LINGÜÍSTICA NOSSA QUE SE PRETENDE SER DE CADA DIA Jornal Imagem (Nova Andradina-MS), 14/03/2009, p. 02 DOS SEGREDOS DA LEITURA NUMA VISÃO TEXTUALISTA Todo texto contém um pronunciamento que se insere em um debate: nenhum texto é uma peça isolada, nem a manifestação da individualidade de quem o produziu. Uma “boa” leitura nunca deve basear-se em fragmentos isolados, já que o significado das partes sempre é determinado pelo contexto dentro do qual se encaixam. Sempre devem ser observadas as marcas textuais e as relações que um texto estabelece com outros (MARCUSCHI, 1998, p. 46), assim como o que está contido nas entrelinhas. Seu significado global não é o resultado de mera soma de suas partes, mas de uma combinação geradora de sentidos, ancorada na escolha do léxico e das estruturas sintáticas. O texto é produzido por um sujeito num dado tempo e num determinado espaço. Esse sujeito, por pertencer a um grupo social, expõe em seus textos as expectativas de seu tempo ou do grupo social de que faz parte. Todo texto tem um caráter histórico e cada período histórico apresenta para os homens certos problemas, sobre os quais esses textos se pronunciam. E cabe ao leitor preencher os vazios, inferindo os elementos omitidos e providenciando contextos relevantes para suas interpretações. Vejamos o texto abaixo: “Empregadas somem do mercado Elas constituem uma das raras categorias cuja oferta de trabalho é maior do que a procura. São humildes e semi-analfabetas, mas a sua ausência é capaz de desestruturar a rotina de qualquer família bem sucedida e com razoável poder aquisitivo. Elas são ‘Mariazinhas’, mas quando desaparecem deixam qualquer um, não importa o sobrenome, simplesmente maluco. Elas são as empregadas domésticas – muito procuradas, pouco encontradas. Profissão das mais antigas e descendente das velhas mucamas do tempo da escravatura, as domésticas são uma categoria cujas principais garantias trabalhistas datam da nova Constituição. Também há apenas 17 anos conquistaram o direito a carteira assinada. Além disso essa profissão caracteriza uma situação ambígua no panorama dos trabalhadores brasileiros. Se, por um lado, as domésticas lutam pela definição da jornada de trabalho, pagamento de horas-extra e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, por outro lado, o número de pessoas dispostas a abraçar a profissão diminuiu muito nos últimos anos, e os salários – empurrados para cima em decorrência da exigüidade de profissionais – se estão longe do ideal, são melhores que os da maioria dos trabalhadores sobreviventes do salário mínimo. (Eliane Cristina Brun – Zero Hora, 22-06-1989)” O primeiro contato do leitor com o texto opera-se pelo título, que pode desencadear duas possibilidades de leitura: se esse texto está inserido em um jornal do tipo “Notícias populares”, ou no caderno “Cotidiano”, o título remete a um caso policial (seqüestro ou equivalente) e a palavra “mercado” assume o significado de local de compras; se, por outro lado, a matéria faz parte do caderno de Economia, a interpretação é outra: “empregadas” pressupõe “domésticas” e “mercado”, “mercado de trabalho”. A primeira leitura garante a segunda expectativa. Uma leitura horizontal, que capte apenas as informações da superfície textual, o “dito”, não será capaz de abranger, todavia, as ironias, as opiniões e valores socioculturais e ideológicos implícitos, o “não-dito”, os preconceitos que contaminam a mensagem aparentemente neutra, informativa. Somente uma leitura atenta, fundada em conhecimentos prévios, adquiridos por meio da prática de análise lingüística, será capaz de articular as informações textuais. A análise das marcas lingüísticas autoriza a inferência de que a autora é preconceituosa, porque as estruturas lingüísticas por ela utilizadas revelam seus pressupostos e valores socioculturais e ideológicos. Na linha inicial do texto, a primeira marca: o pronome “elas” – anafórico em relação ao título, mas catafórico em relação ao parágrafo em que se insere –, a terceira pessoa, a “não-pessoa” de E. Benveniste, cujo referente só será explicitado no quarto período do parágrafo, após uma caracterização depreciativa: “Mariazinhas” – sem nome, sem sobrenome; um sufixo carregado de conotações negativas e de ironia (sugerida pelas aspas), além do valor generalizante produzido pela marca de plural, que revela o “saber” como se fosse compartilhado pelo leitor. No segundo período, outra generalização e maior depreciação: “humildes [pobres] e semianalfabetas”, opondo-se, por força do articulador de disjunção “mas”, “com razoável poder aquisitivo” e “família bem sucedida”. Também é o conector adversativo “mas” que cria o pressuposto de que pessoas com as características atribuídas às empregadas são dispensáveis. A falta de coesão que caracteriza o segundo parágrafo e a própria paragrafação do texto chamam a atenção de um leitor mais atento, porém é a frase “profissão das mais antigas” que ativa sua memória textual, seus conhecimentos prévios, e evoca o diálogo com a expressão por meio da qual se nomeia a profissão de prostituta. Também é fortemente marcada a seqüência “descendente das velhas mucamas do tempo da escravatura”, que deixa subentendidos ranços de preconceito racial e social. Merecem comentários, ainda, as três últimas linhas, carregadas de ironia e marcadas por uma visão pré-concebida, restrita e enviesada acerca dessa categoria de trabalhadores brasileiros: “empurrados para cima” sugere pressão, assinalando a força ilocucionária do enunciado, procurando criar no interlocutor o dever de crer; em “se estão longe do ideal”, o “se”, embora possa ser classificado como conector de concessão, produz efeitos de sentido diversos: o enunciador parodia o discurso do outro e não aceita como verdadeira a afirmação de que estariam “longe do ideal”, como ocorreria se a escolha recaísse sobre o articulador “embora”. Também é ideologicamente marcada a escolha de “se” em “se, por um lado, as domésticas lutam”, que produz o não-crer, o que não ocorreria se o articulador escolhido fosse “enquanto”, que suavizaria a noção de oposição e denotaria simultaneidade temporal. Não se trata de um enunciado do tipo situacional, cujos conteúdos reproduzem o universo de referência, pois o enunciador não assume a responsabilidade sobre a suposta verdade enunciada. A leitura deve ser uma atividade comum a todas as áreas do currículo e ponto de origem da compreensão do mundo. Depende, portanto de prática e de que se produza o entrelaçamento entre a leitura do mundo, a leitura do não-verbal e a leitura da palavra falada e escrita, a correlação entre a gramática e a representação dos sentidos produzidos nos textos. Profa. Dra. Marlene Durigan Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Câmpus de Três Lagoas Núcleo de Estudos em Análise do Discurso