XXVIII Encontro Anual da ANPOCS - 2004 Seminário Temático nº 13 Imagens da modernidade: mídia, consumo e relações de poder “Relações hierárquicas e consumo: um estudo etnográfico no universo das empregadas domésticas” Carla P. Barros Doutoranda do COPPEAD/UFRJ e Professora/Pesquisadora da ESPM-RJ Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados de uma pesquisa etnográfica junto a um grupo de empregadas domésticas pertencentes às classes trabalhadoras urbanas. O estudo procura compreender como grupos sociais normalmente definidos em termos de sua “carência material” ou “escassez de recursos” constróem significados de consumo dentro de uma lógica que articula uma visão de mundo predominantemente hierárquica que inclui obrigações familiares e atribuições de responsabilidades de gênero com aspectos de um consumo “potlachiano” e “desmedido”. O relacionamento entre empregada e patroa será analisado em torno de questões como o papel da primeira de mediadora entre “dois mundos” (o seu e o da patroa), a importância da mídia na construção de uma “comunidade imaginada”, o ethos religioso, a dinâmica da teoria trickle-down e o consumo vicário. I. Pretendo discutir nesse artigo algumas questões relativas aos significados do consumo para um grupo das classes trabalhadoras urbanas brasileiras. O modo de vida de grupos pertencentes às camadas populares foi definido, dentro de uma longa tradição das ciências sociais no país, como marcado pelo signo da “carência material” - até os anos 80, a maioria desses estudos, inventariados de forma abrangente por Sarti (1996), definia os “pobres urbanos” essencialmente a partir de suas relações de trabalho. Tanto em abordagens marxistas quanto nos trabalhos que pesquisavam as “estratégias de sobrevivência” desses grupos, o foco de análise recaia sobre os mecanismos que as famílias pobres usavam para garantir sua “sobrevivência material”. Como destacou Sarti, a dimensão simbólica não encontrava espaço nesse tipo de análise, pois tudo parecia ser movido graças a uma “razão prática” que permitia às pessoas sobreviverem em um ambiente de grande escassez. Tratava-se de uma verdadeira lógica da “falta”, seja de bens, de trabalho ou de “consciência de classe”. Somente a partir dos anos 80 esse quadro se reverteu, com o surgimento de vários estudos etnográficos abordando temas como o cotidiano, relações de família e gênero. Esses estudos passaram, assim, a enfatizar o modo de vida e as representações sociais das camadas populares urbanas, mostrando como é a dimensão simbólica e cultural que, de fato, instaura a vida social. Sem querer, evidentemente, negar as dificuldades econômicas de sobrevivência “material” destes grupos de trabalhadores urbanos em uma sociedade onde coexistem profundas desigualdades sociais, como a brasileira, a questão aqui, na verdade, é outra. Trata-se de pensar certos sinais de “abundância material” em contextos que se previa uma predominância da “carência”. Proponho, aqui, analisar algumas questões referentes ao consumo de um grupo de empregadas domésticas e suas famílias, a partir dos resultados parciais de uma pesquisa etnográfica que está sendo realizada em um bairro de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. II. A definição do que seriam as “classes trabalhadoras urbanas” não pode ser reduzida a um único eixo de classificação, especialmente ao que a confina a uma questão de carência material. O foco na falta encobre a dimensão cultural e simbólica que organiza e cria sentido para a vida de qualquer grupo social, como bem destacou Sarti em seu citado levantamento sobre os estudos na área. Logo, um primeiro ponto importante a ser delimitado seria o de pensar os grupos de “pobres urbanos” como chamam alguns ou “classes trabalhadoras urbanas”, como querem outros, a partir das dimensões centrais na sua visão de mundo – em um plano mais geral, a importância do valor “hierarquia” para compreensão do modo como o mundo é concebido, como chama atenção L. F. Duarte(1986), e dos valores da “família” e do “trabalho” impregnados pela moralidade que orienta a vida desses grupos sociais (Duarte, 1986; Sarti, 1996; Zaluar, 2002). A análise da chamada “cultura operária” tem como importante marco o trabalho de Maurice Halbwachs intitulado A Classe Operária e os Níveis de Vida, publicado em 1913, onde o autor busca a explicação das práticas culturais nas relações de produção estabelecidas na sociedade industrial. A partir do estudo de orçamentos de famílias operárias, Halbwachs estabelece um vínculo entre o modo de trabalho operário e as formas de consumo em seu meio social. Um outro trabalho de referência na área foi o clássico estudo realizado por Richard Hoggart, publicado em 1957 e intitulado A Cultura do Pobre: Estudo sobre o estilo de vida das classes populares na Inglaterra. Nessa obra, o autor apresenta uma detalhada descrição da cultura operária e de sua relação com a cultura burguesa abrangente, procurando identificar sua especificidade, apesar das mudanças ocorridas nas condições materiais de vida dos operários e do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Hoggart elege um aspecto central no modo de vida das classes populares: o forte sentimento de vinculação a uma comunidade, que provocaria uma dicotomia do mundo social entre “eles” e “nós”. Essa dicotomia se traduziria em um conformismo cultural e, no plano específico da vida “material”, em escolhas de alocação de recursos que privilegiariam os bens de consumo coletivo, reforçando assim a solidariedade familiar. É importante ressaltar que estudos como o de Hoggart e o de Oscar Lewis (1975), que também trabalhou com a noção de “cultura da pobreza”, trazem em si um risco – o de se adotar uma visão essencialista e reificadora dessa cultura, como se ela fosse formada por valores permanentes. Interessa no presente trabalho apreender o “ponto de vista nativo”, partindo do pressuposto de que esse não seja um bloco monolítico onde o valor hierarquia reine de modo hegemônico. O grupo estudado vive em um meio social onde dialogam os valores da hierarquia e do individualismo presentes na sociedade brasileira, algumas vezes de modo antagônico e conflituoso, o que mostra como a vida social é formada de matizes e nuances. Feita a ressalva, pode-se sugerir que em diversos contextos das classes trabalhadoras urbanas existam grandes descontinuidades culturais em relação ao ideário individualista moderno, como vem mostrando alguns estudiosos na área de ciências sociais, como Duarte(1986), Sarti(1996) e Zaluar(2002), entre outros. Como ressaltou Sarti (1996), a pobreza é uma categoria relativa, que não pode ser reduzida a um único eixo de classificação – o da “carência material”. Cabe, então, procurar a dimensão simbólica e social que organiza o universo de valores das camadas populares. Entrando no campo dos estudos brasileiros, destaco o de Luiz Fernando D. Duarte (1986) que chama atenção para um ponto fundamental no entendimento da visão de mundo das classes trabalhadoras - a preeminência da noção de pessoa em relação à de indivíduo (Dumont,1972). Ao estudar a “doença nervosa”, Duarte mostra como, neste contexto, a doença, longe de estar associada à idéia de um “mal da individualidade” como propõe a psicanálise, está baseado na idéia de “perturbação”, que concebe o aparecimento da “doença nervosa” como uma expressão da desarmonia da pessoa com o universo social e hierárquico em que vive. Duarte mostra, assim, como nas classes trabalhadoras o valor central não é a concepção de um indivíduo autônomo e livre das amarras sociais, como no credo individualista; ao contrário, neste contexto, a noção de pessoa prevalece, como uma entidade visceralmente ligada aos laços sociais e à hierarquia. As relações familiares nesse universo social seguem um padrão tradicional de autoridade e hierarquia, em que o todo (a família) tem precedência sobre as partes (os indivíduos). A hierarquia se manifesta através de uma forte ascendência do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos, dos mais velhos sobre os mais jovens, etc. A moralidade na qual se assentam as relações familiares não está limitada ao universo da casa, pois se expande para fora, criando um sistema de valores que orienta o modo pelo qual os pobres pensam o mundo social e sua posição nele. Sarti (1996) mostra de que forma podemos, através do estudo da moralidade do grupo, chegar à compreensão do modo como se constroem suas identidades sociais, pois a autodefinição dos pobres é elaborada dentro de uma concepção da ordem social como ordem moral. O homem, visto como provedor (Zaluar, 2002), é o responsável pelo “sustento” da casa, o que só pode ser garantido pelo acesso ao mercado de trabalho. O trabalho surge, portanto, como forte elemento de identidade social, oferecendo dignidade moral aos indivíduos, que se percebem como pobres e trabalhadores, o que os distinguiria não só dos que “nada tem” - nem trabalho nem casa - mas também dos “ricos”. III. Desde autores seminais como Marcel Mauss e Thorstein Veblen, passando por Mary Douglas, Marshall Sahlins, Jean Baudrilard, Colin Campbell e Daniel Miller, para citar alguns dos mais importantes estudiosos, o campo da Antropologia do Consumo vem se constituindo a partir da crítica às análises economicistas, instrumentalistas e reducionistas desse fenômeno. A preocupação nessa arena de debates sempre foi a de mostrar o consumo como um fato social total, um código, um índex simbólico e um grande sistema classificatório, ao mesmo tempo em que se procurava relativizar a idéia de universalidade do “homem econômico” e da própria noção de indivíduo através da realização de diversos estudos etnográficos. Passando para a análise antropológica do consumo no contexto da cultura brasileira, poderíamos supor que um olhar ascético e protestante, nos termos de Max Weber (1985), na direção de muitas das práticas encontradas em nossa sociedade, poderia classificá-las como marcadas pelo signo do “excesso”, do “desperdício” ou do “imediatismo”. Roberto DaMatta (1985), em seu prefácio ao livro de Everardo Rocha, Magia e Capitalismo, lembrou, por exemplo, da “guerras de pastéis” nas festas do subúrbio carioca, onde ao final de tudo acontece uma espécie de consumo “potlachiano”2, onde se celebra a abundância material através de uma “guerra” em que salgadinhos e cerveja são lançados entre os convidados até o “extermínio” final. Algumas pesquisas da área de Administração, Marketing e Comunicação sobre o “consumo popular”3 mostram surpresa com os “paradoxos” encontrado nas camadas de baixa renda da população brasileira: “excesso” de compras de aparelhos eletro-eletrônicos - com destaque para TVs (inclusive a cabo), vídeos e celulares - “exagero” de consumo de bens como sabão em pó e amaciantes de roupas, refeições “fartas” no almoço e jantar, etc. Esses estudos chamam atenção para o “enorme potencial de consumo” do chamado mercado popular, ou “mercado emergente”, que, vale lembrar, tem sido colocado em segundo plano não só pelas empresas de um modo geral, como também pelos institutos de pesquisa que “mapeiam” e classificam os consumidores do país. Em um de seus trabalhos, Roberto DaMatta (1993), ao analisar a representação da natureza no Brasil, estabelece uma distinção entre dois universos – de um lado, o individualismo igualitário e as idéias de progresso material e de controle do homem sobre a natureza; de outro, uma visão de mundo hierárquica e a concepção “luso-brasileira” de uma natureza rica e exuberante que existe para ser desfrutada e explorada pelo homem. Essa última é uma visão relacional da natureza, onde a pessoa está “com o mundo”, se opondo à primeira concepção em que o indivíduo está “contra o mundo”, tendo que dominar, controlar e transformar os obstáculos naturais; nesse caso, surge o modelo de causalidade para explicar os acontecimentos e o ideal do trabalho como instrumento privilegiado de transformação da realidade. Na concepção “luso-brasileira”, portanto, a natureza é vista como uma dádiva, cujos elementos podem ser desfrutados a qualquer momento; ou seja, os recursos naturais são vistos como ilimitados. Seguindo o caminho apontado por DaMatta, poderíamos associar, no contexto brasileiro, a idéia de natureza exuberante e de recursos ilimitados, bastante presente, à vivência do consumo como abundância e excesso. Seria possível contrapor, nesse ponto, o modo brasileiro “desmedido”, ao “consumo controlado” mostrado por Daniel Miller em A theory of shopping (1998). Na etnografia de consumo com donas de casa de classe média, moradoras de um bairro de Londres, Miller mostra como as pessoas, na verdade, economizam através das compras. Nesse contexto, “poupar dinheiro” aparece como uma questão transcendental, como um ato de amor, inserido em uma ética fortemente baseada no ascetismo, no controle, na continência e na modéstia em termos de alimentação e comportamento. O estudo de Miller se concentrou em famílias da classe média londrina, onde se evidenciou a idéia anglo-saxã de escassez material e recursos limitados. Partindo para o contexto das camadas populares, em um estudo sobre o consumo de um segmento pertencente às classes trabalhadoras chilenas, Stillerman (2004) quer mostrar como o consumo, nesse caso, não está relacionado à competição de status ou desejo de gratificação pessoal, mas sim a relações de família, gênero e classe. Sua análise se afasta dos que falam que segmentos de baixa renda querem imitar as elites – acredita, ao contrário, como Bourdieu, que diferentes classes tem diferentes modelos de consumo que são usados para estabelecer as fronteiras com outras classes – através de seu comportamento comedido, por exemplo. Sua etnografia mostra como homens e mulheres tomam suas decisões sobre despesas, poupanças e uso de bens baseados em papéis e ideologias de gênero, de responsabilidades familiares e identidade de classe específica. Haveria aqui uma permanência da influência de ideologias tradicionais de gênero - as mulheres não querem aumentar sua renda trabalhando fora, preferindo reproduzir o tradicional papel de donas-decasa, e tendo o apoio dos homens nessa decisão. Os homens, por sua vez, exercem uma maior influência maior que a da mulher sobre o uso da renda e sobre as decisões de compra “mais importantes”. Homens e mulheres, através de suas escolhas de compras, reafirmam seus relacionamentos com parceiros, crianças e pais, evidenciando de que modo o consumo é capaz de moldar relacionamentos sociais. Um ponto importante do trabalho é sua análise de como os hábitos de compras do grupo refletem identidades de classe expressos na noção de “economia” ou parcimônia”(thrift). Seus informantes afirmam seu valor moral como “financeiramente responsáveis”, em contraste com pessoas mais ricas e com outros trabalhadores que prefeririam o “prazer” às responsabilidades sociais e à segurança financeira. Essa ênfase na escassez os separaria de grupos mais ricos e de outros trabalhadores sem auto-disciplina, reforçando sua identidade de classe. Um outro estudo de interesse para as questões do presente trabalho é o de Day, Pap e Stewart (1999), que organizaram uma análise comparativa entre alguns grupos como prostitutas londrinas, ciganos húngaros, camponeses gregos, os índios do grupo Huaorani da Amazônia e caboclos brasileiros, entre outros, procurando evidenciar certas similaridades de seu modo de vida. Vivendo “à margem da sociedade” em um ambiente de “pobreza material”, se recusam a adotar uma ética “burguesa” que enfatiza o trabalho, a produtividade e o planejamento econômico a longo prazo. Ao contrário, sua existência é marcada pelo signo da abundância material percebida como natural – inexiste aqui a idéia de estocar ou poupar para o futuro, pois tudo que se deseja estaria, de alguma forma, disponível “aqui e agora” no mundo, para ser tomado. O estudo procura, de um modo geral, estabelecer uma conexão entre “desvantagem social” e comprometimento com o presente. Os autores argumentam que essa atitude “anti-econômica” por excelência está intimamente ligada a determinadas representações sobre tempo, pessoa e comunidade. A abundância material é celebrada em rituais que criam uma comunidade de indivíduos “iguais e autônomos”, invertendo assim sua posição de “marginalidade social” e afirmando um significativo espaço para a autonomia pessoal. Os indivíduos pertencentes a esses grupos estariam, portanto, na contramão dos valores mainstream do trabalho diligente e do comedimento, chegando a ser percebidos, em muitas situações, como uma ameaça a esse modo de vida produtivo. Seu interesse de vida é fundamentalmente voltado para o “aqui e agora”, visto como fonte máxima de prazer e satisfação, ao contrário da sociedade abrangente que concebe o momento presente como uma etapa de sofrimento e trabalho árduo a ser recompensada em um futuro glorioso e redentor. Ao viver intensamente cada dia sem planejar ou poupar, os grupos pesquisados invertem sua condição de “marginalidade” na estrutura social colocando a si próprios no centro de seu universo moral. Voltarei a esses estudos no último tópico, relacionando-os com algumas observações colhidas na etnografia. IV. Apresento agora os resultados parciais de uma etnografia que está sendo realizada junto a um grupo de empregadas domésticas moradoras do bairro da Posse, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, confrontando esses dados com as questões levantadas inicialmente. A pesquisa tem como objetivo compreender a lógica de consumo do grupo, investigando valores e visões de mundo que se expressam no cotidiano das relações familiares e no seu universo do trabalho, dando especial ênfase ao relacionamento das empregadas com suas patroas. A escolha por fazer a etnografia com empregadas se deve, em primeiro lugar, ao fato delas serem “mediadoras” entre dois mundos. Muitas dormem no trabalho, só voltando para casa no fim-de-semana. Convivem, assim, intensamente com um universo de “riqueza material” durante a semana, alternando com seu mundo familiar de “limitados” recursos econômicos. Mediadores são personagens importantes num país de estrutura hierarquizada como o Brasil. O sistema social brasileiro é marcado primordialmente por uma estrutura hierárquica com muitas gradações, como já mostraram as clássicas análises de Gilberto Freyre (1987) e Roberto DaMatta (1981). Nesse sistema, mediadores são figuras fundamentais, por facilitar a comunicação entre as diversas partes do sistema. Em segundo lugar, a escolha pelo universo das empregadas está ligada às características de sua relação de trabalho, marcada por fortes elementos de paternalismo, expresso nas dádivas, gratificações e informalidade que moldam as trocas entre patroa e empregada. É comum encontrarmos situações em que a patroa se recusa a reconhecer a empregada como uma pessoa que tem seus direitos garantidos por lei, como em qualquer outra relação de trabalho. O relacionamento patroa-empregada pode consistir numa relação vista como “harmoniosa” pelas duas partes, quando a empregada pode ser considerada como “parte da família”, até situações de grande desconfiança mútua e ressentimentos. É curioso notar o paradoxo para o qual Jurema Brites (2003) chama atenção em sua etnografia sobre um grupo de empregadas domésticas no Espírito Santo, entre a abordagem de estudiosos que evidenciavam o aspecto de dominação presente nesse contexto de trabalho através de relações clientelistas e a visão “positiva” das empregadas, que valorizavam esse modo de relacionamento com suas patroas. Aos olhos de suas informantes, “práticas clientelistas” como dar roupas usadas ou sobras de comida para a empregada e sua família eram exatamente o que caracterizaria uma “boa patroa”. Um ponto importante no estudo etnográfico seria procurar perceber como as empregadas circulam nesses dois mundos de condições materiais tão diversas – o da patroa e o seu próprio - identificando como se procedem as trocas de informações, hábitos e práticas de consumo entre ambos os universos. O grupo estudado é formado por empregadas domésticas que tem uma convivência intensa com suas patroas – algumas dormem na casa da patroa e outras trabalham de três a cinco dias por semana, retornando para casa no final do dia. As informantes moram no bairro da Posse, povoado majoritariamente por uma população de baixa renda e localizado na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. As empregadas levam em média duas horas para chegar ao trabalho, já que as casas de suas patroas ficam localizadas em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde se concentra a população de maior poder aquisitivo da cidade. Existe, assim, um grande contraste em termos das condições materiais de vida da patroa e empregada, expresso na enorme diferença entre o poder aquisitivo de cada uma, no acesso aos bens de consumo e na infra-estrutura dos bairros em que vivem. O trabalho de campo, no momento de elaboração do presente artigo, havia se iniciado há quatro meses, e incluía observação participante e realização de entrevistas nos dois universos – no bairro da Posse em Nova Iguaçu onde moram as empregadas e na casa das patroas, na Zona Sul da cidade. Um primeiro ponto a ser ressaltado no ethos das empregadas é a centralidade de uma visão hierárquica do mundo, expressa no grupo através de pares complementares, como homem/mulher, pobre/rico, patroa/empregada. O “ideal” seria que a mulher não trabalhasse – o homem deveria corresponder a seu papel como provedor – mas como isso não é possível, “aceita-se” o trabalho feminino. Esse é visto, assim, como algo “necessário” – a mulher tem que trabalhar, seja para complementar a renda familiar, seja nas situações em que ela é a chefe de família. No entanto, percebe-se uma dificuldade em lidar com essa situação, expressa, por exemplo, nas recorrentes suspeitas sobre a situação da mulher “fora de casa”, como nas estórias de possíveis traições que ela estaria supostamente cometendo. As esferas dos universos masculino/feminino são nitidamente demarcadas, como na tradicional separação dos espaços do público e do privado. Quando, por exemplo, por algum motivo um homem tem que cozinhar, surgem brincadeiras sobre sua masculinidade ou acusações de que a situação estaria invertida em sua casa – a mulher que trabalha e chega mais tarde pode estar cometendo traição. Em famílias evangélicas, entretanto, aparece uma maior aceitação em relação ao trabalho feminino. Machado e Mariz (1997) já haviam chamado atenção para algumas “conseqüências não-intencionais” da adesão religiosa, como o abandono de um certo fatalismo, que levam a mudanças nas relações familiares e com a sociedade abrangente. Especificamente com relação à mulher, se observaria uma maior autonomização. A Teoria da Prosperidade da Igreja Universal, por exemplo, encorajaria as mulheres a participar na luta econômica e a aumentar o orçamento doméstico se inserindo no mercado de trabalho, “obrigação” antes atribuída ao homem. O fatalismo é abandonado e a mulher passa a se ver como agente capaz de contribuir para a melhoria das condições de vida da família, que ingressa cada vez mais no “mercado de consumo”. A adesão a determinado ethos religioso parece implicar em diferentes modos de inserção no universo do consumo. A aquisição de bens, assim como o trabalho diligente (Weber, 1985), seriam sinais evidentes de prosperidade e de eleição, como também mostraram alguns trabalhos sobre a vivência do pentecostalismo no universo de pobres urbanos. Assim, por exemplo, algumas de minhas informantes evangélicas criticam as pessoas “acomodadas”, que ficam “esperando as coisas acontecerem”, explicitando um discurso em que se valoriza a força da “vontade individual”. Mas um outro aspecto chama atenção na etnografia – mesmo existindo, sem dúvida, uma maior aceitação do papel da mulher “emancipada” nas famílias evangélicas, a divisão hierárquica de gênero pode se reproduzir em um outro nível. É o que acontece, por exemplo, na família de Lourdes, que além de trabalhar como empregada faz salgadinhos para festas e vende xampu produzido em sua casa - seu marido, apesar de atualmente ganhar menos que ela, é responsável pela compra do “básico”, o “mais importante”, visto aqui como o “essencial” para o sustento da família. É ele, inclusive quem faz as compras importantes para o “sustento” da família, ficando Lourdes responsável por comprar “coisas menores”, além de produtos para a filha. Um esquema, portanto, que reproduz a subordinação homem/mulher característica de um universo hierárquico e tradicional. Existe no contexto estudado uma rede de sociabilidade formada por familiares e vizinhos, que é um veículo privilegiado para as mais diversas práticas de consumo, onde circulam bens, dádivas, empréstimos e favores, revelando um universo marcado por obrigações mútuas entre as partes. Assim, pequenos empréstimos são feitos a todo momento – seja para pequenas compras, seja para tomar uma cerveja no bar; em caso de compras maiores, um vizinho ou parente, eventualmente, cede seu nome para que outro que tenha seu nome “sujo” possa fazer um crediário. É importante registrar, no entanto, que essa rede de sociabilidade não é marcada apenas pelos signos da harmonia e cooperação, como sugeriria uma visão idealizada desse universo. Cito alguns casos recolhidos na etnografia que mostram alguns impasses e conflitos no dia-a-dia dessa rede de sociabilidade e reciprocidade: o irmão de Regina, que é mãe solteira, cobra dela R$15,00 por mês para buscar suas duas filhas na escola, ameaçando deixar de fazer o “trabalho”, quando ela diz não ter dinheiro; Tereza pediu à mãe para fazer um crediário e comprar móveis para sua casa, cujo pagamento não está conseguindo “honrar”, o que tem levado a constantes brigas entre as duas; Marlene tomou de volta o celular dado à sua neta, porque quem estava usando de fato o aparelho era sua filha, com quem anda brigada. Esse último caso é interessante, porque revela como atua a lógica da moralidade nesse universo de reciprocidade. O presente dado não pertence apenas a quem o recebe – existe ainda uma ligação com a pessoa que o doou, expressa na exigência de que ela seja “bem usado”. No caso, a avó pega o celular de volta da neta, mas retoma o circuito da dádiva oferecendo uma proposta a seus olhos vantajosa – a filha deve lhe devolver R$200,00 (que corresponderiam à maior parte do valor do celular) e ela daria de presente à neta o mesmo celular, junto com uma bicicleta nova. A relação com os vizinhos e outros moradores do bairro é construída em muitos momentos pela marca do consumo conspícuo (Veblen, 1965), capaz de comunicar e distinguir pessoas. Em primeiro lugar, poder morar numa casa já mostra que o grupo não é “favelado” nem recorre à mendicância para sobreviver. Em relação aos pares, alguns comportamentos são seguidos procurando a marca da distinção – não deixar que as filhas estudem no CIEP (onde estudam as crianças de famílias “mais pobres”), levar a neta ao “melhor cabeleireiro de Nova Iguaçu” (em comparação com uma moradora do bairro que levou a filha na festa de 15 anos a um salão menos sofisticado), comprar móveis desprezando os adquiridos recentemente pela vizinha, e assim por diante. São também comuns os relatos de hábitos de consumo ou produtos que passam a ser adotados pelas empregadas após o conhecimento na casa da patroa, como marcas de xampu e alimentos. Se espelhar no modo de vida das classes superiores, adotando seus hábitos de consumo é o fundamento da teoria trickle-down, analisada por Simmel, Veblen e atualizada por G. McCracken (1988). O que deve ser observado com atenção, no entanto, é que esse processo não ocorre com a passividade prevista na teoria, como se houvesse uma assimilação de modo inequívoco do que é padrão nas classes dominantes. Se por um lado verifica-se admiração e fascínio pelo estilo de vida da patroa, por outro, existe a afirmação de um outro senso estético que reprova e/ou mesmo ironiza esse estilo. Esse “jeito” pode ser criticado como muito minimalista, como no caso de Beth, que comentou com sua patroa: “A senhora nem parece que é rica, o povo olhando pr’esse seu jeito simples, nem vai imaginar... A senhora deveria se vestir igual a D. Hebe (Camargo)...”. Bernadete e Tereza recusaram, por sua vez, algumas das roupas doadas por suas patroas – “muito fechadas”, comentou Bernadete. Esses desencontros e mal entendidos entre os dois universos, aliás, foi tratado com muita perspicácia no estudo de Maria Cláudia Coelho (2001) sobre trocas de presentes entre patroas e empregadas, mostrando como as primeiras ficam ressentidas com o que consideram ser “ingratidão” de suas empregadas que recusam ou desdenham de alguns dos presentes por elas oferecidos. Em um recente trabalho sobre o uso do sari na Índia, Daniel Miller (2004) mostra como o modo da empregada se vestir é importante para a construção da imagem social da patroa, remetendo à questão do consumo vicário (Veblen, 1965). Nesse contexto, a empregada faz parte de um circuito de troca de saris, tornando-a uma pessoa “quase” da família. É interessante perceber que também aí ocorre uma série de divergências e mal entendidos entre as concepções da patroa e da empregada sobre o que seria o melhor modo de se vestir desta última, que rejeita muitos dos presentes recebidos. A conversa sobre os programas de televisão, por sua vez, é um modo privilegiado de diálogo, troca de informações, julgamentos morais e aprendizagem entre os mundos das empregadas e de suas patroas. A idéia de “comunidade imaginada”, defendida por Benedict Anderson (1983), propõe que as diferenças entre as nações possam ser encontradas nas diversas formas pelas quais elas são imaginadas. Como sugere Esther Hamburger (1998, 2003), a televisão de um modo geral, e as telenovelas em particular, podem ser um meio de se elaborar e re-elaborar “imaginários nacionais” – assim como Anderson mostrara que a leitura dos jornais diários contribuía para que as pessoas de um mesmo país se sentissem pertencendo a uma mesma comunidade, o ato de assistir a telenovelas permitia que surgisse essa mesma idéia de compartilhamento. Ao analisar quatro novelas da TV Globo, Esther Hamburger (2003) mostra como suas narrativas se desenvolvem em torno de “uma tensão principal, entre modernidade e tradição” e uma série de outras oposições secundárias, como – que se referem a uma representação do Brasil como “país de futuro”, onde diversas forças políticas se posicionavam, seja reforçando a “tradição”, seja buscando a “modernidade”. No trabalho de campo com as empregadas domésticas é possível perceber como essa “comunidade imaginada” se estrutura e fortalece no dia-a-dia, como nos momentos em que empregadas e patroas comentam e discutem o conteúdo de diversos programas, em especial, das novelas. Esse compartilhamento acontece em vários contextos. Assim, dando como exemplo a novela “Celebridade” da TV Globo, exibida no primeiro semestre de 2004, são comuns as conversas entre patroas e empregadas sobre a moralidade dos personagens, em especial o comportamento dos “vilões” da novela, onde o mais importante para ser o próprio sentimento de compartilhar, em uma sociedade tão hierarquizada como a brasileira. Assistir à novela “Celebridade” permite, assim, participar com a patroa de um mesmo universo cultural. Prosseguindo, vemos como os elementos e conteúdos apresentados na novela se tornam presentes e são adaptados na vida cotidiana das pessoas. No bairro da Posse, em Nova Iguaçu, onde as informantes moram, uma das empregadas acha que está grávida. Como seu namorado é “preto” e ela é “branca”, os vizinhos perguntam a todo momento “quando é que Marlin vai nascer” (Marlin é o nome de um dos gêmeos “escurinhos” da personagem Darlene). Vale destacar aqui que a própria idéia de “Celebridade” seja percebida como pertencente ao mundo dos ricos e exerça um grande fascínio. Marlene, após uma entrevista que eu realizara com ela, falou ao telefone com uma amiga dizendo que “agora ela era uma celebridade”, porque tinha sido entrevistada por mim. Uma das filhas de Regina, por sua vez, ganhou um dicionário na escola, e a mãe contou que a primeira coisa que ela fez, significativamente, foi procurar o que queria dizer a palavra “celebridade”. Através da novela, como chamou atenção Heloísa B. de Almeida (2003) em um instigante estudo etnográfico, é possível que determinados segmentos sociais tomem conhecimento dos modos de vida de outros grupos, que não teriam acesso de outra forma. Esse compartilhamento permite, inclusive, que através da conversa sobre a novela se conheça o modo como as relações entre os atores sociais em questão são estabelecidas. Assim, por exemplo, a filha de Bernadete perguntou, após ter visto uma cena de “Celebridade”, em que a personagem Beatriz tratava sua empregada de forma grosseira, na hora de pedir uma bebida : “Mãe, lá no seu trabalho a D. Lúcia (patroa) fala: ´Empregada, traz um copo de água!’ Você tem que levar tudo prá ela na mão?’ Ao que Bernadete respondeu: “Não, não ... ela me chama pelo nome, fala assim: - Bernadete, traz um suco, por favor; e eu não fico levando tudo pra ela na mãozinha, não; ela entra na cozinha e pega as coisas sozinha, água...”. O que chama atenção no relato das empregadas é o modo pelo qual a discussão sobre a narrativa das novelas proporciona um comentário sobre a moralidade dos personagens e a identificação com seu próprio mundo, tanto nas conversas na casa da empregada, quanto nos seus diálogos com a patroa. Lembrando o que Almeida (2003) chamara de “processo reflexivo” desencadeado pela novela, em que as pessoas repensam suas vidas a partir da análise moral do comportamento dos personagens, destaco aqui um outro aspecto. De modo diverso do observado no contexto do trabalho de Heloísa B. Almeida, em que parece haver uma valorização e adesão aos comportamentos mais “modernos” apresentados na trama, no contexto das empregadas, os comentários sobre a narrativa recaem em grande parte sobre acusações e elogios às atitudes dos personagens e a uma comparação com suas próprias vidas, que gostaria de analisar mais detalhadamente. Tomarei o caso de Regina como referência. Os comentários do namorado e das filhas são em grande parte no sentido de “regular” seu comportamento, mostrando como ela às vezes pode ser “desmiolada” ou “brigona”. O namorado “checa” constantemente suas idéias sobre os personagens, para fazer comentários sobre o “certo” e o “errado” de suas avaliações. Assim, por exemplo, beijar um amigo “não é coisa que se faça” (como fez a Cida, vencedora do Big Brother Brasil 4) e “ficar com quem não se gosta” também não é uma boa atitude (como seria o caso, se a personagem Maria Clara, de “Celebridade”, “ficasse” com o Hugo, sem amá-lo). O comportamento “certo” é recomendado à Regina tanto em sua casa, pelo namorado e filhas, como pela patroa. Em casa, a conversa gira preferencialmente em torno do comportamento moral dos personagens, enquanto que na casa da patroa pode se estender, além disso, para análises sobre questões políticas como os rumos da nação, quando a patroa toma normalmente a função de “esclarecer” à empregada sobre a importância de se ter um comportamento ético para que o país fique livre de suas mazelas. Mesmo a discussão sobre o plano público se encontra encompassada por uma visão de que o mundo pode ser definido - e se for o caso, redefinido – por uma mudança no comportamento moral das pessoas. No ambiente da casa da empregada, a discussão em torno da novela, em muitos momentos, enfatiza a importância de seguir um padrão adequado de comportamento feminino, através de atitudes “certas”, que acabam por valorizar os modelos mais tradicionais de gênero – como não beber de forma descontrolada e não “ficar” com alguém sem amar essa pessoa. Heloísa B. Almeida (2003) também enfatiza um outro aspecto importante: como o acompanhamento das novelas permite um intenso aprendizado para a imersão na sociedade de consumo. Aprende-se em primeiro lugar a perceber como os bens são adequados para expressar distinções sociais - produtos aparecem dentro de determinados contextos sociais, sendo consumidos por pessoas específicas. Também são apresentados produtos que são reconhecidos como adequados para serem utilizados pela pessoa que assiste ou ainda, são desejados exatamente por “pertencerem” ao universo de outros segmentos sociais. Esse aprendizado pode estar relacionado à discussão de padrões estéticos veiculados em alguns programas, e que servem de discussão e troca de informações entre mãe, filhas e patroas. A filha de Marlene, ao assistir “Malhação”, perguntou o que a patroa come, e passou a pedir yogurte light e pão integral. A mãe diz que essas “comidas de dieta” são muito caras. As informantes – com exceção das evangélicas, que não explicitaram esse tipo de preocupação com a estética corporal – e suas filhas procuram de alguma forma se adequar ao modelo de “magreza” veiculado em parte da programação, o que não impede que haja alguma admiração com esse mesmo padrão. A filha de 8 anos de Marta, ao mesmo tempo em que fala: “mãe, você relaxou, tá gordinha...” ou “quando eu crescer não vou querer ter pneuzinho, não”, pergunta, em outro momento, “nunca uma gorda vai ganhar o Big Brother Brasil?” Enfim, os resultados parciais da etnografia aqui comentada chamam atenção de alguns pontos importantes a serem desenvolvidos. É possível perceber de que modo o consumo torna expresso um grande sistema classificatório, como uma espécie de totemismo (Levi-Strauss, 1970; Rocha 1985) que distingue os pobres dos “pobres mesmo”, aproxima os pobres dos ricos e distingue pessoas dentro do mesmo grupo, através do consumo conspícuo. O consumo pode ainda, classificar pessoas dentro do mesmo gênero, como no caso dos homens, maridos e namorados das empregadas, operando, como no totemismo, uma relação entre objetos e pessoas. Homens de status mais elevado na comunidade tomam a melhor marca de cerveja ou usam perfume do Boticário, por exemplo. A identificação é verbalizada muitas vezes de modo direto, como no discurso do namorado de Sandra: “Eu não sou homem de cerveja de R$1,00 (Nova Schin) não; sou homem de cerveja de R$1,50 (Skol)”. Em contraponto à parcimônia e economia descritos por Stillerman (2004) como característicos das atitudes diante do consumo dos trabalhadores chilenos, encontramos aqui um contexto em que se evidencia um grande desejo de participar dos benefícios da sociedade de consumo. Uma certa idealização do “mundo dos pobres” não deixa muitas vezes que se perceba a grande ênfase que colocam na cultura material. A posse e o usufruto de determinados bens pode distinguir o grupo de outros pobres (mais pobres ainda) e ainda consolidar o caminho de pertencimento em relação à sociedade de consumo – ou ao “mundo dos ricos”, como dito acima. No contexto das famílias evangélicas, mesmo se negando, em um plano, os “exageros consumistas” da sociedade contemporânea e o uso desenfreado de marcas de status, evidencia-se, em outro, a importância da compra de bens como sinal da prosperidade e ascensão social da família. , o que mostra assim um encompassamento da esfera econômica pela religiosa. Iniciei esse artigo chamando atenção para um plano de comparação mais geral, em que poderíamos pensar, a partir de sugestão de DaMatta, em um contraponto entre sociedades que privilegiam a visão de uma natureza “dadivosa”, a percepção do mundo como abundância material e um certo imediatismo nas relações (e visão de curto prazo) por um lado, e outras onde prevalece a idéia de escassez econômica e recursos finitos, como as sociedades anglo-saxãs. Entrando em um outro nível de análise, chegamos às grandes diferenças de visões de mundo existentes no interior da sociedade brasileira, em especial quando analisamos o universo das classes trabalhadoras urbanas. Famílias que vivem em condições “concretas” de limitação de recursos que garantam a sua sobrevivência material, apresentam ao mesmo tempo uma “sede” de consumo expressa em um comportamento que provoca admiração em muitos. As famílias das empregadas domésticas estão inseridas, ao mesmo tempo, em um universo de valores hierárquicos, bem como no coração da sociedade de consumo abrangente. Mesmo que não tenham condições materiais de comprar produtos e bens oferecidos pelo mercado, entram em contato com os símbolos e valores desse universo, graças à enorme presença dos meios de comunicação de massa, e em especial, da televisão, em suas vidas. As famílias pesquisadas querem “estar dentro” da sociedade de consumo, se afastando assim do contexto cultural apresentado no livro Lilies of the field, onde os grupos vivem o ideal da abundância material como uma espécie de resistência à sociedade burguesa abrangente. Para o segmento em questão das classes trabalhadoras urbanas, o consumo que para alguns pode parecer “exagerado” ou mesmo “potlachiano”, aparece como um sinal ora de inclusão, ora de ascensão social, como fica evidente no caso das famílias evangélicas. Enquanto a parcimônia e a economia são exaltadas em outros grupos de trabalhadores como o do contexto chileno aqui citado, no caso do presente estudo, “vergonha” é não consumir. A análise da recepção dos programas de televisão junto a patroas e empregadas pode mostrar como se estabelece a relação das informantes com a “sociedade do sonho” (Rocha, 1995) dos meios de comunicação de massa, onde a afluência material é a regra e o aprendizado para a sociedade de consumo (Almeida, 2003), um caminho privilegiado. Vale lembrar, por fim, um dos primeiros estudos etnográficos sobre consumo publicados em Journals de Marketing norte-americanos – a pesquisa realizada por Hill e Stamey (1990) que teve por objetivo entender as estratégias de sobrevivência adotadas por um grupo de mendigos que viviam nas ruas de uma cidade dos Estados Unidos. Os resultados deste estudo revelaram como os mendigos tinham uma forma típica de aquisição de bens, adotando determinadas práticas a fim de selecionar os produtos já descartados por outras pessoas e recolhidos por eles nas ruas. Os autores mostraram que os itens “básicos” de consumo do grupo, como abrigo, comida, roupa e artigos de higiene pessoal deveriam ser portáteis e de caráter provisório, devido às constantes mudanças de localização do grupo. O que chamava atenção nesse estudo é que mesmo em um ambiente de extrema “carência material”, existe uma hierarquia de escolhas que orienta o modo de consumo adotado. Como mostraram os resultados parciais da etnografia com o grupo de empregadas de Nova Iguaçu, a “escassez” de recursos não determina uma existência guiada por uma lógica prática, de sobrevivência material. Ao contrário, trata-se de uma hierarquia de escolhas, de base cultural e simbólica, atuando a todo momento, que leva uma das famílias pesquisadas, por exemplo, a comprar um DVD e ao mesmo tempo continuar acumulando meses de contas de luz sem pagar – o desejo por inclusão na sociedade de consumo, aqui, fala mais alto. Assim, a investigação sobre os significados culturais dos atos de consumo sugere que sua dinâmica deva ser entendida dentro de um complexo universo de hierarquia de valores e classificações. Como mostrou de maneira ímpar Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem (1976), a “exigência” de ordenação do mundo através de esquemas classificatórios – e o consumo é um dos modos de se expressar essa “necessidade” de hierarquização – está presente em qualquer forma do pensamento humano. Notas 1 O estudo etnográfico em andamento, apresentado nesse artigo, faz parte de minha pesquisa de tese de Doutorado no Instituto COPPEAD de Administração/UFRJ. Para a realização desse trabalho, tenho contado com o apoio do COPPEAD e da ESPM-RJ, onde atuo no Núcleo de Pesquisa da escola, que desenvolve uma linha de estudos sobre o consumo das classes “C e D”. 2 Marcel Mauss analisa em sua clássica obra, o Ensaio sobre a Dádiva (1974), a forma potlachiana de consumo, comum em tribos do noroeste norte-americano e também presente, com variações, em outros contextos como na Melanésia. Nessas tribos, a rivalidade e o antagonismo das metades se expressa através de um consumo em que a riqueza suntuária é exterminada até o fim, como um modo de acentuar a hierarquia de um determinado clã sobre o outro. Trata-se de uma forma de “matar a riqueza” em uma celebração da abundância material que põe em evidência o prestígio de cada clã dentro de um amplo sistema de prestações sociais totais. 3 Cf. “Classe D”, pesquisa realizada pela consultoria Twist, no endereço eletrônico www.twistmix.com.br/central_MKT2.htm; “Mercados pouco explorados: descobrindo a classe C”, da consultoria Boston Consulting Group (pesquisa realizada em 2002), no site www.bcg.com e “O paradoxo do alto consumo de baixa renda”, trabalho de Ana Lúcia Fugulin, ganhador do “Prêmio de Mídia Estadão”, em 2001, no site www.estadao.com.br. Referências bibliográficas ALMEIDA, Heloisa B. Telenovela, consumo e gênero. Bauru, SP: EDUSC/ANPOCS, 2003. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. London: Verso Editions, 1983. BRITES, Jurema. “Serviço doméstico: elementos políticos de um campo desprovido de ilusões” In Campos – Revista de Antropologia Social. Vol. 3: 65-82. 2003. COELHO, Maria Cláudia. 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