Experiência portuguesa pode melhorar combate ao crack no Brasil

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13/01/2012 - 11h10 | Simone Cunha e Vitor Sorano | Lisboa
Experiência portuguesa pode melhorar combate
ao crack no Brasil, dizem especialistas
Foco deve ser o tratamento dos dependentes; analistas criticam operação na
Cracolândia
No final dos anos 1990, quando o consumo de heroína ocupava as ruas de Portugal, o
país decidiu tomar uma medida radical e polêmica: descriminalizou o consumo de toda e
qualquer droga. O foco da ação do Poder Público deixou de ser a repressão policial ao
consumo de entorpecentes, para privilegiar o tratamento de saúde e a assistência social
aos usuários.
Leia mais:
Crise econômica deve afetar políticas públicas e aumentar consumo de drogas
Hoje, o país é elogiado pelas estatísticas que apontam queda no uso de drogas. Para
alguns analistas do fenômeno, a política portuguesa deveria servir de referência para o
Brasil, por exemplo, na luta contra o crack, - em contraposição à repressão policial aos
usuários da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo.
Efe (06/01/2012)
Política de criminalização do usuário de crack no Brasil é criticada por especialistas portugueses
Mesmo que se resista à descriminalização, como é a posição oficial brasileira, os
especialistas defendem que o importante é que a prisão não seja o recurso para tratar o
consumidor. A forma, qualquer que ela seja, deve evitar a estigmatização do usuário, disse
ao Opera Mundi Jorge Goulão, presidente do IDT (Instituto da Droga e da
Toxicodependência). O órgão, que fica sob a alçada do Ministério da Saúde, é o
equivalente português da Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), do
Brasil, subordinada ao Ministério da Justiça.
“Penso que a descriminalização não é condição sine qua non para a dissuasão. O que me
parece essencial é que o contato do usuário com o sistema (penal ou outro) seja
acompanhado por um olhar de profissionais da área da saúde e de apoio social, tendo em
vista encontrar respostas para além da mera reclusão, que habitualmente não tem outros
resultados que não sejam os do aumento da exclusão e estigmatização”, afirma Goulão.
Com a mudança da lei, em 2000, em vez de enfrentar um processo criminal, os flagrados
com drogas para consumo próprio (a quantidade máxima é a necessária para até 10 dias)
em Portugal respondem a um processo administrativo nas Comissões de Dissuasão de
Toxicodependência.
Combate à estigmatização
As punições, quando ocorrem, são administrativas – não vão para a ficha criminal – e
envolvem, por exemplo, impedimento de que o dependente exerça algumas profissões ou
frequente determinados locais. Mas a maioria dos processos é suspensa. Assim, em 2010,
62% das decisões das comissões foram pela a suspensão dos processos de nãodependentes, 20% pela suspensão de processos de dependentes que se comprometeram
com tratamento e 14% resultaram em punição.
A preocupação em evitar o estigma modela também o modo de operação. O consumidor
pode pedir que as cartas sobre o processo não sejam enviadas para sua casa e o
“julgamento” é feito em uma sala informal, sem colocá-lo na situação de réu, descreve
Gleen Greenwald, constitucionalista norte-americano que escreveu um relatório sobre o
modelo português para o Instituto Cato, publicado em 2009.
“A esfera dos procedimentos operativos que acompanha a descriminalização traduz-se
numa ferramenta conceitual importante à diminuição da repressão do consumidor e
reparadora no sentido de serem propostas novas abordagens ao
consumidor/toxicodependente, considerando-se a hipótese de conduzi-lo para tratamento
sem estigmatização ou punição”, defende Lúcia Dias, mestre em toxicodependência e
patologias psicossociais e autora do livro Drogas em Portugal.
O que não significa que não haja repressão a quem trafica. Em 2010, a maioria (58%) dos
presumíveis infratores detidos pela polícia é traficante-consumidor. Dos processos
envolvendo indivíduos que acabaram considerados traficantes, 87% terminaram em
condenação.
Reconstrução social
“Claro que há discriminação”, relatou Margarida Marques, de 57 anos, ex-dependente que
hoje atua em uma associação de apoio aos usuários de drogas em Portugal. “Mas não foi
isso que me levou a deixar o vício. O que me levou a procurar ajuda foi minha degradação
em todos os níveis (fisico, social e espiritual)”. Atribuindo sua recuperação à religião e
contrária às políticas de substituição de drogas, ela defende entretanto o apoio terapêutico
do Estado ao dependente.
Para além da saúde, o modelo português investe na reconstrução da estrutura social do
indivíduo buscando detectar que tipo de problemas individuais podem estar relacionados
com o uso de drogas. Foram identificados 1.323 indivíduos com necessidades de apoio
habitacional, sendo um terço deles solucionados -- percentual considerado baixo pelo IDT.
Houve também atendimento de 43% dos 4.719 casos com necessidades de emprego,
26% dos 2.280 de formação profissional e 44% dos 1.965 de educação.
O trabalho de reinserção, afirmou Goulão, pode ser aplicado mesmo a populações
problemáticas como as de consumidores de crack da Cracolândia. “É possível sempre.
Claro que não conseguimos com todas as pessoas um sucesso pleno que teria como
corolário: habitação, emprego etc., mas é sempre possível ajudar as pessoas mais
desorganizadas a fazerem alguns progressos: nos hábitos de higiene, na aproximação
com a família, na (re)aprendizagem da vida em grupo, a saberem onde acaba o seu
espaço e começa o do ‘outro’”, explicou o presidente do IDT.
“Temos clubes de emprego onde se ensina a procurar anúncios nos jornais, a fazer um
currículo, treinam-se as respostas a uma entrevista. Qualquer pequeno progresso é
sentido por estas pessoas como um enorme ganho”, contou Goulão.
Referência
Em um artigo que analisa a intervenção planejada pelo Governo Federal em relação ao
crack, a cientista política e fundadora do Instituto Igarapé, Ilona Szabo, traça um paralelo
entre a crise da heroína na Europa e a de crack no Brasil. Ela sustenta que a saída de
Portugal e outros países europeus foi sábia ao retirar “sanções criminais dos usuários
como forma de abrir um canal direto para prestar assistência médica e social.”
“O modelo português é um primeiro passo para o Brasil, porque está bem estruturado e
documentado”, diz Ilona, que também faz parte do secretariado da Comissão Global e
Latino Americana de Políticas sobre Drogas. Nos relatórios do ano passado das
comissões, o modelo punitivo em relação às drogas foi declarado falido e a guerra,
perdida.
Para o grupo, do qual fazem parte figuras como o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso e o ex-secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Kofi Annan,
métodos alternativos como o de Portugal deram melhores resultados do que a “Guerra às
Drogas”. O texto global defende “a legalização e a regulamentação da maconha, o fim da
criminalização dos usuários de todas as drogas, o investimento de recursos em pesquisa
científica e o uso da repressão com ênfase nas estruturas criminosas e não nos
cultivadores, mulas humanas e vendedores de pequenas quantidades de droga.”
Mesmo para o crack?
“Quanto mais perigosa a droga, mais sentido faz descriminalizar”, disse Glen Greenwald,
que vive atualmente no Rio de Janeiro para apresentar as pesquisas que tem feito sobre o
modelo português. Para ele, as realidades sociais e culturais dos dois países são bastante
semelhantes – com pobreza, catolicismo, conservadorismo e poucos recursos por parte do
governo – o que aponta que a política seria eficaz aqui como lá. “É mais eficaz tratar vício
em droga como um problema de saúde do que um problema criminal. Isso é tão verdade
no Brasil quanto é em Portugal."
Efe (06/01/2012)
Ação na Cracolândia enaltece "uma cultura de que o filho feio a gente esconde", diz especialista
“É um mecanismo de limpeza social (que está sendo feito em São Paulo)”, opinou Ilona
Szabo, "uma opção fácil de tornar invisível o problema das drogas e não de resolvê-lo. É
cruel, uma cultura de que o filho feio a gente esconde.”
Familiarizada com modelos internacionais de combate e tratamento de drogas, Ilona se diz
incapaz de antever o resultado da política adotada no Brasil em função da falta de
transparência sobre o tratamento que será dado aos usuários de drogas em termos de
saúde e assistência social. “Meu medo é que nada disso exista e se esteja apenas levando
essas pessoas para algum lugar e dopando. Sem plano e cuidado com reinserção o
problema vai voltar e maior.”
A responsabilização dos profissionais da saúde e da assistência social quanto às ações
adotadas com os usuários é um dos pontos fortes destacados por Ilona no modelo
português.
Diferente das alternativas que deixam nas mãos dos policiais a definição de quem vai ou
não para a delegacia por não preverem quantidade e nem terem protocolos de saúde
definidos, nesse caso há um profissional que assina o cadastro, cujas informações são
protegidas. “Uma comissão de profissionais é responsável pela vida de outra pessoa e
assina isso, e os dados são recolhidos pelo assistente social, não pela polícia. O usuário
sai do número e vira uma pessoa.”
É um mecanismo mais custoso e trabalhoso, mas visto por ela como mais eficaz. “A
política que estamos empregando hoje é enxugar gelo e dar tiro no pé. Estamos muito
atrasados e somos preconceituosos em relação ao tema. Aqui bandido bom é bandido
morto, mas se não entendermos que a sociedade tem de cuidar de todos os cidadãos,
todos somos afetados. Não preciso consumir para ser afetado.”
De baixo para cima
O modelo português começou de forma clandestina, diz o pesquisador Jorge Barbosa em
seu artigo “A emergência da redução de danos em Portugal: da clandestinidade à
legitimação política”. Nos anos 1980, os técnicos desenvolviam ações pontuais ligadas à
saúde porque percebiam, no dia a dia, que faltava apoio nessa área. Foi na crise da
heroína e com a explosão de casos de Aids no país que o tratamento se institucionalizou.
Um dos primeiros programas foi o do bairro social do Casal Ventoso, em Lisboa. Segundo
Barbosa, o projeto encontrou pontos de contato com a população usuária de droga,
unidades móveis que faziam programas de substituição da heroína e feitos planos
integrados de prevenção às drogas entre governo e sociedade civil.
No Porto, outro programa parecido foi desenvolvido em meio ao sentimento de
insegurança e exclusão social gerado pelo consumo de drogas nas ruas. Para se
aproximar dos usuários, foram colocadas equipes de rua, gabinetes de apoio, centro de
acolhimento, programas de troca de seringas e de substituição de droga e rastreio de
doenças infecciosas.
A consolidação de programas de trocas de seringa, estima Barbosa, evitou
aproximadamente 6.000 infecções cada 10.000 utilizadores de drogas injetáveis, entre
1993 e 2001. Uma economia de 400 milhões de euros em recursos públicos, calcula.
Com o aumento dos casos de Aids e da criminalidade por conta do consumo de drogas,
ocorreu o que Barbosa chama de “cientificação” do debate sobre políticas alternativas em
relação ao consumo de drogas, em que o governo chama os especialistas a contribuírem
para a busca de soluções. Discutiu-se até legalização e criou-se uma proposta de
descriminalização, que virou lei após a análise de uma comissão de estudos em 1999.
Tudo isso, não sem críticas de que a política era de resignação perante as drogas ou de
medicalização do que era visto como um problema de segurança.
Para Barbosa, o país ainda precisa fazer mais, diversificar a atuação e se adaptar às
práticas de consumo para reduzir o problema. Ele critica o fato de não haver prescrição de
heroína sob controle médico, troca de seringas nas prisões ou criação de salas de injeção
assistida. Para Lúcia Dias, a principal dificuldade do atual modelo é conseguir definir as
quantidades-limite que diferenciam um consumidor de um traficante. “É muito difícil
precisar e especificar esses valores.”
Sem utopia
Sinais de aumento no consumo de drogas entre populações escolares e de um
recrudescimento do fenômeno da cocaína mostram que a estratégia portuguesa, se bem
sucedida, não é de todo capaz de zerar o problema do consumo de entorpecentes – assim
como parece acontecer com a guerra às drogas.
Para Ilona Szabo, que foi também co-roteirista do documentário Quebrando o Tabu, em
que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso faz um périplo atrás de soluções de
redução de dano em relação às drogas, o Brasil precisa ir além do modelo português. O
segundo passo é a legalização e a regulação das drogas para que seja possível controlar
substâncias disponíveis em todo o mundo. “Como queremos continuar em um modelo
burro de proibir drogas conhecidas? O que é proibido não pode ser regulado, precismos
experimentar um modelo pragmático.”
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