Os Direitos Humanos vão às Ruas

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Os Direitos Humanos vão às Ruas
Raul Nin Ferreira / É de Lei
2014
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Relatório Narrativo Final
1. Apresentação das atividades realizadas
O projeto “Os Direitos Humanos vão às ruas!”, finalizado em 07 de fevereiro de
2014, foi de grande importância para o Centro de Convivência É de lei bem como para
os usuários atendidos pela instituição. Embora já trabalhe com usuários de drogas em
situação de extrema vulnerabilidade na perspectiva da redução de danos há 15 anos, e
por conta disso presencie inúmeras violações de direitos humanos, com esse projeto
piloto a instituição se aproximou de uma abodagem de redução de danos que leva em
conta a educação em direitos humanos como condição necessária para o efetivo
acesso à justiça e garantia de direitos.
Considerando que o foco principal de atuação do É de lei são usuários de
drogas em situação de rua na região central da cidade de São Paulo, lugar
popularmente conhecido como Cracolândia, um dos grandes saldos positivos do
projeto foi justamente este: promover ações de redução de danos para esses usuários
na interface com a educação em direitos, de modo a olhar não apenas para os
cuidados em saúde, mas difundindo informações sobre seus direitos para que possam
ter condições de reivindicá-los. Nesse aspecto, o projeto permitiu uma abordagem do
cuidado em saúde que leva em conta seus fatores determinantes contidos no art. 3º da
Lei nº 8.080/1990: “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente,
o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais”, assim também as “ações que (...) se destinam a garantir às pessoas e à
coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”.
Foram realizadas as seguintes atividades de educação em direitos humanos no
projeto:
1º) Curso Drogas, HIV e Direitos Humanos, realizado em duas turmas para
pessoas que usam drogas em situação de vulnerabilidade, além de alguns
trabalhadores dos serviços de atendimento. As aulas, 10 no total, aconteceram de
junho a agosto de 2013, e tiveram boa receptividade e participação do público. O
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primeiro deles, realizado no SAE Campos Eliseos, iniciou com 28 pessoas e terminou
com 20, e o segundo, na Tenda Santa Cecília, iniciou com 20 participantes e terminou
com 12.
Optamos por investir na articulação com a rede intersetorial para poder formar
turmas que tivessem interesse na temática e uma diversidade de pessoas. Tivemos
uma procura bem grande e acabamos ampliando o numero de alunos. A maioria dos
interessados foram profissionais que lidam com pessoas que usam drogas no seu
cotidiano, entre eles até um guarda civil municipal, mas priorizamos a participação dos
usuários. Uma das nossas principais preocupações era a continuidade da participação
do usuários, visto que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade - como a
situação de rua - e se organizam de forma bastante instável em seu cotidiano. Por isso,
demos prioridade aos profissionais que se comprometessem em vir acompanhados de
alguns usuários de seus serviços. A primeira turma teve uma formação bem
heterogênea, o que tornou as aulas e discussões em grupo muito ricas. A segunda
turma foi bem variada, mas dessa vez mais focada na área da assistência social e de
pessoas em situação de rua.
2º) Ao final do curso tiveram início as coletas de violações de direitos humanos e
orientações de encaminhamentos. As coletas se deram de duas formas: relatos
colhidos pela equipe de redutores de danos da instituição diretamente no campo e os
relatos colhidos através da realização de ouvidorias comunitárias nos serviços da rede
de atenção sócio-assistencial. Ao final do projeto foram coletados 41 casos de
violações de direitos humanos, contando tanto aquela de forma direta pelos redutores
de danos, como aquelas relatadas nas ouvidorias comunitárias nos serviços. O
número, abaixo do esperado, se explica em face das inúmeras dificuldades enfrentadas
pela equipe na execução do projeto. Primeiramente em face da complexidade que é
tratar sobre direitos humanos de usuários de drogas em situação de rua na região da
Cracolândia, palco de variados conflitos, tanto os urbanos que envolvem o projeto da
“Nova Luz” e serão tratados na análise qualitativa, quanto dos conflitos inerentes ao
proibicionsimo belicista contra comerciantes e usuários de drogas ilícitas.
Depois, segundo avaliação do próprio Centro de Convivência É de lei, a equipe
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enfrentou dificuldades que se devem ao fato de que a temática dos direitos humanos,
como já dito, embora permeasse a atuação desta instituição na sua atuação em
redução de danos, nunca fora objeto de uma projeto específico com um olhar jurídico.
A equipe do Centro de Convivência É de lei é em geral formada por profisisonais da
psicologia, da educação, das ciências sociais, etc., e encontrou certa dificuldade de
incorporar esse novo olhar na sua prática no campo. Para a execução do projeto, foi
contratado um profissional do direito que pôde contribuir para a formação da equipe
com os conteúdos básicos sobre direitos humanos e em ajudar a pensar os
encaminhamentos práticos possíveis para as diversas situações. É de se frisar, no
entanto, o quanto essa nova abordagem necessita de tempo para que seja incorporada
de forma mais robusta na dinâmica das ações de redução de danos.
Diante dessas dificuldades, foi que se optou no decorrer do projeto pela
realização das ouvidorias comunitárias, utilizando a experiência da Clínica de Direitos
Humanos Luiz Gama (http://luizgama.wordpress.com/), ligada à Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. A clínica é formada por um grupo de estudantes da
faculdade que alia os estudos em direitos humanos como disciplina na faculdade com
atividades de extensão universitária. No âmbito desta disciplina, desenvolveram o
projeto de uma ouvidoria comunitária de violações de direitos humanos da população
em situação de rua. Através dos contatos feitos com a clínica, percebeu-se o potencial
das ouvidorias: dar voz aos usuários para exprimam suas insatisfações, relatem seus
casos e percebam a dimensão estrutural das violações de que são vítimas. Logo, a
dinâmica das ouvidorias possibilita a mescla entre uma atividade educativa de
orientação sobre os direitos humanos e as formas para sua concretização/efetivação,
ao tempo em que propicia também uma escuta atenta acerca das histórias de violações
de direitos humanos relatadas.
Durante o projeto foram realizadas 4 ouvidorias comunitárias:
- dia 02/09/2013 no Centro de Convivência É de lei (11 participantes);
- dia 01/12/2013 no Matilha Cultural no contexto das atividades voltadas para
população em situação de rua que ocorre aos domingos (7 participantes);
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- dia 31/01/2014 no Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem - RECIFRAN
(26 participantes);
- dia 04/02/2014 na Casa de Oração do Povo da Rua (10 participantes);
Assim, os casos atendidos em que se relatam violações de direitos humanos
foram1:
1) W.J.P (usuário do C. C. É de lei), que sofreu discriminações por ser egresso
do sistema prisional e teve dificuldades para resolver o problema da multa penal;
2) L. R, um usuário de crack que buscou serviço de saúde e não recebeu
atendimento satisfatório;
3) J. B. R., transssexual, ouvida na ouvidoria do RECIFRAN, e relatou casos de
discriminação e preconceito por sua orientação sexual;
4) A. S., ouvida também na ouvidoria do RECIFRAN, relatou discriminações pelo
fato de ser transsexual no emprego temporário pelo qual passou;
5) B. B., em relato na ouvidoria do RECIFRAN, que foi abordado por PMs
quando possuía uma pequena quantidade de maconha, e foi obrigado a comer as
trouxinhas com a droga com plástico e tudo;
6) G., em relato na ouvidoria da Casa da Oração, relatou que sofreu maus tratos
durante abordagem PMs;
7) A.C., usuário do É de lei, que foi preso em meados de 2013, sofreu muitos
espancamentos ao ser abordado por PMs na avenida Tiradentes;
8) A., na ouvidoria realizada no Matilha Cultural, relatou que a namorada foi
revistas por PM do sexo masculino em abordagem na região da Luz;
9) M.P.S., relatou que viu guardas da GCM de São Paulo exigindo propina para
1
Apresentamos aqui apenas uma listagem da coletas de violações de direitos humanos realizada no
projeto. Os detalhes de cada situação e os encaminhamentos serão explicados no decorrer da análise
qualitativa do projeto.
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soltar dois usuários que haviam sido revistados por eles;
10) W. C. A., que relatou ação da PM na região da Cracolândia, com o uso de
bombas de gás lacrimogêneo, e espancamentos;
11) F., que acusou um PM que atua na região da Cracolândia de cometer
abusos com os usuários de drogas da região e relatou uma abordagem arbitrária que
sofreu;
12) I. S. O., que relatou abordagem arbitrária por Policiais da Força Tática (PM),
quando cortaram seu dedo;
13) relatos de pessoas não identificadas a respeito da ação do Departamento de
Narcóticos - DENARC da polícia civil de São Paulo no dia 23 de janeiro de 2014;
14) B., uma usuária de crack e lésbica, que relatou abusos sexuais cometidos
por um PM que atua na região da Cracolândia;
15) L. M. P. M, que relatou sofrer espancamentos na cabeça por PM da base
comunitária da Praça Júlio Prestes, próximo à Cracolândia;
16) J., ouvido na ouvidoria da Casa da Oração, que enfrentou muitas
dificuldades para retirada de seus exames na Santa Casa por “falta de médicos”;
17) R., socorrido por redutores de danos do C. C. É de lei depois de ter levado
uma facada e teve negado o atendimento no SAE num primeiro momento;
18) D. L., frequentador do curso realizado pelo Centro de Convivência É de lei,
relatou ter visto um usuário pasando mal sendo simplesmente deixado na fila de espera
do SAE Campos Elíseos pela equipe de uma Comunidade Terapêutica;
19) usuário que não quis se identificar, que conversou com um redutor de danos
do C. C. É de lei no dia 13 de maio de 2013, e denunciou maus tratos das casas de
internação da Missão Belém;
20) diversos relatos ouvidos na reunião do dia 15 de janeiro de 2014 no
Complexo Prates e sintetizadas na lista de insatisfações e pauta de reivindicações (ver
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análise qualitativa);
21) D. L., já citado anteriormente, relatou suspeitas sobre as mortes ocorridas no
interior do Complexo Prates relacionadas as carências do atendimento no serviço;
22) S. T. C. F., atendido no Complexo Prates e que nos relatou diversos
problemas no acesso à medicamentos e serviços de saúde;
23) dois usuários do Complexo Prates não identificados, que tiraram dúvidas
sobre questões ligadas à execução penal;
24) usuário não identificado do Cpmplexo Prates que tirou dúvidas sobre seu
direito de visitar o filho recém-nascido e questões ligadas à pensão alimentícia;
25) D. L., já citado anteriormente, teve o braço quebrado por GCMs, chamados
ao Complexo Prates para ajudar a conter a violência num conflito em dezembro de
2013;
26) J. R. S., usuário de crack já em tratamento no CRATOD, que relatou ter ser
atendimento interrompido quando iniciou a ação do governo do estado em janeiro de
2013;
27) usuários da Cracolândia não identificados que relataram demandas por
direitos nas áreas de saúde e assistência em relação ao espaço da prefietura na região
no dia 13 de maio de 2013, na presença de redutores de danos do C. C. É de lei e
representantes da prefeitura;
28) M.P.S., que relatou o Programa Braços Abertos servir alimentação em
situações extremamente precárias;
29) M. A. P. relatou a insuficiência da estrutura do espaço Braços Abertos
quando iniciou o atendimento, contando com um único banheiro;
30) A.L., assistente social, relatou que foi colocada na rua sem qualquer tipo de
orientação ou formação, por conta do início do Programa Braços Abertos, na
Cracolândia;
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31) D., atendido pelos redutores de danos do C. C. É de lei, quando estava
muito sujo e com “bicheira” no pé e quando procurou o programa Braços Abertos, lhe
foi negado o direito de tomar um banho para receber atendimento de saúde e
assistência;
32) M. S. M., ativista , fez um relato da operação da prefeitura na Praça da Sé,
quando abordagens arbitrárias e a falta de alternativas assistenciais para as pessoas
em situação de rua;
33) Pe. Júlio Lancellotti que fez um relato da situação de abandono da Tenda do
Parque Dom Pedro;
34) O. S. P., participante do curso, que relatou os problemas no atendimento do
albergue onde está dormindo, o Espaço Vivência;
35) A., usuária de drogas e transsexual, que relatou na ouvidoria do RECIFRAN
ser perseguida por uma assistente social de uma Casa de Acolhida;
36) J. E. S., um senhor de cerca de 70 anos, relatou na ouvidoria realizada na
Casa da Oração, uma revista vexatória e maus tratos que sofreu num albergue pela
GCM, chamada pela direção do próprio serviço;
37) P., que na ouvidoria do RECIFRAN, relatou ter tido negada uma cópia do
“termo de acolhida”, um documento que contém os direitos e deveres dos usuários do
serviço;
38) E. O., usuário do Complexo Prates, disse que seu direito à moradia lhe é
negado, pois vive num albergue e está há muito tempo na fila de espera por uma
moradia;
39) R.G., na ouvidoria no C. C. É de lei, contou porque não tem esperança em
relação aos projetos de geração de trabalho e renda, relatando a interrupção do projeto
que participou devido a mudança dos cargos na prefeitura;
40) F. R., na ouvidoria realizada no Matilha Cultural, relatou problema ligados
aos direitos trabalhistas e sua despedida por justa causa devido ao seu alcoolismo;
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41) C.M.S.S., que foi uma das alunas do curso, e nos indagou a respeito de
seus direitos em relação ao casamento que mantinha, relatando situações de violência
doméstica e a questão do divórcio;
3º) Produção da cartilha Drogas e Direitos Humanos - É de lei, elaborada
durante o curso, mas que acabou extrapolando sua finalidade primeira (de material
didático de apoio às atividades do curso), servindo também para a divulgação de
informações pelos redutores de danos na abordagem aos usuários no campo, assim
como nas atividades das ouvidorias comunitárias. Foram impressos 800 exemplares da
cartilha e até fevereiro foram praticamente todas distribuídas tanto no trabalho de
campo pelos redutores de danos, como nas atividades das ouvidorias comunitárias,
além da oferta em alguns serviços de atendimento.
Dado o seu conteúdo informativo, não apenas “teórico” (com conteúdos
simplificados para o público alvo), mas também prático, com orientações de lugares
onde a vítima das violações de direitos humanos pode buscar ajuda, o potencial de
alcance da cartilha é certamente superior ao número de exemplares, visto que os
usuários também compartilham essas informações com familiares e outras pessoas
próximas. Isso sem falar que as cartilhas foram entregues também para trabalhadores
dos serviços de atendimento, o que pode contribuir para a difusão das informações nos
âmbito dos serviços através desse efeito multiplicador. Nesse sentido, acreditamos que
o potencial de alcance indireto da cartilha é, no mínimo, o dobro do número de
exemplares impressos, isto é, 1600 pessoas.
2. Análise qualitativa do projeto
A cidade de São Paulo apresenta, já há muitos anos, uma grave ausência e
precariedade das políticas públicas voltadas para os problemas específicos das
pessoas em situação de rua. Ao mesmo tempo em que o número de pessoas nesta
situação vem aumentando, na marca atual de aproximadamente 15 mil pessoas, faltam
vagas para atender este contingente populacional nos serviços, os locais existentes
estão impregnados do fazer burocrático e não costumam facilitar o acesso aos direitos,
além de atuarem sempre com extrema precariedade.
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O projeto “Os Direitos Humanos vão às ruas!” executado pelo É de lei teve como
principal foco de atuação justamente essa população no território da região central da
cidade de São Paulo, lugar onde se insere a chamada Cracolândia. Por mais que o
projeto estivesse focado nos usuários de crack, sabe-se que essa população se mescla
com a população em situação de rua como um todo, e por intercalarem momentos de
uso e não uso do crack, utilizam os serviços da assistência social e da saúde presentes
na região, enfrentando diversos problemas em função da falta de acesso e/ou
precariedade no atendimento.
A região central de São Paulo e a denominada Cracolândia apresentam uma
dinâmica bastante complexa, visto ser um território para onde convergem os mais
diversos conflitos de interesses. A complexidade da dinâmica desses conflitos ajudam
também a entender as dificuldades enfrentadas pela equipe na execução deste projeto
e as formas que desenvolveu para enfrentá-los, e, por isso, entendemos ser importante
apresentar o contexto histórico em que se deram as ações realizadas no projeto.
A Cracolândia é historicamente um palco de intervenções governamentais, feitas
no contexto desses conflitos de interesses, que invariavelmente implicaram em
sistemáticas violações de direitos humanos da população em situação de rua. Desde
2008 vem aumentando o contingente de ações governamentais na área, mas ainda
assim o aspecto repressivo e violento é a grande ênfase. Em janeiro de 2012, os
governos estadual e municipal se uniram para realizar a “Operação Sufoco”,
renomeada de “Dor e Sofrimento” por Luiz Alberto Chaves, da Coordenadoria de
Políticas sobre Drogas - COED e responsável pela ação no governo do estado, que
pretendia acabar com a Cracolândia a fim de atender aos reclames do projeto de
urbanização denominado “Nova Luz”.
As principais ações foram a brutal repressão policial dos usuários de crack, a
prisão de pequenos traficantes e a oferta de internação em comunidades terapêuticas
conveniadas com o governo do estado. O uso de violência de forma sistemática gerou
diversos de problemas de saúde aos usuários (ferimentos com balas de borracha, gás
de pimenta, cacetetes, atropelamentos por motos), as “procissões do crack” (como
consequência da forma cruel com que a polícia reprimia os usuários de crack, não os
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deixando que permanecessem na rua por nenhum momento, nem mesmo para comer
ou dormir), além do elevado número de prisões (muitas arbitrárias), com 763 pessoas
presas por tráfico de drogas, muitos deles usuários de crack da região. A ação dos
governos municipal e estadual acarretou no ajuizamento de uma ação civil pública pelo
Ministério Público estadual pleiteando danos morais coletivos pelas inúmeras violações
de direitos humanos perpetradas pelo poder público na realização das ações.
Um ano depois, em janeiro de 2013, o governo do estado iniciou nova tentativa
de intervenção na Cracolândia. Sob o pretexto de promover uma política de tratamento
do uso abusivo de drogas por meio da internação compulsória, foi reunido no Centro de
Referência em Álcool e Outras Drogas - CRATOD um plantão judiciário com
representantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do
Brasil e da Defensoria Pública; contaram também com com um convênio na área da
assistência social, no valor de R$4 milhões, com os missionários da Missão Belém para
a realização de abordagem de rua para convencer os usuários a se internar
voluntariamente. Dados divulgados pela imprensa nos meses posteriores, demonstram
que 90% das internações eram voluntárias e a primeira internação compulsória ocorreu
apenas em maio de 2013, 4 meses após o início da ação. Esta ação, depois
renomeada de Programa Recomeço, teve pouco efeito sobre a região, já que a
demanda por internação é pequena por parte dos usuários, que trazem outras
demandas pouco conhecidas pelo poder público, mas mostra o quanto a região está no
foco das ações políticas dos diferentes partidos.
A questão da limpeza urbana de caráter higienista na gestão Kassab estava
explícitamente ligada à requalificação urbana do centro da cidade, que é palco da
grandiosa “Operação Urbana Nova Luz” (atualmente sub judice). Em meados de 2013,
o município, já sob a gestão de Fernando Haddad, decidiu mudar o enfoque das
intervenções da municipalidade na região, afirmando que as políticas seriam norteadas
pela redução de danos.
É nesse contexto que se deu a execução do projeto “Os Direitos Humanos vão
às ruas!”, tanto a realização do curso, como a coleta de violações de direitos humanos.
Vale lembrar que em janeiro de 2014 há uma nova intervenção do poder público
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municipal na Cracolândia, o que se deu já no fim do projeto e será tratado no decorrer
desta análise qualitativa do projeto. Durante o ano de 2013 foram implantados na
região central de São Paulo o Consultório na Rua (equipe que antes era chamada de
PSF de Rua) em abril, e o Espaço de Acolhimento Braços Abertos em julho. Além
destes, os principais serviços acessados por essa população são: o SAE Campos
Elíseos, a Tenda Santa Cecília e do Parque Dom Pedro, o CRATOD, o Complexo
Prates (composto por cinco serviços: AMA, CAPS AD, Centro de Convivência, Casa de
Acolhida para adultos e acolhimento institucional para crianças e adolescentes). Como
a Cracolândia é um fenômeno metropolitano, que agrega pessoas das diversas regiões
de São Paulo e do entorno, sua existência está intimamente relacionada com as
precariedades das políticas públicas e a falta de perspectiva de vida nas periferias.
Esta precariedade não será analisada aqui, mas percebe-se claramente que o
enfretamento do uso público de crack na região depende do fortalecimento das outras
regiões.
Ao apresentar a análise qualitativa da coleta de violações de direitos humanos
realizada no projeto, é preciso considerar o histórico apresentado acima para entender
o quadro geral das violações coletadas. Percebe-se, a partir das ações em campo e
nos serviços, que havia uma facilidade dos usuários relatarem as violações ligadas à
violência policial e a discriminação sofrida nas ruas e locais públicos pelos agentes de
segurança, e, por outro lado, uma grande dificuldade de relatarem situações ligadas à
dificuldade de acesso aos seus direitos sociais, como o não acesso aos serviços de
saúde, assistência social, moradia, etc.
Tal fato se deve não apenas à histórica associação de direitos humanos como
algo relacionado a “bandidos” ou “criminosos” e, portanto, à polícia, mas também por
não perceberem que os serviços, tais como de saúde e assistência, concretizadores
das políticas públicas são direitos humanos sociais. Justamente por isso, uma das
questões mais enfatizadas nas ações de educação em direitos foi a diferença e a
relação interdepentende entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos,
sociais e culturais, ambas gerações e/ou dimensões dos direitos humanos
historicamente conquistados nas lutas sociais e políticas no Brasil e no mundo.
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Durante a realização do curso e das ouvidorias comunitárias deu-se especial
ênfase aos direitos sociais, sobretudo o direito à saúde, tanto no que toca a saúde
sexual e reprodutiva, como a saúde mental e as abordagens sobre as drogas pelas
estratégias da redução de danos. Como o curso e as ouvidorias tiveram por base os
serviços e equipamentos da rede sócio-assistencial do centro da cidade, será nesta
região que delimitaremos nossa análise, considerando que é também onde se
concentra a maioria das pessoas em situação de rua na metrópole.
2.1 Discriminação e preconceito
Logo de início é importante trazer as denúncias relacionadas ao preconceito e
discriminação. O público atendido pelo projeto, usuários de drogas em situação de rua,
sofrem de todos os tipos de preconceito e discriminação: em função de se encontrarem
em situação de rua, de serem usuários de drogas, muitos por serem egressos do
sistema prisional, ou por serem transexuais, além do racismo e da violência e opressão
contra mulheres.
Um caso exemplificativo foi relatado por um usuário do É de lei, W.J. P., que é
egresso do sistema prisional, e relatou ter dificuldades para tirar seus documentos para
buscar um trabalho formal em função de não ter pagado a multa aplicada
conjuntamente à pena de prisão. Não bastasse todo preconceito aos egressos do
sistema prisional, o jovem sofreu com o tratamento discriminatório que recebeu dos
funcionários do cartório judiciário em Guarulhos, onde foi tentar resolver os problemas
burocráticos. Muito revoltado com o tratamento recebido e desanimado com a
possibilidade de conseguir uma reinserção social, pensava em voltar “pra vida do
crime”. Após ser orientado a buscar a Defensoria Pública estadual no atendimento
especializado para a população em situação de rua, o jovem foi muito bem atendido (a
ponto de ficar impressionado com o respeito e atenção dos defensores públicos) e
pode dar encaminhamento à retirada dos documentos.
Na ouvidoria realizada no É de lei, ouvimos de usuários problemas frequentes
relacionados ao atendimento em serviços de saúde. Uma situação que nos chamou
atenção foi o caso de L. R, um usuário de crack que sofria de intensa dor de barriga
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procurou o Pronto-Socorro da Santa Casa de Misericórida de São Paulo. Depois de
três horas esperando ser atendido, conta que recebeu um “sermão do médico”, dizendo
que ele estava daquele jeito por causa da pedra, e deu apenas um soro sem nenhuma
medicação, saindo ainda com diarréia, fraqueza e mal estar depois de um hora e meia.
Foi orientado a realizar reclamação na gestão local do SUS e se o problema
persistisse, que procurasse o atendimento na Defensoria Pública.
Na ouvidoria realizada no RECIFRAN, ouvimos alguns relatos de situações de
preconceito e discriminação com os transsexuais usuários do serviço. J. B. R. relatou
uma discriminação ocorrida no interior de uma ocupação do movimento sem-teto
quando teria sido furtada algum objeto e as lideranças da ocupação clamaram em alto
e bom som: “todo viado, todo traveco, vem pra baixo” para que fossem revistados e
averiguados se eram os autores do furto.
A. S., outra usuária do RECIFRAN, relatou discriminações pelo fato de ser
transsexual no emprego temporário pelo qual passou. Segundo ela, suas coisas que
estavam guardadas no armário de funcionários no interior da empresa foram furtadas e
não teve qualquer tipo de assistência e amparo para reavê-las, nem mesmo para que
os responsáveis fossem responsabilizados. Foi orientada de que a empresa tem sim
responsabilidade no âmbito da relação trabalhista e que poderia ajuizar uma demanda
em face do empregador, devendo procurar a Defensoria Pública da União.
Muitos relatos também tratavam da discriminação sofrida durante abordagens
policiais, assunto que trataremos no tópico seguinte, ou ainda em barreiras para a
efetivação dos direitos sociais, o que também será comentado no tópico próprio.
2.2 Violência polícial e justiça criminal
A maioria dos relatos de violações de direitos humanos concentram-se
justamente
nas
violência
policial.
Mesmo
antes
das
recentes
operações
governamentais na região da Cracolândia, praticamente todos usuários de drogas em
situação de rua passava por inúmeros casos de abusos e violências cometidos por
policiais militares (PM) e guardas civis metropolitanos (GCM). Essa população é vítima
tanto das medidas arbitrárias do poder público, de caráter higienista, que os impede de
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permanecer nas ruas e nos espaços públicos, assim como da política de guerra às
drogas e do proibicionismo, que implica em políticas de enfrentamento (aos usuários!)
de crack, tratando-os como seres perigosos, portanto, passíveis da mais ampla gama
de violação de direitos. Sendo assim, é muito comum relatos de abusos por parte das
forças policiais como espancamentos, torturas, extorsões e prisões arbitrárias.
A falta de uma Defensoria Pública devidamente instalada e estruturada para
exercer a defesa judicial dessas pessoas favorece muito a continuidade dessas
práticas, pois dificilmente os usuários de drogas em situação de rua conseguem
reivindicar seus direitos violados pela violência estatal, qual seja, um atendimento
médico e psicológico voltado para tais situações de violência, bem como a indenização
por danos morais e materiais sofridos, além da responsabilização do estado pelas
violações de direitos humanos perpetradas pelos seus agentes.
Se lidar com essas violações de direitos não é nada fácil para as instituições
democráticas existentes - como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem
dos Advogados do Brasil, os conselhos de direitos -, o que dizer para a equipe do
Centro de Convivência É de lei. Nesse sentido, em todos os casos relatados, seja no
campo, seja nas ouvidorias, tivemos a preocupação de explicar como funciona uma
abordagem policial, o que os policiais podem e não podem fazer, e orientar em todos
os casos quais são os direitos dos cidadãos e o que as pessoas podem fazer em caso
de abuso.
Em praticamente todos os casos, o encaminhamento restou bastante
prejudicado devido as essas dificuldades todas. De toda forma, o simples
esclarecimento acerca do acesso à justiça e do papel da Defensoria Pública, bem
como a conscientização sobre algumas formas possíveis de reivindicar direitos em
situações como essas já podem ser consideradas um encaminhamento. O trabalho
desenvolvido no projeto revela a necessidade tanto do Estado - pelo fortelecimento do
acesso à justiça -, como da sociedade civil e dos movimentos sociais - denunciando e
cobrando o poder público -, de intervir em situações como essas e coibir a verdadeira
barbárie promovida pelas forças de segurança do estado contra os usuários de drogas
em situação de rua.
16
Os casos relatados foram:
Na ouvidoria realizada no RECIFRAN, ouvimos o relato de B. B. afirmando que
foi abordado por PMs quando possuía uma pequena quantidade de maconha, e foi
obrigado a comer as trouxinhas com a droga com plástico e tudo. Na ouvidoria
realizada na Casa da Oração, G. (guardador de carros) relatou que foi abordado por
PMs num dia desses bem quentes de janeiro de 2014, sendo obrigado pelos PMs a
permanecer sentado em cima de sua mão, uma forma curiosa de tortura praticada
pelos policiais. Na ouvidoria realizada no Matilha Cultural, o jovem A. relatou que sofreu
uma abordagem por PM quando estava com sua namorada na região da Luz. Segundo
relata, os PMs do sexo masculino revistaram sua namorada com “desrespeito” e por
isso se revoltou; houve briga e ele acabou sendo espancado pelos PMs.
Um usuário do É de lei, A.C. que foi preso em meados de 2013, sofreu muitos
espancamentos ao ser abordado por PMs na avenida Tiradentes. O rapaz, que possui
alguns transtornos mentais e recebe atendimento no CAPS e no Centro de Convivência
É de lei, foi abordado por policiais após ter encontrado um telefone celular na rua.
Quando estava mexendo no aparelho, o dono ligou e A. C. se comprometeu a entregálo num local marcado. Nesse local, A. C. foi abordado pelos PMs com extrema
truculência, acarretando em alguns ferimentos no rosto, próximo ao olho, nos braços e
no tronco.
L. M. P. M, relata que “estava dormindo, [quando] saiu uma briga e os caras
[PMs da base comunitária da Praça Júlio Prestes] mandaram eu levantar, demorei um
pouco e ele me deu com o cassetete na cabeça… Nem me socorreu, tomei 5 pontos na
cabeça.”. “Tive que ir até o corpo de bombeiros” para ser atendido, pois os policiais lhe
negaram apoio para chegar até o hospital. E arrematou: “O policial me jurou de morte”.
Em atendimento realizado pela equipe de redutores de danos, M.P.S. relatou
que, no início da noite do dia 06 de fevereiro de 2014, viu guardas da GCM de São
Paulo exigindo propina para soltar dois usuários que haviam sido revistados por eles.
Ele foi orientado a fazer denúncia na Corregedoria da GCM-SP, no entanto ficou com
medo de perseguição, por ser trabalhadora da área da saúde.
17
Outra caso que nos chegou pela equipe de redutores de danos foi o de W. C. A.,
o qual transcrevemos na íntegra: “Eu estava dentro do espaço da unidade Braços
Abertos na rua Helvétia, quando observo que há uma agitação na rua, pessoas vem
correndo para dentro da unidade, fugindo de confronto com a polícia. Usuários
contaram que uma jovem havia sido detida na Alameda Dino Bueno, em meio ao
‘fluxo’, fato que provocou a reação de alguns dos moradores de rua da região e a PM
reagiu atirando bombas de gás lacrimogêneo (eu obsevei na frente da unidade, cerca
de 4 bombas lançadas). Logo após o ocorrido, por volta das 15h, observo que o ‘Pai
Tal’ estava chorando, queixando-se da abordagem violenta e de dores pelo corpo,
enquanto tomava banho de mangueira, segundo ele, para aliviar as dores. Ele disse
que 03 policiais militares o abordaram, após lançarem duas bombas de gás
lacrimogêneo, na esquina da Dino Bueno com a rua Helvétia, mandaram que
encostasse para revista, mas começaram a bater com socos e o cacetete. O mesmo
relata que tentou sair andando, mas que eles iam batendo, enquanto pedia que
parassem, ‘vocês estão batendo demais em mim’ (sic).”.
Alguns relatos trazidos por usuários, entre eles o de F., tratavam de um PM que
atua na região da Cracolândia, de nome Felype, que frequentemente comete abusos
com os usuários de drogas da região. F. relata que o PM “tá colocando o pavor na
galera”, e relatam casos de tortura, principalmente “com meninos que ele leva para
dentro do hotel”, além de ironizar enquanto enforca os usuários: “isso aqui é direitos
humanos!”. Esse mesmo policial Felype já deu “enquadro” em agentes redutores de
danos que trabalhavam no local (fato ocorrido em 19 de setembro de 2013). F., que é
porteiro de um estacionamento na região, disse que nesse dia os PMs, entre eles o tal
Felype, entraram no estacionamento procurando alguém. Quando afirmou não
conhecer a pessoa procurada, o Felype o levou para dentro de um barraco que fica ao
fundo do estacionamento e “arrancou o cadarço da minha blusa, me enforcou, agrediu
minha cara”, “me fez ficar pelado”, “aí foi pro meu irmão”, “falou para meu irmão que ia
ser pessoal”.
Em outro caso, ocorrido nas proximidade da Av. Rio Branco, I. S. O. relata que
Policiais da Força Tática (PM) “Me pegaram com um B.O. [flagrante de furto] e
18
cortaram meu dedo com a faca deles” (ver foto). Segundo disse, depois de pego pelos
policiais,
estes
não
realizaram
nenhum
dos
procedimentos
legais,
como
encaminhamento à Delegacia de Polícia, simplesmente sacaram uma faca e cortaram
fora parte de seu dedo mindinho.
COLOCAR DUAS FOTOS DA FICHA DE ATENDIMENTO - CASO ÍTALO
SOARES OLIVEIRA
Um situação que se tornou bastante comum após a famigerada “operação
sufoco” em 2012, é a forma como os policiais agem com os usuários de drogas em
situação de rua, não os deixando por nenhum momento se estabelecer nos espaços
públicos, inclusive com o uso das viaturas. No dia 13 de maio de 2013, os redutores de
danos colheram relatos de usuários, que não quiserem se identificar, afirmando que na
semana anterior a PM fez uma “batida”, prendendo por volta de dez pessoas, além de
recolher os pertences com um trator. Durante o momento em que estavam na rua
conversando com os usuários, presenciaram a polícia, a cada vinte minutos, estacionar
a viatura na calçada onde os usuários estavam instalados, obrigando-os a mudar de
quarteirão. Depois de certo tempo, a viatura contorna o quarteirão, e estaciona
novamente na nova calçada para “fazê-los se movimentar”. “Sabem quando eles
deixam os bois pastando até a grama ficar pronta? É isso que fazem com a gente”. Um
rapaz mostrou a marca do asfalto em seu peito, pois minutos antes a polícia havia o
abordado e pisado contra o piso da rua.
Apesar das informações obtidas com os relatos, ressaltamos o quanto é muito
difícil o encaminhamento desses casos, visto que a denúncia contra policiais somente
surtirá algum efeito quando amparada em provas cabais (como vídeos, fotos ou
testemunhas). Todos sempre demonstram muito medo de relatar estas violações para
autoridades e por isso estas violações de direitos humanos são muito difíceis de serem
combatidas. Por outro lado, é importante ressaltar, que elas são de conhecimento geral
do poder público, que no entanto, é conivente com elas, visto que são inclusive
gravadas pelo sistema de vigilância, usado para “combater o tráfico”.
Um caso bastante recente é exemplo disso. A equipe do É de lei conversou com
19
pessoas que frequentam a região da cracolândia, usuários e não usuários de drogas,
que presenciaram a ação promovida pelo Departamento de Narcóticos - DENARC da
polícia civil de São Paulo no dia 23 de janeiro de 2014, logo após o início da nova ação
da prefeitura na cracolândia2. Segundo os relatos ouvidos pela redutora de danos de
pessoas que não quiseram se identificar, “uma criança tomou bala de borracha no
pescoço”, “uma mulher grávida foi arrastada pela cabeça” e “um usuário levou um tiro
[bala de borracha] na cabeça que ficou um racho”.
Segundo a versão oficial, policiais civis efetuaram a prisão em alguns traficantes
na região, o que gerou a revolta de alguns usuários, momento em que os policiais
voltaram para atacar todos os usuários indiscriminadamente com abordagens abusivas
e vexatórias, além das bombas de gás lacrimogêneo e dos tiro com balas de borracha
à queima roupa. Os usuários relatam, no entanto, que não foram alvo apenas dos
policiais do DENARC, mas também de PMs, GCM que impediram inclusive que
moradores da região filmassem o que acontecia. Os comerciantes da região (pequenos
bares) foram obrigados a fechar seus estabelecimentos e o medo e o pânico se
espalhou pela região.
A ação contou com centenas de testemunhas, mas é difícil que elas se
identifiquem pois estão com medo da polícia. Os usuários repetiram muitas vezes que
está tudo filmado pelas câmeras da Porto Seguro e do ônibus “big brother” do
programa do “crack é possível vencer”. Este ônibus tem diversas câmeras de alta
resolução instaladas nele e recebe também sinais de câmeras instaladas nos
quarteirões ao entorno. Está no local desde novembro de 2013, para “combater o
tráfico”. No dia seguinte à ação, parte das imagens destas câmeras que filmaram a
ação foram disponibilizadas para algumas redes de televisão. No entanto, nenhum
inquérito foi aberto para investigar o abuso policial.
Outra situação ocorrida já no fim do projeto, no início de fevereiro, foi relatada
2
“Denarc faz operação na Cracolândia e causa atrito entre Haddad e Alckmin” in: O Estado de São
Paulo,
caderno
Metrópole,
23/01/2014.
Disponível
em:
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,denarc-faz-operacao-na-cracolandia-e-causa-atrito-entrehaddad-e-alckmin,1122090,0.htm. Acesso em: 01/03/2014.
2
20
por B., uma usuária de crack e lésbica que sofreu abusos sexuais por um PM que atua
na região da Cracolândia. Depois de revelar ter pavor da possibilidade de uma relação
sexual com um homem disse sobre o PM: “O jeito que ele trata, não tem atitude de
autoridade, ele aborda e pede para levantar a blusa para ver o meu peito”, “ele pegou a
lanterna para ver”, apontando para a vagina; “não pega minhas drogas, já me deu pino
de cocaína dentro da viatura” e “jogou uma capsula de cocaína de dentro da viatura
para mim falando ‘pra não dizer que sou ruim’’’. Afirma que o policial é “bonito, gosta de
aparecer” e “dá tapa na cara”; “ele some depois aparece, sempre com o mesmo
parceiro, sempre de sábado”; disse que certa vez o policial falou para ela: “se você
conseguir, metade é meu e metade é seu” (parecendo se referir a uma oferta para ela
vender droga por eles).
Houve também algumas orientações sobre o funcionamento da justiça criminal.
Um usuário, P.F.F., pediu orientações sobre sua situação como condenado pela justiça
criminal. Era egresso do sistema prisional e queria saber quais as implicações para
obter um emprego, principalmente como segurança privado. Foi orientado sobre as
situações que implicam na reincidência criminal e sobre a possibilidade de pedir a
reabilitação criminal. Foi orientado a procurar a Defensoria Pública do estado para
resolver esses problemas.
Os encaminhamentos dos casos de violência policial buscou sintetizar as
informações contidas na cartilha produzida por ocasião do projeto: quais são os direitos
do cidadão que é abordado por policiais e como acessar o serviço de acesso à justiça
(a Defensoria Pública). Contudo, a dificuldade de encaminhamento desses casos na
Cracolândia é muito grande, as pessoas manifestam sempre muito medo de denunciar
e extrema dificuldade para provar, já que um processo que de fato acarrete a
responsabilização do estado necessita de provas cabais; aos olhos da justiça é a
palavra de um usuário de crack contra a palavra de um funcionário público no exercício
de sua tarefa de “combate” e “enfrentamento”. As violações de direitos são, assim,
muitas e bárbaras, comos os frequentes casos de tortura e o caso corte do dedo do
rapaz flagrado num furto. Em que pese tamanha dificuldade, o Centro de Convivência
É de lei avalia que a experiência desse projeto proporcionou a instituição pensar a
21
redução de danos de uma forma ainda mais ampla, expandindo a redução de danos
para o campo da educação em direitos humanos e o acesso à justiça, uma forma de
reduzir os danos à saúde provocados por esta política proibicionista de drogas no
Brasil, que tanto causa violações de direitos humanos.
2.3 Direitos sociais e políticas públicas
Em que pese a percepção dos usuários para as violações de direitos humanos
esteja focada principalmente na violência institucional, no âmbito das políticas públicas
que visam assegurar o gozo dos direitos sociais pelos usuários de drogas em situação
de rua, o cenário é também de muitas violações de direitos. Na coleta das violações
junto aos usuários, seja pelos redutores no campo, seja nos serviços com as
ouvidorias, as principais denúncias em relação aos direitos sociais dizem respeito à
saúde, assistência social, trabalho, a discriminação e preconceito como barreira de
acesso, como também dúvidas sobre direito de família, criança e adolescente e justiça
criminal.
Saúde
Nas ações de rua, os redutores de danos encontram diariamente usuários de
drogas na região da Cracolândia com questões de saúde, em sua maioria graves e
urgentes. No entanto, mesmo encontrando casos de pessoas com o braço quebrado,
diarréia, feridas expostas e infeccionadas, isso não aparece como uma demanda por
cuidado, por mais surpreendente que isso possa parecer. Frente aos questionamentos
da equipe para que buscassem ajuda nos serviços de saúde, os usuários dizem preferir
ficar como estão, ou buscam cuidado junto a outros usuários da região, pedindo
conselhos de remédios que possam tomar. Relatam já estarem “cansados” de ir ao
serviço de saúde e não conseguir atendimento, mesmo depois de horas esperando na
fila. Os relatos das situações que levaram a este cansaço são diversos, como: esperar
horas e não ser atendido, ou ser atendido mas apenas receber como cuidado um
sermão para que parasse de usar drogas e um soro sem nenhuma medicação; ou o
médico exigir que tome banho para poder ser atendido.
O que parece haver nessas situações é fruto tanto da precariedade dos
22
serviços, que atuam com poucos profissionais e com uma estrutura precarizada, como
também o preconceito dos profissionais no atendimento de pessoas em situação de rua
e usuárias de crack. Um bom exemplo disso foi o caso relatado no tópico sobre
discriminação e preconceito, de L. R, usuário de crack que sofria de intensa dor de
barriga procurou a UBS. O médico se resumiu a dar um sermão por ser ele usuário de
crack e ministrou um soro sem qualquer medicação ou tratamento. Na ouvidoria
realizada na Casa da Oração, J. relatou que enfrentou muitas dificuldades para retirada
de seus exames na Santa Casa. Ele possui um problema grave na coluna e há 7
meses que não consegue retirá-los, obtendo como justificativa a “falta de médicos”. Ele
foi orientado a fazer uma reclamação ao conselho gestor da unidade e de que poderia
também fazer uma reclamação à ouvidoria do SUS e à Defensoria Pública.
As barreiras no atendimento aos usuários de crack em situação de rua sofrem
no atendimento foram presenciadas de modo marcante pela equipe de redutores de
danos de campo do Centro de Convivência É de lei. No 14 de junho de 2013, os
redutores Thika e Roberta presenciaram a cena relatada abaixo por ambos:
Vejo com o canto do olho uma moça de branco me olhando ao passar. Ela parece
eufórica. Trocamos olhares. E acredito que logo em seguida trocou olhares com
Robertinha também. Ela se aproxima e diz: “Preciso de ajuda! Ajuda ele aqui, ó”. Ela
está junto com um homem. Ele está meio cambaleando. Parece fraco, meio tonto. Ela
comenta que ele está ferido. Andamos acompanhando a moça e o homem ferido em
direção ao SAE e dando um apoio para ele. Robertinha me diz que ele tomou uma
facada. Ele para em nossa frente e levanta a camisa. Vejo um ferimento. O sangue
começa a brotar aos poucos. Assumo que a facada foi a poucos segundos atrás. Ao
lado vejo a moça que não sabemos o nome e parece um homem. Ela me ajuda a dar
apoio para o homem ferido. Andamos mais um pouco em direção ao SAE (Serviço de
assistência especializada – DST/AIDS). A moca diz: “estou nervosa” e começa a chorar
andando ao nosso lado. Ele parece ficar mais fraco e ajoelha no chão. Pareceu quase
desmaiar. Um outro homem que estava longe vem correndo e começa a carregar o
homem ferido. Pergunta onde é? Onde levamos? Indicamos o caminho do SAE e
ofereço ajuda para ajuda-lo a carregar. Robertinha sai correndo na frente em direção
23
ao SAE. A idéia foi avisar antes os profissionais do SAE que estariamos chegando com
uma emergência.
O trajeto em que eu o carregava junto com o outro rapaz, percebi sua cabeça mole
perto de mim. Pensei: ele desmaiou, sera que morreu? A camisea dele se levantou
com nossos movimentos depressas até o SAE. Vi o corte. Um corte de aparentemente
uns 5 ou 6cm, aberto, e dentro vi o tecido de seu abdomem. O sangue saia aos
poucos, o que me fez pensar que não seria um corte muito fundo. Pelo menos era oque
eu queria pensar, o que eu gostaria muito que fosse. Chegamos carregando o rapaz e
na porta do SAE um medico de branco logo nos direcionou para uma sala. Colocamos
ele em cima da maca. Ele percebeu que havíamos chego em algum lugar. Imagino que
sentiu encostando as costas em algo. Ele abre os olhos. Digo para ficar tranquilo,
respirar, e que havíamos chego no posto médico. Ele olha para mim e diz: “Obrigado!
Obrigado!”. O doutor pede para esperarmos lá for a enquanto ele faz os primeirossocorros.
Robertinha logo me disse que quando chegou ao SAE correndo, antes que nós, a
assistente social de plantão na recepção não queria receber o homem ferido. Ela
dizia: “não traga ele para cá! Aqui não cuidamos disso! Não entre com ele!
Espere na rua e chame o SAMU!”. Robertinha disse: “se você não atendê-lo, ele
vai morrer aqui na porta!”. Ela foi então falar com o médico, que prontamente
interrompeu suas consultas e foi atender a urgência que vinha da rua.
Enfim, a adrenalina baixou. Tínhamos feito o que pudemos. O melhor que podia ser
feito neste momento. Ele estava sob cuidados médicos. Como é um serviço de
assistência especializada em DST/AIDS, não oferecem serviço de pronto-socorro, mas
sabíamos que entre todos ali da região, ali seria o local com maior conhecimento e
recursos médicos para lidar com esta situação. Estancar o sangue, oferecer soro, fazer
um curativo ou chamar uma ambulância. Ali nos sentimos mais seguros, e torcendo
para que não fosse algo grave. Depois do atendimento médico, uns 10 minutos depois
de nossa chegada no SAE, fui conversar com a médica. Doutora Silvana me explicou:
“O ferimento é na barriga, não temos recursos para avaliar se algo foi ferido
interiormente. É necessário que ele vá para o hospital, e um medico cirúrgico possa
24
avaliá-lo. Já chamamos o SAMU para o deslocamento ao hospital.” A médica foi
atenciosa, e explicou também a situação para R. B., o homem ferido. Esse é seu nome:
R. B. Ele está consciente e pergunta para mim sobre a moça que o acompanhava. Digo
que ela está lá fora. A médica pede que eu espere lá também.
Chegando do lado de for a Robertinha está conversando com a moça. Seu nome é R.
A., e ela explica que a facada era para ser nela, e que R. B. entrou na frente para
defendê-la. Ela diz que saiu do Hospital faz pouco tempo, e que estava internada por
15 dias porque tomou tiros na perna. Ainda sente dor e diz que foi ali na cracolândia
também, e que a bala ainda está em sua perna. Comentamos que está arriscado para
ela ficar por ali, e que talvez seria interessante ela dar um tempo, sair um pouco da
região. R. A. diz: “Tá perigoso para esse cara! Agora ele vai ver!” Senti um tom de
revanche.
O SAMU chegou e levaram R. B para a UBS da Barra Funda, na rua Vitorino Camilo.
Só pode um acompanhante na ambulância. R. A. foi com R.B. A história vai recebendo
nomes. Fui caminhando até a UBS. Nesse trajeto refleti muito sobre a fragilidade da
vida. O quanto somos capazes, e como isto pode acabar de repente. Apesar de saber
eu nome, ainda não sei quem é R. B. Carreguei ele em meu colo e senti sua cabeça
solta, desmaiada, apoiada em mim. Que história estava eu carregando? É difícil colocar
em palavras oque senti.
Na UBS esperamos o atendimento. O médico vem de outra unidade. R. B está
sentado, consciente e conversa comigo. Sente dor na ferida. R. A. está lá fora, fuma
cigarro. Diz estar cansada e que precisa muito descansar. Comenta que vai deixar R.
B., pois ele fuma muito crack, e ela acabou ficando a semana inteira nisso com ele.
Não quer ficar nessa sempre. Repensa. “Pô, mas ele salvou minha vida”. O médico
chega, avalia e uma enfermeira me diz que o corte foi superficial. Já fizeram o curativo
e vão aplicar Besetasil e Voltaren. Após isso liberam R. B..
Felizmente, o rapaz socorrido pelos redutores de danos acabou socorrido pelo
médico do SAE, foi atendido, encaminhado ao serviço adequado e não faleceu. Devese considerar que o rapaz acabou atendido pois a redutora de danos desconsiderou o
25
que disse a funcionária e intercedeu pelo atendimento médico de urgência, somente aí
o rapaz acabou atendido. Longe de apontar culpados, a situação presenciada pelos
redutores do É de lei revela as barreiras existentes para o acesso de usuários de
drogas em situação de rua aos serviços de saúde.
O cenário não é diferente no âmbito do sistema público-privado, como no caso
das organizações sociais que prestam o serviço público de acesso à saúde. No ano de
2011, o Conselho Federal de Psicologia lançou o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de
Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas, relatando as violações
de direitos humanos no atendimento prestado pelas Comunidades Terapêuticas
inseridas na política pública no contexto da política de “enfrentamento ao crack”, tais
como a falta de estrutura física e de atendimento multidisciplinar adequado, o uso de
doutrina religiosas como “tratamento”, entre outras arbitrariedades. No curso do projeto,
coletamos caso exemplificativo do atendimento oferecido por essas comunidades
“terapêuticas””. D. L., frequentador do curso realizado pelo Centro de Convivência É de
lei, relatou ter visto um usuário de drogas ser deixado na fila de espera do SAE
Campos Elíseos pela equipe de uma Comunidade Terapêutica conveniada com o
governo estadual, onde estava internado, e irem embora logo em seguida. O usuário
teve parada cardiorrespiratória enquanto estava sentado e precisou ser levado às
pressas para a Santa Casa, quase falecendo. Nesse caso, a orientação foi a de
recolher mais detalhes do caso e entrar com denúncia no Ministério Público ou na
Defensoria Pública.
Em relato de campo de Thika, de 13 de maio de 2013, um usuário que não quis
se identificar denunciou maus tratos das casas de internação da Missão Belém
(Instituição religiosa que faz trabalho de campo todos os dias da semana na
Crackolândia). Segundo ele a comida servida é sempre ruim, pouca e, muitas vezes,
estragada. Eles são obrigados a rezar várias vezes por dia. Segundo o relato de um
dos trabalhadores da Missão Belém, que estava naquele dia, a instituição possui mais
de 104 casas no Brasil destinadas a “dependentes químicos”. O trabalho desenvolvido
“é convencer estas pessoas se recuperarem a partir de um trabalho espiritual.” Eles
relatam não utilizarem nenhum tipo de medicamento no tratamento. “Só trabalho
26
espiritual” (sic). Ali na Crackolândia, duas vezes por dias eles convidam a população
para rezas.
Complexo Prates
O Complexo Prates foi o serviço de atendimento criado pela prefeitura municipal
no ano de 2012, alguns meses após o início do “operação sufoco” dos governos
municipal e estadual. Conta atualmente com cinco serviços: AMA, CAPS AD, Centro de
Convivência, Casa de Acolhida para adultos e acolhimento institucional para crianças e
adolescentes. A disparidade entre o início da ação policial e a criação do espaço
destinado ao atendimento dos direitos sociais demonstra claramente qual é a
prioridade da intervenção do poder público na região. Criado às pressas, sem
plenejamento nem formação adequada da equipe de funcionários, estes “caíram de
pára-quedas” no local e começaram a fazer atendimento de casos tão difíceis e
complexos como aqueles apresentados pelos usuários de drogas em situação de rua
da Cracolândia.
A equipe do Centro de Convivência É de lei já havia ouvido relatos das
dificuldades enfrentadas pelos funcionários na lida diária com os usuários do CAPS
AD, desde a total ausência de trabalho na perspectiva da redução de danos, passando
por maus tratos dos usuários e até mesmo um suposto desvio da alimentação por
funcionários. No mês de janeiro de 2014, no mesmo momento em que a prefeitura
planejava nova ação na Cracolândia, a equipe do projeto “Os Direitos Humanos vão às
ruas!” foi convidada para uma reunião que seria realizada no Complexo Prates no dia
15 de janeiro entre usuários do serviço e entidades de defesa de direitos humanos.
Dizia-se que haviam ocorridos alguns conflitos entre os usuários e os funcionários da
Sociedade Amiga e Esportiva do Jardim Copacabana - SAEC, organização social que
administra alguns serviços do complexo.
O Centro de Convivência É de lei esteve presente à reunião junto com
representantes da Associação Brasileira de Saúde Mental - ABRASME, da Frente
Estadual Antimanicomial-SP, da Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos e o
Movimento Nacional de Direitos Humanos, mas sem a presença de funcionários da
27
SEAC. A reunião contou com a participação de cerca de 50 usuários do serviço, mas
não contamos com a lista de presença, tendo em vista a urgência com que foi
marcada, além das circunstâncias em que ocorreu. Na oportunidade, recebemos dos
usuários uma folha em que relatam suas insatisfações e pauta de reivindicações:
Foto: Reunião dos usuários do Complexo Prates com Movimentos de Direitos
Humanos
1) Abordagem pela GCM de forma truculenta, solicitam uma abordagem mais
respeitosa;
2) Ausência de atividades e grupos no centro de convivência que anteriormente
ocorriam com frequência. Alegam que a falta das atividades propocionam brigas
devido à ociosidade;
3) Informam que as salas de atividades localizadas no centro de convivência
(telecentro, biblioteca e sala multiuso) estão fechadas a algum tempo
impossibilitando o acesso dos usuários;
4) Queixa a respeito da troca da televisão, antes em uma sala destinada a isso, para
um ambiente aberto, prejudicando a audição por conta da acústica do centro de
convivência;
28
5) Uso e circulação livre de substâncias químicas dentro do complexo, principalmente
dentro do Centro de Acolhida;
6) Disponibilidade de vagas na rede de assistência e na saúde para que as
pessoas possam ser acolhidas e não tenham que optar pelo recurso da “rua” melhorar a acessibilidade a recursos como unidade de acolhimento, centros de
acolhidas etc.
7) Solicitam a prestação de contas junto à SAEC quanto ao destino da verba recebida;
8) Responsabilização pelos extravios dos insumos e recursos materiais pelos
colaboradores da organização (toalhas, sabonete, cobertores, lençol etc.);
9) Inserção de mais ações sociais como: instituições religiosas, atividades físicas e
jogos;
10) A quadra no centro de convivência seja utilizada somente pelos usuários, pois tem
sido utilizada por alguns colaboradores da SAEC, que impedem a entrada dos usuários
e conviventes;
11) Conviventes da Casa de Acolhida queixam-se quanto à falta de circulação de
ar dentro do dormitório pois a porta de saída é mantida fechada o tempo todo; e
ainda o recebimento de 25 ventiladores, sendo que apenas dois foram instalados;
12) Inserção de programas de alfabetização para adultos no Complexo;
13) Precariedade da higiene no Centro de Acolhida;
14) Ausência de qualidade da equipe de segurança, que muitas vezes partem ou
incitam a agressão juntos aos usuários;
15) Alimentação no Centro de Convivência é servida em pratos plásticos e
talheres descartáveis, não dispondo de facas para corte dos alimentos, acreditam
que são desrespeitados pois os colaboradores que também se beneficiam da
alimentação a fazem em pratos de vidro e talheres de metal e quando perguntam
o por que de não serem contemplados com o mesmo benefício ouvem a resposta
29
de que é “perigoso” porque eles podem se envolverem em brigas;
16) A higienização dos pratos plásticos não é adequada e que algumas vezes
foram servidos em pratos usados pelos funcionários sem higienização prévia;
17) Alguns usuários pontuaram que frente à solicitação de um convivente por
uma maior quantidade de alimentação, esta foi negada pelo colaborador da SAEC
e desprezada, utilizando a seguinte fala: “prefiro jogar a comida no lixo do que
servi-la a você”;
18) Um dos usuários presenciou um colaborador da SAEC levando caixas de
alimentação destinada ao Centro de Acolhida e que ao questioná-lo, o colaborador em
tom irônico alega não ser o único a ter esta atitude;
Para além do suposto desvio de recursos públicos destinados ao atendimento
dos usuários, o que ressalta das insatisfações é que o serviço criado especificamente
para atender às demandas por direitos sociais dos usuários da Cracolândia, situado a
menos de um quilômetro dali, demonstre tamanha precariedade e falta de condições
para lidar com essa população. Demonstram, além disso, um total despreparo para
lidar com conflitos, num espaço de tantos conflitos.
Uma ata da reunião foi encaminhada ao Condepe (Conselho de Defesa da
Pessoa Humana), que tentaria marcar reuniões de representantes dos usuários com
equipes da prefeitura.
A precariedade é tamanha que a alimentação é oferecida em utensílios
descartáveis reutilizados, algo que parece banal, mas pode acarretar em questões
sérias. D. L., frequentador do curso realizado pelo É de lei e ex-funcionário, relatou
que Richard e Weldenicio, dois acolhidos no complexo, podem ter morrido depois de
engasgarem com a alimentação oferecida. Para ele, “a morte do Richard engasgado
suscita várias questões, desde a negativa para se comer com facas, até falhas durante
o socorro. Por exemplo, no caso do Richard o material para reanimar o paciente estava
trancado na sala da gerente.”. A orientação foi no sentido de comunicar órgãos da
30
administração municipal e o Ministério Público estadual. O mesmo relata ter
apresentado uma representação na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Cidadania, mas que até agora nada foi feito.
No dia 15 de janeiro, após a reunião realizada com os usuários do Complexo
Prates, tivemos oportunidade de conversar com alguns usuários reservadamente. Entre
eles, o S. T. C. F., senhor com 60 anos de idade, que se encontrava no Centro de
Acolhida do Complexo Prates, enquanto seu filho é usuário de crack atendido no CAPS
AD do Complexo Prates. Ele nos relatou diversos problemas de saúde: uma úlcera no
pé direito, diabetes que tem implicações no pé (segundo relato, os médicos disseram
que pode ter que amputar os dedos), água no pulmão e uma infecção por uma bactéria
adquirida no atendimento que teve no Hospital da Barra Funda. Ele relatou que a
infecção que possui demanda tratamento com um medicamento específico e bastante
caro, mas que ele até agora não consegui acesso na AMA do Complexo Prates.
Segundo disse, foi orientado que esse problema necessitaria também de atendimento
especializado numa unidade de referência, mas nunca consegui um transporte ou
ambulância que o levasse até a unidade especializada. Diante do quadro bastante
difícil deste senhor, com muitas dificuldades para se locomover inclusive, orientamos
este senhor sobre seus direitos e fizemos contato com a Defensoria Pública estadual,
através do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, solicitando um atendimento no
local por um servidor, ou por telefone. Cerca de 10 dias depois, fomos informados pela
Defensoria Pública de seu caso estava sendo encaminhado e entrariam com ação na
justiça para obter o medicamento e o transporte para o atendimento especializado.
Fomos procurados também por dois outros usuários, não identificados, para tirar
dúvidas sobre questões ligadas à execução penal. Foram orientados sobre o papel da
Defensoria Pública na garantia do acesso à justiça, e sugerimos que comparecessem
no atendimento realizado para a população em situação de rua localizado no centro da
cidade, no Chá do Padre. Um quarto usuário, que também não se identificou, indagou
sobre o direito de visitas de seu filho de poucos meses de idade, o qual a sua mãe e
ex-companheira não deixava vê-lo. Tinha intenções também de pagar pensão
alimentícia, mas ela se recusava a receber, pois era de família rica e a família dela o
31
rejeitava. Nesse caso, ele foi orientado de seus direitos e a procurar a Defensoria
Pública, também no serviço especializado.
Como visto no relato das insatisfações, a precariedade do serviço e do
atendimento muitas vezes contribui para o surgimento dos conflitos, e aí as violações
de direitos humanos se multiplicam, confundindo-se o atendimento prestado pela
política pública com a coerção policial. É muito frequente que em conflitos surgidos nos
serviços de atendimento, seja por que motivo for, a equipe, sem habilidade e formação
necessárias para tais situações de crise, opta por chamar a CGM para controlar a
briga, a mesma força pública que aborda usuários na rua para que não fiquem
instalados nas ruas e espaços públicos.
D. L., já citado anteriormente, poucos meses após o fim do curso realizado pelo
Centro de Convivência É de lei, teve o braço quebrado por guardas da GCM,
chamados ao Complexo Prates para ajudar a conter a violência numa dessas
situações. Ele relata que estava ajudando a apartar uma briga, quando “um guarda
chegou batendo com o cacetete em todo mundo e jogando gás de pimenta”. Foi
orientado a fazer uma denúncia na Corregedoria da GCM. Além disso, como este caso
está relacionado com outras denúncias no Complexo Prates, foi adicionado também a
um relatório sobre as precariedades dos serviços, a violência presente no local e as
denúncias dos usuários, enviado ao CONDEPE (Conselho de Defesa da Pessoa
Humana), à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e à Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. O acontecimento violento foi tema também da reunião
de Dezembro do Fórum Estadual sobre Drogas e Direitos Humanos de São Paulo, que
aconteceu no Comando Geral da GCM, em São Paulo.
Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas - CRATOD
O CRATOD ganhou destaque com a segunda tentativa de intervenção do
governo do estado na Cracolândia. Tradicional serviço de tratamento ambulatorial em
saúde mental, que em 2002 foi transformado em Centro de Referência, funcionando
mais ou menos nos moldes de um CAPS AD, este serviço passou por diversas
modificações a partir do início do Programa Recomeço. Em janeiro de 2013, foi
32
instalado um anexo judiciário no centro, fruto do termo de cooperação técnica entre o
governo do estado, o Poder judiciário, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados
do Brasil3. Segundo o portal do governo do estado4, o objetivo da parceria era “tornar a
tramitação do processo de internação compulsória (já previsto em lei) mais célere, para
proteger as vidas daqueles que mais precisam. As famílias com recursos econômicos
já utilizam esse mecanismo (internação involuntária) para resgatar os seus parentes
das drogas. (...) A presença do Judiciário vai aumentar as garantias aos direitos dos
dependentes químicos.”. A parceira acabou envolvendo também a Missão Belém
para a realização de abordagem de usuários de drogas em situação de rua para
convencer as pessoas a buscarem internação voluntária.
A intervenção do poder público, no entanto, é desastrosa se consideramos que
atropelou o trabalho já desenvolvido no CRATOD, não apenas com relação ao crack,
mas também em relação ao álcool e o tabaco. No fim de janeiro de 2013, logo após o
início da ação, os trabalhadores do CRATOD descrevem, em Carta Aberta 5 , a
intervenção do governo do estado no serviço, denunciando a total destituição de equipe
e interrupção do atendimento prestado, inclusive com a suspensão de atividades. A
carta denuncia o ataque ao direito à saúde dos usuários de drogas em situação de rua,
motivo pelo qual a transcrevemos na íntegra:
Carta Aberta
Ao longo da história da humanidade é comum que povos em nome do progresso e
desenvolvimento dizimem civilizações e culturas.
Guardadas as devidas proporções, estamos vivendo uma situação parecida no Cratod.
Em nome da “internação compulsória” o Cratod foi ocupado dia 21 de janeiro
pela secretaria da saúde e teve sua diretora destituída. Essa ocupação ocorreu
como se o prédio estivesse vazio, como se não houvesse nenhum profissional já
trabalhando, e não existisse um trabalho de anos, como se já não houvesse uma
3
A Defensoria Pública do estado atuou mesmo sem constar do termo.
Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=225660. Acesso em:
05/03/2014.
5
Disponível em: http://coletivodar.org/2013/01/em-carta-aberta-trabalhadores-do-cratod-criticamvoltamos-a-ser-um-centro-de-internacao-como-ha-30-anos-com-superlotacao/. Acesso em: 05/03/2013.
4
33
estrutura
montada
e
em
bom
funcionamento.
Seus
profissionais
foram
completamente desconsiderados, seu conhecimento e trabalho ignorados. A
nova equipe entra e sai das salas sem se identificar, sem se apresentar como se
estivesse na sua casa e não devesse nenhuma explicação. O trabalho existente está
sendo desmanchado.
O Centro de Referência com todos os ambulatórios, atendimentos, oficinas de regime
intensivo e de semi intensivo, parcerias com Universidades e capacitações
profissionais oferecidas para o Brasil todo foram desconsideradas, como se não
importasse realmente. As oficinas existentes formam “suspensas” para podermos
dar conta da demanda de internação apenas, sem considerar o tratamento das
pessoas dependentes. Nesta hora servimos como mão de obra barata para “tapar
buraco”, o qual aliás, sem a avaliação inicial é enorme. Voltou a se fumar nas
dependências do prédio, antes pioneiro na lei de proteção ao não fumante, no
ambiente livre de tabaco e atendimento ao tabagismo.
Em nenhum momento foi considerada a parceria, ou alguém nos perguntou o que
achávamos, o que queríamos, o que pensávamos. A equipe foi considerada, sem
julgamento, de incompetente. Infelizmente o funcionário público carrega esse rótulo de
incompetente, encostado e vagabundo, mesmo se trabalhos brilhantes são realizados
apesar da máquina pública. No serviço público tudo é feito para não funcionar, apesar
disso muita gente se esforça e a coisa funciona!
O tratamento ambulatorial visando a reinserção social está sendo gravemente
afetado. O prédio reformado e bonito (mérito do Cratod) voltou a ser um centro
de internação como há 30 anos atrás, com superlotação. Que retrocesso!
Não vamos nem entrar no mérito da questão se a internação compulsiva ... ops
“compulsória” é necessária neste momento. Estamos questionando como as coisas
estão sendo feitas. Uma equipe que não consegue nem respeitar seus colegas de
profissão , conseguirá respeitar a população? Difícil...
O trabalho com dependência química começou aqui há 23 anos quando foi criada
uma equipe para trabalhar com os pacientes alcoolistas. Uma médica, muito
34
sensata, formou uma equipe para atender ambulatorialmente os pacientes alcoolistas
uma vez que o numero de internações dessa população estava crescendo. Iniciou-se o
trabalho que aos poucos foi construído baseado no prática e no estudo. A equipe foi
crescendo e se aperfeiçoando, o conhecimento se aprimorando. Essa pequena
semente vingou, brotou, se transformou numa grande árvore frondosa que dá sombra e
frutos. Infelizmente não querem ver isso.
Como centro de referência, o CRATOD atua no tratamento, na formação de recursos
humanos, na prevenção.
Criado em 2002, por decreto do então e atual governador Geraldo Alckimin, tem se
constituído como um pólo formador de recursos humanos especializados para todo o
Estado de São Paulo, desenvolvendo e testando tecnologias de atendimento aos
dependentes de substâncias psicoativas.
Em relação ao tratamento, semanalmente, passavam (até o início de janeiro de
2013) aproximadamente 450 pacientes no CRATOD nos regimes intensivo, semiintensivo e não intensivo. Alguns pacientes permaneciam meio período (manhã ou
tarde), outros passavam o dia todo e alguns até pernoitavam quando em situação de
risco.Temos 10 leitos de observação e pernoite. Atualmente esses leitos são
ocupados apenas com pessoas “esperando vagas de internação”. O índice de
internação no último ano foi de 4 % dos pacientes e todas foram internações
voluntárias. A população atendida é 80% de moradores de rua, e o tratamento
viso a recuperação, abstinência e reinserção social.
Ao longo desses anos, o CRATOD teve grande visibilidade na mídia levando o nome
do governo e da Secretaria da Saúde a ponto de ser premiado com troféu por ser uma
das instituições do governo que mais visibilidade positiva.
O CRATOD foi extremamente importante para a discussão e posterior lei que regula o
fumo nos ambientes fechados de uso coletivo. Capacitamos a rede estadual para o
atendimento aos tabagistas, além de sermos a Coordenação Estadual para o Controle
do tabagismo junto ao INCA.
35
No papel de centro de referência, reconhecido até fora do país pelas inúmeras visitas
de profissionais da área da dependência, também no estado, fomos , por vezes
solicitados como supervisores e orientadores de serviços municipais.
No papel de prevenção realizamos, semanalmente, ações de prevenção nas praças
públicas, estações de trens e metrôs e outros espaços de grande circulação de
pessoas levando informação, distribuição de folhetos, preservativos e aplicando
instrumentos validados para o rastreamento de uso de substâncias psicoativas
(ASSIST, Fagerstrom). Após a detecção do uso utilizamos a técnica de Intervenção
breve e fazemos os devidos encaminhamentos para aqueles que não chegaram,ainda,
aos serviços de saúde e que apresenta uso abusivo ou dependência.
Chegou a ora da derrubada. Sem escrúpulos, sem respeito, sem ética, sem
consideração . Em nome de saber o que é melhor . Saiam de perto. Madeira...
Equipe do Centro de Referência de Álcool Tabaco e Outras Drogas.
CRATOD, Janeiro de 2013.
O início desta operação teve efeitos seriamente prejudiciais a quem já fazia
tratamento no local, como nos relatou J. R. S., usuário de crack já em tratamento no
CRATOD em janeiro de 2013. Ele relatou que teve seu tratamento interrompido por
conta do início dessa nova ação. Quando chegou no serviço na semana seguinte ao
início da ação, foi informado por um profissional - que estava sendo deslocado do
“intensivo” ao “semi-intensivo” - por conta do excesso de nova demanda. Alguns dias
depois disso, ele foi convidado por um dos enfermeiros do local a “coordenar um grupo
de pacientes na sala de convivência”, já que faltava profissionais. Uma semana depois
esta sala de convivência foi desativada para que o espaço fosse aproveitado pela nova
demanda e pelas equipes da assistência social e da Secretaria de Justiça que ali
estavam se instalando.
Um dos grandes problemas enfrentados pela nova operação residia nas
abordagens aos usuários nas ruas. Diante do histórico do que ocorrera no ano anterior,
quando movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos denunciaram
36
a truculência da polícia na abordagem aos usuários na “operação sufoco”, em 2013 o
governo do estado garantiu que as abordagens não seriam efetuadas por PMs. O
Ministério Público já havia se manifestado contra e ajuizara ação civil pública contra o
governo do estado justamente pelas violações de direitos humanos.
Impedimento do o uso da força policial nas abordagens, aliado à baixa procura
da internação por parte dos usuários, fez com que o público atendido pelo CRATOD
(que em janeiro de 2013 era 80% de “moradores de rua”), fosse modificado. No
decorrer da ação, as principais pessoas atendidas no CRATOD eram familiares de
usuários de drogas, de cidades do interior inclusive, que buscavam no serviço a
internação de seus familiares. A procura denota um fato que as autoridades buscaram
omitir: há falta de vagas nos serviços de atendimentos ambulatorial e de internação em
hospitais gerais e na rede do SUS. Os familiares buscavam ajuda no plantão judiciário
do CRATOD não para a decretação da internação compulsória nos termos da Lei nº
10.216/2001, mas pleitear judicialmente o acesso aos equipamentos de saúde devido a
falta de vagas. Prova disso, é que passadas 3 semanas da ação, 142 pessoas haviam
sido internadas, das quais 13 involuntariamente e o restante voluntariamente 6 ; a
primeira internação compulsória após 4 meses após o início da ação7.
Houve, assim, uma clara mudança em relação ao público atendido pelo
CRATOD: se antes 80% eram pessoas em situação de rua principalmente da região
central da cidade de São Paulo, com o passar do tempo passa a atender familiares e
usuários de drogas dos mais diversos locais da cidade, por vezes de outras cidades,
que buscavam “vaga de internação”. O atendimento jurídico se resumia a orientações
jurídicas e o encaminhamento para os CAPS de acordo com o território de cada
pessoa. Em caso de falta de vagas, a Defensoria Pública pleiteia judicialmente ali
mesmo na hora ordem judical contra o poder público. No fim das contas, além de
6
“Nenhuma pessoa foi internada após três semanas de plantão judicial em SP”, in: Portal Uol,
08/02/2013. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/02/08/nenhumapessoa-foi-internada-compulsoriamente-apos-tres-semanas-de-plantao-judicial-em-sp.htm. Acesso em:
05/07/2014.
7
“São Paulo faz primeira internação compulsória de usuário de drogas” in: O Estado de São Paulo,
caderno Metrópole, 24 de maio de 2013. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,saopaulo-faz-primeira-internacao-compulsoria-de-usuario-de-drogas,1035269,0.htm.
Acesso
em:
28/02/2014.
37
diminuir o acesso dos usuários de drogas em situação de rua via mudança de perfil dos
atendidos, como afirmou o Pe. Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, a ação se
tornou uma espécie de “poupatempo das internações”, tornando-as mais ágeis por
meio da determinação judicial. Visando se explicar, o Tribunal de Justiça foi obrigado a
emitir nota esclarecendo que o plantão judiciário no CRATOD não é uma central de
vagas8.
A ação do governo no CRATOD acarretou assim muito mais prejuízos do que
benefícios para o acesso à saúde da populção em situação de rua. Primeiro, cerceando
o atendimento que era antes prestado, suspendendo atividades e transformando o
perfil do público atendido. Depois, promovendo a judicialização das internações, como
se fosse a única forma de tratamento, e acarretando num “fura fila” de vagas no
atendimentos público por meio das ordens judiciais.
Espaço e Programa Braços Abertos:
Ao mesmo tempo em que ocorria esta nova ação do governo estadual no
CRATOD, único serviço gerido pelo governo estadual na região, a prefeitura começou
a desenvolver o seu Plano Intersetorial de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas,
ligado ao Programa Federal “Crack: É Possível Vencer”. O Centro de Convivência É de
Lei participou da construção deste plano como representante da sociedade civil, pelo
Fórum Intersetorial sobre Drogas e Direitos Humanos de SP, no Grupo Executivo
Municipal (Grupo GEM), constituído por integrantes das diversas secretarias municipais
envolvidas (saúde, assistência social, segurança, educação, esporte e lazer, cultura,
serviços, habitação, trabalho e direitos humanos e cidadania).
Lá ouvimos a notícia de que Haddad queria abrir um CAPS AD III 24 horas no
local onde ficava o “buraco”, bem no meio do “fervo” da Cracolândia. A partir desta
participação conseguimos levar integrantes da secretaria para o campo junto com
nossos redutores de danos, para dialogar com os usuários em situação de rua na
região e compreender que não era um espaço de tratamento que precisavam naquele
local, mas sim atendimentos ligados a questões básicas como higiene, alimentação,
8
Comunicado nº 274/2013 da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo. D.O.J 08/03/2013.
38
pernoites em albergues e um atendimento inicial de primeiros socorros. No dia 13 de
maio de 2013 levarmos o consultor da prefeitura para a questão, Dartiu Xavier da
Silveira, e uma integrante da secretaria, Mirmila Musse. Trazemos aqui uma síntese do
que os usuários disseram desejar que fosse feito naquele espaço da prefeitura:
● Um lugar pra lavar a mão;
● Um lugar onde eles possam beber água, já que os bares não fornecem água da
torneira pra eles;
● Local para cozinhar, cozinha comunitária;
● Um lugar coberto onde eles possam passar o dia (já que eles muitas vezes a
polícia os obriga a ficarem no quarteirão onde não tem sombra);
● Uma enfermaria, já que eles têm muitas intercorrências de primeiros socorros,
como cortes, feridas, etc.;
● Um lugar onde eles possam jogar
bola (existe uma quadra da prefeitura ali
do lado, mas eles são proibidos de entrar pela polícia que permanece o tempo
inteiro no local);
● Um lugar onde eles possam jogar capoeira, fazer música, etc.;
● Uma sala de uso;
● Acesso ao tratamento sem burocracias. Segundo o relato de um deles, alguns
usuários foram voluntariamente pedir tratamento no CRATOD, mas no momento
em que foram encaminhados para agendamento e viram que precisariam
esperar alguns dias, desistiram e voltaram para a Crackolândia;
● Um posto de venda de reciclagem. Segundo informação, a maior parte deles
trabalha um período do dia com reciclagem. (Existe um local de depósito de
material reciclado, mas que não é pra venda);
● Algum serviço, como um espaço de convivência (com banheiros), que fosse ali
mesmo no território, pois é difícil se deslocarem para outros espaços da cidade.
A gestão decidiu, então, abrir um espaço intersetorial de acolhimento para
usuários na região, no local onde antes usado por um SASF (Serviço de Atendimento
às Família atendidas pelo Bolsa-Família). No dia 17 de junho, antes da abertura do
serviço, os redutores de danos do Centro de Convivência É de lei levaram um usuário
para uma reunião, que contava com a participação também de representantes de
39
diversas secretarias, e tinha o intuito de começar a planejar como funcionaria o espaço.
Infelizmente, nesta reunião a prefeitura informou que aquele serviço teria que abrir
dentro de dois dias, por ordens do secretário de saúde. E foi sem planejamento,
estrutura e equipe que o espaço, depois nomeado de “Braços Abertos”, abriu e
funcionou até o final do ano. A equipe era formada por três funcionários da área da
saúde realocados de outros serviços. Ações pontuais eram realizadas por outras
secretarias, como da segurança urbana ou do esporte e lazer. Nesta precariedade, não
é de surpreender que diversos foram os relatos de violações dos direitos básicos dos
usuários ali.
Um dos relatos que colhemos foi o de M.P.S., que contou ter visto sopa, servida
por um grupo de caridade, distribuída em potes tirados do lixo pelos próprios usuários.
Além disso, apesar de o espaço ter aberto as portas diante de um contingente
incessante de centenas de usuários de crack, não foi construído nenhum banheiro a
mais do que o único que existia. M. A. P. contou, em 21 de outubro de 2013, que o
único banheiro disponível para os usuários estava entupido, ao mesmo tempo em que
servia de fonte de água para as comidas feitas pelos usuários nas ruas. Funcionando
de forma extremamente precária, o espaço na Rua Helvétia acabou servindo de porta
de acesso às pessoas em situação de rua para o consultório de rua na região.
Em janeiro de 2014 a prefeitura de São Paulo iniciou novas ações no que
passou a chamar de Programa Braços Abertos, e diz ter como referência a redução de
danos. Aos usuários de crack em situação de rua que estavam morando em barracos
na esquina da rua Helvétia com a rua Dino Bueno, foi oferecido vagas em hotéis na
região e na frente de trabalho do programa, para trabalhar na varrição das ruas do
entorno por quatro horas diárias. A ação ganhou rapidamente destaque na mídia pela
sua perspectiva inovadora ao propor ações sociais, como trabalho e moradia
temporários. Teve forte adesão dos usuários dos barracos, todos encaminhados para
os quartos de hotel. Infelizmente não houve proposta para as centenas de outros
usuários que frequentam o local para fumar, comprar e vender crack e outras
mercadorias e se socializar, que continuam sendo alvo das ações policiais. Como
naquele contexto a pedra de crack é usada como moeda na negociação de diversos
40
outros bens, muitos usuários continuam sendo presos sob a acusação de tráfico de
drogas.
Apesar de inovador e de grande importância para o debate público sobre o
tema, o programa da prefeitura preocupa pela sua precariedade. Tendo sido montado
sem planejamento e de forma apressada, em seu pequeno período de existência
demonstra falta de articulação entre as ações, a falta de formação dos profissionais e a
falta de acompanhamento mais individual dos casos inseridos.
No dia 04 de fevereiro de 2014, a A.L., usuária de multiplas drogas, que
trabalhando atualmente no SEAS Santa Cecília (Serviço de Abordagem Social da
Assistência Social na região da Cracolândia), entrou em contato para relatar que a
equipe, apenas com formação de ensino médio, foi colocada na rua sem qualquer tipo
de orientação ou formação, por conta do início do Programa Braços Abertos, na
Cracolândia. Relata diversas violências cometidas contra os usuários pelos novos
funcionários, como ameaçar bater neles, e que alguns trabalhadores já estão pedindo
licença do trabalho por doença. Ela foi orientada a
fazer denúncia no Conselho
Municipal de Assistência Social e ao Fórum da Assistência Social. No dia 30 de janeiro
de 2014, os redutores da instituição presenciaram também um dos funcionários da
Brasil Gigante (ONG conveniada para administrar os hotéis e a varrição) ameaçando
bater em alguns usuários na porta de um hotel. Eles acabaram intervindo,
intermediando um diálogo entre os dois.
Uma semana antes, no dia 22 de janeiro de 2014, redutores de danos
presenciaram em campo a seguinte situação. Quando estavam no “fervo” da
Cracolândia, notam que um rapaz fora expulso do local por outros usuários, sendo
chamado de “chorume” devido ao seu intenso mal cheiro. Os redutores, então, o
convidaram para tomar um banho no espaço do Braços Abertos; ele relutou bastante
mas acabou acompanhando os redutores. No caminho contou seu nome, D., e
percebemos que além de muito sujo ele estava com uma ferida na perna que por falta
de cuidados deu “bicheira”, carne em decomposição. Ao chegar no serviço por voltas
das 13h, falamos com uma assistente social pendido que o acolhesse e
disponibilizasse um banho para ele, obtendo como resposta que o banho era apenas
41
das 9:00 as 11:00 e que não havia possibilidade fora do horário. Com a insistência de
sua negativa, pedimos para conversar com a diretora do serviço e ela foi consultá-la.
Percebendo a urgência da situação, o rapaz foi autorizado a tomar o banho. Nesse
meio tempo, enquanto aguardávamos a decisão da diretora, fomos procurados por
alguns usuários e D. começou a ser hostiliziado por outros; quando a funcionária
retornou com a autorização, D. fugiu sem que conseguíssemos alcancá-lo.
Esse é mais um exemplo de violação de direitos sociais presenciada pela equipe
do Centro de Convivência É de lei, que se dá pela barreira de acesso aos serviços,
seja de saúde, seja de assistência. O usuário teve o atendimento negado e, nesse
caso, só seria atendido pela pronta intervenção dos redutores de danos junto à direção
do programa. Infelizmente, nesse caso a ineficácia do serviço acabou por afastar o
usuário, o que é compreensível, demonstra a desesperança em face de tantas
dificuldades e barreiras.
Assistência social e moradia
As políticas que dizem respeito às pessoas em situação de rua tiveram uma
grande oportunidade de avanço com a criação do chamado Comitê PopRua, pelo
Decreto nº 53.795/2013, do governo municipal. O Comitê possui composição paritária
entre governo e sociedade civil, e conta com representantes das Secretarias Municipais
de Direitos Humanos e Cidadania, Assistência e Desenvolvimento Social, Saúde,
Trabalho e Emprego, Habitação, Educação, Serviços, Coordenação de Subprefeituras
e Segurança Urbana. Instituído em março de 2013, o Comitê PopRua possibilitaria
efetivar o direito à participação social na elaboração das políticas públicas para a
população em situação de rua.
No entanto, no decorrer do ano, a prefeitura adotou medidas desprezando o
papel do Comitê na formulação das políticas para a população em situação de rua, o
que gerou grande insatisfação dos membros da sociedade civil presentes no Comitê
PopRua. Em 11 de dezembro de 2013, os representantes da sociedade civil se
reuniram com o prefeito Fernando Haddad em seu gabinete e entregaram uma carta
com as seguintes reivindicações:
São Paulo, 11 de dezembro de 2013
42
Ao Prefeito Fernando Haddad
Sabendo que a população em situação de rua é uma prioridade declarada da sua
gestão, gostaríamos de expor nossas preocupações e propostas no sentido de
fortalecer a participação popular e contribuir com soluções efetivas, respeitando os
direitos humanos.
Alguns pontos que entendemos importantes:
1) Participação efetiva no Comitê PopRua. As decisões das políticas e das ações
são tomadas nos gabinetes, desqualificando os membros da sociedade civil que
possuem longa experiência, têm muito para contribuir e que estão dispostos a
fazê-lo. Entendemos participação como um direito.
Proposta: Qualificar o diálogo e fortalecer o papel do Comitê. Deixar claro o papel do
Comitê e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) como
coordenadora da política municipal. Não temos respostas prontas, mas alguns
conhecimentos e queremos construir juntos.
2) Queremos o novo! As operações de retirada forçada da população em situação
de rua das praças e dos espaços públicos sem um planejamento e sem políticas
públicas
para
a
inclusão
social
são
ações
típicas
de
administrações
conservadoras e que desrespeitaram sistematicamente os direitos humanos,
nada de novo.
Proposta: Suspensão imediata das operações de retirada forçada dos espaços
públicos. Que toda operação seja planejada no Comitê, privilegiando a inclusão social,
com programas e projetos que considerem a complexa situação de cada pessoa.
Queremos participar de todo o processo e não no final como no Pq. Dom Pedro.
3) População de rua não é caso de polícia e nem pode ser estigmatizada por
tráfico/uso de drogas. A situação do Pq. Dom Pedro é consequência da ação
equivocada da Prefeitura.
Proposta: Respostas imediatas com políticas de habitação, saúde, assistência social e
43
trabalho. A intervenção deve ser planejada no Comitê, com a coordenação da SMDHC,
incluindo várias secretarias e, caso seja necessário, a Segurança Pública.
4) Não queremos que as pessoas fiquem na rua, mas não concordamos com o Abrigo
da Zach Nachi para 500 pessoas. Ele precariza a política pública e viola direitos
humanos.
Proposta: Que todos os serviços implementados respeitem a Tipificação Nacional de
Serviços da Assistência Social, sendo para no máximo 50 pessoas. Só assim se
poderá promover a autonomia e dignidade. Com a qualificação dos espaços, pode-se
abrir vagas nos atuais equipamentos para acolher as pessoas que estão no Zach
Nachi.
5) Baixa efetividade das ações da Prefeitura: baixo nível de empregabilidade no
Pronatec, nenhuma inclusão habitacional, o Programa Operação Trabalho não saiu do
papel, Operação Baixas Temperaturas aconteceu sem planejamento e sem considerar
as propostas do Comitê.
Proposta: Prioridade máxima na implementação das políticas. Ações efetivamente
intersetoriais e de maior articulação e corresponsabilidade entre as secretarias. Que os
novos convênios levem em consideração essa nova configuração.
6) Por que recortar recursos da Assistência Social? A diminuição de 14% inviabiliza o
cumprimento do Plano de Metas. Os serviços para a população de rua estão sendo
sucateados e estão refém de um grupo de organizações sociais.
Proposta: Aumento do orçamento da Assistência e dotação orçamentária específica
para a população de rua. Romper com o cartel de organizações sociais que prestam
serviços.
A sociedade civil se coloca à disposição do Sr. Prefeito para ajudar na efetividade de
uma política pública que seja profunda e efetiva. Queremos participar efetivamente da
construção das políticas. Para isto, queremos um canal de participação efetivo e
possibilidades de discutir com as secretarias as ações que envolvam a população de
rua.
44
Representantes da sociedade civil no Comitê PopRua
Fórum Permanente de Acompanhamento das Políticas Públicas para a População de
Rua
Como visto, não parece demais enfatizar o quanto as ações governamentais
para a população em situação de rua são marcadas pelo autoritarismo policial e pela
precariedade no atendimento aos direitos sociais. A pauta de reinvidicações levada ao
prefeito em dezembro de 2013, além da necessária efetividade da participação do
Comitê PopRua, está relacionada principalmente para questões ligadas à assistência
social e o fim da retirada autoritária dos espaços públicos pelas forças de segurança
(PM e GCM). As insatisfações relatadas ao prefeito dizem repeito à operação higienista
na Praça da Sé, a operação baixa temperaturas e situação precária dos espaços de
acolhimento, como as Tendas do Parque Dom Pedro e Santa Cecília, além do Espaço
Vivência.
Em 9 de outubro de 2013, como noticiou a imprensa9, a prefeitura levou acabo
uma operação para “retirar os moradores de rua e viciados em drogas que vivem no
local [Praça da Sé], marco zero da cidade”. Como sempre, a ação foi antecedida por
uma operação policial truculenta e a prisão de algumas pessoas acusadas de serem
traficantes. Além disso, a retirada das pessoas do local não significou no oferecimento
de qualquer alternativa onde elas pudessem ficar. M. S. M., ativista e membro da
Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos em São Paulo, relata o seguinte sobre a
operação na Praça da Sé:
Na quinta feira passada [17 de outubro de 2013] realizamos uma visita pela Praça da
Sé com o objetivo de conversar com as pessoas em situação de rua e usuários de
drogas sobre a recente operação da Prefeitura.
9
“Prefeitura faz operação para retirar moradores de rua da praça da Sé”, in: Folha de São Paulo,
caderno Cotidiano, 09/10/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1353941prefeitura-faz-operacao-para-retirar-moradores-de-rua-da-praca-da-se.shtml. Acesso em: 05/03/2014.
9
45
Combinamos de encontrar na escadaria da Catedral e dali caminhar na praça para
tentar conversar. Assim que chegamos todos na escadaria percebemos que havia uma
operação policial (PM) em curso logo atrás da Secretaria de Justiça, muito próximo ao
Pateo do Colégio. Ao chegarmos a cena era cerca de 20 pessoas enfileiradas na
parede, sendo revistadas. Do outro lado da rua as barracas e outros pertences
completamente destruídos. A operação, segundo a autoridade presente, foi
desencadeada por uma denuncia anônima de tráfico de drogas no local. Segundo disse
o PM, aquele era um ponto famoso por tráfico de drogas, justamente atrás da
Secretaria de Justiça.
"Vejam que absurdo".
Apresentaram pequenas quantidades de crack ou cocaína, não deu para perceber, e
três pessoas assumiram estar na posse das substâncias, além de dinheiro que os PMs
alegaram ser do tráfico. Pessoas detidas e material apreendido. Ao acabar com a
operação pudemos conversar um pouco com quem não saiu correndo ao ser liberado
pela PM. Uma mulher disse que a PM havia pego o dinheiro que ela juntou vendendo
bala. Outro homem disse que o dinheiro que a PM pegou dele não era do tráfico. Que
rolava venda no local, mas que o dinheiro apreendido era de quem morava ali, não de
quem vendia.
Estas abordagens normalmente acabam com um caminhão da prefeitura, ou
caminhão de lixo mesmo, passando e levando o restante dos pertences dos
moradores. Talvez a nossa presença naquele momento tenha evitado isso. O fato é
que segundo os relatos essas abordagens continuam sendo cotidianas.
Saímos do Pateo do Colégio e fomos até a Praça da Sé tentar encontrar outros
moradores. Conversamos com pouquíssimos que estavam na região do metrô.
Contaram que na semana anterior a Operação da Prefeitura havia levado a maior
parte dos moradores para a Tenda do Parque Dom Pedro. A Tenda foi reaberta
agora para esta operação portanto não conta com atividades, agenda, ou
planejamento. Parece que tem água para banho. Foi relatado que a tenda esta
"dominada"
pelos
moradores,
portanto
não
sabemos
se
existe
algum
46
responsável oficial por aquele espaço.
Visitamos o Onibus Big Brother da Guarda Civil Metropolitana. Por acaso havia
ocorrido uma pane elétrica e as câmeras estavam desligadas. Portanto o ônibus de 2
milhoes de reais servia café, agua e poltronas confortáveis para os Metropolitanos
passarem a noite.
A situação da praça é a de ocupação militar. Uma descrição que serve bem é "UPP à
moda paulista". Não hastearam bandeira, não cantaram vitória, mas estão lá, ocupando
militarmente o espaço.
A alternativa oferecida pela prefeitura naquele momento foi a Tenda do Parque
Dom Pedro, que já se encontrava sucateada e até mesmo abandonada pelo poder
público municipal, conforme noticiou a imprensa10. Enquanto os movimentos sociais e
as entidades de direitos humanos criticam a omissão da prefeitura na gestão e
manutenção do espaço, dois dias depois o prefeito dá entrevista na imprensa 11
confirmando o deslocamento das pessoas da Praça da Sé para o Parque Dom Pedro,
mas se justifica: "Houve um deslocamento dessa população para o Parque Dom Pedro.
Acontece que infelizmente no Parque Dom Pedro, não só as pessoas que estavam na
Sé, resolveram ocupar o local. Inclusive todos os equipamentos que foram instalados lá
já sumiram. Os chuveiros sumiram, muita coisa sumiu". Segundo ele, a precariedade
se explica pois os funcionários têm medo dos usuários de crack: "Existe um problema
que é a questão do crack, os funcionários públicos estão receosos de frequentar o
local, porque não se sentem mais seguros".
O Pe. Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, relatou a situação que
encontrou na Tenda do Parque Dom Pedro após visita realizada em outubro: “Visitei a
Tenda desativada do Parque D.Pedro que se transformou em um acampamento, o
10
“Centros de convivência de morador de rua vivem abandono na gestão Haddad”, in: O Estado de São
Paulo,
caderno
Metrópole,
07/12/2013.
Disponível
em:
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,centros-de-convivencia-de-morador-de-rua-vivem-abandonona-gestao-haddad,1105644,0.htm. Acesso em: 05/03/2014.
11
“Funcionários não se sentem seguros para ir a tenda, diz Haddad”, in: O Estado de São Paulo,
caderno Metrópole, 09/12/2013. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,funcionariosnao-se-sentem-seguros-para-ir-a-tenda-diz-haddad,1106314,0.htm. Acesso em: 05/03/2014.
47
mesmo que foi removido da Praça da Sé ocupada pela GCM e PM. Ontem os GCMs
cuidavam do novo jardim que está sendo plantado na Praça. Mais uma vez a estática
se soprepõe à ética. A situação do acampamento na Tenda é o mesmo dos campos de
refugiados da Síria, uma calamidade.". O abandono da prefeitura do espaço de
assistência social por culpa do medo dos funcionários em relação aos usuários de
crack e traficantes, criou a justificativa perfeita para que o espaço fosse fechado, não
sem, é claro, mais uma ação truculenta da PM12.
A situação encontrada na Tenda Santa Cecília não é muito diferente. Foi nesse
local onde se realizou um das turmas do curso promovido pelo Centro de Convivência
É de lei. Este equipamento da assistência social foi fechado no final do ano, sem ser
substituído por qualquer outro tipo de espaço que desse conta de suas demandas. No
entanto, enquanto estava aberto apresentava uma precariedade em diversos aspectos.
Funcionando das 8:00 as 22:00, tinha equipe de apenas três pessoas por turno, com
um fluxo de dezenas de pessoas a cada hora. Os banheiros apresentavam os
chuveiros constantemente quebrados, e boa parte do galpão era ocupado por
colchonetes levados para dentro pelos usuários para continuar dormindo.
Desse modo, a tônica das políticas públicas voltadas à população em situação de rua é
sempre marcada pela precariedade dos serviços e do atendimento, e pela violência
institucional. Na coleta de violações de direitos humanos, ouvimos o relato de O. S. P.,
participante da segunda turma do curso, usuário de drogas em situação de rua, que
está dormindo em albergue e trabalhando como ajudante na Casa de Convivência
Porto Seguro. Ele afirma que o albergue onde está dormindo, o Espaço Vivência, fica
com uma grande fila no final da tarde, não preenchem todas as vagas e rejeitam
pessoas. No meio da madrugada saem para oferecer estas vagas a quem está na rua,
que acaba rejeitando ir para a vaga no meio da madrugada para sair de lá novamente
às 6 horas da manhã. Orientação: fazer denúncia no Conselho Municipal de
12
“Abrigo para moradores de rua é fechado após invasão de traficantes”, in: Bom Dia Brasil. Disponível
em:
http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/abrigo-para-moradores-de-rua-e-fechado-aposinvasao-de-traficantes.html. Acesso em: 05/03/2014.
12
48
Assistência Social e ao Fórum da Assistência Social.
Na ouvidoria realizada no RECIFRAN, ouvimos denúncias da A., usuária de
drogas e transsexual, que relatou ser perseguida por uma assistente social de uma
Casa de Acolhida, não podendo retornar ao serviço enquanto a profissional ainda
estivesse lá. Ela indagou o que poderia fazer e foi orientada realizar uma denúncia no
Conselho Municipal de Assistência Social. Na ouvidoria realizada na Casa de Oração,
J. E. S., um senhor de cerca de 70 anos, relatou uma revista vexatória que sofreu num
albergue pela GCM, chamada pela direção do próprio serviço. Segundo afirma, os
guardas foram chamados após uma briga no serviço e revistaram todo mundo à
procura de drogas. J. E. S., que necessita de bengalas para andar, foi obrigado a ficar
em pé sem as bangalas, e depois foi alvo de golpes de cacetete. O senhor foi orientado
sobre seus direitos com relação às abordagens policiais nos mesmos termos dos
outros casos semelhentes.
Em outro relato na ouvidoria do RECIFRAN, P. nos indagou se teria direito a ter
uma cópia do “termo de acolhida”, um documento que contém os direitos e deveres dos
usuários dos serviços de acolhimento. Disse que no serviço que está abirgado, a
assistente social se negou a fornecer uma cópia, justificando que ela não teria direito a
uma cópia do termo. Ela foi orientada de que tem sim o direito, visto que é nesse
documento justamente que ficam registrados os direitos e deveres. A situação é
reveladora de como as políticas públicas ainda não são encaradas de forma clara como
deveres dos poderes públicos como forma de concretizar os direitos sociais da
população.
É bastante curioso que durante o projeto praticamente não tenhamos sido
procurados por pessoas em situação de rua reclamando de seu direito à moradia. O
único caso foi de E. O., usuário do Complexo Prates e que esteve presente na primeira
turma do curso. Ele pediu ajuda para realizar seu sonho de conseguir uma moradia e
reclamou muito do cadastro dos programas de moradia da Secretaria de Habitação. Foi
orientado sobre o cadastro na Secretaria de Habitação da Prefeitura e caso ocorresse
algum problema burocrático no trâmite do cadastro, de que poderia também a procurar
a Defensoria Pública do estado. E. O., animado ao conhecer a novidade desse serviço
49
público de acesso à justiça, começou a ir na Defensoria para tudo o que queria
resolver, mesmo as coisas que não tinham a ver com a justiça de forrma direta, como
discussões com usuários dentro do Complexo Prates! Um problema até certo ponto
bom, que demonstra o potencial emancipatório da educação em direitos humanos.
Trabalho e cultura
As iniciativas do poder público para a efetivação dos direitos à educação, ao
trabalho e à cultura são ainda mais precárias. É notória a dificuldade em efetivar os
direitos sociais mais emergenciais, como assistência e saúde, o que dizer então de
iniciativas sobre trabalho, educação e cultura? Certamente a precariedade das políticas
é ainda maior quando se trata de direitos que promovem e possibilitam a emencipação
e autodeterminação, como os direitos em questão. Nesse sentido, vale lembrara que a
oferta de trabalho do programa Braços Abertos da prefeitura reside na zeladoria de
espaços públicos, com a varrição de ruas e praças. Que oportunidades efetivas um
trabalho como esse representa? Vale lembrar que na pauta de reivindicações dos
usuários do Complexo Prates (transcrita acima) estava inserção da educação de jovens
e adultos entre os serviços do complexo.
Além disso, a fragilidade de tais programas é uma condição que inexorável.
R.G., na ouvidoria no Centro de Convivência É de lei, contou porque não tem
esperança em relação aos projetos de geração de trabalho e renda. Conta que já
entrou duas vezes nas Frentes de Trabalho oferecidas pela prefeitura. As duas eram
para ajudar a parar pedestres em faixas de grande circulação. Os dois programas, que
ofereciam bolsa de R$450,00 por seis horas de trabalho, acabaram repentinamente,
por conta de mudanças de cargos políticos na Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social, e sendo apenas uma inserção pontual não serviram para que
se inserisse no mercado de trabalho.
A violação de direitos trabalhistas na iniciativa privada foi o tema do relato de F.
R na ouvidoria realizada no Matilha Cultural. Relatou que estava trabalhando de
segurança em uma empresa privada e tinha problema com bebida. Após a separação
de sua esposa, acabou em uma rotina de muito uso de álcool e acabou mandado
50
embora da empresa mas sem qualquer documento formal. Queria saber se tinha direito
a algum “benefício do governo”. Foi orientado a retornar na empresa para retirar os
papéis da sua recisão (seu direito) e procurar a Defensoria Pública da União.
Já no que se refere à cultura, uma situação interessante ocorreu durante a
realização do projeto. No dia 13 de maio de 2013, quando redutores de danos do
Centro de Convivência É de lei saíram às ruas com representantes da prefeitura para
saber dos usuários que desejariam que fosse feito no espaço onde atualmente está
instalado o programa Braços Abertos, ouviram de dois usuários relatos sobre a Virada
Cultural (evento que aconteceu no fim de semana seguinte) de forma positiva. Um
deles disse que desde quarta-feira estava se alimentando três vezes por dia e usando
menos crack para estar bem durante a Virada Cultural. O outro relatou orgulhosamente
que participou todos os anos do evento – este é o 8 (oitavo). No fim de semana
seguinte, porém, a prefeitura organizou o evento cultural de forma a isolar a
Cracolândia e seus frequentadores dos frequentadores do evento, utilizando cavaletes
para delimitar o espaço urbano e impedir a circulação, tal como consta do relato de
dois ativistas presentes13:
Andando pela madrugada da Virada Cultural, na região que ficou conhecida como
“cracolândia”, no Bairro da Luz, vi por volta das 3h da manhã um cercamento armado
com cavaletes de trânsito na entrada da Rua Gusmões com a Santa Ifigênia. Algo
muito parecido estava montado lá no ano passado, quando o espaço havia sido
reservado para a “discotecagem nova luz” e um palco destinado a bandas
independentes havia sido construído naqueles arredores. Desta vez, nenhuma tenda
foi armada nestes quarteirões, talvez por isso tenha sido menos comentado o feito.
Independente de qualquer explicação dada para o cercamento, seu efeito saltava aos
olhos e só não notava quem não queria: Reforçar o confinamento dos usuários de
crack e pessoas em situação de rua que frequentam a “cracolândia” em um espaço
13
“Cavaletes confinam usuários de crack na Virada: a violência que ninguém comenta”, in Coletivo DAR,
por Gustavo Assano e Pedro Nogueira. Disponível em: http://coletivodar.org/2013/05/cartas-na-
mesa-cavaletes-confinam-usuarios-de-crack-na-virada-a-violencia-que-ninguemcomenta/. Acesso em: 05/07/2014.
51
delimitado e controlado.
No momento em que percorria o caminho da Sta. Ifigênia até o palco da Julio Prestes,
não vi policial ou viatura no trajeto, mas ano passado pude ver o confinamento sendo
tutelado pela polícia, que também parava e revistava mendigos que aparentavam estar
vendendo
mercadorias
como
camelôs
(em
2012
presenciei
quatro
policiais
apreendendo um carrinho de um senhor que mal conseguia reagir diante da pressa dos
PMs em levar seus pertences para uma base móvel estacionada ali perto). Acho que
não custa lembrar que tudo isso estava acontecendo no Dia Mundial de Luta
Antimanicomial, poucas horas depois de ter ocorrido um grande ato lembrando a data.
(...)
Enquanto isso, a política pública do cavalete continua como resquício e promessa de
futuro, delimitando num zebrado laranja e branco, o que pode e o que não pode ser
visto nesse evento. A falta de discussão dessa questão, mostra que a camuflagem dos
cavaletes, antes de tudo, é uma política vitoriosa gestão após gestão, até o dia em que
conseguirem higienizar, limpar e transformar o centro num pólo cultural e lar de gente
criativa, jovem e inovadora, além de negócio lucrativo para poucos.
Por fim, trazemos também o caso de C.M.S.S., que não diz respeito ao acesso à
justiça. Ela foi uma das alunas do curso, bastante participativa e interessada e nos
indagou a respeito de seus direitos em relação ao casamento que mantinha, mas
encerrado já há alguns anos (seu ex-marido recusava-se a fazer o divórcio). Relatou
situações de violência doméstica e preocupação com pequenos bens que haviam
adquiridos conjuntamente. Foi orientada a buscar a Defensoria Pública do estado para
a garantia de seus direitos.
O encaminhamento dos casos de violações dos direitos sociais também á
bastante complexo, mas nesse caso por motivos diferentes. Em alguns deles, como a
discriminação e preconceito que impõe barreiras no atendimento, foram resolvidas no
momento com a intervenção dos redutores de danos, profissionais instruídos
sabedores de seus direitos. Alguns caso podem ser resolvidos com medidas
52
administrativas nos conselhos de políticas etc., porém outros podem demandar o
encaminhamento ao poder judiciário. É fato sabido que nenhum deles oferece soluções
a contento, tanto que as políticas apresentam ainda tantos problemas. Durante as
atividades coletivas do projeto (no curso e nas ouvidorias) esses aspecto diferente de
realização dos direitos sociais demanda que as pessoas se organizem coletivamente
para a reivindicação de seus direitos, seja nos movimentos sociais organizados que
lutaram pela realização das políticas públicas existentes, seja por meio do acesso à
justiça e a intervenção do Poder Judiciário.
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