo
é permitido. Há um carro que transporta as pessoas de um lado ao outro do
condomínio para acessarem os caminhos que levam as demais praias da região
como a Praia do Sono e Ponta Negra.
Depois de definir o modelo que substituirá a Reserva da Juatinga (figura 5), a
proposta deve ser aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio, mas
enquanto a decisão não é tomada, as comunidades caiçaras fazem campanha para
que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) declare a canoa
caiçara um patrimônio imaterial. Para tanto, será necessário desenvolver
metodologias que contemplem os objetivos propostos no trabalho.
Figura 5. - Reserva da Juatinga-Cajaíba, vista da Ponte Aérea Rio-São Paulo.
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1657431,
acesso em fevereiro de 2015.
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3. Metodologia
Para atingir os objetivos propostos será feita inicialmente a caracterização
socioeconômica da população da área de estudo com base em dados censitários do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (1980 – 2010). Também serão
identificadas transformações do meio físico causado pela ocupação e uso do solo na
área de estudo, onde o trabalho de campo contará com o levantamento de
documentos, mapas e fotos na Prefeitura de Paraty.
Junto aos moradores da área serão realizadas entrevistas semi-estruturadas
com representantes das comunidades e gestores, cujo universo ainda será definido
a partir dos dados censitários. Será de interesse da pesquisa também analisar o
marketing imobiliário sobre a área, assim todos os dados, informações,
apontamentos e demais produtos gerados a partir da investigação serão analisados
possibilitando a elaboração de mapas, figuras e tabelas que auxiliem na
compreensão da realidade local e suas dinâmicas.
O levantamento bibliográfico sobre a área de estudo em jornais da época,
livros, blogs e demais publicações vem sendo realizado, assim como deverá ser
realizado a análise do Plano Diretor e o Zoneamento urbano da cidade de Paraty,
buscando informações na própria prefeitura e órgão ambientais;
4. Considerações finais
A comunidade caiçara tradicional da Cajaiba desde tempos imemoriais
elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio,
embora em nível que reputaríamos hoje precário. No entanto, essa organização
e essa interação com o meio se deu mediante um conhecimento satisfatório dos
recursos naturais, a sua exploração sistemática e o estabelecimento de uma
produção agrícola suficiente para manter as relações de trocas.
O conhecimento e as técnicas de produção e exploração da natureza são
passados oralmente aos jovens durante séculos, porém, com o advento do novo
contexto social que se apresenta a essas comunidades, muito da sua cultura
vem se perdendo ao longo dos anos e corre o risco de desaparecer para sempre.
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Esperamos com esse trabalho alguns resultados que permitam a essas
comunidades permanecerem em seu local de origem mantendo suas culturas e
tradições como no pretérito, de modo a salvaguardar seus conhecimentos,
crenças, costumes e a rica interação com a natureza.
Os resultados esperados nesse sentido passam pela contextualização da
área de estudos a partir da produção de mapas temáticos, gráficos e tabelas que
permitam estabelecer um entendimento dessa dinâmica caiçara mais afinada com
os novos discursos e realidades desse contato cada vez mais profundo com a
cidade.
É preciso ter uma compreensão das dinâmicas trazidas pela expansão
capitalista da cidade tendo como foco a especulação imobiliária dentro da Reserva
da Juatinga, com a identificação de marcadores territoriais que representem o
patrimônio cultural e natural na área estudada, indicados pela população local.
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IEF-Instituto Estadual de Florestas
6174
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